Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1 - José Ferreira da Costa, recorrente nos presentes autos vindos do Tribunal da Relação do Porto em que são recorridos Alberto Ferreira Costa e outros, notificado da «Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte» apresentada pelos últimos (e que consta de fls. 1479-1481), apresentou reclamação da mesma, nos termos do requerimento de fls. 1473 e seguintes.
A reclamação não foi admitida por despacho de 6 de setembro de 2012 do Juiz das Varas Cíveis do Porto, com o fundamento de que o reclamante não procedeu ao depósito previsto no artigo 33.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, na redação conferida pela Portaria 82/2012, de 29 de março, de acordo com a qual «a reclamação da nota justificativa está sujeita ao depósito da totalidade do valor da nota».
O então reclamante interpôs recurso desta decisão, dirigido ao Tribunal da Relação do Porto, tendo o mesmo sido admitido. No seu recurso, suscitou a inconstitucionalidade do preceito mencionado, por violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa. Disse então o seguinte:
«IV. Da Inconstitucionalidade do artigo 33.º, n.º 2 da Portaria 419-A/2009, de 17 de Abril
O artigo 33.º, n.º 2 da Portaria, face ao caso concreto, enferma de inconstitucionalidade por violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A norma ora em crise, quando interpretada e aplicada da forma acrítica e formalista, como, com o devido respeito, fez o Tribunal de primeira instância, é inconstitucional porquanto confere à parte que elabora a Nota de Custas de Parte a faculdade de definir, sem qualquer controlo judicial, o montante que a parte contrária tem de depositar para que a sua reclamação seja apreciada.
É evidente que não pode permitir-se a uma das partes, sem qualquer controlo prévio, a definição do montante que a parte contrária terá de pagar para exercer o seu direito.
A admitir-se este entendimento, estava encontrada a forma de privar a parte contrária de reclamar da nota de custas de parte ou de tornar o exercício desse direito excessivamente oneroso, já que bastaria atribuir a tal nota um valor excessivamente alto.
É precisamente o que sucede no caso vertente, já que para exercer o direito a reclamar da Nota de Custas de Parte, o Recorrente teria de depositar um montante equivalente a mais de seiscentas unidades de conta!
A ter de ser efetivamente assim, poderia a parte vencedora pedir, a título de custas de parte, centenas de milhões de euros, simplesmente com o objetivo de impedir a parte vencida de aceder à tutela do tribunal através de reclamação.
Poderia também dar-se o caso de, por mero lapso de escrita, a parte vencedora peticionar um montante muito superior ao que era devido, ficando a parte vencida com o ónus (ou a impossibilidade) de depositar esse injustificado montante para poder aceder ao tribunal.
Conforme refere Salvador da Costa, «O depósito da totalidade do montante constante da nota justificativa das custas de parte como condição da admissão da respetiva reclamação é suscetível de constituir entrave à realização da justiça do caso concreto» - cf. Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais - anotado e comentado, Coimbra, Almedina, 2012, 4.ª ed., pág. 582..
O artigo 20.º da CRP, sob a epígrafe «Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva», consagra um direito fundamental, representando uma norma-princípio estruturante do Estado de Direito democrático - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, 4.ª ed., vol. I, pág. 409.
O artigo 20.º da CRP consagra um direito fundamental e uma garantia de que «ninguém pode ser privado de levar a sua causa (relacionada com a defesa de um direito ou interesse legítimo e não apenas de direitos fundamentais) à apreciação de um tribunal» - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, 4.ª ed., vol. I, pág. 408 e 409.
Ademais, o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da CRP encerra vários direitos conexos. No artigo 20.º, n.º 1 da CRP, contamos com o direito de acesso ao direito e o direito de acesso aos tribunais.
O direito à justiça não pode ser prejudicado por insuficiência de meios económicos. Numa das perspetivas que caem dentro da compreensão desta disposição, Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam que «Incumbe à lei assegurar a concretização desta norma constitucional, não podendo, por exemplo, o regime de custas judiciais ser de tal modo gravoso que torne insuportável o acesso aos tribunais, ou as ações ou recursos estarem condicionados a cauções ou outras garantias financeiras incomportáveis» - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, 4.ª ed., vol. I, pág. 411.
Ora, o regime previsto pela Portaria, na medida em que condiciona o acesso à reclamação judicial das custas de parte ao depósito de um valor que, na prática, pode ser livre e discricionariamente fixado por uma das partes no processo, onera de - forma arbitrária o acesso à justiça e rompe o equilíbrio do sistema judicial, favorecendo de forma desmesurada uma das partes.
É certo que o acesso à justiça e aos tribunais não é, sequer, tendencialmente gratuito, sendo admissível do ponto de vista jus constitucional que se condicione esse acesso ao pagamento de taxas.
No entanto, como bem referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, «o direito ao acesso à justiça proíbe seguramente que eles sejam tão onerosos que dificultem, de forma considerável, o acesso aos tribunais» - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, 4.ª ed., vol. I, pág. 411.
O legislador ordinário goza de ampla discricionariedade quanto à conformação da disciplina das custas. No entanto, essa liberdade está inelutavelmente limitada pela necessidade de proporcionalidade que exige a incumbência do Estado assegurar a realização da justiça.
Ora, a norma em crise não resiste a qualquer juízo de ponderação dos interesses em causa. Note-se que no caso de reclamação da conta de custas judiciais nos termos do artigo 31.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, o reclamante tem de depositar 50 % do montante da conta (o que já de si é excessivo), ao passo que no caso vertente se impõe o depósito da totalidade do montante da Nota de Custas de Parte. A diferença é ainda mais injustificada se se atentar no facto de que a conta de custas judiciais é elaborada por funcionários obrigados a deveres de legalidade e diligência, enquanto a Nota de Custas de Parte é elaborada pela parte que dela beneficiará.
Além do mais, e em mais uma clara violação do princípio da proporcionalidade, a norma peca por exigir o depósito do montante em questão, não admitindo sequer a prestação de caução por outros meios.
Note-se que não há aqui que ponderar os interesses do Estado, porquanto o montante reclamado a título de custas de parte reverte, evidentemente, para a parte vencedora.
No Acórdão 347/2009 do Tribunal Constitucional foi apreciada a constitucionalidade do artigo 33.º-A do Código das Custas Judiciais, norma semelhante à que ora se discute. Nesse caso, respeitante à nota discriminativa de despesas apresentadas por um solicitador de execução, o Tribunal Constitucional esclareceu que, para que procedesse a alegação de violação do artigo 20.º da CRP, seria necessário que «se demonstrasse o carácter não controlado do processo de elaboração da nota de custas». O Tribunal Constitucional entendeu que essa circunstância não se verificava porque a Portaria 708/2003 dispõe no seu artigo 4.º que «o juiz, a Câmara dos Solicitadores, o exequente e o executado e qualquer terceiro que tenha um interesse legítimo no processo têm direito a ser informados sobre a conta corrente discriminada da execução», e que «[o] solicitador da execução, no ato de citação, para além das informações impostas pelas normas processuais, deve informar o executado do montante provável dos seus honorários e despesas».
Ora, diversamente da situação do acórdão em referência, na elaboração da Nota de Custas de Parte do presente caso não há mecanismos que assegurem o conhecimento das despesas prováveis da parte e, ademais, a possibilidade de apresentação de um valor arbitrário pela parte que elabora a Nota não se encontra, de forma alguma, acautelada pelo legislador.» (Fls. 1507-1511)
A Relação do Porto negou provimento ao recurso, através de acórdão proferido em 15 de janeiro de 2013 (fls. 1537 a 1542), rejeitando a invocada inconstitucionalidade do artigo 33.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, na redação já mencionada. O Tribunal entendeu não se verificar violação do artigo 20.º da Constituição, nos seguintes termos:
«2.2 - Constitucionalidade do artigo 33.º n.º 2 da Portaria 419-A/2009
O recorrente argumenta que o artigo 33.º n.º 2 da Portaria 419-A/2009 enferma de inconstitucionalidade por violação do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
A interpretação que deste artigo 20.º vem sendo feita pelo Tribunal Constitucional [...] pode condensar-se na seguinte doutrina: não há uma imperatividade constitucional de se assegurar a gratuitidade da justiça e ao direito subjetivo de acesso aos tribunais corresponde um dever correlativo do Estado de garantir condições para assegurar a efetividade da tutela jurisdicional. Daqui decorre que a liberdade do legislador, na disciplina do regime das custas, goza de uma relativa margem, sendo limitada porém pela demonstração de que os custos por ele fixados para a utilização da máquina judiciária não sejam de tal modo onerosos ou excessivos que funcionem como um travão ou inibição, por parte do cidadão comum, no acesso ao tribunal. Só quando tal demonstração for feita é que se pode afirmar que o regime fixado pelo legislador é desproporcional e quebra o "equilíbrio interno ao sistema" que é reclamado pelo citado princípio constitucional de tutela jurisdicional efetiva.
Ora, perante esta doutrina, convém deixar desde logo claro que o exercício de análise para apurar se o artigo 33.º n.º 2 citado foi aplicado de modo violador daquele normativo constitucional não deve ser feito com base em hipóteses abstratas, nomeadamente as avançadas pelo recorrente, de a parte vencedora pedir "centenas de milhões de euros" ou até, por mero lapso de escrita, ter peticionado "um montante muito superior ao que era devido".
O que é determinante é saber se, em concreto, o montante que o reclamante tinha que depositar, a titulo de custas de parte, se pode considerar excessivamente oneroso, ou arbitrário e absolutamente injustificado, por forma a que se possa concluir que nesses termos haveria uma denegação do acesso à justiça, nomeadamente por insuficiência de meios económicos.
Ora, perante os elementos de facto, não cremos que tal juízo se possa formular.
Na verdade, considerando o valor atribuído à ação pelo próprio autor e ora recorrente, (euro) 6.856.365,27, que o reclamante não invocou em concreto dificuldades ou insuficiência de meios económicos para depositar o valor da nota de custas de parte e, ainda, o valor em concreto dessa nota, (euro) 62.190,11, que não pode ser qualificado de arbitrário (aliás o próprio recorrente admite justificada uma parte desse valor e nem esse depositou) não cremos que se possa afirmar estar violado o direito constitucional de acesso aos tribunais para defesa do direito de reclamar da nota de custas de parte.
Diga-se, por outro lado, que a jurisprudência que o recorrente invoca, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 347/2009 de 08.07, proferido no proc. 1008/07[5], não permite retirar a conclusão que dele o apelante pretende extrair. Embora o mesmo se tenha debruçado sobre o n.º 4 do artigo 33.º-A do Código das Custas Judiciais (aprovado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 224-A/96 de 26.11 e que igualmente previa que "a admissão da reclamação e do recurso dependem do depósito prévio do montante constante da nota discriminativa e justificativa..."), a doutrina que dele se extrai, a da eventual inconstitucionalidade no caso de se demonstrar "o carácter não controlado do processo de elaboração da nota de custas", não é suscetível de aplicação ao caso dos autos, desde logo por falta dos pressupostos fácticos, pois também em relação à nota de custas de parte em causa não se demonstrou o seu carácter não controlável. Note-se que só são suscetíveis de se compreender no conceito de custas de parte as despesas previstas no n.º 2 do artigo 447-D do CPC, devendo constar da nota justificativa os elementos indicados no n.º 2 do artigo 25.º do RCP. Acresce que, sendo possível reclamar daquela nota de custas de parte e devendo o juiz decidir se a mesma tem ou não fundamento legal, dúvidas não podem restar sobre o seu carácter controlável.
Finalmente refira-se que o fim da norma em causa, o citado artigo 33.º n.º 2 da Portaria 419-A/2009, é perfeitamente legítimo. Esse fim, tal como já acontecia com o referido artigo 33.º-A n.º 2 do CCJ e se assinala no citado acórdão 347/2009 é o de "fazer depender a admissibilidade da reclamação e do recurso [da nota discriminativa e justificativa das custas de parte] do depósito prévio do montante nela fixado", o que se explica "pela necessidade, especialmente refletida pelo legislador ordinário, não só de garantir o pagamento das custas, mas ainda de moderar e razoabilizar, quanto a elas, o regime processual de reclamações e recursos, de forma a evitar o seu uso dilatório". Assim sendo, também a conclusão extraída no citado aresto 347/2009, ou seja, "que, face às finalidades prosseguidas pelo n.º 4 do artigo 33-A do CCJ, se não torna desproporcionada a exigência, que nele se faz, de depósito prévio da quantia fixada na nota de custas, como condição da admissão da reclamação ou recurso" é aplicável ao caso dos autos, não havendo pois qualquer violação do princípio da proporcionalidade.
Conclui-se, assim, pela resposta negativa em relação à 2.ª questão supra equacionada pelo que, improcedendo as conclusões das alegações do recurso, se impõe confirmar o despacho recorrido.» (fls. 1540-1541)
2 - É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, fundado no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de novembro ("LTC"), o qual tem por objeto a apreciação da «norma ínsita no artigo 33.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, quando interpretada no sentido de sujeitar, obrigatoriamente, a admissão e conhecimento da reclamação da nota justificativa e discriminativa de custas de parte ("Nota de Custas de Parte") ao prévio depósito da totalidade do montante constante dessa nota.»
Notificado para produzir alegações, o recorrente concluiu, designadamente, pelo seguinte modo:
«5 - Como forma de cumprir com o imperativo constitucional de assegurar à parte vencida num litígio uma forma de tutela antecipatória dos seus direitos fundamentais, o legislador consagrou a possibilidade de reclamar da nota de custas de parte.
6 - Com a finalidade bem precisa de evitar usos processuais dilatórios o legislador condicionou a reclamação ao depósito da totalidade do valor da nota conforme indicado pelo parte vencida.
7 - Ao fazê-lo (re)criou o problema a que este mesmo mecanismo visava obviar.
8 - O presente recurso tem por objeto a apreciação da inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 33.º, n.º 2, da Portaria, quando interpretada no sentido de sujeitar, obrigatoriamente, a admissão e conhecimento da reclamação da nota justificativa e discriminativa de custas de parte ao prévio depósito da totalidade do montante constante dessa nota.
9 - O Tribunal Constitucional no Acórdão 347/2009, de 8 de Julho de 2009 apreciou a conformidade da norma equivalente do Código da Custas Judiciais com o artigo 20.º da CRP e entendeu que essa circunstância não se verificava pois, para se verificar a violação do artigo 20.º da CRP, seria necessário que «se demonstrasse o carácter não controlado do processo de elaboração da nota de custas».
10 - Diversamente da situação do acórdão em referência, na elaboração da Nota de Custas de Parte do presente caso não há mecanismos que assegurem o conhecimento das despesas prováveis da parte e, ademais, a possibilidade de apresentação de um valor arbitrário, ou simplesmente mal calculado, pela parte que elabora a Nota não se encontra, de forma alguma, acautelada pelo legislador.
11 - Os artigos 447.º-D, do CPC e, 25.º e 26.º, do RCP, apenas indicam, em abstrato, os valores suscetíveis de relevar para efeitos das custas de parte, i.e., fornecem a "fórmula" de cálculo para a elaboração da Nota.
12 - Questão diversa e que aqui releva, tem a ver com o controlo pela parte vencida da observância desses critérios pela parte vencedora e com a possibilidade, apenas teórica, de reclamação.
13 - A questão radica não apenas em saber se a elaboração da nota de custas de parte é ou não, no plano normativo, controlável, mas também, em saber se é conforme à Constituição da República Portuguesa, sujeitar o acesso da parte vencida ao único mecanismo de tutela previsto na lei contra uma situação jurídica que lhe é desfavorável, ao cumprimento de um ónus ou requisito cuja amplitude, ou quantum, é livremente determinada pela parte vencedora sem possibilidade de sujeitar essa determinação a qualquer controlo a não ser através do preenchimento desse mesmo requisito.
14 - O artigo 20.º, da CRP, sob a epígrafe «Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva», consagra um direito fundamental, representando uma norma-princípio estruturante do Estado de Direito democrático.
15 - O direito à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º, da CRP encerra vários direitos conexos. Entre eles, no seu n.º 1, o direito de acesso ao direito e o direito de acesso aos tribunais e, no seu n.º 4, o direito a um processo equitativo. Sendo que cada um destes direitos encerra diversas dimensões in casu relevantes.
16 - O artigo 20.º, n.º 1, da CRP dispõe que o direito à justiça não pode ser prejudicado por insuficiência de meios económicos.
17 - O regime previsto pela Portaria ao condicionar a reclamação judicial da nota de custas de parte ao depósito de um valor que, na prática, pode ser livre e discricionariamente fixado por uma das partes no processo, onera de forma arbitrária o acesso à justiça e rompe o equilíbrio do sistema judicial, favorecendo de forma desmesurada uma das partes.
18 - O direito ao acesso à justiça e aos tribunais não pode estar sujeito a condições tão onerosas que dificultem de forma considerável, ou mesmo inviabilizem, o acesso aos mecanismos de tutela judicial.
19 - A insuficiência económica, fora dos casos em que é admitido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxas de justiça e demais encargos, é juridicamente irrelevante para efeitos de custas de parte uma vez que interpretada a norma do artigo 33.º, n.º 2, da Portaria no sentido que aqui se presente ver apreciado, isto é sem se proceder ao depósito da totalidade do valor conforme peticionado, o tribunal não aprecia, nem sequer admite a reclamação e, como tal, também não conhece da capacidade da parte para fazer face a esse valor.
20 - Não pode permitir-se que a parte vencedora num litígio possa livremente, e ainda que a título provisório, determinar qual o preço a pagar pela parte vencida para aceder à tutela judicial.
21 - O legislador ordinário goza de ampla discricionariedade quanto à conformação da disciplina das custas mas essa liberdade está inelutavelmente limitada pela necessidade de proporcionalidade que exige a incumbência do Estado em assegurar a realização da justiça.
22 - A norma em crise não resiste a qualquer juízo de ponderação dos interesses em causa e representa uma clara violação do princípio da proporcionalidade, não admitindo sequer a prestação de caução por outros meios.
23 - A imposição de ónus processuais não é incompatível com a tutela constitucional, mas deve conformar-se com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.os 2 e 3, da CRP.
24 - A norma ora em crise, interpretada e aplicada da forma como foi no caso concreto, é inconstitucional porquanto confere à parte que elabora a nota de custas de parte a faculdade de definir, sem qualquer controlo judicial, o montante que a parte contrária tem de depositar para que a sua reclamação seja apreciada por um tribunal.
25 - Não pode permitir-se a uma das partes, sem qualquer controlo prévio, a definição do montante que a parte contrária terá de pagar para exercer o seu direito.
26 - A admitir-se este entendimento, estava encontrada a forma de privar a parte contrária de reclamar da nota de custas de parte ou de tornar o exercício desse direito excessivamente oneroso, já que bastaria atribuir a tal nota um valor excessivamente alto.
27 - O artigo 20.º, n.º 4, da CRP, consagra a exigência de um processo equitativo que postula a efetividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas ou igualdade processual.
28 - A consagração da possibilidade de reclamação da nota discriminativa e justificativa de custas de parte em moldes que permitam à parte vencedora a possibilidade de determinar quanto do seu património é que a parte vencida irá ter que onerar para poder, em juízo, discutir se o valor indicado na nota de custas de parte é ou não correto, não é consonante com o direito a um processo equitativo e à igualdade de armas.
29 - Quando interpretada a norma do artigo 33.º, n.º 2, da Portaria no sentido de sujeitar, obrigatoriamente, a admissão e conhecimento da reclamação da nota justificativa e discriminativa de custas de parte ao prévio depósito da totalidade do montante dessa nota, não se assegura um suficiente grau de garantia de que existe uma tutela efetiva.
30 - O artigo 20.º, n.º 4, da CRP, consagra a exigência constitucional de um processo equitativo e leal o que implica que se assegure o direito de defesa e o princípio do contraditório.
31 - Não é equitativo o mecanismo de reclamação consagrado na norma alvo de análise porquanto permite que uma das partes possa, livremente e sem qualquer controlo - judicial ou normativo, determinar qual o preço a pagar pela parte contrária para exercer o seu direito de contraditório e defesa, uma vez que, ainda que o legislador forneça critérios, não determina qualquer forma efetiva de controlo em face da (não) observância dos mesmos.
32 - A norma ínsita no artigo 33.º, n.º 2, da Portaria, quando interpretada no sentido de sujeitar, obrigatoriamente, a admissão e conhecimento da reclamação da nota justificativa e discriminativa de custas de parte ao prévio depósito da totalidade do montante constante dessa nota é inconstitucional, porquanto viola o direito de acesso ao direito, o direito de acesso aos tribunais, o direito à tutela jurisdicional efetiva, bem como, o direito a um processo equitativo, o direito à defesa e ao contraditório e, ainda, o princípio da proporcionalidade, consagrados, respetivamente, no artigo 20.º, n.º 1 e n.º 4, e no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.» (Fls. 1598-1603)
Os recorridos não apresentaram contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
3 - O objeto do presente recurso integra o artigo 33.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009, de 17 de Abril, na redação conferida pela Portaria 82/2012, de 29 de março, nos termos do qual a reclamação da nota justificativa das custas de parte está sujeita ao depósito da totalidade do valor da nota.
A) O regime das custas de parte
4 - De acordo com o disposto no artigo 447.º-D, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), na redação dada pelo 75/2000, de 9 de Maio, 35 781, de 5 de Agosto de 1946 e 108/2006, de 8 de Junho.">Decreto-Lei 34/2008, de 26 de fevereiro (redação aplicável aos presentes autos), as custas de parte integram, designadamente, as taxas de justiça pagas, os encargos efetivamente suportados pela parte, as remunerações pagas ao [agente] de execução e as despesas por este efetuadas, e os honorários do mandatário e as despesas por este efetuadas. As custas de parte englobam o somatório das despesas suportadas com a lide - e por causa da lide - pelas partes, incorrendo no seu pagamento a parte vencida na proporção do seu decaimento (cf. n.º 1 do mesmo preceito). As custas de parte traduzem-se, por conseguinte, no reembolso de certas despesas em que a parte incorreu e relativamente às quais tem o direito de ser compensada.
No regime anterior ao Decreto-Lei 324/2003, de 27 de dezembro, a conta das custas de parte era incluída na conta final, elaborada pela secretaria, sendo o reembolso efetuado através de cheque do tribunal. Este figurino foi alterado, tendo o Decreto-Lei 324/2003, de 27 de dezembro, aditado o artigo 33.º-A ao Código das Custas Judiciais (CCJ), relativo ao pagamento das custas de parte. Este preceito passou a fazer depender o pagamento das custas de parte da intervenção ativa da parte que pretende ser reembolsada, a qual passou a estar onerada com o envio à parte responsável de nota discriminativa e justificativa das custas. Essa nota deveria igualmente ser remetida ao tribunal nos casos em que o pagamento devesse ser efetuado por quantias depositadas à ordem do processo.
5 - No regime ora aplicável, o Código de Processo Civil (CPC) remete para o Regulamento das Custas Processuais (RCP) a disciplina das custas de parte, a qual se encontra prevista nos respetivos artigos 25.º e 26.º Na Portaria 419-A/2009, de 17 de abril (diploma que regulamenta o RCP) rege esta matéria o Capítulo V, com a epígrafe "Custas de parte".
Com a aprovação do RCP manteve-se o figurino que havia sido já introduzido pelo Decreto-Lei 324/2003, de 27 de dezembro, estando a compensação dos encargos abrangidos pelas custas de parte dependente de intervenção, nesse sentido, da parte credora desse mesmo reembolso. A interpelação para o pagamento das custas de parte é feita através da apresentação da «nota justificativa» prevista no artigo 25.º do RCP pela parte que pretende ser reembolsada. Esta «nota justificativa» deve ser notificada ao tribunal e à parte vencida e integra os elementos previstos no n.º 2 daquele preceito: (i) indicação da parte, do processo e do mandatário ou agente de execução (alínea a)); (ii) indicação, em rubrica autónoma, das quantias efetivamente pagas pela parte a título de taxa de justiça (alínea b)); (iii) indicação, em rubrica autónoma, das quantias efetivamente pagas pela parte a título de encargos ou despesas previamente suportadas pelo agente de execução (alínea c)); (iv) indicação, em rubrica autónoma, das quantias pagas a título de honorários de mandatário ou de agente de execução, salvo, quanto às referentes aos honorários de mandatário, quando as quantias em causa sejam superiores ao valor indicado na alínea c) do n.º 3 do artigo 26.º (i.e. 50 % do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora, para compensação da parte vencedora face às despesas com honorários do mandatário judicial) (alínea d)); (v) indicação do valor a receber (alínea e)).
A matéria da reforma e reclamação da conta de custas de parte não se encontra prevista no RCP, mas sim na Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, cujo artigo 33.º prevê a «reclamação da nota justificativa», a apresentar no prazo de 10 dias, devendo posteriormente ser decidida pelo juiz em igual prazo. Caso o valor da nota seja superior a 50 UC, prevê-se o direito a recurso em um grau desta decisão.
O n.º 2, do artigo 33.º da Portaria 419-A/2009 sujeita a reclamação da nota justificativa ao "depósito da totalidade do valor da nota". Esta disciplina corresponde à redação introduzida pela Portaria 82/2012, de 29 de março. Na versão originária, o artigo 33.º da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, sujeitava a reclamação da nota justificativa ao depósito de 50 % do valor da nota.
6 - A Portaria 82/2012, de 29 de março, foi aprovada na sequência das alterações introduzidas pela Lei 7/2012, de 13 de fevereiro, ao Regulamento das Custas Processuais. Tais alterações tiveram na génese uma proposta de lei apresentada pelo Governo à Assembleia da República, devido à necessidade de implementar medidas legislativas adequadas a dar cumprimento a algumas das obrigações assumidas pelo Estado Português no âmbito do Memorando de Entendimento celebrado com o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, tendo em vista o Programa de Assistência Económica e Financeira. Tais obrigações incluíam, como refere o Preâmbulo da Portaria 82/2012, "a imposição de custas e sanções adicionais aos devedores não cooperantes nos processos executivos; a introdução de uma estrutura de custas judiciais extraordinárias para litígios prolongados desencadeados pelas partes litigantes sem justificação manifesta; a padronização das custas judiciais; e a introdução de custas especiais para determinadas categorias de processos e procedimentos com o objetivo de aumentar as receitas e desincentivar a litigância de má-fé."
No que ora importa, a Portaria 82/2012, de 29 de março, veio fazer depender a reclamação da nota justificativa das custas de parte do prévio depósito da totalidade do valor da referida nota. Na redação originária, recorde-se, o artigo 33.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, dispunha que essa reclamação se encontrava sujeita ao depósito de 50 % do valor da nota.
É esta modificação que o Tribunal é agora convocado a apreciar, sendo especificamente cotejados os parâmetros constitucionais contidos no artigo 20.º da Constituição. Sendo esta uma norma constitucional de estrutura complexa, apresenta relevância para os presentes autos o parâmetro contido no respetivo n.º 1, relativo ao acesso ao direito e à proibição de denegação de justiça por insuficiência de meios económicos.
B) A jurisprudência constitucional em matéria de acesso ao direito e a proibição de denegação de justiça por insuficiência de meios económicos
7 - O Tribunal tem dito, de modo reiterado, que a norma contida no artigo 20.º, n.º 1 da Constituição não comporta um imperativo de gratuitidade da justiça. Trata-se de norma de estrutura complexa, que abrange, designadamente, o direito de aceder à justiça independentemente da respetiva capacidade económica. Embora o artigo 20.º não contenha qualquer injunção no sentido da gratuitidade dos meios de justiça, eventuais custos no acesso aos mesmos não podem ser de tal modo onerosos que dificultem, em concreto, o efetivo acesso aos tribunais.
Nesta norma contemplam-se não só posições subjetivas de natureza típica dos direitos, liberdades e garantias, como também dimensões de natureza prestacional, enquanto «dever do Estado de pôr à disposição das pessoas instituições e procedimentos que garantam a efetividade da tutela jurisdicional» (cf. Acórdão 347/2009).
Como se referiu no Acórdão 307/90,
«A Constituição da República, em nenhum dos seus preceitos, ou princípios dela imanentes, aponta para a gratuitidade da administração da justiça.
Mas, se isto é certo, menos não é que, se for exigido, sem mais, a quem recorra aos tribunais para a defesa dos seus direitos ou interesses legítimos, exorbitantes quantitativos monetários, obviamente que, por essa via de certo modo indireta, se restringe tal recurso, mormente se quem desejar dele lançar mão não desfrutar de meios económicos que, sem grande sacrifício, possam suportar aqueles quantitativos (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., p. 182, que assinalam que «o reconhecimento do direito de recorrer aos tribunais seria meramente teórico se não garantisse que o direito a via judiciária não pode ser prejudicado pela insuficiência de meios económicos»).
5 - Já aquando da versão originária da Lei Fundamental e relativamente ao seu então vigente n.º 1 do artigo 20.º (correspondente, com alterações, ao n.º 2 do artigo 22.º da primeira Revisão Constitucional e, hoje, ao n.º 1 do mesmo artigo), a Comissão Constitucional (Parecer 8/78, in Pareceres da Comissão Constitucional, 5.º vol., pp. 3 e segs.) referia que «ao assegurar a todos o 'acesso aos tribunais, para defesa dos seus direitos', a primeira parte do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição consagra a garantia fundamental que se traduz em confiar a tutela dos direitos individuais àqueles órgãos de soberania a quem compete administrar a justiça em nome do povo (artigo 205.º)».
E, prosseguindo,
«A defesa dos direitos e dos interesses legalmente protegidos dos cidadãos integra expressamente o conteúdo da função jurisdicional, tal como ela se acha definida no artigo 206.º da Lei Fundamental.
Do mesmo passo, ao assegurar a todos o acesso aos tribunais para a defesa dos seus direitos, o legislador constitucional reafirma o princípio geral da igualdade consignado no n.º 1 do artigo 13.º
Mas indo além do mero reconhecimento duma igualdade formal no acesso aos tribunais, o n.º 1 do artigo 20.º, na sua parte final, propõe-se afastar neste domínio a desigualdade real nascida da insuficiência de meios económicos, determinando expressamente que tal insuficiência não pode constituir motivo para denegação da justiça.
Está assim o legislador constitucional a consagrar uma aplicação concreta do princípio sancionado no n.º 2 do artigo 13.º, segundo o qual «ninguém pode ser (... privado de qualquer direito [...] em razão de [...] situação económica».
[...]
Será assim de concluir que haverá violação da parte final do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição se e na medida em que na ordem jurídica portuguesa, tendo em vista o sistema jurídico-económico aí em vigor para o acesso aos tribunais, puder o cidadão, por falta de medidas legislativas adequadas, ver frustrado o seu direito à justiça, devido à insuficiência de meios económicos [...]."»
8 - A carência de meios económicos não pode pôr em causa o efetivo acesso aos meios de justiça, tanto no que se refere aos encargos com custas, como à exigência de depósito prévio de determinadas quantias (a título, por exemplo, de coimas ou de taxa de justiça) como condição de acesso a determinados meios impugnatórios.
Assim, por exemplo, o Acórdão 30/88 declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma que condicionava «o recurso judicial, quando o recorrente, por insuficiência de meios económicos, não procede ao prévio depósito do quantitativo da coima», por violação do artigo 20.º, n.º 2, da Constituição (atual n.º 1) (itálico adicionado).
Também os Acórdãos n.os 83/2010 e 440/2012 julgaram inconstitucionais soluções legais que impunham ao beneficiário de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo o depósito de determinada quantia como condição para o prosseguimento dos autos.
No que toca aos encargos com custas, enquanto correspetivo da prestação pública dos serviços de justiça, o Tribunal Constitucional tem também afirmado que deve existir uma relação proporcional entre ambos, numa ótica de controlo de evidência, devendo, na determinação de tal sinalagmaticidade, atender-se, designadamente, à natureza e complexidade do processo (nesse sentido cf., por exemplo, os Acórdãos n.os 471/2007, 116/2008, 301/2009, 266/2010).
Do acervo jurisprudencial relevante, salienta-se a existência de juízos de inconstitucionalidade em dois tipos de situações, sempre numa linha de controlo de evidência: (i) quando, por insuficiência de meios económicos, a exigência de pagamento de determinadas quantias obstaculiza o acesso à justiça; e (ii) quando inexiste uma relação de sinalagmaticidade entre as quantias devidas e as circunstâncias concretas atinentes à complexidade processual da causa.
C) A constitucionalidade da norma do artigo 33.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, na redação dada pela Portaria 82/2012, de 29 de março
9 - Regressemos então ao objeto do presente recurso.
A solução ora em vigor, traduzida em fazer depender a reclamação da conta do depósito prévio do montante total da mesma, é análoga à que se encontra consagrada para a segunda reclamação do ato de contagem, como estipula o artigo 31.º, n.º 5, do RCP.
Esta disciplina legislativa não é, como já vimos, inédita no nosso ordenamento jurídico. Solução semelhante vigorou na pendência do Código das Custas Judiciais. Dispunha o artigo 33.º-A desse Código, cuja redação foi introduzida pelo Decreto-Lei 324/2003, de 27 de dezembro, a propósito do pagamento das custas de parte, o seguinte:
«Artigo 33.º-A
Pagamento das custas de parte
1 - Sem prejuízo da sua cobrança em execução de sentença, no prazo de 60 dias a contar do trânsito em julgado da mesma, a parte que tenha direito a ser compensada das custas de parte remete à parte responsável a respetiva nota discriminativa e justificativa, para que esta proceda ao seu pagamento.
[...]
4 - A admissão da reclamação e do recurso dependem do depósito prévio do montante constante da nota discriminativa e justificativa, a efetuar nos termos do n.º 3 do artigo 124.º»
10 - Esta solução normativa do Código das Custas Judiciais foi objeto de escrutínio pelo Tribunal Constitucional, o qual concluiu pela não verificação de qualquer inconstitucionalidade.
Com efeito, o Acórdão 347/2009 considerou que a norma do artigo 33.º-A, n.º 4, «quando aplicada a processos de execução e enquanto faz depender a admissibilidade da reclamação e do recurso da nota discriminativa e justificativa das custas de parte do depósito prévio do montante nela fixado», não lesava, por violação do princípio da proibição do excesso, o direito consagrado no artigo 20.º da Constituição.
Estava então em causa a aplicação da referida norma a execuções em que a nota discriminativa e justificativa das custas de parte excedia, acentuadamente, o montante da própria dívida exequenda inicial (sendo a quantia exequenda inicial de (euro)44.600,73(euro) e a nota de despesas objeto de reclamação de (euro)64.750,63(euro)).
O Tribunal começou por aferir a legitimidade do fim visado pela norma do artigo 33.º-A, n.º 4, do CCJ, enquanto instrumento destinado a, por um lado, «garantir que o custeamento do processo corra efetivamente por conta de quem lhe deu causa e não por conta do Estado e da Comunidade», e, por outro, a «adequar o regime das custas ao atual modelo do processo executivo, em que a figura do "solicitador de execução" aparece como um dado novo». Assim, a norma visava «não só [...] garantir o pagamento das custas, mas ainda [...] moderar e razoabilizar, quanto a elas, o regime processual de reclamações e recursos, de forma a evitar o seu uso dilatório».
Sendo pacífico o caráter restritivo que a norma em apreciação comportava face ao direito previsto no artigo 20.º da Constituição, o Tribunal aferiu, depois, a eventual violação do princípio da proporcionalidade, na dimensão de proibição do excesso, considerando a jurisprudência constitucional aplicável em matéria de custas:
«O Tribunal tem dito, em jurisprudência constante, que a norma contida no artigo 20.º da Constituição (mormente, a resultante do disposto no seu n.º 1) não contém nenhum imperativo de gratuitidade da justiça. Sendo o direito, que aí se consagra, de acesso ao tribunal, um direito pluridimensional [...], ampla será, também, a liberdade de conformação do legislador ordinário quanto à disciplina das custas que o exercício de tal direito, inevitavelmente, acarretará.
Certo é, no entanto, que essa liberdade terá limites, sempre que se demonstrar que os custos da utilização da máquina judiciária, fixados pelo legislador como correlativo da criação e afetação, por parte do Estado, de importantes meios ao fim de "realização da justiça", são, pela sua dimensão, de tal modo excessivos ou onerosos que acabam por inibir o acesso que o cidadão comum deve ter ao juiz e ao tribunal. Quanto a este ponto, tem também sempre dito o Tribunal que o teste da proporcionalidade se deve fazer tendo em conta a exigência de um "equilíbrio interno ao sistema" que todo o regime de custas, pela sua razão de ser, terá que perfazer. (Assim, vejam-se, entre outros, os Acórdãos n.os 552/91, 467/91 e 1182/96, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).»
E foi a propósito da alegada rutura do equilíbrio interno ao sistema, pelo excesso, coenvolvida na exigência, para reclamar da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, do prévio depósito do montante indicado nessa mesma nota, que o Tribunal considerou que tal só ocorreria, caso o processo da respetiva elaboração não fosse controlado. Na verdade,
«[Diz o recorrente que o montante de tais custas pode] ascender a níveis excessivos pela ausência de controlo (mormente de controlo judicial) que terá o seu processo de elaboração. Assim sendo, conclui, não se pode exigir (como o faz o n.º 4 do artigo 33.º-A) que, para reclamar da nota que discrimina e justifica tais custas, se deposite previamente o montante por ela fixado. Não se pode porque a Constituição o proíbe [...].
No entanto, para que tal argumentação colhesse, necessário seria que se demonstrasse o carácter não controlado do processo de elaboração da nota de custas a que se refere o n.º 1 do artigo 33.º-A. Sucede, porém, que a atuação do agente de execução - pois é ela que centralmente está em causa - para além de ser controlada, em aspetos que agora não relevam, pelas pertinentes normas processuais, tem, naquilo que para o caso importa, suficiente controlo. A Portaria 708/2003, que veio regulamentar o regime fixado pela alínea e) do n.º 1 do artigo 33.º-A do CCJ, dispõe, no seu artigo 4.º, que "[o] juiz. a Câmara dos Solicitadores, o exequente e o executado e qualquer terceiro que tenha um interesse legítimo no processo têm direito a ser informados sobre a conta corrente discriminada da execução", e que "[o] solicitador da execução, no ato de citação, para além das informações impostas pelas normas processuais, deve informar o executado do montante provável dos seus honorários e despesas".
[T]anto basta para se conclua que, face às finalidades prosseguidas pelo n.º 4 do artigo 33-A do CCJ, se não torna desproporcionada a exigência, que nele se faz, de depósito prévio da quantia fixada na nota de custas, como condição da admissão da reclamação ou recurso.»
11 - No caso sub iudicio, é igualmente aplicável esta doutrina sobre os limites do equilíbrio interno do regime de custas. Com efeito, na linha da jurisprudência contida no Acórdão 347/2009, importa garantir que a solução legal quanto à elaboração da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, prosseguindo um fim legítimo, permite à instância judicial controlar minimamente o equilíbrio entre o montante peticionado a título de custas de parte e as circunstâncias concretas, relativas à lide e à complexidade da respetiva tramitação, e à própria parte, prevenindo hipóteses de, por lapsos inadvertidos mas grosseiros ou manipulações malévolas, impor custos indevidos e imprevisíveis à parte vencida.
O fim legalmente prosseguido é idêntico ao considerado no supracitado Acórdão, intensificado porventura agora pela preocupação de estimular a cooperação do devedor (cf. supra o n.º 6).
No tocante às garantias do aludido equilíbrio interno, verifica-se que as mesmas, na solução em análise, até são reforçadas.
Em primeiro lugar, cumpre ter presente que das três rubricas que devem constar da nota discriminativa e justificativa das custas de parte segundo o artigo 25.º, n.º 2, do RCP - taxa de justiça, encargos e honorários e despesas de mandatário ou agente de execução -, o valor de duas delas é, desde logo, indicado pela secretaria do tribunal e o valor da terceira encontra-se perfeitamente balizado.
Assim, nos termos do artigo 30.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, com a notificação da decisão que ponha termo ao processo, deve a secretaria remeter às partes uma nota descritiva com os seguintes elementos:
a) Indicação das quantias efetivamente pagas a título de taxa de justiça;
b) Indicação das quantias efetivamente pagas a título de encargos.
Por outro lado, no que se refere aos honorários e despesas de mandatário ou agente de execução, rege, por remissão contida no artigo 32.º, n.º 1, da mesma Portaria, o limite fixado no artigo 26.º, n.º 3, alínea c), do RCP: «50 % do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora».
Ou seja, a margem para lapsos ou manipulações quantitativas não verificáveis antes de qualquer reclamação é objetivamente muito limitada. Ademais, o custo máximo imputável a custas de parte é, em larga medida, antecipável a partir do cálculo da taxa de justiça aplicável e do tipo de processo, permitindo, desse modo, e se existir uma situação de risco real de comprometimento de acesso à justiça, mobilizar atempadamente o apoio judiciário, em especial, na modalidade de dispensa, total ou parcial, de taxa de justiça e demais encargos com o processo (cf. o artigo 16.º, n.º 1, alínea a), da Lei 34/2004, de 29 de julho).
A isto acresce, em segundo lugar, que a própria nota discriminativa e justificativa das custas de parte tem de ser remetida não apenas à parte vencida, mas também ao próprio tribunal (cf. o artigo 25.º, n.º 1, do RCP e o artigo 31.º, n.º 1, da Portaria 419-A/2009, na redação originária). Mais: resulta da aplicação subsidiária à reclamação da nota justificativa das disposições relativas à reclamação da conta constantes do artigo 31.º do RCP - isto de acordo com a previsão do artigo 33.º, n.º 4, da Portaria 419-A/2009 - que «oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou dos interessados, o juiz mandará reformar a conta [ou a nota justificativa] se esta não estiver de harmonia com as disposições legais». Saliente-se que esta possibilidade de reforma oficiosa se encontra prevista como uma consequência da sujeição da conta ao princípio da legalidade - princípio o que também vale para a elaboração da nota discriminativa e justificativa das custas de parte. Aliás, de outro modo, nem se compreenderia a exigência legal de envio de tal nota também ao tribunal.
Os dois aspetos considerados - a predeterminação normativa do valor máximo admissível das custas de parte num dado processo e a necessidade de dar conhecimento simultâneo ao tribunal e à parte vencida da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, abrindo a possibilidade de uma reforma oficiosa da nota apresentada - constituem um controlo mínimo suficiente para assegurar que a sujeição da reclamação daquela nota ao depósito prévio do respetivo valor não rompe o equilíbrio interno do regime de custas, neste domínio específico das custas de parte. Consequentemente, atentos os valores coenvolvidos em tal regime, mormente o da moderação e racionalização das reclamações, a sujeição em causa prevista no artigo 33.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, na redação dada pela Portaria 82/2012, de 29 de março, não pode ser considerada excessiva, pelo que a mesma sujeição não viola o princípio da proporcionalidade.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 33.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009, de 17 de Abril, na redação conferida pela Portaria 82/2012, de 29 de março, nos termos da qual a reclamação da nota justificativa das custas de parte está sujeita ao depósito da totalidade do valor da nota; e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 15 de outubro de 2014. - Pedro Machete - Ana Guerra Martins - Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro.
208222718