Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 184/2008
Acordam em plenário no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O pedido e o seu objecto.Ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, alínea f), da Constituição e dos artigos 51.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, da Lei 28/82 (Lei do Tribunal Constitucional), veio um grupo de 25 deputados à Assembleia da República pedir ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração, com força obrigatória geral:
a) Da inconstitucionalidade e da ilegalidade da norma contida no artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo Decreto-Lei 139-A/90, de 28 de Abril, na redacção dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 15/2007, de 19 de Janeiro;
b) Da inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 10.º, n.º 8, e 15.º, n.º 5, alínea c), do Decreto-Lei 15/2007, de 19 de Janeiro, que altera o Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, bem como o regime jurídico da formação contínua de professores.
O teor das normas questionadas é o seguinte:
No Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário:
«Artigo 46.º
Sistema de classificação
1 - ...........................................................................2 - ...........................................................................
3 - Por despacho conjunto dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da educação e da Administração Pública são fixadas as percentagens máximas para a atribuição das classificações de Muito bom e Excelente, por escola não agrupada ou agrupamento de escolas, as quais terão por referência os resultados obtidos na avaliação externa da escola.
4 - ...........................................................................
5 - ...........................................................................
6 - ...........................................................................
7 - ...........................................................................
8 - ..........................................................................» No Decreto-Lei 15/2007:
«Artigo 10.º
Transição da carreira docente
1 - ...........................................................................2 - ...........................................................................
3 - ...........................................................................
4 - ...........................................................................
5 - ...........................................................................
6 - ...........................................................................
7 - ...........................................................................
8 - Os docentes que à data da entrada em vigor do presente decreto-lei se encontram posicionados nos 8.º, 9.º e 10.º escalões da carreira docente prevista no Decreto-Lei 312/99, de 10 de Agosto, transitam para a categoria de professor da nova estrutura de carreira, mantendo os índices remuneratórios actualmente auferidos.
9 - ...........................................................................
10 - ...
12 - ...
13 - ...
14 - ...
Artigo 15.º
Recrutamento transitório para professor titular
1 - ...........................................................................
2 - ...........................................................................
3 - ...........................................................................
4 - ...........................................................................
5 - Apenas podem ser opositores aos concursos referidos no n.º 1 os docentes integrados na carreira que preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) ............................................................................
b) ............................................................................
c) Não estejam na situação de dispensa total ou parcial da componente lectiva.
6 - ..........................................................................» 2 - Os fundamentos do pedido.
O requerente fundamentou o pedido nos seguintes termos:
2.1 - Quanto à norma contida no n.º 3 do artigo 46.º do Estatuto.
O artigo 2.º do Decreto-Lei 15/2007 altera o Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, designadamente em matéria de avaliação do desempenho do pessoal docente. O novo artigo 46.º, n.º 3, deste Estatuto estabelece o sistema de classificação dos docentes e prevê quotas máximas para a atribuição das classificações mais elevadas (Excelente e Muito bom).
Com este novo regime, a avaliação dos docentes deixa de ser igual para todos: uns obterão, pelo seu mérito, as classificações mais elevadas e outros, que por igual mérito seriam merecedores das mesmas classificações, não as alcançam por mero impedimento administrativo, consubstanciado na fixação de quotas. Quer isto dizer que a classificação final atribuída pode não derivar da equidade na avaliação do mérito intrínseco do professor avaliado mas sim ser imposta pelo sistema de quotas instituído.
Este novo figurino de avaliação afronta claramente o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, porque origina uma diferenciação não fundada, tratando o que é igual de forma diferente.
Além disso, o artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto, ao permitir a fixação de quotas na atribuição das duas notas mais elevadas da avaliação da carreira do docente, restringe um direito, liberdade e garantia - a liberdade de exercício de uma profissão, consagrada no artigo 47.º da Constituição.
Ora, os direitos, liberdades e garantias só podem ser restringidos por lei da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado do Governo [artigos 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição]. Ao remeter a fixação das quotas para despacho conjunto dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da educação e da Administração Pública, o artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto viola a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
O artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto contraria ainda a lei de bases que lhe serve de fundamento, na medida em que viola o princípio geral de que a progressão na carreira do docente deve estar ligada à avaliação de toda a actividade desenvolvida na instituição educativa (artigo 39.º, n.º 2, da Lei de Bases do Sistema Educativo, aprovada pela Lei 46/86, de 14 de Outubro, e alterada pelas Leis n.os 115/97, de 19 de Setembro, e 49/2005, de 30 de Agosto). Na verdade, a imposição de quotas na avaliação do mérito dos docentes constitui um obstáculo, nas situações em que estas estejam preenchidas, a que possa ser avaliada toda a actividade por ele desenvolvida.
O artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto é, portanto, ilegal, na medida em que viola uma disposição com valor reforçado (artigo 112.º, n.º 3, da Constituição).
2.2 - Quanto à norma contida no n.º 8 do artigo 10.º do Decreto-Lei 15/2007.
Uma das alterações introduzidas no Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário consiste na criação de uma nova categoria de professores - os professores titulares - , para quem atinja o topo da carreira docente (artigo 34.º). Os professores que, entretanto, já tenham chegado aos lugares cimeiros da carreira docente têm de submeter-se a provas para poderem ascender à categoria de professor titular (artigos 37.º e 38.º).
Esta alteração na carreira docente tem implicações imprevistas, intoleráveis e desproporcionadas em carreiras consolidadas ao longo de vários anos, que as disposições transitórias do Decreto-Lei 15/2007 não logram acautelar devidamente.
Com o efeito, o artigo 10.º, n.º 8, deste diploma faz regredir os professores que, entretanto, já se encontravam nos lugares cimeiros da carreira docente (nos 8.º, 9.º e 10.º escalões), na medida em que deixam de ocupar as posições mais elevadas da carreira e transitam para uma categoria inferior - a de professor - , e na medida em que deixam de desenvolver certas tarefas de coordenação e supervisão, que passam a estar cometidas somente ao professor titular.
Ao frustrar intoleravelmente as legítimas expectativas daqueles professores que já estavam nos lugares cimeiros da carreira docente, o artigo 10.º, n.º 8, do Decreto-Lei 15/2007 é inconstitucional, na medida em que viola o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático [artigos 2.º e 9.º, alínea b), da Constituição].
Acresce que o regime fixado no artigo 10.º, n.º 8, do Decreto-Lei 15/2007 é manifestamente desproporcionado, por existir outra solução menos lesiva: a consagração, a título transitório, de duas carreiras de topo - a carreira dos professores nos últimos escalões (8.º a 10.º) e a carreira de professor titular - com os mesmos conteúdos funcionais, extinguindo-se a primeira delas à medida que os docentes deixassem de estar no activo. Nessa medida, a norma em análise é inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático [artigos 2.º e 9.º, alínea b), da Constituição].
2.3 - Quanto à norma contida no artigo 15.º, n.º 5, alínea c), do Decreto-Lei 15/2007.
O artigo 15.º, n.º 5, alínea c), do Decreto-Lei 15/2007 estabelece como requisito para o recrutamento transitório para professor titular, por parte dos professores que à data da entrada em vigor do diploma estejam nos 8.º, 9.º e 10.º escalões, a prestação efectiva de funções, desconsiderando as situações legalmente equiparadas a essa prestação efectiva de funções.
Na medida em que esse requisito pode levar a que sejam afastados do concurso os professores dispensados de funções lectivas, por razões de saúde, o artigo 15.º, n.º 5, alínea c), do Decreto-Lei 15/2007 é inconstitucional, por violação do direito à protecção da saúde, previsto no artigo 64.º da Constituição.
O requerente conclui, assim, pela inconstitucionalidade e ilegalidade do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, na redacção dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 15/2007, e pela inconstitucionalidade dos artigos 10.º, n.º 8, e 15.º, n.º 5, alínea c), deste último diploma.
3 - A resposta do órgão autor da norma.
Notificado o Governo, através do Primeiro-Ministro, nos termos dos artigos 54.º e 55.º da Lei 28/82, para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, veio ele alegar, em suma, o seguinte:
3.1 - Quanto ao artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto.
O artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, na redacção dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 15/2007, não viola o artigo 13.º da Constituição, inserindo-se antes no conjunto de soluções normativas de tratamento diferenciado que a jurisprudência constitucional tem entendido serem constitucionalmente aceitáveis (cf. os Pareceres n.os 1/76 e 33/81 da Comissão Constitucional, e os Acórdãos n.os 44/84, 187/90, 412/2002, 232/2003 e 289/2005 do Tribunal Constitucional). Pode o requerente discordar da solução material constante do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto, mas isso não é suficiente para justificar a intervenção do Tribunal Constitucional, para salvaguarda do princípio da igualdade, na sua vertente de proibição do arbítrio ou criação de soluções aleatórias. Trata-se de um caso em que deve haver autocontenção do Tribunal, para assegurar que o juiz não se substitui ao legislador (cf. Maria Lúcia Amaral, «O princípio da igualdade», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Coimbra, 2004, pp. 52 e 53, e José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Coimbra, 2004, pp. 401 e 402).
A diferenciação em apreço não viola o princípio da igualdade, por não consubstanciar uma solução administrativa afastada da lei nem ser arbitrária ou aleatória.
Com efeito, as classificações a que alude a norma em análise não se encontram dependentes de meras imposições administrativas, uma vez que estão quantitativamente dependentes da avaliação externa a que a escola está sujeita e esta, por sua vez, é realizada de acordo com um procedimento definido por via legislativa (artigo 8.º da Lei 31/2002, de 20 de Dezembro). Este regime condiciona a discricionariedade administrativa na fixação de percentagens máximas das classificações Muito bom e Excelente.
Além disso, a solução adoptada na norma em análise é justificada no preâmbulo do diploma, em razões legítimas de índole política: «sendo impossível organizar as escolas com base na indiferenciação, é indispensável proceder à correspondente estruturação da carreira, dotando cada estabelecimento de ensino de um corpo de docentes reconhecido, com mais experiência, mais autoridade e mais formação, que assegure em permanência funções de maior responsabilidade e que constitua uma categoria diferenciada». A solução adoptada é também justificada no contexto de um mais amplo complexo governativo: «no sentido de assegurar que se trata de uma avaliação efectivamente diferenciadora, determina-se, em termos semelhantes aos do regime aplicável aos funcionários e agentes da Administração Pública, a existência de cinco menções qualitativas possíveis e uma contingentação das duas classificações superiores que conferem direito a um prémio de desempenho».
A norma em análise integra-se numa área do ordenamento jurídico onde a actividade classificatória é fundamental e, como se viu, não estabelece critérios alheios ao normativo constitucional.
O artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto também não constitui uma restrição a direitos, liberdades e garantias. Não estamos na esfera do artigo 47.º da Constituição, uma vez que este se refere à liberdade de escolha de profissão (cf. o Acórdão 672/96 do Tribunal Constitucional) e os trabalhadores a que se aplica o artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto já estão integrados no quadro docente, sendo funcionários públicos.
Estamos, sim, na esfera do artigo 58.º da Constituição (direito ao trabalho, na vertente de liberdade de exercício de uma actividade profissional), que pertence ao grupo dos direitos económicos, sociais e culturais.
A liberdade de trabalhar faz parte do direito geral de liberdade (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 2007, p. 765) e traduz-se na liberdade de iniciar e prosseguir uma vida laboral. Não é isso que está em causa no caso dos autos, uma vez que a norma questionada não é uma restrição mas sim uma regulamentação do exercício de uma profissão (sobre a distinção entre restrição e regulamentação/condicionamento de direitos fundamentais, por parte do Tribunal Constitucional, cf. Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra, 2003, p.
185).
Quanto à ideia da ilegalidade do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto, ela assenta numa interpretação do artigo 39.º, n.º 2, da Lei de Bases do Sistema Educativo da qual se dissente. O requerente considera que a avaliação de toda actividade desenvolvida pelos docentes (exigida pela lei de bases) é posta em crise pela contingentação das classificações de Muito bom e Excelente, mas nada no Decreto-Lei 15/2007 limita, restringe ou proíbe a avaliação da actividade efectivamente desenvolvida pelos docentes. Ao invés, o artigo 45.º deste diploma prodigaliza itens de classificação, que fornecem aos docentes todas as possibilidades de avaliação nos diversos domínios onde se desenvolve a sua actividade profissional. As classificações de topo estão sujeitas a critérios mais exigentes: as menções acima de Bom dependem do cumprimento de, pelo menos, 95 % das actividades lectivas (artigo 46.º, n.º 5) e a menção Excelente tem que ser justificada nos contributos relevantes do avaliado para o sucesso escolar dos alunos e a qualidade da aprendizagem (artigo 46.º, n.º 4).
Como se diz no preâmbulo do Decreto-Lei 15/2007, trata-se de «um regime de avaliação de desempenho mais exigente e com efeitos no desenvolvimento da carreira, que permita identificar, promover e premiar o mérito», relativamente ao qual não se vislumbra qualquer fenómeno de ilegalidade.
3.2 - Quanto ao artigo 10.º, n.º 8, do Decreto-Lei 15/2007.
O pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 10.º, n.º 8, do Decreto-Lei 15/2007 suscita dúvidas e revela incerteza: o requerente afirma, por um lado, que a dita norma altera de forma abrupta e insuportável posições funcionais já estabilizadas, frustrando intoleravelmente as legítimas expectativas dos professores que já estavam nos lugares cimeiros da carreira docente e, por outro lado, que era possível acolher uma solução menos lesiva, criando uma carreira transitória para os professores nos últimos escalões (8.º a 10.º).
A norma questionada não é incompatível com a Constituição, harmonizando da melhor forma uma situação profissional vinda do passado (professor) e outra criada para o futuro (professor titular). Trata-se de uma típica norma de garantia, que garante aos docentes a manutenção da remuneração auferida. No demais, a lei dá a todos a possibilidade de chegar ao lugar de topo.
A alteração da carreira docente levada a cabo pelo Decreto-Lei 15/2007 integra a liberdade de conformação do legislador. Se assim não fosse, correr-se-ia o risco de, com base em expectativas não constitutivas de direitos, se limitar o poder político democraticamente legitimado de pôr em prática o seu programa de governo.
3.3 - O artigo 15.º, n.º 5, alínea c), do Decreto-Lei 15/2007.
No que toca à alínea c) do n.º 5 do artigo 15.º do Decreto-Lei 15/2007, o requerente receia que uma certa interpretação da norma possa excluir professores candidatos dispensados do exercício de funções lectivas, por razões de saúde. Essa disposição deve ser interpretada em conformidade com a Constituição, de modo a que não tenha consequências incompatíveis com esta. Não está em causa a protecção do direito à saúde, não sendo a norma inconstitucional.
4 - Memorando.
Tendo sido discutido em plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional nos termos do artigo 63.º da Lei 28/82, cumpre decidir de acordo com a orientação que aí se fixou.
II - Fundamentos
A) O artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto
5 - Sustenta o requerente que o artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, porque origina uma diferenciação não fundada, tratando de forma diferente situações iguais.O que está em causa é o princípio da igualdade perante a lei (artigo 13.º, n.º 1, da Constituição), na vertente de proibição de diferenciação de situações iguais. De acordo com jurisprudência constitucional abundante e reiterada (constante, designadamente, dos Acórdãos n.os 142/85, 340/92, 309/93, 335/94 e 232/2003, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 6.º, pp. 81 e segs., vol. 23.º, pp. 59 e segs., vol. 24.º, pp. 185 e segs., vol. 27.º, pp. 233 e segs., e vol. 56.º, pp. 7 e segs., respectivamente), o princípio da igualdade não proíbe em absoluto toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. (cf., também sobre esta temática, entre muitos outros autores, Maria da Glória Ferreira Pinto, «Princípio da igualdade: Fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido?», Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Julho de 1986, pp. 47 a 52, João Martins Claro, «O princípio da igualdade», Nos Dez Anos da Constituição, INCM, 1987, pp. 34 e 35, e Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, pp. 109 a 115.) O que o Tribunal Constitucional controla, neste domínio, é o respeito pela proibição do arbítrio, enquanto critério negativo e limitador da liberdade do legislador ordinário - cf., neste sentido, J. J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra Editora, 2001, pp. 382 e 387, Almeno de Sá, Administração do Estado, Administração Local e Princípio da Igualdade no Âmbito do Estatuto de Funcionário, Universidade de Coimbra, 1985, pp. 72 e 73, Bernardo Xavier e Nunes de Carvalho, «Princípio da igualdade: a trabalho igual, salário igual», Revista de Direito e de Estudos Sociais, n.º 4, Outubro a Dezembro de 1997, pp. 407 e 408. Nessa medida - e sempre que se não verifiquem os sinais indiciadores de existência de discriminações proibidas, previstas no n.º 2 do artigo 13.º da CRP - o juiz só deve proferir juízos de inconstitucionalidade em caso de inexistência de qualquer relação entre o fim prosseguido pela lei e as diferenças de regimes que, por causa desse fim, a própria lei estatui, isto é, em caso de ausência de qualquer elo de adequação objectiva e racionalmente comprovável entre a ratio das escolhas legislativas e as diferenças estabelecidas pelo legislador.
Do que se disse resulta que o legislador ordinário detém uma certa margem de liberdade de actuação, permitindo-lhe a Constituição efectuar diferenciações de tratamento, desde que estas sejam materialmente e racionalmente fundadas.
Esclarecido o sentido da proibição constitucional do arbítrio, importa agora atentar na norma contida no artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto, de modo a verificar se ela conduz ao tratamento arbitrário de situações iguais.
Adianta-se, desde já, que a norma questionada, ao limitar a atribuição das notas mais elevadas de classificação dos docentes, não implica uma diferenciação constitucionalmente ilegítima. Para compreender porque assim é, há que explicar e contextualizar a solução contida na norma.
Essa limitação, operada através de um sistema de quotas, é uma solução de gestão dos recursos humanos da Administração Pública em geral, e não apenas dos docentes abrangidos pela norma questionada - ela pretende ser um instrumento da correcta avaliação do desempenho dos funcionários públicos.
Importa referir que a solução normativa em análise não é original no panorama do direito comparado. Também em França existe contingentação na avaliação dos funcionários públicos, incluindo os docentes - cf. o título iii e, sobretudo, o artigo 13.º do Décret n.º 2002-682, de 29 de Abril de 2002 (publicado no Joumal Officiel, de 2 de Maio de 2002), os artigos 17.º, 21.º e 25.º do Arrêté du ministre de l'éducation nationale, de l'enseignement supérieur et de la recherche, du ministre de la culture et de la communication et du ministre de la jeunesse, des sports et de la vie associative, de 17 de Novembro de 2004 (publicado no Joumal Officiel, de 24 de Novembro de 2004), o Acórdão do Conselho de Estado, de 29 de Outubro de 2003, proferido no Processo 247602 (disponível no sítio de Internet www.legifrance.gouv.fr), bem como, na doutrina, Serge Salon e Jean-Charles Savignac, «La réforme de la notation des fonctionnaires de l'État», AJDA, n.º 18/2004, pp. 958 a 962. Igualmente se encontra um sistema de quotas na progressão das carreiras de certos funcionários da administração comunitária - cf. o artigo 45.º-A, n.º 4, do Estatuto dos Funcionários da União Europeia, na redacção dada pelo Regulamento 723/2004, do Conselho, de 22 de Março, publicado no Jornal Oficial, n.º L 124, p. 1, de 27 de Abril de 2004.
O sistema de quotas na avaliação dos docentes surge como resposta a um problema, identificado no preâmbulo do Decreto-Lei 15/2007: «a avaliação de desempenho, com raras excepções apenas, converteu-se num simples procedimento burocrático, sem qualquer conteúdo. Nestas condições, a progressão na carreira passou a depender fundamentalmente do decurso do tempo». Para resolver esse problema, o legislador criou um sistema de avaliação diferenciadora. Explica, assim, o preâmbulo:
«no sentido de assegurar que se trata de uma avaliação efectivamente diferenciadora, determina-se, em termos semelhantes aos do regime aplicável aos funcionários e agentes da Administração Pública, a existência de cinco menções qualitativas possíveis e uma contingentação das duas classificações superiores que conferem direito a um prémio de desempenho».
Decorre do artigo 40.º, n.º 1, do Estatuto que «a avaliação do desempenho do pessoal docente desenvolve-se [...] no respeito pelos princípios e objectivos que enformam o sistema integrado de avaliação do desempenho da Administração Pública». A solução normativa questionada deve, assim, ser contextualizada numa política governativa mais ampla, dirigida a toda a Administração Pública, que se encontra hoje vertida, no seu essencial, na Lei 66-B/2007, de 28 de Dezembro.
Esta lei estabelece o sistema integrado de gestão e avaliação do desempenho na Administração Pública, e nela encontramos a fixação de percentagens máximas para a atribuição, quer aos dirigentes da Administração Pública quer aos seus trabalhadores, das classificações mais elevadas em cada organismo (artigo 32.º, n.º 4, para os dirigentes superiores da Administração Pública; artigo 37.º, n.º 5, para a avaliação de desempenho dos dirigentes intermédios; artigo 75.º, n.º 1, para a avaliação do desempenho dos trabalhadores). No caso dos educadores de infância e professores dos ensinos básico e secundário, a fixação das percentagens máximas das classificações superiores a Bom, em cada escola não agrupada ou agrupamento de escolas, é remetida para despacho ministerial, mas obedece a um critério objectivo: os resultados obtidos na avaliação externa da escola (n.º 3 do artigo 46.º do Estatuto).
Um dos objectivos prosseguidos pelo sistema de avaliação estabelecido pela Lei 66-B/2007 é o do reconhecimento e distinção dos serviços, dirigentes e trabalhadores da Administração Pública pelo seu desempenho e pelos resultados obtidos, de forma a estimular «o desenvolvimento de uma cultura de excelência e qualidade» [alínea e) do artigo 6.º]. A este propósito - e comentando ainda o regime anterior, fixado pela Lei 10/2004 - Olga Maia e Maria Manuel Busto afirmam o seguinte (O Novo Regime Laboral da Administração Pública, Almedina, 2006, pp. 89):
«Pretende-se com este regime estabelecer uma cultura de meritocracia na Administração Pública, aproximando o sistema público do privado, em que o desempenho profissional é o factor-chave da avaliação profissional do funcionário. A avaliação do desempenho é considerada a pedra angular em qualquer sistema de gestão de recursos humanos, pelo que a aplicação deste modelo à Administração Pública é crucial para a tão esperada reforma do sector.» Sobre a necessidade de estimular os funcionários públicos em função do mérito, designadamente através da eliminação dos estímulos decorrentes da antiguidade e da previsão de medidas remuneratórias diferenciadas, em função da produtividade, veja-se também Paulo Veiga e Moura, A Privatização da Função Pública, Coimbra Editora, 2004, pp. 413 e segs.
No caso do Estatuto dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, a distinção do mérito, prosseguida através do sistema de quotas, pretende criar a referida cultura de meritocracia e constituir um instrumento de «dignificação da profissão docente» e de «promoção da auto-estima e motivação dos professores» (preâmbulo do Decreto-Lei 15/2007).
O reconhecimento do mérito associado à obtenção de uma classificação superior a Bom concretiza-se, essencialmente, em benefícios no desenvolvimento da carreira do funcionário público (n.ºs 3 e 4 do artigo 15.º da Lei 10/2004), sendo a existência de recompensas considerada essencial ao funcionamento do sistema de avaliação de desempenho (cf. Olga Maia e Maria Manuel Busto, ob. cit., p. 95). No caso dos educadores de infância e professores dos ensinos básico e secundário, esses benefícios traduzem-se, designadamente, na redução do tempo de serviço exigido para o acesso à categoria de professor titular (artigo 48.º, n.os 1 a 4, do Estatuto) e no pagamento de um prémio pecuniário de desempenho (artigo 63.º do Estatuto).
A solução normativa contida no artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto constitui um instrumento de diferenciação, visando distinguir o que é diferente (em termos de mérito) e não distinguir o que é igual. O legislador identifica, inclusivamente, os factos que servem de fundamento a essa diferenciação: a classificação de Muito bom pressupõe que o docente tenha cumprido, no mínimo, 95 % das actividades lectivas anuais e a classificação de Excelente pressupõe, em acréscimo, que o docente tenha contribuído de forma relevante para o sucesso escolar dos alunos e a qualidade da aprendizagem (artigo 46.º, n.os 4 e 5, do Estatuto). Pode, portanto, dizer-se que o sistema de avaliação instituído reserva as classificações máximas para as situações de desempenho mais relevante, servindo as quotas para garantir a sua correcta utilização.
Ora, sendo certo que a avaliação dos docentes, com base na diferenciação em função do mérito, nada tem de arbitrário, não pode recusar-se que o sistema de quotas instituído pela norma questionada se apresenta como um instrumento de gestão de recursos humanos adequado à diferenciação do desempenho dos docentes.
Importa acrescentar que não compete ao Tribunal avaliar o mérito, e nos termos em que é feito, da utilização, neste contexto, de um sistema de quotas. Trata-se do exercício de escolhas de ordem política que o Governo faz, enquanto órgão de condução da política geral do País e órgão superior da Administração Pública (cf.
artigo 182.º da Constituição). Tal como se disse no já mencionado Acórdão 142/85, não cabe ao Tribunal substituir-se ao legislador, na tarefa de encontrar a solução justa, mas apenas averiguar se a solução por este escolhida possui uma suficiente justificação objectiva e racional: «[o] que cabe, portanto, fazer, na referida sede (de controlo da proibição do arbítrio) não é 'substituírem-se' os órgãos de controlo ao legislador, e aferirem da justificação ou racionalidade da solução legislativa pela sua própria ideia do que seria, no caso, a solução 'justa' [...] o que cabe a esses órgãos é tão somente averiguar se a norma que têm diante de si possui uma suficiente justificação objectiva; o que lhes cabe, por outras palavras, é 'cassar' unicamente 'as soluções legais de todo o ponto insusceptíveis de credenciar-se racionalmente'».
(Acórdão 142/85, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 6.º, pp.
127-8).
A norma do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto não viola o princípio da igualdade, pelo simples facto de prever a fixação de percentagens máximas para a atribuição das classificações de Muito bom e Excelente.
Desde logo, os contingentes são definidos previamente à avaliação, de modo que os avaliadores sabem que só podem atribuir um número limitado de classificações acima de Bom. Além disso, a escala de classificações tem uma amplitude de 1 a 10 valores (artigo 46.º, n.º 1, do Estatuto), permitindo atribuir uma nota adequada a cada avaliado, de modo a espelhar a diversidade dos desempenhos verificados. As menções qualitativas correspondem a uma escala numérica previamente definida (artigo 46.º, n.º 2, do Estatuto) e a nota final é calculada a partir de um conjunto de critérios de avaliação extensos e variados, relativos ao desempenho concreto e efectivo do avaliado (artigo 45.º do Estatuto).
Daí decorre que uma avaliação séria e rigorosa levará a dispersar as classificações atribuídas pelos diversos graus da escala, diminuindo a probabilidade de os avaliados com classificação superior a Bom serem em número superior ao das quotas fixadas.
Se, ainda assim, isso vier a suceder, não pode afirmar-se que a norma questionada legitime os avaliadores a efectuar uma escolha arbitrária. Pelo contrário, a lei exige dos avaliadores uma actuação ponderada e reflectida, obrigando-os a ter em conta diversos parâmetros e a justificar as opções tomadas - veja-se que a atribuição de classificações superiores a Bom tem de ser expressamente fundamentada e pressupõe a verificação dos requisitos previstos no artigo 46.º, n.os 4 e 5, do Estatuto.
A avaliação é um acto vinculado, desenrolando-se de acordo com um procedimento legalmente definido e orientando-se por princípios de justiça, designadamente o princípio da igualdade (sendo os avaliadores agentes administrativos, aplica-se-lhes o disposto no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição).
Acresce que a decisão dos avaliadores é controlada por diversos mecanismos: a atribuição de uma classificação superior a Bom tem de ser confirmada pela comissão de coordenação da avaliação [artigo 44.º, n.º 1, alínea d), e n.º 4, do Estatuto], o procedimento de avaliação contempla uma entrevista dos avaliadores com o avaliado, para conhecimento da proposta de avaliação e apreciação do processo [artigo 44.º, n.º 1, alínea e), do Estatuto], e o avaliado pode reclamar e recorrer da classificação atribuída (artigo 47.º do Estatuto).
Hipoteticamente, no caso de a norma ora questionada ser interpretada de forma contrária à Constituição, por conduzir a uma discriminação arbitrária na avaliação do docente, sempre poderá o lesado recorrer à fiscalização concreta da constitucionalidade. Tal situação não justifica, contudo, a declaração da inconstitucionalidade da norma, no processo sub iudice. Veja-se, a este propósito, a distinção efectuada no Acórdão 679/2005 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 63.º, pp. 69 e segs.), entre uma solução normativa inconstitucional e uma interpretação normativa inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
No caso em presença, deve lançar-se mão do princípio da interpretação em conformidade com a Constituição, enquanto princípio de conservação de normas.
Podendo o artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto ser interpretado e aplicado sem violação do princípio da igualdade, conclui-se pela improcedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com base nesse fundamento.
6 - O segundo fundamento de inconstitucionalidade do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto a que o pedido faz referência é a violação do princípio da reserva de lei.
Apesar de não o especificar no pedido, o requerente fundamenta a inconstitucionalidade do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário numa dupla violação do princípio da reserva de lei. Com efeito, o requerente põe em causa o cumprimento desse princípio no sentido de reserva de Parlamento (enquanto princípio de repartição de competência legislativa entre a Assembleia da República e o Governo) e no sentido de reserva de acto legislativo (enquanto princípio de repartição entre competências legislativas e administrativas do Governo).
Sustenta antes do mais o requerente que a norma questionada estaria sujeita a reserva de lei, no sentido de reserva parlamentar, por se tratar de uma norma restritiva de um direito, liberdade e garantia - a saber a liberdade de exercício de profissão, consagrada no artigo 47.º da CRP. Assim, e de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, só o legislador parlamentar (ou o Governo, quando por aquele autorizado) estaria legitimado a restringir um tal direito. Contudo, e ainda que se admita que a matéria regulada se relaciona com a liberdade de escolha de profissão e o direito de acesso à função pública, expressamente consagrados no artigo 47.º da Constituição (uma vez que este preceito constitucional abrange, implicitamente, o direito às promoções na carreira em condições de igualdade - cf., neste sentido, os Acórdãos n.os 157/92 e 355/99 (publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 21.º, pp. 703 e segs., e vol.
44.º, pp. 229 e segs., respectivamente), bem como, na doutrina, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 660, Ana Fernanda Neves, Relação Jurídica de Emprego Público, Coimbra Editora, 1999, pp. 328 e 329, e Paulo Veiga e Moura, ob. cit., p. 130), nada legitima a conclusão, perfilhada pelo requerente, segundo a qual seria esta uma norma restritiva do direito consagrado no artigo 47.º Com efeito, se se entende por restrição toda a «acção ou omissão estatal que afecta desvantajosamente o conteúdo de um direito fundamental, seja porque se eliminam, reduzem ou dificultam as vias de acesso ao bem nele protegido e as possibilidades da sua fruição por parte dos titulares reais ou potenciais do direito fundamental seja porque se enfraquecem os deveres e obrigações, em sentido lato, que da necessidade da sua garantia e promoção resultam para o Estado» (Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2003, p. 157), não se vê como é que a norma questionada possa ser entendida como uma norma restritiva de um direito, para efeitos da aplicação da reserva de lei parlamentar consagrada nos artigos 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP. A norma regula a avaliação do desempenho dos docentes. Ora, tal avaliação, nos termos em que é regulada pela norma questionada, não se afigura como uma afectação negativa do bem jurídico que é protegido pelo artigo 47.º da Constituição, não estando por esse motivo sujeita a reserva de lei.
Apesar de o requerente não ter aflorado este aspecto (o que não limita os poderes de cognição do Tribunal, por este não estar vinculado aos fundamentos do pedido), a matéria regulada no artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário encontra-se na confluência de duas outras temáticas relativamente às quais o legislador constitucional criou uma reserva de competência legislativa da Assembleia da República: o sistema educativo e a função pública.
O artigo 164.º, alínea i), da Constituição reserva em absoluto à Assembleia da República a definição das bases do sistema educativo. Todavia, a matéria regulada pelo artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto não integra essa reserva. Como se disse, por exemplo, nos Acórdãos n.os 38/84, 125/2000 e 262/2006 (publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 3.º, pp. 75 e segs., vol. 46.º, pp. 489 e segs., e vol. 64.º, pp. 43 e segs., respectivamente), consideram-se bases do sistema de ensino as opções fundamentais e a disciplina básica dos princípios e direitos constitucionais relativos ao ensino, designadamente a liberdade de ensino, o direito ao ensino, o estatuto das universidades e o direito de participação no ensino.
Ora, a imposição de percentagens máximas aos dois graus mais elevados da escala das classificações dos docentes não assume importância suficiente para que possa ser considerada uma opção político-legislativa fundamental sobre as bases do sistema de ensino, em termos de integrar este conceito e determinar a inconstitucionalidade orgânica da norma questionada.
Em conformidade com esse regime, a Lei de Bases do Sistema Educativo (aprovada pela Lei 46/86, de 14 de Outubro, e alterada e republicada pela Lei 49/2005, de 30 de Agosto) limita-se a prever, quanto à avaliação dos docentes, duas garantias essenciais: por um lado, «a progressão na carreira deve estar ligada à avaliação de toda a actividade desenvolvida» e, por outro lado, aos docentes «é reconhecido o direito de recurso das decisões da avaliação» (artigo 39.º, n.os 2 e 3, respectivamente). Em tudo o que mais respeite às carreiras do pessoal docente, o artigo 62.º, n.º 1, alínea c), da Lei de Bases remete para legislação de desenvolvimento.
No âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, em matéria de bases do regime e âmbito da função pública - artigo 165.º, n.º 1, alínea t), da Constituição - , compete ao Parlamento, sem prejuízo de autorização ao Governo, a definição das grandes linhas de inspiração da regulação legal da função pública e a demarcação do âmbito institucional e pessoal da aplicação desse específico regime jurídico. A reserva compreende, assim, o estabelecimento do quadro dos princípios básicos fundamentais daquela regulação, dos seus princípios reitores ou orientadores - princípios esses que caberá depois ao Governo desenvolver, concretizar e mesmo particularizar, em diplomas de espectro mais ou menos amplo - e dos princípios que constituirão, justamente, o parâmetro e o limite deste desenvolvimento, concretização e particularização.
Ora, esses princípios estão, em matéria de avaliação de desempenho dos trabalhadores da Administração Pública, vertidos na Lei 10/2004 e a norma ora questionada constitui uma mera derivação de uma solução prevista, com carácter geral, nesta lei (artigo 15.º). Veja-se, inclusivamente, que o artigo 21.º, n.º 1, da Lei 10/2004 prevê que «o sistema de avaliação do desempenho [...] poderá ser adaptado à situação específica dos vários organismos e serviços da Administração Pública, assim como à das carreiras de regime especial e corpos especiais, desde que observados os princípios e objectivos constantes da presente lei e as regras essenciais ao controlo e normalização de procedimentos». Não se verifica, assim, uma violação da reserva parlamentar em matéria de função pública.
Como já se disse, o requerente fundamenta também a inconstitucionalidade do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto na violação da reserva de acto legislativo. Discorda-se, contudo, desse entendimento.
Dessa reserva decorre a necessidade de enquadramento legal da actuação administrativa, tendo a volição primária de constar de acto legislativo. Ora, o artigo 46.º, n.º 3, do Decreto-Lei 15/2007 limita-se a delegar para despacho conjunto a fixação das percentagens máximas de classificações de Muito bom e Excelente, de acordo com um critério legalmente definido: os resultados obtidos na avaliação externa da escola (estando esta avaliação regulada no artigo 8.º da Lei 31/2002, de 20 de Dezembro). A actuação da Administração consiste, assim, unicamente, em concretizar uma medida (escolha primária) definida em termos claros, suficientes e precisos por uma norma originária do poder legislativo - cf., com semelhanças relativamente ao caso em presença, o juízo de não inconstitucionalidade proferido no Acórdão 285/92 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 22.º, pp.
159 e segs.), relativamente a uma norma que remetia para despacho ministerial a fixação das categorias e carreiras cujo pessoal ficava autorizado a optar por medidas excepcionais de descongestionamento da função pública, em alternativa à integração no quadro de efectivos interdepartamentais.
A definição das percentagens máximas das classificações acima de Bom não consubstancia, portanto, normação inovatória, em área coberta pela reserva de acto legislativo, o que leva a concluir que a norma questionada não enferma do vício de inconstitucionalidade alegado pelo requerente.
7 - O requerente sustenta também que o artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário contraria a Lei de Bases do Sistema Educativo, violando o princípio geral de que a progressão na carreira do docente deve estar ligada à avaliação de toda a actividade desenvolvida na instituição educativa (artigo 39.º, n.º 2, desta lei). Tal situação consubstancia, no entender do requerente, uma ilegalidade, por violação de uma disposição legal que, nos termos do artigo 112.º, n.º 3, da Constituição, tem valor reforçado.
Discorda-se, contudo, desse entendimento, considerando-se, ao invés, que a imposição de quotas nas classificações máximas dos docentes não constitui um obstáculo a que possa ser avaliada toda a actividade por eles desenvolvida e que essa actividade se repercuta na progressão na carreira.
A norma questionada não derroga outras normas do Estatuto, de importância fundamental para resolver o problema ora em análise.
Desde logo, o artigo 40.º, n.º 1, do Estatuto prevê que «a avaliação do desempenho do pessoal docente desenvolve-se de acordo com os princípios consagrados no artigo 39.º da Lei de Bases do Sistema Educativo e no respeito pelos princípios e objectivos que enformam o sistema integrado de avaliação do desempenho da Administração Pública, incidindo sobre a actividade desenvolvida e tendo em conta as qualificações profissionais, pedagógicas e científicas do docente».
Concretizando a primeira parte da norma transcrita, o artigo 41.º, alínea a), do Estatuto determina que «a avaliação do desempenho é obrigatoriamente considerada para efeitos de [...] progressão e acesso na carreira».
Concretizando a segunda parte da norma transcrita, o artigo 42.º, n.º 2, do Estatuto estatui que a avaliação do desempenho se concretiza em quatro dimensões, que abarcam toda a actividade desenvolvida pelo docente (a vertente profissional e ética; o desenvolvimento do ensino e da aprendizagem; a participação na escola e a relação com a comunidade escolar; o desenvolvimento e formação profissional ao longo da vida), e o artigo 45.º do Estatuto obriga a que na avaliação se pondere, por um lado, o envolvimento e a qualidade científico-pedagógica do docente, tendo em conta a preparação, organização e realização das actividades lectivas, a relação pedagógica com os alunos e o processo de avaliação da aprendizagem dos alunos (n.º 1), e se atenda, por outro lado, a diversos indicadores: o nível de assiduidade; o serviço distribuído; o progresso dos resultados escolares esperados para os alunos e as taxas de abandono escolar, tendo em conta o contexto sócio-educativo; a participação dos docentes na instituição e a apreciação da sua colaboração em projectos de melhoria da actividade didáctica e dos resultados das aprendizagens; as acções de formação contínua concluídas; o exercício de outros cargos ou funções de natureza pedagógica;
a dinamização de projectos de investigação, desenvolvimento e inovação educativa e sua correspondente avaliação; e a apreciação realizada pelos pais e encarregados de educação dos alunos, obtida com a concordância do docente (n.º 2).
A consideração de toda a actividade realizada pelo docente na avaliação está, nos termos expostos, garantida pelo conjunto de normas assinaladas.
Só numa hipotética situação de igualdade total entre docentes, a utilização do sistema de quotas poderia impedir que a actividade por eles desenvolvida se repercutisse de forma igual na respectiva avaliação, levando à desconsideração de parte dessa actividade, relativamente aos docentes não abrangidos pela quota. Contudo, essa situação configuraria um problema de igualdade, semelhante ao qual já se deu resposta no n.º 5 da presente decisão. A adequação do sistema valeria, assim, também, neste caso.
Quanto à contagem do período de serviço avaliado, para efeitos de progressão na carreira, é garantida pelo artigo 48.º do Estatuto, a todos os docentes com classificação mínima de Bom [n.º 4, alínea a)], não estando a atribuição desta classificação sujeita a qualquer percentagem máxima. Com este regime fica satisfeita a exigência do artigo 39.º, n.º 2, da lei de bases, de repercutir a actividade do docente na progressão da respectiva carreira.
Efectivamente, as classificações de Muito bom e Excelente dão apenas direito à redução do tempo de serviço (n.ºs 1 a 3 do artigo 48.º do Estatuto), traduzindo-se num bónus para os docentes que tiveram um melhor desempenho. Trata-se de um benefício extraordinário, autónomo da contagem do tempo de serviço prestado, para efeitos de progressão da carreira, que é garantida a todos os docentes classificados com nota acima de Bom.
De tudo o exposto resulta que a norma contida no artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto não contraria o artigo 39.º, n.º 2, da Lei de Bases do Sistema Educativo, sendo improcedente a questão de ilegalidade suscitada pelo requerente.
B) O artigo 10.º, n.º 8, do Decreto-Lei 15/2007
8 - Sustenta o requerente que a criação da categoria de professor titular implica uma regressão profissional dos professores que, entretanto, já tinham chegado aos lugares cimeiros da carreira. Explica-se, no pedido, que estes professores deixam de ocupar as posições mais elevadas da carreira (transitando para uma categoria inferior - a de professor - e tendo de submeter-se a provas para poder ascender à carreira de professor titular) e deixam de desenvolver certas tarefas de coordenação e supervisão.
Por essas razões, o requerente entende que o artigo 10.º, n.º 8, do Decreto-Lei 15/2007 é inconstitucional, violando o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático [artigos 2.º e 9.º, alínea b), da Constituição]. Por existir uma solução menos gravosa - a consagração, a título transitório, de duas carreiras de topo - , o requerente entende também que a mencionada norma viola o princípio da proporcionalidade, vertido nos preceitos constitucionais acima identificados.
A temática da protecção da confiança já foi analisada por este Tribunal, em diversas ocasiões - veja-se, por exemplo, o já citado Acórdão 285/92, que identifica um conjunto vasto de decisões sobre esta matéria. Constitui entendimento pacífico e reiterado da jurisprudência constitucional que o princípio do Estado de direito democrático postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, implicando um mínimo de certeza e de segurança relativamente aos direitos e expectativas juridicamente criados. Em consequência, a normação que obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva a esses mínimos de certeza e segurança é constitucionalmente inaceitável.
Afigura-se útil, para a resolução do problema ora colocado, recordar o que se disse no Acórdão 786/96 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 34.º, pp. 23 e segs.):
«O princípio da protecção da confiança exprime uma ideia de justiça que aprofunda o Estado de direito democrático. Segundo ela, o Estado não pode legislar alterando as expectativas legítimas dos cidadãos relativamente às respectivas posições jurídicas, a não ser que razões ponderosas o ditem [...]. Prevalecem, neste último caso, a necessidade e o valor dos fins almejados, perante a segurança e a solidez das expectativas. Mas tal sacrifício das expectativas deve ser previsível para os cidadãos atingidos e não desproporcional à lesão dos interesses subjacentes [...].
Mas haverá lesão de expectativas que implique a violação do princípio da confiança? Pressuposto de tal violação é a validade das expectativas. Isso não implica, necessariamente, que estas correspondam a direitos subjectivos, mas apenas que tenham um fundamento jurídico. E, por outro lado, não bastam quaisquer expectativas tuteladas juridicamente para que se justifique a intervenção do princípio da confiança.
A validade das expectativas impõe que a previsibilidade da manutenção de uma posição jurídica se fundamente em valores reconhecidos no sistema e não apenas na inércia ou na manutenção do status quo.» Por ter relevância directa para o caso presentemente em análise, importa também recordar o que se disse no Acórdão 4/2003 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 55.º, pp. 33 e segs.):
«Pese embora seja possível afirmar, segundo os dados da experiência histórica, a existência, no domínio da função pública, de uma certa estabilidade/imutabilidade do vínculo laboral estabelecido, senão mesmo da existência, até, de uma certa expectativa no sentido do seu desenvolvimento que é próprio de um esquema geral de progressão nas carreiras, tal como nela está comummente estabelecido, não se segue daí que esses vínculos laborais possam ficar imunes, ex natura ou por qual razão especial, às contingências financeiras supervenientes, mormente no que toca à dificuldade da administração não poder suportar os gastos normais do funcionamento dos serviços, entre eles se contando os relativos trabalhadores, ou à necessidade sentida pelo legislador de proceder a uma melhor adequação dos serviços na perspectiva de uma melhor e actual pacificação das necessidades demandadas pelos interesses públicos que lhe cabe primacialmente definir e prosseguir. Num domínio altamente sensível às vicissitudes da realidade económico-financeira, sob a qual os direitos pretensamente atingidos se movem, e onde se cruzam, com sentidos por vezes divergentes as expectativas das suas carreiras, mesmo no aspecto remuneratório, e a necessidade sentida pelo legislador de procurar salvaguardar, por outros meios organizatórios ou até materiais, a realização do interesse público que lhe cabe determinar, não será possível vislumbrar a constituição de uma expectativa materialmente fundada não só da manutenção das suas previsões anteriores sobre o provável andamento das suas carreiras como mesmo das situações já alcançadas em função do direito em vigor.» (itálico nosso) O entendimento expresso nos dois acórdãos citados é inteiramente aplicável ao processo sub iudice.
Note-se, desde já que, no caso em presença, não está em causa a redução dos direitos ou regalias profissionais, designadamente, a remuneração. Bem pelo contrário, a norma ora questionada garante aos professores que à data da sua entrada em vigor estejam posicionados nos 8.º, 9.º e 10.º escalões a manutenção dos índices remuneratórios auferidos. Trata-se de uma situação distinta da apreciada no Acórdão 141/2002 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 52.º, pp. 179 e segs.), cuja norma declarada inconstitucional operava uma redução da remuneração global auferida pelo pessoal por ela abrangido e que se encontrava já em exercício de funções à data da sua entrada em vigor.
A expectativa que o requerente entende merecer protecção constitucional respeita apenas à continuidade da posição de certos professores nos lugares de topo da carreira. Trata-se, portanto, unicamente, de uma expectativa de manutenção de um statu quo, que não pode considerar-se juridicamente relevante para o efeito de merecer a tutela dispensada pelo princípio constitucional da protecção da confiança.
Não se vê, além disso, que a situação em apreço constitua uma verdadeira regressão profissional. Na verdade, os docentes mantêm-se numa categoria da carreira que já existia e continua a existir: a categoria de professor. Muda apenas a organização interna desta categoria, passando a estar repartida em seis escalões (cf. a tabela a que se refere o artigo 59.º, n.º 1, do Estatuto, publicada em anexo), e é criada uma nova categoria (professor titular), hierarquicamente superior à categoria de professor, com funções de diferente natureza, âmbito e grau de responsabilidade (artigo 34.º, n.º 3, do Estatuto) - estas funções são, essencialmente, de coordenação, direcção e avaliação (artigo 35.º, n.º 4, do Estatuto).
Importa, também, ter em conta que o legislador, para além de garantir a manutenção da remuneração dos professores posicionados nos 8.º e 9.º e 10.º escalões, criou um regime transitório de recrutamento para acesso à categoria de professor titular, prevendo a abertura de um concurso de acesso especial destinado unicamente aos professores posicionados no 10.º escalão e, subsequentemente, aos professores posicionados nos 8.º e 9.º escalões (artigo 15.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/2007).
O regime de transição da carreira docente consagrado nos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei 15/2007 corresponde, nos termos expostos, a uma articulação razoável dos interesses do legislador subjacentes à alteração da estruturação da carreira com os interesses dos professores na manutenção da sua situação profissional. À semelhança do que se disse no Acórdão 455/2002 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 54.º, pp. 707 e segs.), «estando na disponibilidade do legislador a mudança do regime da estruturação das carreiras da Administração Pública, dificilmente poderia conceber-se um modo de resolver os problemas de transição para o novo regime que não envolvesse soluções análogas à contida» na norma questionada. As soluções de transição escolhidas pelo legislador para os professores posicionados nos 8.º, 9.º e 10.º escalões - designadamente a manutenção da categoria e do índice remuneratório, bem como o acesso especial e prioritário à categoria de professor titular - não podem, portanto, considerar-se violadoras do princípio da protecção da confiança.
Acrescente-se, por fim, que não é necessário determinar se a solução proposta pelo requerente - manutenção transitória dos 8.º a 10.º escalões da categoria de professor - é menos lesiva que a consagrada no Decreto-Lei 15/2007. Basta concluir, como sucede no caso em presença, que a solução encontrada pelo legislador não viola o princípio da proporcionalidade (em sentido amplo, compreendendo os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito), enquanto exigência dirigida ao legislador, ínsito no princípio do Estado de direito, a que se refere o artigo 2.º da Constituição.
Quanto a este tema, reitera-se o que se disse no Acórdão 187/2001 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 50.º, pp. 29 e segs.):
«[...] o legislador pode determinar, dentro do quadro constitucional, a finalidade visada com uma determinada medida. Por outro lado, é sabido que a determinação da relação entre uma determinada medida, ou as suas alternativas, e o grau de consecução de um determinado objectivo envolve, por vezes, avaliações complexas, no próprio plano empírico (social e económico). É de tal avaliação complexa que pode, porém, depender a resposta à questão de saber se uma medida é adequada a determinada finalidade. E também a ponderação suposta pela exigibilidade ou necessidade pode não dispensar essa avaliação.
Ora, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador [...], legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as suas finalidades, uma 'prerrogativa de avaliação', como que um 'crédito de confiança', na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução dos objectivos visados com a medida. [...] Significa isto, pois, que, em casos destes, em princípio o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação - como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida - , ser resolvidas contra a posição do legislador.» A violação do princípio da proporcionalidade pressupõe, pois, que se demonstre que o legislador cometeu um erro particularmente grave e manifesto na escolha do meio para atingir o fim por si visado, o que, como já se viu, não acontece no caso concreto.
Tendo em conta tudo o exposto, conclui-se que o artigo 10.º, n.º 8, do Decreto-Lei 15/2007 não viola nem o princípio da protecção da confiança nem o princípio da proporcionalidade, ínsitos no princípio do Estado de direito.
C) O artigo 15.º, n.º 5, alínea c), do Decreto-Lei 15/2007
9 - Por último, sustenta o requerente que é inconstitucional a alínea c) do n.º 5 do artigo 15.º do Decreto-Lei 15/2007, na medida em que estabelece, como requisito para o recrutamento transitório para professor titular, por parte de professores que à data da entrada em vigor do referido diploma estejam nos 8.º, 9.º e 10.º escalões, a prestação efectiva de funções.
Entende o requerente que a norma agora questionada - que, recorde-se, determina o seguinte: «Apenas podem ser opositores aos concursos referidos no n.º 1 os docentes [...] que [...] não estejam na situação de dispensa total ou parcial da componente lectiva» (itálico nosso) - ao desconsiderar as situações legalmente equiparadas à prestação efectiva de funções, poderá levar ao afastamento do concurso daqueles professores que estejam em dispensa de funções lectivas por razões de saúde, o que implicará violação do artigo 64.º da Constituição (direito à protecção da saúde).
Deve antes do mais dizer-se que hoje, face às alterações introduzidas ao Estatuto pelo Decreto-Lei 15/2007, a expressão «redução da componente lectiva» tem um significado preciso. Com efeito, tal «redução» vem agora prevista nos artigos 79.º e 80.º do Estatuto, em que se admite que a «componente lectiva do trabalho semanal» possa vir a ser «reduzida» apenas por razões atinentes à idade e, ou, ao tempo de serviço (artigo 79.º) ou por motivos relacionados com o «exercício de outras funções pedagógicas» (artigo 80.º). As razões de saúde não integram hoje pois os motivos justificativos da figura «redução da componente lectiva», sendo antes agora equiparadas a prestação efectiva de serviço as «ausências» provocadas por «doença» ou «doença prolongada» [artigo 103.º, alíneas b) e c), do Estatuto]. Até há pouco tempo, porém, assim não era. Na sua versão original - aprovada pelo Decreto-Lei 139-A/90 - o Estatuto previa, no artigo 81.º, e justamente para os casos de doença, a «dispensa da componente lectiva», que podia ser «total» ou «parcial». O artigo 81.º veio a ser revogado pelo Decreto-Lei 224/2006, de 13 de Novembro, que estabeleceu - nos seus artigos 3.º, 4.º, 5.º e 6.º - um novo regime, mais extenso e detalhado, para o procedimento a seguir em caso de obtenção, por parte dos docentes, de «dispensa da componente lectiva» por razões de saúde. Foi o artigo 25.º, alínea g), do Decreto-Lei 15/2007 que revogou por seu turno todo este procedimento, assim se explicando que, depois da entrada em vigor deste último decreto-lei, a figura da «dispensa da componente lectiva (por razões de saúde)» tenha pura e simplesmente deixado de existir.
No entanto, é a ela mesma que se refere a norma questionada, quando exclui do universo dos docentes que podem ser opositores ao concurso transitório único para lugares da categoria de professor titular, aberto após a entrada em vigor do Decreto-Lei 15/2007 (n.º 1 do artigo 15.º), precisamente aqueles que estejam na situação de dispensa total ou parcial da componente lectiva [alínea c) do n.º 5 do artigo 15.º]. Pela sua própria formulação, a norma não pode deixar de abranger todos aqueles docentes aos quais se tenha ainda aplicado os regimes que vigoraram até 2007.
Sustenta o requerente que é inconstitucional semelhante norma, por afrontar ela o direito à protecção da saúde, consagrado no artigo 64.º da CRP.
O direito que o artigo 64.º da Constituição consagra é, tanto pela sua inserção sistemática quanto pela sua estrutura, um direito social. Ora, e como muito bem se sabe, os direitos sociais - por serem direitos a prestações fácticas e normativas a cargo do Estado - não têm em princípio um conteúdo que possa ser determinado a nível constitucional. Dependendo a sua concretização desde logo de opções do legislador, que age neste domínio de acordo com aquilo que lhe for historicamente possível, tais direitos só acabam por adquirir conteúdo liquido e certo no domínio da normação infraconstitucional. É por isso difícil aceitar que funcionem eles próprios, com o seu conteúdo não determinado a nível constitucional, como parâmetros de invalidade de acções do legislador ordinário - das quais depende, afinal, a sua concretização última. Precisamente por isso, diz o n.º 1 do artigo 18.º da Constituição que só os preceitos constitucionais respeitantes a direitos, liberdades e garantias (que não, portanto, os respeitantes aos direitos económicos, sociais e culturais) são directamente aplicáveis.
Contudo, tal não implica - não pode implicar - que sejam destituídas de efeitos as normas da Constituição relativas aos direitos sociais. Como o tem sublinhado a doutrina, os preceitos relativos a direitos fundamentais - e a todos eles: sejam direitos, liberdades e garantias, sejam direitos sociais - «não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto posições jurídicas de que estes são titulares perante o Estado, designadamente para dele se defender, antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe prosseguir» (José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Coimbra, 2004, p. 115).
A ser assim, também o direito à saúde, consagrado no artigo 64.º da CRP - e apesar de não poder ser ele próprio, pelas razões já apontadas, fundamento da invalidade da norma sob juízo - , não deixará de ter uma dimensão ou valência objectiva, que, irradiando para outros lugares do sistema constitucional, ajudará a esclarecer os limites que se impunham, in casu, ao legislador.
Tem sempre dito o Tribunal (cf. supra, n.º 6, e jurisprudência aí citada), que o direito de acesso à função pública consagrado, como direito, liberdade e garantia pessoal, no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição, inclui no seu âmbito o direito às promoções na carreira em condições de igualdade. Como se sabe, igualdade significa aqui uma realidade jurídica e não fáctica, pelo que, face ao âmbito de protecção da norma contida no n.º 2 do artigo 47.º, serão ainda isentas de censura aquelas normas infraconstitucionais que venham a estabelecer neste domínio diferenças que sejam fundadas em, ou que correspondam a, critérios de valor constitucionalmente relevantes.
Não é no entanto esse o caso da norma sob juízo.
Com efeito, ao excluir do universo de docentes que podem ser opositores ao concurso para acesso para professores titulares aqueles que se encontrem em situação de dispensa total ou parcial da componente lectiva - o que, como já vimos, abrange as situações existentes até 2007, em que a figura «dispensa de componente lectiva» era precisamente aplicável em caso de doença - , o legislador está a introduzir, no sistema de regras relativas ao direito à promoção na carreira da função pública, uma diferença que não é fundada em nenhum valor constitucionalmente relevante. Para uma comunidade constitucional como a portuguesa, que elegeu a «protecção da saúde» como valor ou fim que ela própria deve prosseguir, nem outra conclusão se afiguraria possível, sobretudo se se tiver em conta que, no caso, a figura da «dispensa total ou parcial de componente lectiva» por motivos de saúde - tal como resulta do artigo 3.º do Decreto-Lei 224/2006 - só pode abranger: i) doenças que afectem directamente o exercício da função docente, e que desse mesmo exercício resultem [alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 3.º]; e ii) docentes que estejam aptos a desempenhar tarefas compatíveis em estabelecimento de educação ou de ensino, e cuja recuperação para o cumprimento integral do exercício de funções docentes seja possível no prazo máximo de 18 meses [alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 3.º].
Assim sendo, ao introduzir tal diferença no regime do irrepetível concurso de recrutamento transitório o legislador lesa o direito consagrado no n.º 2 do artigo 47.º O bem jusfundamental que aqui se protege - e que é precisamente o da igualdade na promoção da carreira - é negativamente afectado pela exclusão (nas candidaturas ao concurso) operada pelo n.º 5, alínea c), do artigo 15.º do Decreto-Lei 15/2007, sendo tal afectação negativa desproporcionada, porque excessiva face a quaisquer outros bens ou interesses que, através dela, se quisessem prosseguir.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:a) Não declarar a inconstitucionalidade nem a ilegalidade da norma constante do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo Decreto-Lei 139-A/90, de 28 de Abril, na redacção dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 15/2007, de 19 de Janeiro;
b) Não declarar a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 10.º, n.º 8, do Decreto-Lei 15/2007;
c) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no artigo 15.º, n.º 5, alínea c), do referido Decreto-Lei 15/2007, por violação do n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.
Lisboa, 12 de Março de 2008. - Maria Lúcia Amaral - José Borges Soeiro - Benjamim Rodrigues - Carlos Fernandes Cadilha - Joaquim de Sousa Ribeiro (com declaração) - Gil Galvão [vencido quanto ao conhecimento da questão julgada na alínea c) da decisão, no essencial, pelas razões constantes da declaração de voto do Exmo.
Conselheiro Vítor Gomes, para a qual remeto] - João Cura Mariano [vencido quanto ao conhecimento da questão abordada na alínea c) do acórdão, pelas razões constantes da declaração de voto apresentada pelo Conselheiro Vítor Gomes] - Vítor Gomes [vencido quanto ao conhecimento da questão versada na alínea c) do acórdão, conforme declaração anexa] - Ana Maria Guerra Martins [vencida quanto ao conhecimento da questão julgada na alínea c) da decisão, pelos fundamentos expostos na declaração de voto do Exmo. Sr. Conselheiro Vítor Gomes, para a qual remeto] - Maria João Antunes [vencida quanto à alínea a) da decisão, pelas razões constantes da declaração que se junta] - Mário José de Araújo Torres (vencido quanto à não declaração de inconstitucionalidade da norma do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto, na redacção do artigo 2.º do Decreto-Lei 15/2007, pelas razões constantes da declaração de voto junta) - Carlos Pamplona de Oliveira (vencido conforme declaração que junto) - Rui Manuel Moura Ramos.
Declaração de voto
Não acompanho inteiramente a fundamentação quanto à decisão de inconstitucionalidade do artigo 15.º, n.º 5, alínea c), do Decreto-Lei 15/2007 (n.º 9).Entendo que o direito à saúde, consagrado no artigo 64.º da Constituição, não pode servir de fundamento de invalidade da norma sob juízo, não por ter (na sua feição predominante) a natureza de direito social, mas por a estatuição questionada nada ter a ver o âmbito de protecção do artigo 64.º Como correctamente se acaba por dizer no acórdão, o bem jusfundamental aqui afectado é o da igualdade de promoção na carreira, consagrado no n.º 2 do artigo 47.º É apenas no quadro da apreciação da observância deste parâmetro constitucional que cabe pertinentemente referir a protecção da saúde, para acentuar o desvalor, à luz da Constituição, da exclusão operada pelo artigo 15.º, n.º 5, do Decreto-Lei 15/2007. Seriam, assim, perfeitamente dispensáveis as largas considerações iniciais sobre o artigo 64.º e o estatuto constitucional dos direitos sociais, cuja fundamentalidade não é suficientemente realçada. - Joaquim de Sousa Ribeiro.
Declaração de voto
Vencido quanto ao conhecimento do pedido relativo à norma da alínea c) do n.º 5 do artigo 15.º do Decreto-Lei 15/2007, pelas seguintes razões:A norma em apreciação integra um regime transitório. Estabelece um requisito negativo de admissão que vale, somente, para o primeiro concurso de provimento na categoria de professor titular que seja aberto após a entrada do diploma, esgotando nesse concurso os seus efeitos.
Esse primeiro concurso foi objecto de uma regulação especial, estabelecida pelo Decreto-Lei 200/2007, de 22 de Maio, com uma tramitação determinada pela necessidade de, no mais curto período de tempo, proceder a uma análise objectiva de um universo que se previa de mais de 60 000 candidaturas. E veio a ser aberto - aliás, quer porque a lei configurou dois concursos distintos em função do posicionamento dos candidatos na estrutura remuneratória, quer porque o concurso respeitava aos lugares existentes em cada agrupamento de escolas ou escola não agrupada, melhor se diria: os procedimentos concursais vieram a ser abertos - conforme o despacho 3/DGRHE/2007, de 3 de Maio, do Ministério da Educação.
Os efeitos que a norma em causa possa ter produzido materializaram-se na fase de definição das «listas de candidatos», elaboradas e publicitadas em Julho de 2007, ao abrigo do artigo 16.º do citado Decreto-Lei 200/2007, sendo que, como é do conhecimento geral, até a fase subsequente do concurso (aplicação dos métodos de selecção e elaboração da lista de classificação final) se encontra já finda. E nesse acto de aplicação se esgotaram, cessando com isso a vigência da norma enquanto regra de acção para os interessados e para a Administração. Consequentemente, a situação é em tudo semelhante à de um pedido de fiscalização abstracta sucessiva de normas (já ou entretanto) revogadas.
É certo que, de acordo com reiterada jurisprudência deste Tribunal - inteiramente transponível para uma norma transitória aplicável a um único processo concursal e de efeitos administrativos exauridos - o facto de as normas objecto de um pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, haverem sido, entretanto, revogadas não impossibilita automaticamente o conhecimento desse pedido (atentos os efeitos ex tunc que aquela declaração, em princípio, produzirá:
artigo 282.º, n.º 1, da CRP). Mas exige-se que o conhecimento do pedido conserve, no caso, utilidade ou interesse relevantes, o que depende da indagação sobre se a eventual declaração da inconstitucionalidade da norma poderá ter alguma projecção significativa sobre os efeitos por ela já produzidos (cf., a título exemplificativo, por mais recente, Acórdão 497/2007, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 21 de Novembro de 2007, e, por respeitar também a um requisito impeditivo de admissão a um concurso, Acórdão 587/93, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 24 de Dezembro de 1993).
Ora, a exclusão do concurso traduz-se num acto administrativo que, por falta de oportuna impugnação, se consolida na ordem jurídica, como caso decidido ou resolvido. Assim, relativamente aos casos em que eventuais interessados espontaneamente se abstiveram de apresentar candidatura ou em que, tendo concorrido, se conformaram com os actos de exclusão alicerçados nessa norma, nenhum efeito útil derivaria de eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
Assim, só poderia conjecturar-se a subsistência de alguma utilidade da eventual declaração de inconstitucionalidade quanto a situações residuais, respeitantes a impugnações pendentes ou em que o prazo de impugnação pelos interessados, por circunstâncias anormais, ainda se não tenha esgotado (cf. artigo 58.º do CPTA).
Sucede que o Tribunal Constitucional tem entendido que, em tal tipo de hipóteses, o conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade deixa de ter interesse juridicamente relevante, já que seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta para os (residuais) casos concretos em que a aplicação da norma subsistiu. Nestes casos residuais, os possíveis beneficiários da eventual declaração de inconstitucionalidade poderão obter idêntico efeito suscitando a inconstitucionalidade da norma sub judice em impugnação contenciosa do acto que, com esse fundamento, os tenha excluído do concurso.
Acresce, apesar do carácter pouco explícito da resposta do Ministério da Educação ao pedido de esclarecimento que lhe foi formulado, que não há notícia de litigiosidade significativa a propósito da aplicação da norma em causa que faça prever a pendência de um número elevado de processos em que a questão tivesse sido suscitada de modo que a apreciação abstracta da constitucionalidade da norma se apresente como decisiva para o respectivo desfecho nos tribunais administrativos.
Consequentemente, o conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não tem, quanto a esta norma, utilidade relevante. - Vítor Gomes.
Declaração de voto
Não votei a decisão de não declarar inconstitucional a norma constante do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário.Acompanho a fundamentação do acórdão de onde se extrai a conclusão de que «a norma do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto não viola o princípio da igualdade pelo simples facto de prever a fixação de percentagens máximas para a atribuição das classificações de Muito bom e Excelente». Entendo, contudo, que a circunstância de a fixação das percentagens máximas para a atribuição destas classificações ser por escola não agrupada ou agrupamento de escolas por referência aos resultados obtidos na avaliação externa da escola conduz a uma diferenciação de situações iguais. - Maria João Antunes.
Declaração de voto
Votei vencido quanto à não declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário, aprovado pelo Decreto-Lei 139-A/90, de 28 de Abril, na redacção dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 15/2007, de 19 de Janeiro, pois reputo tal norma - que prevê que «por despacho conjunto dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da educação e da Administração Pública são fixadas as percentagens máximas para a atribuição das classificações de Muito bom e Excelente, por escola não agrupada ou agrupamento de escolas, as quais terão por referência os resultados obtidos na avaliação externa da escola» - violadora dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.1 - Para a completa compreensão do alcance desta norma importa anotar que a avaliação do desempenho do pessoal docente, cuja caracterização e objectivos são definidos no artigo 40.º do referido Estatuto, na redacção do Decreto-Lei 15/2007 (diploma e versão a que pertencerão os preceitos legais doravante citados sem outra referência), é obrigatoriamente considerada para efeitos de progressão e acesso na carreira, conversão da nomeação provisória em nomeação definitiva no termo do período probatório, renovação do contrato e atribuição do prémio de desempenho (artigo 41.º). No processo de avaliação do desempenho da generalidade dos docentes (abstraindo, por irrelevante para o caso em apreço, da avaliação dos professores titulares) intervêm dois avaliadores e a comissão de coordenação da avaliação de desempenho (artigo 43.º, n.º 1). Um dos avaliadores [o coordenador do conselho de docentes ou do departamento curricular ou o professor titular que por ele for designado quando o número de docentes a avaliar o justifique - artigo 43.º, n.º 1, alínea a)] pondera o envolvimento e a qualidade científico-pedagógica do docente, com base na apreciação dos seguintes quatro parâmetros classificativos: preparação e organização das actividades lectivas; realização das actividades lectivas; relação pedagógica com os alunos; e processo de avaliação das aprendizagens dos alunos (artigo 45.º, n.º 1).
O outro avaliador é o presidente do conselho executivo ou o director da escola ou agrupamento de escolas em que o docente presta serviço, ou um membro da direcção executiva por ele designado [artigo 43.º, n.º 1, alínea c)], competindo-lhe ponderar os seguintes oito indicadores de classificação: nível de assiduidade; serviço distribuído; progresso dos resultados escolares esperados para os alunos e taxas de abandono escolar, tendo em conta o contexto sócio-educativo; participação dos docentes no agrupamento ou escola não agrupada e apreciação do seu trabalho colaborativo em projectos conjuntos de melhoria da actividade didáctica e dos resultados das aprendizagens; acções de formação contínua concluídas; exercício de outros cargos ou funções de natureza pedagógica; dinamização de projectos de investigação, desenvolvimento e inovação educativa e sua correspondente avaliação;
e apreciação realizada pelos pais e encarregados de educação dos alunos (artigo 45.º, n.º 2).
O processo de avaliação do desempenho compreende as seguintes fases:
preenchimento de fichas de avaliação por cada um dos avaliadores; preenchimento pelo avaliado de uma ficha de auto-avaliação sobre os objectivos alcançados na sua prática profissional, na qual identificará a formação contínua realizada; conferência e validação dos dados constantes da proposta de classificação, quando esta apresente as menções de Excelente, Muito bom e Insuficiente, pela comissão de coordenação da avaliação; entrevista dos avaliadores com o avaliado para conhecimento da proposta de avaliação e apreciação do processo, em particular da ficha de auto-avaliação; e reunião conjunta dos avaliadores para atribuição da classificação final (artigo 44.º, n.º 1).
Quanto ao sistema de classificação, o artigo 46.º prevê que a avaliação de cada uma das componentes de classificação e respectivos subgrupos é feita numa escala de avaliação de 1 a 10, devendo as classificações ser atribuídas em números inteiros (n.º 1), correspondendo o resultado final da avaliação do docente à classificação média das pontuações obtidas em cada uma das fichas de avaliação e sendo expresso através das seguintes menções qualitativas: Excelente (de 9 a 10 valores), Muito bom (de 8 a 8,9 valores), Bom (de 6,5 a 7,9 valores), Regular (de 5 a 6,4 valores) e Insuficiente (de 1 a 4,9 valores) (n.º 2). O n.º 4 deste artigo 46.º impõe que a atribuição da menção de Excelente deve ainda especificar os contributos relevantes proporcionados pelo avaliado para o sucesso escolar dos alunos e para a qualidade das suas aprendizagens, e o subsequente n.º 5 faz depender a atribuição de menção qualitativa igual ou superior a Bom do cumprimento de, pelo menos, 95 % das actividades lectivas em cada um dos anos do período escolar a que se reporta a avaliação. Inovatoriamente, o n.º 5 do artigo 21.º do Decreto Regulamentar 2/2008, de 10 de Janeiro, veio tornar dependente a atribuição da menção qualitativa de Excelente do cumprimento de 100 % do serviço lectivo distribuído em cada um dos anos escolares a que se reporta o período em avaliação.
Como se referiu, quando das avaliações realizadas pelos dois avaliadores resultar proposta de classificação de Excelente ou de Muito bom, fica a mesma sujeita a validação por parte da comissão de coordenação da avaliação [artigo 43.º, n.º 6, alínea b)], comissão constituída pelo presidente do conselho pedagógico e mais quatro membros do mesmo conselho com a categoria de professor titular (artigo 43.º, n.º 5), validação essa que é meramente formal e consiste na verificação de que foram respeitadas as correspondentes percentagens máximas dessas duas classificações (artigo 44.º), percentagens fixadas pelo aludido despacho conjunto, nos termos do questionado n.º 3 do artigo 46.º A atribuição das duas mais elevadas menções qualitativas tem relevantes efeitos:
implicam redução do tempo de serviço docente exigido para efeitos de acesso à categoria de professor titular [que é, em regra, de 18 anos - artigo 38.º, n.º 2, alínea b)], redução que é de quatro anos se for atribuída a menção de Excelente durante dois períodos consecutivos, de três anos se forem atribuídas as menções de Excelente e Muito bom durante dois períodos consecutivos, e de dois anos se for atribuída a menção de Muito bom durante dois períodos consecutivos seguidos (artigo 48.º, n.os 1, 2 e 3).
2 - Perante este complexo procedimento, surge logo como desadequada a solução legal ora em apreço se confrontada com o objectivo proclamado no preâmbulo do Decreto-Lei 15/2007, de combater a automatismo burocrático, desprovido de conteúdo, do precedente sistema, que faria depender a progressão na carreira fundamentalmente do decurso do tempo. A intervenção de uma pluralidade de avaliadores, a multiplicidade dos factores a atender e, no que às duas mais altas classificações releva, o seu condicionamento a elevadíssimas taxas de cumprimento das actividades lectivas (95 %, para as menções qualitativas iguais ou superiores a Bom, nos termos do artigo 46.º, n.º 5, do Estatuto, ou mesmo 100 % para a atribuição de Excelente, agora exigida pelo n.º 5 do artigo 21.º do Decreto Regulamentar 2/2008, norma regulamentar de mais do que duvidosa legalidade) integram requisitos bastantes para a devida ponderação das menções a atribuir.
Ao que acresce, no caso da atribuição da menção de Excelente, a exigência de uma específica fundamentação da proposta, com explicitação dos contributos relevantes proporcionados pelo avaliado para o sucesso escolar dos alunos e para a qualidade das suas aprendizagens (artigo 46.º, n.º 4).
A suficiência dos novos mecanismos instituídos para assegurar um sistema de avaliação rigoroso torna desnecessária, e por isso desproporcionada, a imposição de um sistema «cego» de quotas.
Mas, para além da violação do princípio da proporcionalidade (por se tratar de solução desnecessária e excessiva), o sistema em causa viola ainda mais flagrantemente o princípio da igualdade.
Ele propicia que dois professores com igual mérito - que obtiveram como classificação média das pontuações atribuídas, por dois avaliadores credenciados, em cada uma das fichas de avaliação valores a que correspondiam as menções de Muito bom (de 8 a 8,9 valores) ou de Excelente (de 9 a 10 valores), e que, além disso, preencheram os requisitos do cumprimento de 95 % (ou de 100 %, a ter-se por legal a exigência do n.º 5 do artigo 21.º do Decreto Regulamentar 2/2008) das actividades lectivas em cada um dos anos do período escolar a que se reporta a avaliação, e ainda, no caso da atribuição da menção de Excelente, lhes foram especificamente reconhecidos, através de fundamentação expressa da proposta classificativa, os contributos relevantes por eles proporcionados para o sucesso escolar dos alunos e para a qualidade das suas aprendizagens - venham a ser diferentemente classificados pela circunstância, meramente aleatória e a que são de todo estranhos, de um deles ter o «azar» de exercer funções em escola não agrupada ou agrupamento de escolas onde já foi atingida a percentagem máxima dessas classificações fixadas no despacho previsto no n.º 3 do artigo 46.º, e o outro ter a «sorte» de exercer funções em escola ou agrupamento onde essa quota ainda não foi atingida.
A arbitrariedade e iniquidade da solução agrava-se porque, diferentemente do que sucedia e sucede na avaliação do desempenho da Administração Pública em geral, em que as percentagens máximas de classificações estavam e estão previamente fixadas por diploma regulamentar (5 % de Excelente e 25 % de Muito bom - artigo 9.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar 19-A/2004, de 14 de Maio) ou legal (5 % de Desempenho Excelente para os dirigentes superiores; 25 % de Desempenho relevante e 5 % de Desempenho excelente para os dirigentes intermédios e restantes trabalhadores - artigos 32.º, n.º 4, 37.º, n.º 5, e 75.º, n.º 1, da Lei 66-B/2007, de 28 de Dezembro), o estabelecimento das percentagens máximas de menções qualitativas relativamente aos professores ser feita através de despacho ministerial conjunto, cuja data de prolação não se mostra determinada, e que tem como único referente «os resultados obtidos na avaliação externa da escola». O carácter extremamente vago deste pretenso «critério» de fixação das percentagens máximas torna intoleravelmente indeterminado o sistema instituído, o que ainda exaspera a arbitrariedade intrínseca da solução.
Eis, sumariamente expostas, as razões pelas quais votei no sentido de que o Tribunal Constitucional devia declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 46.º, n.º 3, do Estatuto em causa, na redacção da Lei 15/2007, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade. - Mário José de Araújo Torres.
Declaração de voto
Vencido quanto à alínea c) da decisão.Ultrapassando as dúvidas quanto ao conhecimento da questão relativa ao artigo 15.º, n.º 5, alínea c), do Decreto-Lei 15/2007, dúvidas reflectidas na declaração de voto do Sr. Conselheiro Victor Gomes, que, em boa parte, acompanho, o certo é que se me afigura que o invocado «direito à saúde» não justifica o juízo de desconformidade da norma com o princípio da igualdade que, no entendimento expresso no Acórdão, vai provocar reflexamente a violação do disposto no n.º 2 do artigo 47.º da Constituição.
Com efeito, o legislador não está constitucionalmente impedido de proteger o direito à saúde dos trabalhadores da função pública (é este o âmbito da norma que está em causa) por outra via, sem adoptar um estatuto funcional de absoluta equiparação entre os trabalhadores no activo e aqueles que, por razões de saúde, não podem desempenhar em plenitude as suas funções; esta circunstância é, a meu ver, suficiente para assegurar a conformidade constitucional da diferenciação, constituindo, por isso, um critério de valor constitucionalmente relevante para tal efeito.
Votei, em consequência, no sentido de não declarar a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 15.º, n.º 5, alínea c), do Decreto-Lei 15/2007, de 19 de Janeiro. - Carlos Pamplona de Oliveira.