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Acórdão 356/89, de 23 de Maio

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Sumário

DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL DA NORMA DO ARTIGO 57 DO DECRETO LEI NUMERO 491/85, DE 26 DE NOVEMBRO. -E DECLARADA INCONSTITUCIONALIDADE DESTE ARTIGO 57 APENAS EM PARTE: A)EM QUE DEFINE OS TRIBUNAIS COMPETENTES, QUER EM RAZÃO DA MATÉRIA, QUER EM RAZÃO DO TERRITÓRIO, PARA APRECIAR AS IMPUGNAÇÕES JUDICIAIS DAS DECISÕES APLICATIVAS DE COIMA PROFERIDAS PELAS ENTIDADES REFERIDAS NO ARTIGO 46, NUMERO 2 DAQUELE DECRETO LEI, B)EM QUE, EM CONJUGACAO COM A NORMA DO DECRETO LEI NUMERO 433/85, DE 27 DE OUTUBRO, DEFINE OS TRIBUNAIS COMPETENTES, EM RAZÃO DO TERRITÓRIO, NOVA A EXECUÇÃO DAS REFERIDAS COIMAS

Texto do documento

Acórdão 356/89
Processo 5/89
Acordam no Tribunal Constitucional:
1 - Relatório
Em dois pedidos sucessivos, aqui apreciados em conjunto, o Ministério Público (MP), representado pelo procurador-geral-adjunto em exercício de funções junto do Tribunal Constitucional (TC), requereu, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, de 26 de Novembro.

No primeiro pedido (processo 5/89), o MP requer a declaração de inconstitucionalidade:

Da norma constante do referido preceito na parte em que, conjugado com a norma constante do n.º 1 do artigo 89.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, define como territorialmente competente para a execução das coimas aplicadas por decisões das autoridades referidas no artigo 46.º, n.º 2, do primeiro diploma citado o tribunal materialmente competente com jurisdição na área onde foi cometida a infracção; e

Da norma constante do mesmo artigo 57.º, que determina que é materialmente competente para a impugnação judicial das decisões das autoridades referidas no artigo 46.º, n.º 2, o tribunal competente em matéria laboral.

Para efeitos de instrução do pedido, o requerente juntou cópia dos Acórdãos do TC n.os 25/88, 66/88, 147/88, 148/88, 195/88, 196/88, 225/88, 271/88 e 273/88, que julgaram inconstitucional a norma identificada em primeiro lugar, e dos Acórdãos n.os 226/88, 272/88 e 293/88, que, também em fiscalização concreta da constitucionalidade, julgaram inconstitucional a norma referida na segunda parte do pedido.

Precisando melhor o objecto do pedido, o MP esclarece que é a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da parte subsistente destas normas (a segunda apenas na vertente da definição da competência material) que agora peticiona, ou seja, a dimensão delas não abrangida pela declaração de inconstitucionalidade constante do Acórdão 306/88 (Diário da República, 1.ª série, n.º 17, de 20 de Janeiro de 1989), isto é:

A parte da norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85 que, conjugada com a norma do artigo 89.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, define os tribunais competentes, em razão do território, para a execução das coimas aplicadas pelas entidades referidas no artigo 46.º, n.º 2, do primeiro diploma;

A norma do artigo 57.º na sua directa prescrição, ou seja, enquanto define os tribunais competentes, em razão da matéria, para apreciar as impugnações judiciais das decisões proferidas pelas citadas entidades.

O objecto da primeira parte do pedido é ainda expressamente restringido às coimas administrativamente aplicadas (apesar de no Acórdão 306/88 se haver alargado a apreciação à execução das coimas judicialmente aplicadas), em virtude de só naquela vertente a norma em causa ter sido julgada inconstitucional nos acórdãos citados. Idêntica ordem de razões justifica a limitação da segunda parte do pedido à vertente da norma que define a competência material (só nesta dimensão ela foi julgada inconstitucional em três casos concretos).

No segundo pedido (processo 18/89, posteriormente incorporado no primeiro, ao abrigo do disposto no artigo 64.º da Lei 28/82), o MP promove a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do mesmo artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, na parte em que determina que é territorialmente competente para a impugnação judicial das decisões das autoridades referidas no artigo 46.º, n.º 2, do mesmo diploma o tribunal com jurisdição na área onde foi cometida a infracção. Justificando o pedido, o requerente aduz que tal norma, no segmento assinalado, foi julgada inconstitucional, pela terceira vez, no Acórdão 3/89, da 1.ª Secção, após o ter sido pelos Acórdãos n.os 272/88 e 293/88, da mesma Secção. E acrescenta a seguinte ordem de considerações:

No requerimento que originou o processo 5/89, afecto à 1.ª Secção deste Tribunal, peticionou-se a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da apontada norma apenas na medida em que determina que é materialmente competente para a impugnação judicial em causa o tribunal competente em matéria laboral. E isto porque, à data em que esse requerimento foi apresentado, o terceiro acórdão que julgara inconstitucional a norma do citado artigo 57.º, na sua directa estatuição, limitara o juízo de inconstitucionalidade à alteração da competência material operada por essa norma (Acórdão 226/88, da 2.ª Secção).

Tendo sobrevindo o Acórdão 3/89, que, à semelhança dos Acórdãos n.os 272/88 e 293/88, englobou no juízo de inconstitucionalidade a alteração da competência territorial, é agora possível alargar a esta dimensão o pedido de generalização desses juízos de inconstitucionalidade.

Juntou cópia dos acórdãos citados.
Embora em ambos os casos o MP não refira expressamente quais os preceitos em que fundamenta a alegada inconstitucionalidade da norma impugnada, está implícita nos dois pedidos a remissão para a doutrina expendida nos acórdãos invocados, nos quais o Tribunal entendeu que tal inconstitucionalidade deriva da violação do artigo 168.º, n.º 1, alíneas d) e q), da Constituição, que definem a competência reservada da Assembleia da República (AR) para legislar, respectivamente, sobre «o regime geral dos [...] actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo» e sobre «a organização e competência dos tribunais».

Notificado o Governo para se pronunciar sobre os dois pedidos, limitou-se o Primeiro-Ministro a oferecer o merecimento dos autos.

Cumpre decidir.
2 - Fundamentação
2.1 - Verificação dos pressupostos e delimitação do objecto do pedido
Nos termos do estabelecido nas disposições conjugadas dos artigos 281.º, n.º 2, da CRP e 82.º da Lei 28/82, o TC aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos, cabendo a iniciativa da organização do respectivo processo a qualquer dos seus juízes ou ao MP, seguindo-se os trâmites do processo de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade previsto naquela lei.

No caso presente, a iniciativa coube ao MP, ao abrigo do citado artigo 82.º da Lei 28/82.

Face aos dois pedidos presentes ao Tribunal, constitui objecto de apreciação e de eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral:

A parte da norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85 que, conjugada com a norma do artigo 89.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, define os tribunais competentes, em razão do território, para a execução das coimas aplicadas pelas entidades referidas no artigo 46.º, n.º 2, do primeiro daqueles diplomas (elementos da Inspecção do Trabalho);

A norma do mesmo artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, enquanto define os tribunais competentes, quer em razão da matéria, quer em razão do território, para apreciar as impugnações judiciais das decisões proferidas pelas mencionadas entidades.

A norma em causa, na sua dimensão primeiramente assinalada - na parte em que define os tribunais territorialmente competentes para a execução das coimas aplicadas administrativamente por contra-ordenações laborais -, foi efectivamente julgada inconstitucional pelos nove acórdãos invocados pelo MP, os quais, aliás, como se alcança da sua leitura, para além de, na parte decisória, não fazerem qualquer distinção entre a alteração da competência em razão da matéria e a alteração da competência em razão do território operada por aquela norma, atribuem, na respectiva fundamentação, explícita relevância à modificação introduzida ao nível da competência territorial (só nesta vertente a referida norma está agora em apreciação, por ser a subsistente em face do Acórdão 306/88).

Por sua vez, no juízo de inconstitucionalidade da norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, na sua directa prescrição, os citados Acórdãos n.os 272/88, 293/88 e 3/89 englobaram quer a alteração da competência territorial, quer a modificação da competência material, pelo que também nesta parte se verifica o pressuposto necessário à generalização desses juízos de inconstitucionalidade, com o âmbito requerido no pedido superveniente (processo 18/89), que alarga à dimensão territorial o objecto do pedido inicial, limitado à vertente da norma que modificou a regra de atribuição de competência em razão da matéria para a apreciação da impugnação judicial das decisões administrativas impositivas de coimas por contra-ordenações laborais.

Importa, antes de mais, definir o exacto sentido e alcance da norma em causa, naquele seu duplo significado.

2.2 - Sentido e alcance do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, «a se», e quando conjugado com o artigo 89.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82.

Dispõe o artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, sob a epígrafe «Impugnação judicial»:

As decisões das autoridades referidas no artigo 46.º, n.º 2, que impliquem uma coima são passíveis de impugnação judicial mediante recurso a interpor para o tribunal competente em matéria laboral com jurisdição na área onde foi cometida a infracção.

A exacta compreensão deste preceito passa pela sua inserção no diploma de que faz parte e pelo seu confronto com o regime-regra dos actos ilícitos de mera ordenação social e respectivo processo, instituído pelo Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro.

Foi o Decreto-Lei 491/85, de 26 de Novembro, que veio integrar o ilícito contravencional laboral no direito de mera ordenação social. Como se salienta no respectivo preâmbulo, «o direito laboral é uma área de ordem jurídica na qual bem se compreende a pertinência do direito das contra-ordenações», dado que - argumenta-se - muitas das normas que o compõem se limitam a estabelecer meros deveres para com a Administração, não tutelando bens jurídicos fundamentais da comunidade. Para além destas razões de índole dogmática, na génese do diploma esteve ainda a necessidade de imprimir celebridade e eficácia à administração da justiça laboral.

Contudo, o legislador não se limitou a operar uma automática conversão das contravenções laborais em contra-ordenações, mas, afirmando a vigência do princípio da tipicidade no domínio contra-ordenacional, procurou definir ex novo as tipificações, com precauções de rigor e maior clareza.

Paralelamente a esta mutação substancialmente qualificativa das infracções, foram introduzidas alterações de carácter adjectivo e processual. Assim:

A competência para o processamento das contra-ordenações laborais foi atribuída à Inspecção-Geral do Trabalho, através das suas delegações e subdelegações (artigo 46.º, n.º 1);

A competência para a aplicação das coimas previstas no diploma foi conferida ao inspector-geral do Trabalho, com a faculdade de delegação em inspectores-delegados e inspectores-subdelegados (artigo 46.º, n.º 2).

São as decisões destas autoridades que apliquem uma coima que, nos termos do artigo 57.º, são passíveis de impugnação judicial mediante recurso a interpor para o tribunal competente em matéria laboral com jurisdição na área onde foi cometida a infracção.

Esta norma representa um desvio à regra geral constante do n.º 1 do artigo 61.º do Decreto-Lei 433/82, que considera competente para conhecer do recurso das decisões das autoridades administrativas que apliquem coimas o juiz de direito da comarca em cuja área tenha a sua sede a autoridade que aplicou a coima. Este desvio assume um duplo sentido:

Um sentido material, porque o conhecimento da causa cabe ao tribunal competente em matéria laboral (tribunal de competência especializada), e não ao tribunal comum de competência genérica;

Um sentido territorial, porque para a determinação do tribunal territorialmente competente se atende ao local onde foi cometida a infracção, e não ao local da sede da autoridade que aplicou a coima.

Pode, assim, concluir-se que o sentido e alcance da norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, na sua directa prescrição, é o de atribuir ao tribunal competente em matéria laboral com jurisdição na área onde foi cometida a infracção competência para conhecer dos recursos das decisões das autoridades da Inspecção-Geral do Trabalho que tenham aplicado coimas por ilícitos de mera ordenação social no âmbito do direito laboral.

Esta significação da aludida norma repercute-se na regra de atribuição de competência para a execução das coimas previstas no Decreto-Lei 491/85. Não estando tal matéria especificamente regulada neste diploma, há que recorrer, por força do determinado no seu artigo 1.º, ao regime geral das contra-ordenações, previsto no Decreto-Lei 433/82, segundo o qual o tribunal competente para a execução é o tribunal competente para conhecer do recurso (artigos 89.º, n.º 1, e 61.º, n.º 1). Também aqui a norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, lida conjugadamente com a do artigo 89.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, ao atribuir competência para a execução das coimas administrativamente aplicadas por ilícitos contra-ordenacionais no domínio do direito laboral aos tribunais competentes em matéria laboral com jurisdição na área onde foi cometida a infracção, constitui um desvio ao regime-regra, nos termos do qual a execução compete ao tribunal da comarca em cuja área está sediada a autoridade que aplicou a coima (por ser o tribunal competente para conhecer do recurso), excepto se a decisão a executar tiver sido proferida pela relação. Este desvio assume a dupla dimensão material e territorial, atrás assinalada, aquela já contemplada no Acórdão 306/88, desta havendo agora que cuidar.

2.3 - Uma questão prévia: revogação da norma em causa
Sucede que a norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, na sua directa prescrição e na significação que dela deriva por reenvio do artigo 89.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, foi revogada e substituída por outra, embora de conteúdo afim, o que coloca a questão de saber se existe interesse relevante no conhecimento do pedido.

Na verdade, a nova Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei 38/87, de 23 de Dezembro) - entrada em vigor em 18 de Junho de 1988, por força do disposto no seu artigo 108.º, n.º 2 (já que foi publicado e iniciou a sua vigência o Decreto-Lei 214/88, de 17 de Junho, que a regulamentou) - veio atribuir aos tribunais do trabalho a competência material que para eles decorria da norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85 e conferir-lhes também competência para executar as respectivas decisões (artigos 66.º e 71.º da citada lei). Isto significa que os tribunais do trabalho passaram a deter competência, designadamente, para o conhecimento dos recursos das decisões das autoridades administrativas aplicativas das coimas previstas no Decreto-Lei 491/85 e para as execuções instauradas para pagamento coercivo das mesmas coimas (artigos 66.º e 71.º da Lei 38/87 e 89.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82). Nos casos em que exista coincidência entre os tribunais do trabalho da sede da autoridade que aplicou a coima e os do local da infracção verificar-se-á também uma atribuição de competência territorial, quer para o recurso, quer para a execução.

Quer dizer: soluções idênticas às estabelecidas pela norma questionada, constante de um decreto-lei, vieram depois a ser adoptadas por uma lei da AR, que naturalmente substituiu e revogou aquela norma. Ora, estando em causa a inconstitucionalidade orgânica daquela norma - por violação da competência legislativa reservada da AR -, é evidente que tal questão já se não põe face às normas da Lei 28/87 que vieram reeditar soluções idênticas. Os tribunais do trabalho passaram a deter legitimamente a competência que ilicitamente lhes tinha sido conferida pela norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85.

Acresce que a nova norma é de aplicação imediata, incluindo, portanto, os processos pendentes, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da Lei 38/87. Desse modo, os tribunais do trabalho, que eram competentes por força do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85 - aqui arguido de inconstitucional -, passaram a ser competentes para os processos neles pendentes por força da nova Lei Orgânica dos Tribunais. Neste contexto, será que subsiste algum interesse no conhecimento da inconstitucionalidade daquela norma?

Esta questão já foi considerada pelo Tribunal no referido Acórdão 306/88, em termos que, focando embora, mais directamente, a questão da competência material para a execução - que era a questão aí em causa -, são igualmente válidos para o objecto do presente processo, de molde a permitirem concluir no sentido da manutenção de interesse juridicamente relevante na sua apreciação. Reproduzem-se, de seguida, as razões de tal entendimento:

É doutrina corrente do Tribunal que só é de conhecer da questão da constitucionalidade de normas revogadas quando haja interesse jurídico relevante. Quando a norma em causa foi revogada com efeitos retroactivos, não haverá, em princípio, interesse jurídico no conhecimento da questão da constitucionalidade, visto que isso apagará os efeitos produzidos pela norma, sendo o resultado idêntico ao que seria obtido por uma eventual declaração de inconstitucionalidade, a qual opera ex tunc (cf. o artigo 282.º, n.º 1).

No caso concreto, a nova norma aplica-se aos casos pendentes, que, portanto, sempre acabarão por ser atribuídos aos tribunais do trabalho (mesmo que a norma em causa fosse declarada inconstitucional). E os casos já julgados, esses gozam da protecção de caso julgado, qualquer que tenha sido o tribunal que os tenha decidido (CRP, artigo 282.º, n.º 3). Assim sendo, parece - repete-se - não haver interesse no conhecimento da questão de constitucionalidade.

Todavia, vistas as coisas mais de perto, elas mudam de figura. É que há um conjunto de casos em que os tribunais do trabalho, antes da entrada em vigor da nova Lei Orgânica dos Tribunais, se julgaram incompetentes, com base justamente na inconstitucionalidade do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, tendo essas decisões dado lugar a recursos de inconstitucionalidade, que se encontram pendentes no Tribunal Constitucional. Essa realidade não pode deixar de levar à conclusão de que continua a existir interesse juridicamente relevante no conhecimento da questão de inconstitucionalidade da norma em causa.

Isso só não seria assim se, com a revogação da norma em causa, tivesse perdido interesse também o conhecimento dos recursos de constitucionalidade que se encontram pendentes. Mas nada autoriza tal conclusão. Primeiramente, o Tribunal Constitucional não pode deixar de decidir os recursos de constitucionalidade que lhe são presentes nos termos constitucionais e legais; em segundo lugar, nesses recursos, o Tribunal só pode conhecer e decidir a questão de constitucionalidade concreta que lhe é submetida - a saber, se os tribunais decidiram bem ou não, ao desaplicarem, por inconstitucionalidade, o artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85 -, não lhe competindo fazer, ele mesmo, a aplicação da nova Lei Orgânica dos Tribunais; finalmente, mesmo que o Tribunal venha a confirmar a decisão de inconstitucionalidade - ou seja, corroborando as decisões que julgaram inconstitucional tal norma -, isso não impedirá, seguramente, que, pelas vias processuais adequadas, os tribunais envolvidos venham a fazer aplicação de nova norma da Lei Orgânica que confere aos tribunais do trabalho a mesma competência que a anterior norma em matéria de execução de coimas por contra-ordenações laborais.

Conclui-se, por conseguinte, que, mesmo quanto à restante competência material, continua a existir interesse juridicamente relevante no conhecimento da eventual inconstitucionalidade do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85.

2.4 - Apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, na sua directa prescrição (nas vertentes material e territorial), e da mesma norma conjugada com o artigo 89.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82 (apenas na vertente territorial).

Está firmemente estabelecida a jurisprudência do Tribunal no sentido da inconstitucionalidade da norma em causa (quer na sua significação directa, quer na significação reflexa ou derivada que lhe advém da conjugação com o artigo 89.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82), a qual se encontra vazada, designadamente, nos acórdãos que servem de fundamento aos pedidos que constituem objecto dos processos que aqui se apreciam. Tal linha jurisprudencial tem por base, resumidamente, a seguinte fundamentação:

Por um lado, a norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, naquela sua dupla acepção, procedeu a uma alteração da competência material e territorial de certos tribunais;

Por outro lado, tal solução traduziu-se num desvio à regra geral contida no artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, segundo a qual é competente para conhecer do recurso das decisões das autoridades administrativas que apliquem coimas o juiz de direito da comarca em cuja área se achem sediadas aquelas autoridades, o qual é também competente para a execução (salvo quando a decisão tiver sido proferida pela relação) (artigo 89.º, n.º 1, deste diploma).

A norma em causa versou, assim, matéria incluída no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da AR, quer enquanto contende com o regime geral do processo relativo aos actos ilícitos de mera ordenação social, quer enquanto toca a competência dos tribunais [artigo 168.º, n.º 1, alíneas d) e q), da CRP], pelo que, constando de um decreto-lei emitido sem credencial parlamentar, é organicamente inconstitucional.

Reafirma-se agora a orientação já perfilhada, repetindo-se, embora de forma sintética, a fundamentação acolhida pelo Tribunal.

A Constituição dispõe, no seu artigo 168.º, n.º 1, alínea q) - tal como dispunha, na versão originária, no artigo 167.º, alínea j) -, ser da exclusiva competência da AR legislar, salvo autorização ao Governo, sobre «organização e competência dos tribunais».

É de sublinhar que nesta área a reserva de competência legislativa não está sujeita a nenhuma limitação ou excepção (diversamente do que sucede naqueles casos em que a reserva de competência legislativa é limitada à definição das «bases gerais» ou do «regime geral»). Por isso, cabe à AR definir todo o regime legislativo da matéria da «competência dos tribunais».

A propósito da competência reservada da AR, escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., pp. 197 e segs.):

O alcance da reserva de competência legislativa da AR não é idêntico em todas as matérias. Importa distinguir três níveis: (a) um nível mais exigente, em que toda a regulamentação legislativa da matéria é reservada à AR - é o que ocorre na maior parte das alíneas; (b) um nível menos exigente, em que a reserva da AR se limita ao regime geral [alíneas d), e), h) e p)], ou seja, em que compete à AR o regime comum ou normal da matéria, sem prejuízo, todavia, de regimes especiais que podem ser definidos pelo Governo (ou, se for caso disso, pelas assembleias regionais); (c) finalmente, um terceiro nível, em que a competência da AR é reservada apenas no que concerne às bases gerais do regime jurídico da matéria [alíneas f), g), n) e u)].

Nesta visão das coisas, a «organização e competência dos tribunais» (alínea q)] situa-se, pois, no nível mais exigente da competência legislativa reservada da AR, em que se impõe que toda a regulamentação legislativa da matéria seja atribuída ao Parlamento (ob. cit., p. 202).

Ora, o diploma no qual se insere a norma em causa, o Decreto-Lei 491/85, veio, como acima já se referiu, transmutar uma série de transgressões laborais em contra-ordenações. Esta operação legislativa, só por si, conduziu, necessariamente, a uma alteração na competência dos tribunais, já que estes deixaram de intervir em «1.ª instância», para julgarem as contravenções, passando apenas a intervir em «2.ª instância», para julgarem os recursos das decisões administrativas aplicativas de coimas. Estas modificações eram, em princípio, legítimas, mesmo que efectuadas por via de decreto-lei, pois que, sendo da competência legislativa concorrente da AR e do Governo a desgraduação de contravenções não puníveis com pena restritiva da liberdade em contra-ordenações, ter-se-iam de admitir os efeitos reflexos que daí adviriam na competência dos tribunais (cf. o Acórdão do TC n.º 56/84, Diário da República, 1.ª série, de 9 de Agosto de 1984). Em todo o caso, a determinação do tribunal competente para o conhecimento do recurso das decisões administrativas aplicativas de coimas haveria de continuar a ser feita segundo as regras preexistentes constantes do regime geral do ilícito de mera ordenação social.

Acontece, porém, que, através da norma do referido artigo 57.º, o Governo veio dispor, directa e expressamente, sobre qual o tribunal competente para conhecer das impugnações das decisões administrativas, retirando aos tribunais de comarca a competência que lhes caberia por força do artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82 e atribuindo-a aos tribunais do trabalho (aos quais, anteriormente, cabia a competência para o julgamento das contravenções em matéria laboral). Afastou-se, assim, do regime geral, modificando as regras de organização e competência judiciária preexistentes, quer no sentido material, quer no sentido territorial, pois que a impugnação da decisão administrativa que aplica uma coima passa a ser apreciada por um tribunal de competência especializada, e não por um tribunal de competência genérica, podendo também, eventualmente, vir a ser julgada por um tribunal de circunscrição territorial diferente daquele que decorre da aplicação das normas gerais em matéria de competência judicial para conhecer da impugnação de aplicação de coimas.

Estas considerações são aplicáveis, mutatis mutandis, à alteração da regra de competência para a execução das coimas administrativamente aplicadas, modificação igualmente, operada pelo mesmo artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, conjugado com o artigo 89.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, e que se reporta, igualmente, quer à competência material, quer à competência territorial.

Esta alteração directa e expressa da repartição de competências judiciárias efectuada pelo Governo, sem autorização parlamentar, através da norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, não pode deixar de ser considerada como violadora da competência legislativa reservada à AR pelo artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da CRP.

Mas idêntica violação ocorre também no que toca ao «regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo» [artigo 168.º, n.º 1, alínea d) da CRP].

Na verdade, há que considerar-se que a disciplina contida no Decreto-Lei 433/82 para o recurso e processo judiciais (artigos 59.º a 75.º) e para o processo de execução (artigos 88.º a 91.º) integra o regime geral do processo de punição dos actos ilícitos de mera ordenação social, a que se refere a alínea d) do n.º 1 do citado preceito constitucional.

Com efeito, como o Tribunal já o entendeu no Acórdão 255/88, o verdadeiro sentido e alcance deste regime geral visiona-se perspectivando a dimensão desta reserva parlamentar (introduzida pela primeira revisão constitucional, constante da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro) no intervalo entre o Decreto-Lei 232/79, de 24 de Julho (que representou a primeira tentativa de definição de um regime geral relativo às contra-ordenações, tanto no plano substantivo como processual), e o Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, que o veio substituir já depois da revisão constitucional. Contendo cada um destes diplomas a disciplina básica reguladora do regime geral do processo dos actos ilícitos de mera ordenação social e nela incluindo as normas de atribuição de competência para o recurso e para a execução, há-de concluir-se que estas regras fazem parte do regime processual geral de tal tipo de ilícito.

Ora, tendo a norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85 vindo alterar a regra de atribuição de competência para o recurso das decisões administrativas aplicativas de coimas por contra-ordenações laborais e tendo a mesma norma, quando conjugada com o artigo 89.º do Decreto-Lei 433/82, alterado a regra de atribuição de competência para a execução das aludidas coimas, não pode deixar de se reconhecer que o dispositivo em causa, colidindo com o «regime geral» do processo dos actos ilícitos de mera ordenação social definido em lei anterior, interferiu no domínio da competência legislativa reservada da AR, violando, pois, a alínea d) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP.

3 - Decisão
Nestes termos, declara-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 57.º do Decreto-Lei 491/85, de 26 de Novembro:

a) Na parte em que define os tribunais competentes, quer em razão de matéria, quer em razão de território, para apreciar as impugnações judiciais das decisões aplicativas de coimas proferidas pelas entidades referidas no artigo 46.º, n.º 2, do mesmo diploma, por violação das alíneas d) e q) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição;

b) Na parte em que, conjugada com a norma do artigo 89.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, define os tribunais competentes, em razão do território, para a execução das referidas coimas, por violação das mesmas normas constitucionais.

Lisboa, 2 de Maio de 1989. - Vital Moreira - Luís Nunes de Almeida (vencido quanto à questão prévia, por ter entendido que já não subsiste qualquer interesse jurídico no conhecimento do pedido, pelas razões constantes da declaração de voto que apus no Acórdão 306/88) - Antero Alves Monteiro Dinis - Raul Mateus - José Magalhães Godinho - José Martins da Fonseca (vencido quanto à questão prévia, nos termos que constam da declaração de voto apresentada no Acórdão 306/88) - Messias Bento (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido em parte, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Messias Bento) - Mário de Brito (não me parece que haja inconstitucionalidade na parte em que a norma define a competência em razão do território, já que aí se trata de simples matéria do processo) - Armando Manuel Marques Guedes.


Declaração de voto
Votei vencido pelos motivos seguintes:
1 - Pelas razões expostas na declaração de voto que apus ao Acórdão 306/88, continuo a entender que:

a) Não havia interesse no conhecimento do pedido;
b) Sendo o «regime geral do processo» do ilícito contra-ordenacional constituído pelo conjunto de normas que contenham regras procedimentais comuns, mas já não pelas que assumam natureza de normas estatutárias, como é o caso das que definem a competência dos tribunais em razão da matéria, as normas sub iudicio violam a alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, mas não também a alínea d) do mesmo número e artigo.

2 - Entendi também que as normas sub iudicio, na parte em que definem quais os tribunais competentes em razão do território, não são inconstitucionais.

Elas não violam, de facto, a alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição, porque a definição desse tipo de competência - contrariamente ao que sucede com a definição da competência material - não se situa naquele nível ou grau que constitui a reserva parlamentar, pois não reclama a submissão da matéria ao debate parlamentar e à regra da maioria. Por outro lado, não contendo regras procedimentais, não integram elas o regime geral de processo das contra-ordenações. - Messias Bento.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/42032.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1979-07-24 - Decreto-Lei 232/79 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social.

  • Tem documento Em vigor 1982-09-30 - Lei Constitucional 1/82 - Assembleia da República

    Aprova a primeira revisão Constitucional, determinando a sua entrada em vigor no trigésimo dia posterior ao da publicação no diário da república, bem como publicação conjunta da Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, no seu novo texto.

  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1985-11-26 - Decreto-Lei 491/85 - Ministério da Justiça

    Estabelece disposições relativas às contra-ordenações no âmbito do direito laboral e da disciplina jurídica sobre higiene, segurança, medicina do trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais.

  • Tem documento Em vigor 1987-06-29 - Lei 28/87 - Assembleia da República

    Determina a participação da Assembleia da República na definição das políticas comunitárias.

  • Tem documento Em vigor 1987-12-23 - Lei 38/87 - Assembleia da República

    Lei orgânica dos tribunais judiciais.

  • Tem documento Em vigor 1988-06-17 - Decreto-Lei 214/88 - Ministério da Justiça

    Regulamenta a nova Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.

  • Tem documento Em vigor 1989-01-20 - Acórdão 306/88 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NAS ALÍNEAS D) E Q) DO NUMERO 1 DO ARTIGO 168 DA CRP, DA NORMA CONSTANTE DO ARTIGO 57 DO DECRETO LEI NUMERO 491/85, DE 26 DE NOVEMBRO. -A DECLARAÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 57 APENAS ABRANGE ESTE NA PARTE EM QUE, CONJUGADO COM A NORMA DO NUMERO 1 DO ARTIGO 89 DO DECRETO LEI NUMERO 433/82, DE 27 DE OUTUBRO, ATRIBUI COMPETENCIA PARA A EXECUÇÃO DAS COIMAS PREVISTAS NO DECRETO LEI NUMERO 491/85 AOS TRIBUNAI (...)

Aviso

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