Acórdão 1/92
Processo 299/87
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O procurador-geral-adjunto em exercício no Tribunal Constitucional requereu, ao abrigo do artigo 281.º, n.º 2, da Constituição (na sua versão de 1982, a que corresponde, na actual versão decorrente da Lei Constitucional 1/89, o artigo 281.º, n.º 3) e do artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade superveniente - com efeitos a partir da entrada em vigor da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro - do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, de 7 de Março.
Invoca como fundamento do seu pedido o facto de aquela norma ter sido julgada inconstitucional, por violação do artigo 115.º, n.º 5, da Constituição, na redacção da Lei Constitucional 1/82, em três casos concretos, através dos Acórdãos n.os 354/86, de 16 de Dezembro, no processo 195/85, da 2.ª Secção, 19/87, de 14 de Janeiro, no processo 332/85, da 2.ª Secção, e 384/87, de 22 de Julho, no processo 173/85, também da 2.ª Secção.
O requerimento vem instruído com cópia dos mencionados Acórdãos n.os 354/86, 19/87 e 384/87, os quais foram, entretanto, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 11 de Abril, de 31 de Março e de 15 de Dezembro de 1987, respectivamente.
2 - Admitido o pedido, foi notificado o Primeiro-Ministro para, querendo, sobre ele se pronunciar, no prazo de 30 dias, nos termos dos artigos 54.º e 55.º da Lei 28/82.
Na sua resposta, o Primeiro-Ministro limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
3 - Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 281.º, n.º 2, da Constituição (na redacção que antecedeu a Lei Constitucional 1/89) e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos, cabendo a iniciativa do processo a qualquer dos seus juízes ou ao Ministério Público e seguindo este processo de repetição do julgado trâmites idênticos aos do processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade.
Estando, no caso dos autos, reunidos os requisitos indispensáveis ao conhecimento de meritis do pedido, vejamos se existem fundadas razões jurídicas para, em sede de fiscalização abstracta, este Tribunal declarar a inconstitucionalidade da norma em apreço.
II - Fundamentos
4 - O Decreto-Lei 39/81, de 7 de Março, veio, no seu artigo 1.º, dar nova redacção ao artigo 1.º do Decreto-Lei 668/75, de 24 de Novembro, o qual passou a dispor o seguinte:
As pensões devidas por acidente de trabalho ou por doenças profissionais que não sejam de responsabilidade da Caixa Nacional de Seguros de Doenças Profissionais são sempre calculadas com base na Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, no Decreto-Lei 360/71, de 21 de Agosto, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 459/79, de 23 de Novembro, e nos salários anuais correspondentes a 12 vezes a remuneração mínima mensal legalmente fixada para o sector em que o trabalhador exerce a sua actividade e para o território - continente ou Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira - onde a exerce, desde que a respectiva remuneração anual seja inferior a esses valores.
Por sua vez, o artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81 prescreve:
As dúvidas suscitadas na execução deste diploma serão resolvidas por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e do Plano e dos Assuntos Sociais.
É justamente a última disposição legal transcrita - a qual habilita a Administração (in casu, os Ministros das Finanças e do Plano e dos Assuntos Sociais) a emanar regulamentos interpretativos (na forma de despacho ministerial conjunto) das disposições do Decreto-Lei 39/81 - que constitui objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, com efeitos a partir da entrada em vigor da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro.
O preceito constitucional que é invocado pelo requerente como sendo ferido por aquela norma legal é, como já foi referido, o artigo 115.º, n.º 5 - disposição aditada pela Lei Constitucional 1/82 -, o qual dispõe o seguinte:
Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
Não é, porém, esta norma constitucional no seu todo - a qual encerra uma pluridade de comandos - que tem de chamar-se para ser confrontada com a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, mas tão-só uma sua dimensão ou segmento, precisamente aquele em que se estatui que «nenhuma lei pode [...] conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar [...] qualquer dos seus preceitos».
5 - Os fundamentos dos três arestos mencionados, que julgaram inconstitucional a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, podem sintetizar-se nos seguintes termos:
a) Antes da revisão constitucional de 1982 eram frequentes no nosso ordenamento jurídico normas com a do citado artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, de 7 de Março, isto é, preceitos nos termos dos quais as dúvidas suscitadas na execução dos diplomas legais em que estavam inseridos seriam resolvidas por despachos ministeriais. Aquelas normas eram havidas como constitucionalmente legítimas, à luz da versão originária da Constituição de 1976;
b) O artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, tendo sido editado antes da Lei Constitucional de 1982, não era, pois, passível de qualquer censura no plano da constitucionalidade, o mesmo acontecendo com o Despacho Normativo 180/81, uma vez que também este viu a luz do dia antes da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro;
c) Mas, com a publicação da Lei Constitucional 1/82, e mais concretamente por força do artigo 115.º, n.º 5, da Constituição - preceito aditado por aquela -, a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81 tornou-se supervenientemente inconstitucional (com efeitos a partir da entrada em vigor daquela lei constitucional). E isto por aquele preceito da lei fundamental veio inconstitucionalizar os «actos de outra natureza», isto é, os actos de natureza diferente das leis, com o poder de, com eficácia externa, interpretar qualquer dos preceitos contidos em lei.
Além disso, acolhendo a doutrina de Gomes Canotilho/Vital Moreira, esclarecem os mencionados arestos que «a proibição de actos interpretativos ou integrativos das leis não exclui obviamente todos os actos interpretativos ou integrativos, mesmo com eficácia externa. O que se pretende proibir é a interpretação (ou integração) autêntica das leis através de actos normativos não legislativos, seja de natureza administrativa (ex.: regulamentos), seja de natureza jurisdicional (ex.: sentenças) [...] Proíbe-se também a interpretação (ou integração) autêntica da lei através de actos administrativos (ex.: despachos normativos), os quais, portanto, só podem ter eficácia interna, em relação aos próprios serviços administrativos» (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pp. 62 e 63);
d) Todavia, o Despacho Normativo 180/81, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 165, de 21 de Julho de 1981 - que contém disposições interpretativas do Decreto-Lei 39/81 e foi emitido ao abrigo da habilitação constante do artigo 3.º deste diploma legal -, não é supervenientemente inconstitucional, já que não lhe é directamente aplicável o artigo 115.º, n.º 5, da Constituição, e a sua inconstitucionalidade também não pode derivar da inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81.
6 - Os Acórdãos deste Tribunal n.os 354/86, 19/87 e 344/87 basearam-se num determinado pressuposto (o qual não é, porém, explicitado por eles): o de que o artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81 contém uma abertura para uma interpretação autêntica, através de um despacho conjunto dos Ministros das Finanças e do Plano e dos Assuntos Sociais, dos preceitos daquele diploma.
Ora, com este sentido, aquela norma é indubitavelmente inconstitucional, uma vez que a interpretação autêntica de uma lei só pode ser feita por outra lei, e não por um regulamento. E compreende-se que assim seja, dado que uma norma emanada pelo legislador com animus interpretandi, isto é, «com o propósito de fixar o sentido de uma norma anterior cujo alcance é controvertido e, portanto, incerto, ou, não sendo controvertido ou incerto, difere daquele que o seu autor lhe quis emprestar ou daquele que, seja como for, o legislador entende dever ser-lhe atribuído», assume o valor e força de lei, em termos de os tribunais ficarem vinculados ao sentido por ela dado à norma anteriormente editada pelo legislador - sentido esse, acrescente-se, que não tem de coincidir com aquele que seria alcançado através da utilização das regras e dos princípios comummente aceites de hermenêutica jurídica (cf. A. R. Queiró, Lições de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1976, pp. 545-551).
O artigo 115.º, n.º 5, da lei fundamental - no segmento que agora nos interessa - veio, assim, inconstitucionalizar os preceitos legiais que habilitavam a Administração a realizar uma intepretação regulamentar autêntica de normas legislativas (cf., neste sentido, J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1983, p. 176, J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 239, e o Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 34/84, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 230, de 3 de Outubro de 1984).
Abrindo um parêntesis, pode referi-se que, mesmo no período anterior à existência na Constituição do artigo 115.º, n.º 5, a doutrina administrativa mais representativa vinha defendendo a impossibilidade, em geral (isto é, na ausência de uma disposição legal que atribuísse expressamente uma competência nesse sentido), de os regulamentos realizarem uma interpretação autentica das normas legislativas. Já então se entendia que a Administração não podia vincular os tribunais ao sentido que pretendesse dever ser dado a normas editadas pelo legislador, detendo aqueles órgãos de soberania uma Ververfungskompetenz, traduzida na recusa de aplicação das normas regulamentares ilegais (cf. inter alia, H. J. Wolff/O. Bachof, Vervaltungarecht III, 4.ª ed., Müchen, Beck, 1978, p. 456, e M. Quaas/K. Müller, Normenkontrolle und Bebauungsplan, Düsseldorf, Werner-Verlag, 1986, p. 6), e ilegais deviam ser considerados aqueles regulamentos que fixassem para um preceito legal um sentido ou uma interpretação metodologicamente ilegítima, isto é, um sentido ou uma interpretação que não se cingisse aos cânones a observar na interpretação jurisdicional (cf. A. R. Queiró, Lições, cit., p. 552, no mesmo sentido, cf. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10.ª ed., 1973, pp. 116 e 117, e M. Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, Almedina, 1980, p. 171).
Vigorava, assim, no ordenamento jurídico português no período anterior à Revisão Constitucional de 1982, o princípio da inadmissibilidade de a Administração interpretar autenticamente disposições legais - princípio este que não era mais do que um corolário do princípio da legalidade da actividade administrativa, condensado na versão originária do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição de 1976. A consequência da violação daquele princípio era o da ilegalidade dos regulamentos que estabelecessem uma interpretação de uma norma legal que não correspondesse ao sentido que dela extrairia a chamada «interpretação doutrinal», não oficial ou científica - cuja força ou poder de persuasão decorre unicamente da sua fidelidade aos cânones de uma metodologia jurídica correcta -, a qual podia ser conhecida, a título indirecto ou incidental, e independentemente de prazo, por qualquer tribunal, mediante excepção de ilegalidade, sempre que nas questões submetidas ao seu julgamento se defrontasse com um daqueles regulamentos.
Mas, como já se disse, por força do actual artigo 115.º, n.º 5, da Constituição, foi elevada ao nível constitucional a proibição dirigida ao legislador de habilitar a Administração a emanar regulamentos que interpretem autenticamente uma disposição legal - entendida esta expressão no sentido de regulamentos dotados de eficácia externa, com força de lei (e, por isso mesmo, vinculativos para os tribunais) e podendo fixar para aquela um sentido inovador, ou seja, um sentido que não se contenha na letra e no espírito do preceito legal interpretado -, com a consequência de serem inconstitucionais as disposições da lei que autorizam a Administração a fazer aquele tipo de regulamentos. E, sendo inválidas, por enfermarem de inconstitucionalidade, as disposições legais habilitantes, ilegais serão, pelo menos, os regulamentos que interpretem autenticamente a lei, dado que, julgada ou declarada inválida por um tribunal a norma legal habilitante, por vício originário de inconstitucionalidade, desaparecerá a base legal do regulamento.
Fechado o parêntesis, é ocasião de prosseguir. Foi escrito anteriormente que os três arestos mencionados, para concluírem pela inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, se estribaram no pressuposto de que aquela encerra uma habilitação para a Administração interpretar autenticamente os preceitos daquele diploma.
Pois bem. Papel determinante neste entendimento do preceito teve o concreto uso que dele foi feito pelo Despacho Normativo 180/81, isto é, o alcance da interpretação que este regulamento fez das normas do Decreto-Lei 39/81. Ora, aquele despacho normativo veio atribuir ao artigo 1.º do Decreto-Lei 39/81 uma interpretação substancialmente inovadora e disciplinar matérias que não estavam contempladas na disposição legal interpretada.
Para comprovar o que acaba de ser referido basta confrontar o conteúdo do artigo 1.º do Decreto-Lei 39/81, acima transcrito, com o conteúdo do Despacho Normativo 180/81, o qual se traduz no seguinte:
1 - As pensões devidas por acidentes de trabalho ou por doença profissional que não sejam da responsabilidade da Caixa Nacional de Seguros de Doenças Profissionais são calculadas com base nos seguintes elementos:
a) Disposições contidas na Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965;
b) Disposições contidas no Decreto 360/71, de 21 de Agosto, nomeadamente no seu artigo 50.º, aplicando-se a nova redacção que lhe foi conferida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 459/79, de 23 de Novembro, apenas em relação às pensões fixadas a partir de 1 de Outubro de 1979 [note-se que a parte final desta alínea b) - que sublinhámos - foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão 12/88, in Diário da República, 1.ª série, n.º 25, de 30 de Janeiro de 1988];
c) A partir de 1 de Maio de 1981, no caso de a retribuição anual real do trabalhador ser inferior a 12 vezes o salário mínimo mensal legalmente estabelecido para a respectiva categoria, grupo profissional ou etário, a pensão será calculada, salvo se corresponder e uma incapacidade inferior a 30%, com base nesse salário mínimo aplicável, e não na retribuição anual real.
2 - De igual modo devem, a partir de 1 de Maio de 1981, ser actualizadas, ao abrigo do artigo 3.º do Decreto-Lei 668/75, de 24 de Novembro, e por força da alteração que foi introduzida no seu artigo 1.º pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 39/81, de 7 de Março, as pensões já estabelecidas em tribunal do trabalho (salvo se corresponderem a incapacidades inferiores a 30%) em que a retribuição anual real do trabalhador que serviu de base de cálculo seja inferior a 12 vezes o salário mínimo mensal legalmente em vigor em cada momento, a partir do referido dia 1 de Maio de 1981, para a sua categoria, grupo profissional ou etário.
7 - Os três arestos deste Tribunal que julgaram inconstitucional a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81 atribuíram, como se disse, a esta disposição legal uma determinada interpretação, tendo constituído um factor decisivo, para este Tribunal a ter adoptado, a concreta utilização que daquela norma foi feita pelo Despacho Normativo 180/81. Significa isto que o julgamento de inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, operado pelos arestos citados, não pode dissociar-se da interpretação que concretamente foi atribuída ao artigo 1.º daquele diploma legal pelo Despacho Normativo 180/81.
Todavia, o juízo de constitucionalidade que este Tribunal é solicitado, hic et nunc, a produzir situa-se num plano totalmente diferente.
No presente processo, o que este Tribunal tem de averiguar é se a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, abstractamente considerada, isto é, independentemente do uso concreto que a Administração dela fez, é ou não inconstitucional (norma esta que continua em vigor, pois, com base nela, podem os ministros na mesma referidos revogar o Despacho Normativo 180/81 e emanar outro despacho normativo interpretativo das disposições do Decreto-Lei 39/81). Noutros termos, o que tem de analisar-se é se um preceito legal, com um conteúdo semântico como o do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, viola, por si mesmo, o artigo 115.º, n.º 5, da Constituição.
Sobre este ponto poderá afirmar-se que uma norma que estabeleça que as dúvidas suscitadas na sua aplicação serão resolvidas por despacho normativo ou por portaria é ou não inconstitucional conforme a interpretação que dela se faça.
Com efeito, como claramente salientou o Acórdão deste Tribunal n.º 203/86 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 195, de 26 de Agosto de 1986), a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81 comporta duas variantes interpretativas: uma que vê nela uma técnica deslegalizadora, com a qual se possibilita que, através de um regulamento, o Decreto-Lei 39/81 seja interpretado autenticamente, isto é, numa dimensão naturalmente retroactiva e insusceptível de contestação pelo recurso à fonte hierarquicamente superior; outra que descortina na aludida norma, simplesmente, o apelo para a edição, por parte dos membros do Governo nela referidos, de um regulamento tipicamente executivo.
Ora, como já vimos, se ela for entendida como uma abertura para uma interpretação regulamentar autêntica de disposições legais, ela é inconstitucional, por violação do artigo 115.º, n.º 5, da Constituição. Já não será, porém, inconstitucional se dela for retirado o sentido de uma habilitação da Administração para emanar regulamentos meramente executivos, isto é, regulamentos que contêm tão-só «as providências necessárias para assegurar a fidelidade, ou seja, a conformidade à vontade do legislador, na medida em que esta seja relativamente obscura ou lacunosa», ou que se limitam a «enunciar os pormenores e minúcias de regime que o legislador involuntariamente omitiu» (cf. A. R. Queiró, «Teoria dos regulamentos», I parte, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXVII, 1981, p. 9, e ainda, no mesmo sentido, A. M. Sandulli, L'Attivitá normativa della pubblica amministrazione, Napoli, Jovene, 1970, pp. 39 e 40, e R. Entrena Cuesta, Curso de Derecho Administrativo, vol. I, Madrid Tecnos, 1986, p. 142).
Tais regulamentos não encerram qualquer interpretação que vá para além daquela que seria feita por um intérprete razoável do direito ou pela interpretação doutrinária ou científica. A sua finalidade é tão-só a de contribuir para a racionalização da actividade administrativa e para a uniformização na aplicação da lei (cf., neste sentido, F. Ossenbühl, «Die Quellen des Vervaltungsrechts», in Allgemeines Vervaltungsrecht, org. Erichsen/Martens, 8.ª ed., Berlin-New York, W. de Gruyter, 1988, p. 91).
Ora, a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81 pode ser perfeitamente entendida como concedendo aos ministros nela referidos apenas o poder de emanar regulamentos meramente executivos. E a norma legal que atribua a um órgão da Administração Pública competência para a elaboração deste tipo de regulamentos tem a sua credencial constitucional no artigo 202.º, alínea c), da Constituição, o qual refere que «compete ao Governo, no exercício de funções administrativas, fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis».
De facto, não pode deixar de entender-se que a competência atribuída ao Governo pela alínea c) do artigo 202.º da Constituição para, no exercício de funções administrativas, «fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis» implica a possibilidade de o executivo emanar regulamentos que resolvam certas dúvidas na interpretação das leis ou que, de uma forma mais genérica, obviem «a uma involuntária deficiência de expressão do legislador».
Questão é que eses regulamentos sejam meramente executivos, isto é, regulamentos que não se substituam em nenhuma medida à lei; que rigorosamente não dêem vida a nenhuma «regra de fundo», a nenhum preceito jurídico «novo» ou originário; que se limitem a repetir os preceitos ou regras de fundo que o legislador editou - só que de uma maneira clara ou, de toda a maneira, mais clara (cf. A. R. Queiró, «Teoria dos regulamentos», I parte, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXXVII, 1981, loc. cit., e J. C. Vieira de Andrade, Autonomia Regulamentar e Reserva da Lei, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra «Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró», 1986, Coimbra, 1987, pp. 13 e 14). Poderá afirmar-se, por isso, que este tipo de regulamentos não está proibido pela segunda parte do n.º 5 do artigo 115.º da Constituição, sob pena de perder qualquer sentido útil o disposto no artigo 202.º, alínea c), da lei fundamental.
Impõe-se, consequentemente, a realização de uma interpretação harmónica dos artigos 115.º, n.º 5, e 202.º, alínea c), da Constituição. A harmonização de sentido destes dois preceitos constitucionais passará, nas palavras de A. R. Queiró, por uma interpretação restritiva do artigo 115.º, n.º 5, da lei fundamental, em face do que prescreve o artigo 202.º, alínea c). Na verdade, como observa o citado professor de Coimbra, aquele preceito constitucional «diz [...] mais do que parece ter querido dizer, porque a letra eliminaria a legitimidade dos regulamentos executivos, que, com 'eficácia externa' interpretam os actos legislativos» (cf. «Teoria dos regulamentos», cit. p. 11, nota 9).
De acordo com o esclarecimento de J. M. Sérvulo Correia, um entendimento restritivo da proibição de o legislador conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar qualquer dos preceitos por ele criados «passa por concluir que a interpretação contida em regulamento não pode ser objecto de delegação, isto é, não pode receber da lei eficácia igual à desta. Os tribunais ficam assim livres de controlar a bondade da interpretação pela norma regulamentar e de considerarem esta inválida quando a interpretação se afigurar errónea» (cf. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, Almedina, 1987, p. 257, nota 429).
8 - A norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81 pode, assim, ser interpretada como conferindo aos ministros nela indicados competência para emanar regulamentos de execução, isto é, normas secundárias que se limitam a eliminar as divergências de interpretação ou a colmatar as lacunas involuntárias do Decreto-Lei 39/81.
Se os regulamentos de execução elaborados ou a elaborar ao abrigo daquela norma legal se afastarem da interpretação juridicamente correcta dos preceitos legais ou se contiverem preceitos jurídicos novos ou originários, ou seja, se regularem, em primeira mão, certas relações jurídicas, enfermam de ilegalidade, podendo qualquer tribunal julgá-los ilegais, nos casos concretos, e, consequentemente, recusar a sua aplicação. Tratando-se de regulamentos ministeriais, as normas deles constantes podem, ainda, ser declaradas ilegais, com força obrigatória geral, pelo Supremo Tribunal Administrativo, desde que tenham sido julgadas ilegais por qualquer tribunal, em três casos concretos, ou desde que os seus efeitos se produzam imediatamente, sem dependência de um acto administrativo ou jurisdicional de aplicação [cf. os artigos 11.º e 26.º, n.º 1, alínea i), do Decreto-Lei 129/84, de 27 de Abril, e os artigos 66.º a 68.º do Decreto-Lei 267/85, de 16 de Julho. Sobre a problemática do controlo jurisdicional de legalidade dos regulamentos, cf. A. R. Queiró, Lições, cit., pp. 489-506, D. Freitas do Amaral, Direito Administrativo (Lições aos Alunos do Curso de Direito em 1984-1985), vol. IV, Lisboa, 1985, p. 133, J. M. Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, vol. I, Lisboa, Danúbio, 1982, pp. 113 e 114, e M. Esteves de Oliveira, ob. cit., pp. 151-163].
A norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, entendida com o sentido indicado, não é, pois, inconstitucional, como resulta do artigo 202.º, alínea c), da Constituição, interpretado em conjugação com o artigo 115.º, n.º 5, da lei fundamental. E a utilização inadequada, por parte da Administração, do poder regulamentar atribuído por aquela norma coloca uma questão de ilegalidade «stricto sensu» do regulamento, e não uma questão de inconstitucionalidade.
Poderá, no entanto, argumentar-se, ex adverso, como sustentáculo da inconstitucionalidade superveniente da norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, mesmo com a interpretação sugerida no número anterior, do seguinte modo: a competência do Governo (no seu conjunto ou, conforme os casos, através de qualquer dos seus membros) para emanar regulamentos de execução e algo que a Constituição inclui na esfera do Executivo, como corolário do seu «poder-dever» de carácter administrativo de cumprir e fazer cumprir as leis, e, por isso, um poder que não carece de ser atribuído, em cada caso, pelas próprias leis ordinárias (cf., neste sentido, A. R. Queiró, «Teoria dos regulamentos», cit. p. 10, D. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, Almedina, 1986, p. 219, e o parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 36/89, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 120, de 25 de Maio de 1990).
Ora, se a competência para elaborar os regulamentos necessários à boa execução das leis não depende da atribuição, em concreto, pela lei ao Governo do poder para emanar normação secundária ou consequente, traduzida na elaboração de regulamentos de execução, então, dir-se-á, o aparecimento de normas com um conteúdo idêntico ao da norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81 só pode ter o sentido de habilitar a Administração a editar regulamentos interpretativos autênticos das normas legais. E este tipo de regulamentos passou a ser proibido pela Constituição após a Lei Constitucional 1/82.
Todavia, as coisas não têm de ser necessariamente entendidas do modo acabado de referir. A norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, ao estabelecer que as dúvidas suscitadas na sua execução serão resolvidas por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e do Plano e dos Assuntos Sociais, tem seguramente o sentido útil de incumbir concretamente o Governo de emanar regulamentos de execução, de modo a eliminar certas imprecisões (de que inclusivamente o próprio legislador se poderá ter dado conta no momento da elaboração daquele diploma legal) ou a impedir a verificação de divergências na sua aplicação (que o legislador teme que venham a verificar-se), de definir qual o órgão governamental com competência para aprovar aqueles regulamentos e de indicar qual a forma que devem revestir.
10 - Independentemente de tudo o que vem de referir-se, o certo é que os três arestos que julgaram inconstitucional, em três casos concretos, a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81 atribuíram-lhe o sentido de habilitar os Ministros das Finanças e do Plano e dos Assuntos Sociais a realizarem, por meio de despacho conjunto, uma interpretação autêntica das disposições daquele diploma. Ora, com esta interpretação (ou seja, com a interpretação que lhe foi conferida pelo Despacho Normativo 180/81, de 21 de Julho), aquela norma é, como foi sobejamente salientado, supervenientemente inconstitucional (com efeitos a partir da entrada em vigor da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro).
III - Decisão
11 - Nos termos e pelos fundamentos expostos, declara-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade superveniente, com efeitos a partir da entrada em vigor da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro, da norma do artigo 3.º do Decreto-Lei 39/81, de 7 de Março, quando entendida com o sentido de atribuir aos ministros nela mencionados competência para interpretarem autenticamente, através de despacho conjunto, as disposições do referido diploma legal, por violação do artigo 115.º, n.º 5, da Constituição.
Lisboa, 8 de Janeiro de 1992. - Fernando Alves Correia - Vítor Nunes de Almeida - Bravo Serra - José de Sousa e Brito - Maria da Assunção Esteves - Alberto Tavares da Costa - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Dinis - António Vitorino (afastando-me da fundamentação e, consequentemente, do alcance da decisão, no essencial, pelas razões constantes das declarações juntas pelos conselheiros Luís Nunes de Almeida e Mário de Brito) - Mário de Brito (com a declaração de voto junta) - Luís Nunes de Almeida (com declaração de voto junta) - Armindo Ribeiro Mendes (afastando-me igualmente da fundamentação da tese que fez vencimento, no essencial, pelas razões constantes das declarações juntas pelos Exmos. Conselheiros Luís Nunes de Almeida e Mário de Brito) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
1 - O Decreto-Lei 39/81, de 7 de Março, deu nova redacção ao artigo 1.º do Decreto-Lei 668/75, de 24 de Novembro, preceito esse que mandava actualizar as pensões devidas por acidentes de trabalho ou doenças profissionais.
Preceituou-se no seu artigo 3.º:
As dúvidas suscitadas na execução deste diploma serão resolvidas por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e do Plano e dos Assuntos Sociais.
Esta norma veio a ser julgada (supervenientemente) inconstitucional, por violação do n.º 5 do artigo 115.º da Constituição (aditado pela Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro - primeira revisão da Constituição) - «nenhuma lei pode [...] conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar [...] qualquer dos seus preceitos» -, nos Acórdãos deste Tribunal n.os 354/86, de 16 de Dezembro, 19/87, de 14 de Janeiro, e 384/87, de 22 de Julho.
E por isso requereu o Ministério Público, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 281.º da Constituição (na versão de 1982) e do artigo 82.º da Lei 28/82, que se declarasse a sua inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
2 - Como recentemente se sublinhou em acórdão deste Tribunal - Acórdão 430/91, de 13 de Novembro (no Diário da República, 1.ª série, de 7 de Dezembro de 1991) -, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, quando uma norma tenha sido julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional em três casos concretos, não é automática, isto é, o julgamento da inconstitucionalidade de uma norma em três casos concretos não leva necessariamente à declaração da inconstitucionalidade dessa norma com força obrigatória geral.
Daí que o presente acórdão se tenha permitido fazer a seguinte distinção: se uma norma que estabeleça que as dúvidas suscitadas na sua aplicação serão resolvidas por despacho normativo ou por portaria «for entendida como uma abertura para uma interpretação regulamentar autêntica de disposições legais, ela é inconstitucional, por violação do artigo 115.º, n.º 5, da Constituição», «já não será, porém, inconstitucional se dela for retirado o sentido de uma habilitação da Administração para emanar regulamentos meramente executivos, isto é, regulamentos que contêm tão-só 'as providências necessárias para assegurar a fidelidade, ou seja, a conformidade à vontade do legislador, na medida em que esta seja relativamente obscura ou lacunosa', ou que se limitam a 'enunciar os pormenores e minúcias de regime que o legislador involuntariamente omitiu' [...]».
Continuo a entender que, não obstante a proibição constitucional, podem as autoridades administrativas fazer interpretação da lei para valer dentro dos próprios serviços que dirigem (interpretação com eficácia interna).
O que o n.º 5 do artigo 115.º da Constituição proíbe é tão-só que a lei confira a «actos de outra natureza» - v. g., regulamentos, despachos normativos - o poder de, com eficácia externa, interpretar (é apenas isso que está em causa) qualquer dos seus preceitos.
Mas essa proibição abrange qualquer espécie de regulamentos: ponto é que nesses regulamentos se faça interpretação de preceitos contidos em leis.
A competência atribuída ao Governo pelo artigo 202.º, alínea c), da Constituição - «fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis» - está evidentemente limitada pelo n.º 5 do artigo 115.º
O acórdão devia, pois, declarar, sem mais, a inconstitucionalidade superveniente, com força obrigatória geral, da norma em questão. - Mário de Brito.
Declaração de voto
Acompanhei a posição expressa pelo Exmo. Conselheiro Mário de Brito, cuja declaração de voto subscrevo no essencial.
Com efeito, entendo que a competência atribuída ao Governo no artigo 202.º, alínea c), da Constituição da República em nada exige uma interpretação restritiva do preceituado no artigo 115.º, n.º 5, da mesma lei fundamental, uma vez que no artigo 202.º, alínea c), se prevê, com carácter geral, a edição regulamentos pelo Governo, enquanto o artigo 115.º, n.º 5, tem especificamente por escopo impedir que a lei possa delegar noutros actos, designadamente de carácter regulamentar, a sua própria interpretação, integração, modificação, suspensão ou revogação.
Para melhor se apurar o sentido deste artigo 115.º, n.º 5, não se deve deixar de analisar o que, a propósito da matéria nele abordada, dizia a nossa doutrina administrativista mais representativa antes da existência na ordem jurídica portuguesa de uma norma constitucional com aquele teor, ou seja, antes da revisão constitucional de 1982.
Como se afirma no texto do acórdão que obteve vencimento, já então essa doutrina negava a possibilidade de, em geral, os regulamentos poderem fazer interpretação autêntica de normas legislativas. Todavia, atrás dessa aparente unanimidade escondia-se uma profunda divergência.
Assim, o Prof. Afonso Queiró parecia admitir que a Administração pudesse, sempre, através do que denominava regulamentos de execução, interpretar as leis de forma vinculativa para os administrados e para os próprios tribunais, desde que tal interpretação não fosse retroactiva e não acolhesse uma solução incomportável face às regras da hermenêutica jurídica - o que, num caso e no outro, estaria reservado à interpretação autêntica. E, por outro lado, não escondia que considerava perfeitamente legítima a existêntica de regulamentos delegados «modificativos ou derrogatórios de decretos-leis» - e, portanto, também interpretativos, ainda que afastando-se das regras da hermenêutica jurídica - «quando estes mesmos prevejam a possibilidade da sua modificação ou derrogação» - e, consequentemente, também da sua interpretação - «pela via regulamentar [...]», já que nada se opunha, «constitucionalmente, a que uma lei ou um decreto-lei» deixassem «à Administração a possibilidade de alterar ou derrogar certo ou certos preceitos legislativos em vigor» (Lições de Direito Administrativo, vol I, pp. 66 e segs. e 427 e segs.).
Pelo contrário, o Prof. Marcello Caetano entendia, de forma inequívoca, e ainda na vigência da Constituição de 1933, que «a interpretação feita pelas autoridades administrativas não obriga os tribunais, que conservam a sua liberdade na apreciação da legalidade das decisões tomadas de acordo com ela, mesmo que se trate da interpretação dada à lei por um ministro, sob a forma de portaria ou por incumbência expressa da lei» (Manual de Direito Administrativo, 10.ª ed., t. I, p. 118). O mesmo autor afirmava, aliás, expressamente:
É frequente dispor-se em decretos-leis que as dúvidas que surjam na execução deles sejam submetidas a resolução do Conselho de Ministros. Ora, o Conselho de Ministros é constituído pelo Governo e o Governo é o legislador dos decretos-leis. O órgão de interpretação é, pois, o próprio órgão legislativo. Todavia, as resoluções assim proferidas não constituem interpretação autêntica: são meras instruções que uniformizam o entendimento da lei em todos os ministérios pela concentração do poder interpretativo, mas com carácter de acto de administração, acto que não obriga senão os funcionários dos serviços dependentes do Governo e unicamente para o futuro.
Ao contrário do que sucedia com o mestre de Coimbra, o professor de Lisboa ensinava, assim, que a interpretação regulamentar das leis não tinha - nem podia ter - eficácia externa, ainda quando a própria lei remetia para regulamento futuro nesse ponto.
Com este pano de fundo, e sabendo-se qual a anarquia reinante na nossa ordem jurídica nos anos anteriores à revisão constitucional de 1982, onde se tornara regra a previsão e utilização dos referidos regulamentos delegados interpretativos, integrativos, modificativos, derrogatórios e revogatórios das leis, de tal sorte que os operadores jurídicos dificilmente conseguiam identificar a legislação efectivamente em vigor, facilmente se descortina que o objectivo da adopção de uma norma constitucional como a do artigo 115.º, n.º 5, consistia em atalhar aos malefícios de uma tese doutrinal - obviamente acolhida pela Administração e pelo legislador governamental - que se julgava responsável pela situação a que se chegar, optando-se pela outra que se lhe opunha, e cujo alcance, como se viu, era inequívoco.
Afirmar, como se faz no acórdão que obteve vencimento, que sem a dita interpretação restritiva do artigo 115.º, n.º 5, se retiraria qualquer «sentido útil» ao artigo 202.º, alínea c), equivale, pois, no fundo, a dizer que Marcello Caetano esvaziada de conteúdo o artigo 109.º, n.º 3, da Constituição de 1933, na parte em que se referia ao poder regulamentar do Governo. E se este argumento de «autoridade» vale apenas o que vale - demonstrar que se pretende, hoje, reforçar os poderes regulamentares do Governo face aos que administrativistas da época lhe reconheciam, em pleno regime autoritário -, a verdade é que parece ter-se pretendido fazer reentrar pela janela da interpretação restritiva o que parecia ter sido definitivamente expulso pela porta da revisão constitucional. - Luís Nunes de Almeida.