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Acórdão 504/2000/T, de 5 de Janeiro

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Texto do documento

Acórdão 504/2000/T. Const. - Processo 342/2000. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - 1 - José Francisco Osório interpôs, perante o Tribunal Central Administrativo, recurso contencioso de anulação do despacho proferido em 22 de Setembro de 1997 pelo Ministro da Administração Interna e por intermédio do qual o recorrente foi dispensado do serviço ao abrigo das disposições conjugadas ínsitas no n.º 4 do artigo 94.º do Decreto-Lei 231/93, de 16 de Junho, e no n.º 3 do artigo 75.º do Decreto-Lei 265/93, de 31 de Julho.

Inter alia, o impugnante, no petitório do recurso, invocou que, tendo aqueles diplomas sido emitidos pelo Governo no exercício da sua competência legislativa própria, e dos mesmos constando "inegavelmente abundante matéria respeitante a direitos, liberdades e garantias, ao regime estatutário geral e regime disciplinar dos agentes militarizados da GNR", cujos normativos "constituem matéria de reserva relativa da Assembleia da República, como tal consignados nas alíneas b), d) e v) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição", aquela emissão acarretava a inconstitucionalidade orgânica dos aludidos diplomas ou, ao menos, dos artigos 94.º do Decreto-Lei 231/93 e 75.º do Decreto-Lei 265/93. Ainda aditou que a figura da dispensa de serviço ali consagrada era violadora dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.

Tendo o Tribunal Central Administrativo, por Acórdão de 27 de Maio de 1999, negado provimento ao recurso, dele recorreu o impugnante para o Supremo Tribunal Administrativo, reeditando, na alegação adrede produzida, os vícios de inconstitucionalidade já invocados aquando do recurso para aquele primeiro Tribunal e acrescentando que os ditos diplomas inovaram legislativamente em relação aos Decretos-Leis 333/83, de 14 de Julho, 465/83, de 31 de Dezembro e 142/77, de 9 de Abril.

2 - Por Acórdão de 2 de Março de 2000, negou o Supremo Tribunal Administrativo provimento ao recurso jurisdicional.

É deste aresto que vem, pelo impugnante José Francisco Osório, interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, por seu intermédio pretendendo ver apreciada a conformidade à Constituição das normas vertidas nos artigos 94.º do Decreto-Lei 231/93 e 75.º do Decreto-Lei 265/93, de 31 de Julho, as quais, na sua perspectiva, violarão os artigos 13.º, 18.º, n.os 1, 2 e 3, 168.º, n.os 1, alíneas b), d) e v), 3 e 4, e 277.º, n.º 1, todos da lei fundamental.

Determinada a feitura de alegações, rematou o recorrente a por si produzida com as seguintes "conclusões":

"1 - O douto despacho recorrido fundamentou a dispensa de serviço do recorrente nas normas do n.º 4 do artigo 94.º do Decreto-Lei 231/93, de 26 de Junho, e do n.º 3 do artigo 75.º do Decreto-Lei 265/93, de 31 de Julho.

2 - Tais diplomas estão feridos de inconstitucionalidade orgânica em virtude de o Governo ter legislado com competência legislativa originária e não ter sido autorizado a fazê-lo pela Assembleia da República, em matéria de sua reserva relativa de competência legislativa [alíneas b), d) e v) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP].

3 - O recorrente é um agente militarizado integrado na força de segurança GNR.

4 - Só com a recentíssima publicação da notável Lei 145/99, de 1 de Setembro, passou o recorrente a estar sujeito a um regulamento disciplinar constante de diploma próprio, tal como já anteriormente acontecia para os militares, para os funcionário públicos e para os agente militarizados da força de segurança PSP.

5 - A medida sancionatória que resultar de um processo disciplinar ou do processo próprio de dispensa de serviço é, pela sua própria natureza, sempre uma sanção de natureza estatutária porque em ambos os casos é efectuada a carreira profissional e a situação funcional do militar, modificando-a em prejuízo do agente.

6 - O processo próprio de dispensa de serviço, por visar a aplicação de uma sanção estatutária, tem a natureza de um processo sancionatório, tal como o processo disciplinar; por visar a aplicação de uma pena, tem também a natureza de um processo sancionatório.

7 - O facto da sanção de dispensa de serviço prevista no n.º 2 do artigo 94.º do Decreto-Lei 231/93, de 26 de Junho (LOGNR), ter a natureza de sanção estatutária não lhe retira o carácter de pena disciplinar e isto porque a sanção estatutária denominada 'dispensa de serviço' constitui, tal como a pena disciplinar expulsiva, uma sanção estatutária expulsiva, não constituindo, enquanto tal, um género próprio, autónomo e distinto da pena disciplinar.

8 - Os referidos Decretos-Leis n.os 231/93 (LOGNR) e 265/93 (EMGNR) são alegadamente resultado do exercício da função legislativa do Governo, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da CRP ('Fazer decretos-lei em matéria não reservada à Assembleia da República'), como deles expressamente consta.

9 - E de ambos estes diplomas consta inegavelmente abundante matéria respeitante a direitos e garantias, ao regime estatutário geral e regime disciplinar dos agentes militarizados da GNR [v. alíneas a), b) e c) do n.º 7 e n.º 8 do artigo 39.º e artigos 92.º, 93.º e 94.º, todos da LOGNR - e artigos 2.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 14.º, 15.º, 19.º, 22.º e 75.º do EMGNR].

10 - Tais normativos (direitos, liberdades e garantias, regime disciplinar e regime da função pública) constituem matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República, como tal consignados nas alíneas b), d) e v) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP.

11 - A reserva de competência legislativa da Assembleia da República nesta matéria vale não apenas para as restrições mas também para toda a intervenção legislativa no âmbito dos direitos, liberdades e garantias (v. artigos do título II da parte I, n.º 8 (actual n.º 10 do artigo 32.º), 17.º, 18.º, 20.º, 21.º, 22.º e 23.º da CRP e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 672).

12 - Igualmente, implicando a sanção de 'dispensa de serviço' o termo da manutenção funcional, o 'despedimento' do recorrente atinge irremediavelmente o seu direito à segurança no emprego, consagrado no artigo 53.º da CRP.

13 - Por outro lado, no respeitante às alíneas d) e v) do artigo 168.º da CRP, cabe à Assembleia da República definir a natureza do ilícito e os tipos de sanções e as regras gerais do processo disciplinar relativos a todos os ordenamentos sectoriais públicos ou de carácter público, em cujo âmbito, no mínimo, se inclui a força de segurança GNR (cf. n.º 4 do artigo 272.º - título IX - Administração Pública, da CRP).

14 - Assim, o acto impugnado, ao ter fundamentado a 'dispensa de serviço' aplicada ao recorrente nos artigos 75.º do EMGNR e 94.º, n.os 1, 2 e 4 da LOGNR, fundamentou-se em normas formal e organicamente inconstitucionais por as mesmas respeitarem a direitos e garantias fundamentais, ao regime geral de punição de infracções disciplinares e bases do regime e âmbito da função pública, matérias de reserva relativa da Assembleia da República - alíneas b), d) e v) do artigo 168.º da CRP (3.ª Revisão) - o que inquiria o acto recorrido de vício de violação de lei.

15 - O governo legislador do EMGNR e da LOGNR quis prever um processo sancionatório e uma medida sancionatória com características inovadoras, fazendo-o de uma forma sub-reptícia e ilegal ao definir a natureza do ilícito, definir o tipo de sanção e as regras gerais de outro tipo de processo - o processo próprio de dispensa de serviço.

16 - Mesmo que erroneamente se entendesse que de mera repetição e transcrição se tratara, sempre importaria saber se os diplomas onde tal matéria tinha sido já anteriormente regulada, e que em 1993 teriam sido 'copiados', tinham sido proferidos pelas entidades com competência legislativa para os proferir, pois o vício no caso inverso de incompetência originária contaminaria os diplomas que posteriormente os tenham vindo a acolher

17 - O Governo não só inovou legislativamente em relação às normas constantes dos Decretos-Leis n.os 333/83, 465/83 e 142/77 como também estes primeiros dois diplomas ora referidos foram decretados sem a indispensável autorização da Assembleia da República, nos termos da CRP então vigente (1982).

18 - Hoje em dia, no fundamental, não existe nenhuma diferença significativa, nem quanto à sua missão nem quanto à sua tutela, entre a força de segurança GNR e a força de segurança PSP (estas, sim, distintas na missão - v. artigo 275.º da CRP - e na tutela das Forças Armadas).

19 - E o que também se constata é que, tanto para o comum trabalhador privado como para o funcionário público em geral, como ainda também para o agente militarizado membro da força de segurança PSP, a ruptura do vínculo de emprego, fundada em justa causa, sempre se decide após a verificação e comprovação desta ser invariável e imperativamente apurada em sede de processo disciplinar integralmente assegurador das garantias de defesa do arguido.

20 - No entender do recorrente, não existe uma só razão distinta ou argumento plausível que justifique e legitime poder ter sido, como foi, decidida a ruptura do vínculo de emprego através da originalíssima dispensa de serviço, processo inexistente, ao invés do processo disciplinar, nos restantes casos supra-indicados.

21 - A indevida sujeição dos membros da GNR à medida estatutária de dispensa de serviço constitui notória violação daquele requisito e dos princípios constitucionais da proibição do excesso e da salvaguarda do núcleo essencial do direito fundamental (v., por todos, J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª ed., pp. 482-493), ínsitos nos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP, consubstanciado inequivocamente a violação dos princípios da igualdade e proporcionalidade arguida pelo recorrente.

22 - Em boa verdade, além de deverem ter fundamento, na Constituição, cumpre sempre apurar se a especificidade estatutária concreta exige aquela concreta restrição ao direito fundamental afectado (v., J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 501-503). No caso dos autos, claramente se constata o desrespeito pelos princípios da exigibilidade e da salvaguarda do núcleo essencial, em virtude de, por maior que seja o persistente esforço, não se conseguir vislumbrar o que possa justificadamente exigir a existência da dispensa de serviço na GNR e a sua não existência na PSP.

23 - O recorrente discorda fundamentadamente do modo processualmente ínvio como foi punido e do tipo e da medida da sanção com que foi punido.

24 - Ao invés do considerado no douto acórdão recorrido, o princípio da igualdade foi ofendido, não porque não tenha sido aplicada a mesma medida a todos os membros da GNR envolvidos na prática de factos idênticos aos do recorrente mas precisamente porque o processo de dispensa de serviço em todos os casos seguidos e a medida de dispensa de serviço a todos aplicada resulta manifestamente excepcional e a sanção desigual e desproporcionada em relação comparada às aplicadas (penas de inactividade, suspensão e até prisão disciplinar) em abundantes e variados outros casos, públicos e notórios, a membros das forças de segurança GNR e PSP que cometeram ilícitos de muito maior gravidade [basta relembrar os casos do cabo Casca (Vinhais) e do sargento Santos (Sacavém), pronunciados e até já condenados por homicídio].

25 - O douto acórdão recorrido, não reconhecendo a inconstitucionalidade das normas referidas, tal como concretamente emergiram e foram aplicadas pelo despacho ministerial recorrido, e negando provimento ao recurso contencioso, violou e fez errónea a aplicação dos artigos 13.º, 18.º, n.os 1, 2 e 3, 168.º, n.º 1, alíneas b), d) e v), e 277.º, n.º 1, da CRP na versão anterior à última revisão."

De seu lado, o Ministro da Administração Interna concluiu a sua alegação dizendo:

"I - A dispensa do serviço da Guarda Nacional Republicana não é uma medida disciplinar mas uma medida estatutária, de natureza essencialmente militar, como tem sido jurisprudência uniforme e pacífica do Supremo Tribunal Administrativo, como entende a Procuradoria-Geral da República e como entendia a Comissão Constitucional.

II - O Decreto-Lei 231/93, de 26 de Junho (artigo 94.º), e o Decreto-Lei 265/96, de 31 de Julho (artigo 75.º), não padecem de inconstitucionalidade orgânica ou material por violação dos artigos 13.º, 18.º, n.os 1, 2 e 3, 168.º, n.os 1, alíneas b), d) e v), e 277.º da Constituição da República Portuguesa.

III - Não padecem de inconstitucionalidade orgânica porque o Governo, ao legislar, limitou-se a reproduzir, sem inovar, matéria constante de diplomas anteriores (Leis 29/82, de 11 de Dezembro e 11/89, de 1 de Junho, bem como o Decreto-Lei 333/83, de 14 de Julho), não ofendendo a reserva de competência legislativa da Assembleia da República. Na verdade,

IV - Seria absurdo pedir uma autorização legislativa para decretar uma medida que nada traz de novo à ordem jurídica. O Governo, ao requerer uma autorização legislativa, deve referir aquilo que pretende alterar. Senão tenciona alterar nada, não poderia proceder a tal indicação, e careceria de sentido o pedido de autorização.

V - Não precisando o Governo de autorização legislativa, uma vez que não inovou, não pode ocorrer qualquer inconstitucionalidade por a precedente lei de autorização legislativa ter caducado.

VI - O tratamento da dispensa de serviço, pelo legislador, fora do âmbito disciplinar releva da liberdade conferida ao poder legislativo, sendo certo que tomou aquela medida como realidade distinta da sanção disciplinar (cf. o Decreto-Lei 203/78, de 24 de Julho, o qual interpretou autenticamente o RDM).

VII - Não estando perante normas que se refiram a qualquer infracção disciplinar, nunca poderia ocorrer a aduzida inconstitucionalidade por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea d), da CRP.

VIII - Também não se poderia verificar a arguida inconstitucionalidade por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea v), uma vez que a medida de dispensa do serviço, restrita aos militares das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana, não pode considerar-se matéria a incluir no conceito de 'bases gerais do regime jurídico da função pública'.

IX - As normas nas conclusões anteriores não padecem de inconstitucionalidade material uma vez que a existência e aplicação, aos elementos da GNR, do processo e da medida estatutária de dispensa do serviço não ofende os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, já que a restrição ao direito à segurança no emprego é feita nos termos da CRP e de forma proporcionada - com exigência de justa causa e com amplo direito de audiência e defesa do militar -, estando sujeitos a esta medida todos os militares, das Forças Armadas e da GNR.

X - É claramente inadequada a comparação entre a aplicação da medida estatutária de dispensa do serviço e a imposição de penas disciplinares a elementos de outra força de segurança sem se indicar concretamente em que consiste a desigualdade e a desproporção.

XI - As comparações válidas para se ajuizar do respeito pelo princípio da igualdade devem referir-se a situações qualitativa e quantitativamente iguais, não se extraindo dos autos elementos que permitam chegar a tais conclusões, sendo certo que não faz sentido estar a confrontar a situação em apreço com outras que se inserem em estatutos funcionais e profissionais distintos."

Cumpre decidir.

II - 1 - Como se viu, o ora recorrente foi dispensado do serviço por intermédio de despacho que isso determinou, despacho esse que se fundou juridicamente nas disposições conjugadas constantes do n.º 4 do artigo 94.º do Decreto-Lei 231/93, de 16 de Junho, e do n.º 3 do artigo 75.º do Decreto-Lei 265/93, de 31 de Julho, (recte, o n.º 4 do artigo 94.º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei 231/93, e o n.º 3 do artigo 75.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei 265/93).

Rezam aquelas disposições:

"Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana

Artigo 94.º

Dispensa do serviço

1 - A dispensa do serviço dos militares dos quadros permanentes ocorre a pedido dos próprios ou por iniciativa do comandante-geral.

2 - A dispensa do serviço, quando da iniciativa do comandante-geral, pode ter lugar sempre que o comportamento do militar indicie notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função, implicando tal medida a instauração de processo próprio com observância de todas as garantias de defesa e com a pensão de reforma que lhe couber.

3 - A dispensa do serviço a pedido do militar é da competência do comandante-geral.

4 - A adopção da medida prevista no n.º 2 deste artigo é da iniciativa do comandante-geral, ouvido o Conselho Superior da Guarda, competindo a decisão final ao Ministro da Administração Interna.

5 - Da decisão do Ministro da Administração Interna cabe recurso nos termos da lei.

Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana

Artigo 75.º

Dispensa por iniciativa do comandante

1 - Não pode continuar no activo nem na efectividade de serviço o militar dos quadros da Guarda cujo comportamento se revele incompatível com a condição de 'soldado da lei' ou que se comprove não possuir qualquer das seguintes condições:

a) Bom comportamento militar e cívico;

b) Espírito militar;

c) Aptidão técnico-profissional.

2 - O apuramento dos factos que levam à invocação da falta de condições referidas no número anterior é feito através de processo próprio de dispensa de serviço ou disciplinar.

3 - A decisão de impor ao militar a saída do activo e da efectividade de serviço é da competência do Ministro da Administração Interna, sob proposta do comandante-geral, ouvido o Conselho Superior da Guarda.

4 - A dispensa do serviço origina o abate nos quadros e a perda dos direitos de militar da Guarda, sem prejuízo da concessão da pensão de reforma nos termos da lei."

Para o recorrente, os diplomas onde se inserem as transcritas disposições padecem de inconstitucionalidade orgânica por violação das alíneas b), d) e v) do n.º 1 do artigo 168.º do diploma básico (na versão anterior à advinda da Revisão Constitucional de 1997) visto conterem eles matéria respeitante a direitos, liberdades e garantias, ao regime estatutário da Guarda Nacional Republicana e ao regime disciplinar dos respectivos militares; e, além disso, as ditas disposições, na sua óptica, ferem os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.

2 - Estando agora em causa tão-somente as normas acima indicadas, torna-se claro que são unicamente elas as que devem estar sujeitas, por parte deste Tribunal, ao juízo de compatibilidade ou não compatibilidade com a lei fundamental e, assim, não poderá aqui aquilatar-se se outras matérias tratadas na Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana ou no Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana podem, ou não, ser incluídas em matérias concernentes a direitos, liberdades e garantias, de bases do regime e âmbito da função pública ou do regime geral de punição das infracções disciplinares.

O que relevará, isso sim, é saber se as faladas disposições podem dizer respeito a tais matérias e, na afirmativa, se a sua edição através de diploma legislativo não credenciado parlamentarmente (ao menos no que toca ao que nessas mesmas disposições se encontra regulado) é passível de um juízo de censura.

Vejamos, pois.

2.1 - Que os aludidos artigos 94.º e 75.º não podem, de todo em todo, ser considerados como algo respeitante às bases do regime e âmbito da função pública (cf., entre outros, e no tocante ao que deve ser entendido em tal conceito, o Acórdão deste Tribunal n.º 154/86, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol., pp. 185-218), é circunstância que se não pode pôr em dúvida.

De outro lado, parece que sempre se imporia saber se aqueles normativos respeitam, como defende o recorrente, a matéria disciplinar, e isto sem se entrar, desde já, no problema de saber se, mesmo a dar-se resposta afirmativa àquela questão, ainda assim, por se tratar, nessa hipótese, de uma medida disciplinar que seria específica de um determinado grupo de agentes do Estado (cf., no sentido de que os militares e agentes militarizados são de considerar como agentes do Estado, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 949), a edição legislativa referente aos mesmos normativos haveria de ser submetida aos ditames constitucionalmente impostos para o regime geral de punição das infracções disciplinares.

A jurisprudência tomada pelo Supremo Tribunal Administrativo, de que é exemplo o acórdão impugnado e que daquela se faz eco, tem sustentado, sem discrepâncias, que a medida de dispensa do serviço é uma medida de natureza estatutária que se não confunde com qualquer pena disciplinar.

Também essa postura foi defendida no parecer exarado pela Procuradoria-Geral da República no processo 54/79 e que se encontra publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 292, pp. 148-158, relativamente a uma medida de conteúdo semelhante à ora em apreço constante do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto-Lei 142/77, de 9 de Abril, e interpretada autenticamente pelo Decreto-Lei 203/78, de 24 de Julho.

Não se poderá, porém, como faz o acórdão recorrido, dizer expressamente que o mesmo foi defendido no Parecer da Comissão Constitucional n.º 32/79 (in Pareceres da Comissão Constitucional, 10.º vol., pp. 81-196).

É que, muito embora neste último parecer se dissesse, por entre o mais, que "[...] na verdade, a natureza autónoma das medidas estatutárias, com fundamentos e fins diversos dos das penas disciplinares, torna aquelas independentes da extinção, quer do procedimento disciplinar, quer do criminal; são realidades que nada lhes dizem e que se movem em campos diferentes, não se chocando entre si", também se aceitava "que a constitucionalidade das medidas estatutárias possa ser discutida", mas que, simplesmente, isso teria de ser posto à luz do Regulamento de Disciplina Militar, corte normativa que, então, estava fora do objecto daquele parecer.

Convém-se que, de um ponto de vista lógico-jurídico e, até, não afastando a perspectiva constitucional, se apresenta como um caminho cheio de escolhos a questão de se afirmar, sem mais, que a denominada sanção estatutária representa uma realidade diferente das sanções disciplinares (para maiores desenvolvimento, cf. o voto de vencido aposto ao mencionado parecer da Comissão Constitucional pelo vogal conselheiro Luís Nunes de Almeida, no qual se defendeu que o que caracteriza as sanções estatutárias "não é o tipo de infracção que ela visa punir nem o processo conducente à respectiva aplicação, nem a entidade que a pode aplicar," mas sim o facto de ela "'afectar a situação jurídica' do agente, 'atingindo-o como tal'; isto é, uma certa sanção é sempre estatutária desde que afecte o estatuto profissional do agente, desde que o atinja 'na sua carreira profissional ou situação funcional, modificando-as em seu prejuízo'".

Mas, mesmo que se concluísse que as denominadas sanções estatutárias haveriam de ser entendidas como sanções disciplinares, ao menos para efeitos do seu tratamento constitucional, nem por isso se haveria de seguir inelutavelmente à conclusão a que chega o recorrente.

2.2 - De facto, esgrime este com a circunstância de as normas em apreciação terem sido editadas por diplomas governamentais que não foram precedidos de autorização concedida pela Assembleia da República.

É que, mesmo aceitando que a matéria regulada nos artigos 94.º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana e 75.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana dissesse respeito a matéria disciplinar (e continuando a pôr de remissa o problema acima focado) ou a matéria conexionada com direitos, liberdades e garantias (enquanto criadores de situações que podem ser vistas como afectando a carreira ou situação profissional dos militares da Guarda Nacional Republicana e, por isso, com ligação à própria segurança no emprego), o que se torna nítido é que a medida de dispensa de serviço ali estatuída não é algo de inovatoriamente consagrado.

Na realidade, uma tal medida, com um figurino em tudo semelhante, encontrava-se já prevista no Regulamento de Disciplina Militar e com reporte ao Decreto-Lei 203/78 - um e outro editados pelo órgão então dotado de poderes constitucionais para tanto -, Regulamento esse que veio a ser aplicável aos militares da Guarda Nacional Republicana [cf. o n.º 1 do artigo 69.º e o n.º 1 do artigo 32.º, ambos da Lei 29/82, de 11 de Dezembro, e os artigos 2.º, alínea e), e 16.º, estes da Lei 11/89, de 1 de Junho; hoje em dia, contudo, após a entrada em vigor da Lei 145/99, de 1 de Setembro, aquele corpo especial de tropas ficou dotado de um regulamento de disciplina próprio]. Justamente por isso, ou seja, porque essa medida já lhes era aplicável, se explicitou no Decreto-Lei 333/83, de 14 de Julho, ao sistematizar as normas referentes à orgânica da Guarda Nacional Republicana que o militar do quadro permanente da Guarda Nacional Republicana no activo ou na efectividade de serviço que não convenha ao serviço ou ainda por razões de ordem moral, física, militar e técnico-profissional poderá ser dispensado do serviço ou passar às situações de reserva, reforma ou separado do serviço, após o apuramento processual dos factos (cf. artigo 70.º, n.º 1), sendo uma tal decisão da competência do comandante-geral, mediante parecer favorável do Conselho Superior da Guarda (n.º 2 do mesmo artigo).

Não se pode, assim, dizer que a medida a que se reportam as normas em causa trouxe, relativamente aos militares da Guarda Nacional Republicana, algo de novo ou, se se quiser, lhes impôs uma medida à qual não estavam anteriormente sujeitos, ou se inovou, com carácter interpretativo ou integrativo ou conferindo uma acrescida e qualificada dimensão de natureza substantiva quanto à respectiva natureza, quanto às linhas rectoras do procedimento conducente à sua aplicação (cf. sobre o ponto, entre outros, o Acórdão deste Tribunal n.º 174/93, nomeadamente o seu n.º 6.2, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24.º vol., pp. 57-164).

3 - Afastado que seja o invocado vício de inconstitucionalidade orgânica, nem por isso a questão fica resolvida.

De facto, o recorrente suscita problemas de desconformidade material com o diploma básico que se impõe equacionar.

Assim, mesmo partindo de uma óptica de harmonia com a qual a situação de dispensa do serviço tem, necessariamente, a ver com o direito à segurança no emprego, por isso que permitiria a cessação do efectivo desempenho de uma "relação laboral" e, consequentemente, seria afectado o artigo 53.º da Constituição, sempre se dirá que aquela medida não está conceptualizada de molde a poder-se concluir que a mesma é ou pode ser aplicável ad libitum, antes só o podendo ser se ocorrerem causas precisas, indicadas nas normas em questão.

Na verdade, como aliás se escreveu no acórdão ora sub iudicio, o militar da Guarda Nacional Republicana só será abatido aos respectivos quadros após se ter concluído, em processo próprio, que não reúne as condições essenciais para o exercício das respectivas funções, sendo que, pela natureza das suas atribuições e pelo modelo de organização daquele corpo especial de tropas, são de exigir dos seus militares condições especiais de permanente aptidão física, psíquica e psicológica, comportamentos pautados por estritos rigores éticos de coesão interna e acentuado espírito de disciplina, condições e comportamentos estes que, a não serem seguidos, são justificativos da não manutenção efectiva da acima indicada "relação laboral".

Não poderá, desta sorte, equiparar-se a medida de dispensa de serviço a um caso de despedimento sem justa causa.

A exigência de uma causa adequada à cessação da efectiva "relação laboral" e a exigência de um processo que assegure plenamente garantias de defesa em relação ao militar está amplamente consagrada nas normas em apreciação.

4 - Sustenta ainda o recorrente que a consagração da medida em análise viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, pois que, não havendo diferença "quanto à sua missão nem quanto à sua tutela entre a força de segurança" GNR e a força de segurança PSP", não se justificaria que os membros da primeira estivessem sujeitos à medida enquanto os não estavam os da segunda.

No que concerne ao princípio da igualdade, é já muito abundante a jurisprudência deste Tribunal. Citam-se, assim, a título exemplificativo, os Acórdãos n.os 186/90, 330/93, 335/94 e 565/96 (publicados na 2.ª série do Diário da República de, respectivamente, 12 de Setembro de 1990, 30 de Julho de 1993, 30 de Agosto de 1994 e 16 de Maio de 1996), de onde se pode extrair que o princípio da igualdade postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento diverso a situações de facto desiguais.

O princípio da igualdade não proíbe a diversidade de tratamento. O que veda é o estabelecimento de distinções sem fundamento racional e objectivo, ditadas pela irrazoabilidade e, logo, pelo mero arbítrio (parafraseando Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, p. 299, o que importa "é que não se discrimine para discriminar").

Por isso, impõe-se - para apurar se o princípio da igualdade é violado quando se está perante soluções legislativas que regulam de forma diversa situações que, prima facie, podiam merecer o mesmo tratamento - saber se o legislador, ao adoptar essa solução, no exercício da sua liberdade de conformação, foi informado por situações de facto que reclamam diversos tratamentos, que parametrizados finalisticamente encontram razoabilidade e adequação na respectiva consagração.

Em face destas considerações, há que reconhecer que são profundas as diferenças entre as forças de segurança Guarda Nacional Republicana e Polícia de Segurança Pública.

A primeira é, seguramente, uma força de segurança que, como deflui do artigo 1.º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, é constituída por militares organizados num corpo especial de tropas, tem dependência do Ministro da Defesa Nacional, no que respeita à uniformização e normalização da disciplina militar, do armamento e do equipamento, pode ser colocada na dependência operacional do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas em caso de guerra ou em situação de crise (cf. o artigo 9.º da mesma lei orgânica), está subordinada a princípios de comando e os seus militares estão sujeitos a aquartelamento e enquadramento hierárquico muito próximo do das Forças Armadas. Estas características aproximam, pois, os militares da Guarda Nacional Republicana e a respectiva organização daquelas outras típicas da instituição militar (cf., quanto a estas, o Acórdão deste Tribunal n.º 103/87, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º vol., pp. 83 a 182).

O mesmo se não passa com a Polícia de Segurança Pública, acerca da qual se não pode dizer, como o recorrente diz, que dela fazem parte "agentes militarizados" dessa força de segurança que, por o serem, ou melhor, não obstante o serem, não estão sujeitos a medida idêntica à sub specie (o recorrente alude ainda a que os militares das Forças Armadas não estão também sujeitos a tal medida, o que, viu-se já, não corresponde à realidade); por outro lado, não se pode sustentar que esta força de segurança seja uma força de segurança militar, pois que, indubitavelmente, está organizada e hierarquizada em termos acentuadamente diversos reportadamente à Guarda Nacional Republicana.

As características que informam esta Guarda e a aproximam da instituição militar, ao que há que aditar, além disso, o que foi referido numa parte do 4.º § do antecedente n.º 3, constituem, destarte, todo um condicionalismo que deverá ser considerado como suporte bastante para que se conclua que não se apresenta irrazoável ou desprovida de fundamento racional (ou seja, que se não apresente como arbitrária) a solução consistente na adopção da medida de dispensa do serviço em relação aos militares da Guarda Nacional Republicana (à semelhança do que existe para os militares das Forças Armadas) e que, relativamente aos membros da Polícia de Segurança Pública, uma medida de idêntico jaez não tenha consagração.

Não se vislumbra, por isso, violação do princípio da igualdade.

5 - Refira-se, por último, que se não lobriga que a consagração legal da medida de dispensa de serviço se revele, em si, desproporcionada quando estejam em causa comportamentos que, objectivamente, são de considerar acentuadamente graves, como é o caso daquele que foi prosseguido pelo recorrente e que ditaram a aplicação da medida na vertente situação.

Efectivamente, como já se assinalou acima, muito embora essa medida acarrete uma cessação do efectivo desempenho de uma "relação laboral", não deixará de se reconhecer que os pressupostos de facto que legalmente são estipulados para que a mesma seja tomada são de tal monta que, para um corpo especial de tropas tal como a Guarda Nacional Republicana, com as características a que já se fez alusão, seria inexigível a manutenção ao serviço de militares que adoptaram comportamentos indiciadores de notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que têm de ser apanágio do respectivo desempenho de serviço, sob pena de não poderem ser prosseguidos os objectivos cometidos àquele corpo especial de tropas.

6 - Uma derradeira nota para assinalar que o que é referido pelo recorrente na "conclusão" 25.ª da sua alegação (e que retracta o que escreveu no último parágrafo do "teor" dessa alegação, imediatamente antes da formulação das "conclusões") não pode ser tomado em conta por este Tribunal, cujos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm por objecto normas jurídicas e não outros actos do poder público, tais como, verbi gratia, os actos administrativos (que não assumam a forma normativa) ou as decisões judiciais qua tale consideradas, sendo que no ordenamento jurídico português não existe uma forma similar ao "recurso de amparo" como aquela que se surpreende noutros países.

III - Em face do que se deixa dito, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o recorrente nas custas processuais, fixando em unidades de conta a taxa de justiça.

Lisboa, 28 de Novembro de 2000. - Bravo Serra - Guilherme da Fonseca - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Luís Nunes de Almeida.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1857386.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1977-04-09 - Decreto-Lei 142/77 - Conselho da Revolução

    Aprova o Regulamento de Disciplina Militar e publica-o em anexo.

  • Tem documento Em vigor 1978-07-24 - Decreto-Lei 203/78 - Conselho da Revolução

    Esclarece dúvidas suscitadas a propósito das atribuições conferidas pelo Regulamento de Disciplina Militar aos conselhos superiores de disciplina.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1982-12-11 - Lei 29/82 - Assembleia da República

    Aprova a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas.

  • Tem documento Em vigor 1983-07-14 - Decreto-Lei 333/83 - Ministério da Administração Interna

    Aprova a Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana.

  • Tem documento Em vigor 1983-12-31 - Decreto-Lei 465/83 - Ministério da Administração Interna

    Aprova o Estatuto do Militar da Guarda Nacional Republicana, bem assim como os Estatutos do Oficial, do Sargento e da Praça da mesma Guarda.

  • Tem documento Em vigor 1989-06-01 - Lei 11/89 - Assembleia da República

    Estabelece as bases gerais do estatuto da condição militar.

  • Tem documento Em vigor 1993-06-26 - Decreto-Lei 231/93 - Ministério da Administração Interna

    Aprova a lei orgânica da Guarda Nacional Republicana (GNR).

  • Tem documento Em vigor 1993-07-31 - Decreto-Lei 265/93 - Ministério da Administração Interna

    Aprova o estatuto dos militares da Guarda Nacional Republicana (GNR).

  • Tem documento Em vigor 1999-09-01 - Lei 145/99 - Assembleia da República

    Aprova o Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana.

Aviso

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