Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1 - Por Acórdão 2/2013, 1.ª S/SS, o Tribunal de Contas recusou o visto ao contrato para "Aquisição de Gasóleo a Granel para Abastecimento das Viaturas que Compõem a Frota dos Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de Coimbra" celebrado em 9 de outubro de 2012 entre o Município de Coimbra e a Petróleos de Portugal - Petrogal, S. A., com fundamento na ilegalidade da assunção do compromisso financeiro inerente ao referido contrato, por violação do disposto no artigo 5.º, n.º 1, da Lei 8/2012, de 21 de fevereiro (doravante "Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso" ou "LCPA"), e nos artigos 7.º, n.º 2, e 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, e, bem assim, nos n.os 2.3.4.2. a) e 2.6.1. do Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais.
Inconformado, o Município de Coimbra interpôs recurso para o plenário da 1.ª Secção daquele Tribunal, que, através do Acórdão 5/2013, negou provimento a tal impugnação, mantendo a recusa de visto ao contrato, embora restringindo o fundamento à violação do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, da LCPA e 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, em virtude de o compromisso assumido por tal contrato não se conter nos fundos disponíveis dos serviços municipalizados.
2 - Novamente inconformado, o Município de Coimbra recorreu para o Tribunal Constitucional, através de requerimento com o seguinte teor:
«MUNICÍPIO DE COIMBRA, Recorrente nos autos em epígrafe, tendo sido notificado do acórdão proferido pelo Plenário da 1.ª Secção desse Tribunal, e com o mesmo não se conformando, vem, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com efeito suspensivo, porquanto,
1 - Entende que os artigos 2.º da Lei 8/2012, de 21 de fevereiro e 2.º do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, são inconstitucionais, quando, como resulta do sobredito acórdão, são interpretados no sentido de abrangerem os serviços municipalizados de transportes urbanos de natureza mercantil, uma vez que tal interpretação importa injustificada restrição da autonomia económico-financeira e organizativa dos municípios, violando a garantia institucional da livre iniciativa económica municipal, consubstanciada nos artigos 80.º, alíneas b) e c), 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) nos artigos 235.º, 237.º e 238.º da Constituição da República Portuguesa;
2 - Suscitou essa mesma inconstitucionalidade em sede de recurso da decisão de recusa de visto proferida por esse Tribunal.»
3 - Admitido o recurso, o recorrente apresentou alegações neste Tribunal, com o seguinte remate conclusivo:
«I - A LCPA restringe, de forma considerável, a capacidade de decisão financeira pública, o mesmo é dizer, e no que aos municípios concerne, a respetiva autonomia financeira - fundamental vertente da autonomia local consagrada nos artigos 6.º, n.º 1 e 235.º e seguintes da Constituição;
II - A interpretação do Tribunal de Contas que motiva o presente recurso pune o Município de Coimbra por ter escolhido (ou mantido a escolha), de entre os dois formatos possíveis de que se pode revestir a respetiva atividade empresarial - o formato publicístico do Serviço Municipalizado e o privatístico da Empresa Local constituída ao abrigo da lei comercial e sujeita em primeira linha ao direito privado (cf. artigo 2.º da Lei 50/2012, de 31 de agosto - Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local) -, o formato do Serviço Municipalizado;
III - Por força de tal interpretação o formato Serviço Municipalizado está condenado para aquelas atividades empresariais que impliquem a cobrança aos utentes dos bens ou serviços prestados a preços economicamente significativos (como é o caso das tarifas praticadas pelos SMTUC, cujas receitas cobrem por isso mais de 50 % dos custos da empresa);
IV - Na verdade, deixando a empresa municipal com tal formato de poder beneficiar da margem mínima de manobra (em matéria de gestão de tesouraria) que a lei garante a esta categoria de entidades (ditas «sociedades mercantis») na gestão corrente da respetiva atividade, então outro remédio não restará aos municípios que não a adoção da forma societária e a sujeição ao direito privado, através do formato Empresa Local;
V - Todas as atividades desenvolvidas em setores básicos da economia reservados aos poderes públicos, ao abrigo do artigo 86.º, n.º 3 CRP - nomeadamente de produção e prestação de bens e serviços essenciais ou de interesse económico geral - estão reservadas ao poder local, designadamente aos municípios: são, a saber, os casos do abastecimento público de água, do saneamento de águas residuais, da recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos, da exploração dos transportes públicos regulares urbanos e locais de passageiros e da distribuição de energia em baixa tensão.
VI - Ora, a interpretação do Tribunal de Contas contende com a vertente da autonomia organizativa dos municípios objeto também da garantia constitucional, porquanto se não está excluída aos municípios a opção pelo formato societário e pela aplicação em primeira linha do direito privado no desenvolvimento destas específicas atividades económico-empresariais, o formato que mais se lhes ajusta é o do serviço municipalizado, desde logo pela titularidade dos poderes públicos municipais que neles (serviços municipalizados) se mantêm na íntegra, sem necessidade de qualquer expressa e especifica delegação de atribuições e competências;
VII - A interpretação feita pelo Tribunal de Contas, no sentido de abranger os SMTUC pela LCPA e pelo decreto-lei 127/2012, é inconstitucional, por constituir uma excessiva e a todos os títulos injustificada restrição da autonomia económico-financeira e organizativa dos municípios (de escolha do formato organizativo adequado à iniciativa económica municipal em causa), violando a garantia institucional da livre iniciativa económica municipal consubstanciada, nos artigos 80.º, alínea b) e c) e 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) artigos 235.º, 237.º e 238.º CRP.
Termos em que,
Deve ser considerado procedente o presente recurso, declarando-se, nessa medida, inconstitucional a interpretação que subjaz ao acórdão recorrido, por violação da garantia institucional da livre iniciativa económica municipal consubstanciada, nos artigos 80.º, alínea b) e c) e 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) artigos 235.º, 237.º e 238.º CRP.»
4 - O Ministério Público apresentou contra-alegações, que concluiu nestes termos:
«1.ª) A "interpretação normativa" recorrida não viola o princípio da "autonomia financeira" dos municípios, tal como decorre dos artigos 6.º, 237.º, n.º 1, e 238.º, n.os 1 e 2 da Constituição, na medida em que do conteúdo do mesmo, tal como conformado pela lei, não decorre o poder ou competência municipal para assumir um "compromisso" que "ultrapassa os fundos disponíveis", no sentido legal de "verbas existentes a muito curto prazo".
2.ª) A "interpretação normativa" recorrida não viola o princípio da "autonomia organizativa" dos municípios, consagrado no artigo 80.º, alínea c), da Constituição pois, por uma parte, a criação dos SMTUC é anterior ao momento em que a mesma foi ditada e, por outra parte, não impedirá, por si mesma e para o futuro, a alteração da forma empresarial inicialmente escolhida e as demais opções em aberto, de harmonia com um autónomo juízo municipal de preferência quanto à forma organizativa, e quadro jurídico que lhe está associado, em sede das escolhas consonantes com o princípio da legalidade.
3.ª) A "interpretação normativa" recorrida, que integrou os SMTUC no âmbito subjetivo da LCPA e que se tem como "adquirida", não viola a "garantia institucional da livre iniciativa económica municipal", consagrada no artigo 80.º, alínea f), da Constituição, na medida em que seja constitucionalmente conforme a regra de gestão, com critério de tesouraria, das entidades públicas ali consagrada, ou seja, de que as mesmas não podem assumir compromissos que excedam os "fundos disponíveis", no sentido legal de "verbas existentes a muito curto prazo".
Termos em que, por não ocorrer violação dos princípios da "autonomia financeira", da "autonomia organizativa e da "garantia institucional da livre iniciativa económica" dos municípios, deve ser negado provimento ao presente recursos, mantendo-se a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5 - A questão de inconstitucionalidade colocada pelo recorrente versa a dimensão normativa, extraída interpretativamente do preceitua-do nos artigos 2.º da LCPA e 2.º do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, segundo a qual a regulação contida nos referidos diplomas é aplicável aos serviços municipalizados de transportes urbanos de natureza mercantil.
Para o recorrente, a sujeição de tais entes públicos ao regime constante dos referidos diplomas importa "injustificada restrição da autonomia económico-financeira e organizativa dos municípios", na vertente de escolha do "formato organizativo adequado à iniciativa económica municipal em causa", o que considera infringir a garantia de livre iniciativa económica consubstanciada nos artigos 80.º, alínea b) e c), 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) 235.º, 237.º e 238.º, todos da Constituição. Estaria criada, de acordo com a explicitação constante das alegações, uma restrição à autonomia local, em virtude da colocação de obstáculo intransponível à escolha do formato organizativo serviço municipalizado.
Assim formulada, a questão normativa posta a controlo versa a conformidade constitucional do âmbito subjetivo conferido à disciplina da assunção de compromissos financeiros de entes públicos contida nos artigos 2.º da LCPA e do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, por forma a abranger os serviços municipalizados de transportes urbanos, como o de Coimbra. Não se coloca, porém, em crise a legitimidade de qualquer das normas contidas no âmbito material dos referidos diplomas, mormente no que respeita às concretas e específicas normas que regem sobre a assunção de obrigações de pagamento a terceiros em contrapartida do fornecimento de bens e serviços, como as decorrentes do contrato em questão nos presentes autos; designadamente, não é questionada a conformidade constitucional das normas alojadas nos artigos 5.º, n.º 1, da LCPA e 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, as quais constituíram efetivo fundamento jurídico da decisão de recusa de visto, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 44.º da LOPTC.
Na verdade, o recorrente não inscreve tais normas (ou outras que não se contenham na definição do âmbito de aplicação subjetiva) no enunciado da questão de inconstitucionalidade, pese embora em alegações impute à aplicação do regime um caráter de "punição" (cf. conclusão II) e de "condenação" (cf. conclusão III), qualificações essas dirigidas à opção pelo desenvolvimento de atividade mercantil de transportes urbanos pela via da municipalização, em virtude da impossibilidade de "poder beneficiar da margem mínima de manobra (em matéria de gestão de tesouraria) que a lei garante a [outra] categoria de entidades" (cf. conclusão IV). Estando o recurso para o Tribunal Constitucional sujeito ao princípio do pedido, a apreciação das normas contidas nos artigos 5.º, n.º 1, da LCPA e 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho não integra a questão de constitucionalidade posta a controlo.
Assim delimitado o objeto do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal, vejamos se da abrangência da LCPA, e do diploma que a desenvolve, aos serviços municipalizados de transportes urbanos de Coimbra, resulta restringida a autonomia económico-financeira e organizativa garantida pela Constituição ao recorrente, mormente na dimensão de escolha do formato organizativo por si reputado de mais adequado à iniciativa económica em causa (transportes urbanos mercantis).
6 - O artigo 2.º da LCPA, sob a epígrafe "âmbito", estipula:
«1 - A presente lei aplica-se a todas as entidades previstas no artigo 2.º da lei de enquadramento orçamental, aprovada pela Lei 91/2001, de 20 de agosto, alterada e republicada pela Lei 52/2011, de 13 de outubro, e a todas as entidades públicas do Serviço Nacional de Saúde, doravante designadas por «entidades», sem prejuízo das competências atribuídas pela Constituição e pela lei a órgãos de soberania de caráter eletivo.
2 - Sem prejuízo do princípio da independência orçamental, estabelecido no n.º 2 do artigo 5.º da lei de enquadramento orçamental, aprovada pela Lei 91/2001, de 20 de agosto, alterada e republicada pela Lei 52/2011, de 13 de outubro, os princípios contidos na presente lei são aplicáveis aos subsetores regional e local, incluindo as entidades públicas reclassificadas nestes subsetores.»
Por seu turno, a disposição para que se remete, constante do artigo 2.º da Lei de Enquadramento Orçamental, aprovada pela Lei 91/2001, de 20 de agosto, alterada e republicada pela Lei 52/2011, de 13 de outubro, estabelece que:
«Âmbito
1 - A presente lei aplica-se ao Orçamento do Estado, que abrange, dentro do setor público administrativo, os orçamentos do subsetor da administração central, incluindo os serviços e organismos que não dispõem de autonomia administrativa e financeira, os serviços e fundos autónomos e a segurança social, bem como às correspondentes contas.
2 - Os serviços do Estado que não disponham de autonomia administrativa e financeira são designados, para efeitos da presente lei, por serviços integrados.
3 - São serviços e fundos autónomos os que satisfaçam, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) Não tenham natureza e forma de empresa, fundação ou associação públicas, mesmo se submetidos ao regime de qualquer destas por outro diploma;
b) Tenham autonomia administrativa e financeira;
c) Disponham de receitas próprias para cobertura das suas despesas, nos termos da lei.
4 - Dentro do setor público administrativo, entende-se por «subsetor da segurança social» o sistema de solidariedade e segurança social, constituído pelo conjunto dos subsistemas definidos na respetiva lei de bases, as respetivas fontes de financiamento e os organismos responsáveis pela sua gestão.
5 - Para efeitos da presente lei, consideram -se integradas no setor público administrativo, como serviços e fundos autónomos, nos respetivos subsetores da administração central, regional e local e da segurança social, as entidades que, independentemente da sua natureza e forma, tenham sido incluídas em cada subsetor no âmbito do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais, nas últimas contas sectoriais publicadas pela autoridade estatística nacional, referentes ao ano anterior ao da apresentação do Orçamento.
6 - Sem prejuízo do princípio da independência orçamental estabelecido no n.º 2 do artigo 5.º, são aplicáveis aos orçamentos dos subsetores regional e local os princípios e as regras contidos no título II, bem como, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 17.º, devendo as respetivas leis de enquadramento conter as normas adequadas para o efeito.»
Por último, o Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, comporta âmbito subjetivo simétrico do da LCPA, em sintonia com a sua natureza de diploma de desenvolvimento, ao estabelecer no artigo 2.º que: "O presente diploma aplica-se às entidades referidas no artigo 2.º da LCPA."
7 - A LCPA veio estabelecer as regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso de um conjunto de entidades públicas (artigo 1.º), dando execução ao compromisso assumido no âmbito do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) de aprovar instrumentos de controlo da execução orçamental e, em particular, da despesa pública, em ordem a assegurar o cumprimento das metas orçamentais nele acordadas.
Diz-se na exposição de motivos da Proposta de Lei 40/XII, que deu origem à LCPA:
«O controlo da execução orçamental e, em particular, da despesa pública é um elemento crítico para garantir o cumprimento das metas orçamentais do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF). Neste âmbito, o controlo dos pagamentos em atraso («arrears») assume uma relevância particular, sendo a não acumulação de pagamentos em atraso um critério quantitativo permanente de avaliação do PAEF.
O Ministério das Finanças passou a compilar, desde meados de 2011, informação sobre os encargos assumidos e não pagos e sobre pagamentos em atraso de todas as entidades públicas, incluindo entidades não integradas no setor das Administrações Públicas numa ótica de contabilidade Nacional. Esta informação é divulgada mensalmente no Boletim Informativo da Direção-Geral do Orçamento (DGO).
Os pagamentos em atraso atingem montantes particularmente expressivos. Em termos muito genéricos, a origem deste fenómeno explica-se, nomeadamente, por uma deficiente aplicação dos procedimentos de registo e controlo de compromissos e pela sobrestimação recorrente das receitas orçamentadas, permitindo, no quadro dos procedimentos atuais, comprometer despesa durante a execução orçamental muito para além da efetiva capacidade de pagamento dessa despesa.
A interrupção de acumulação de dívidas implica a adoção de procedimentos mais estritos e de emergência visando o controlo dos compromissos assumidos pelas entidades públicas. Atualmente, o enfoque do controlo da despesa é colocado nos pagamentos. A eficácia do controlo obriga, no entanto, a que este seja antecipado para o momento da assunção do compromisso, momento a partir do qual a despesa é incorrida, não havendo alternativa que não seja o pagamento. A ausência de registo da fatura, ou equivalente, no sistema contabilístico ou, simplesmente, o não pagamento, apenas conduzem à acumulação de pagamentos em atraso.
Assim, torna-se necessário aprovar um novo modelo legislativo que permita inverter a tendência de acumulação de dívida. [...].»
E, mais à frente: "O princípio fundamental é o de que a execução orçamental não pode conduzir à acumulação de pagamentos em atraso."
Nas palavras de Joaquim Freitas Rocha, Noel Gomes e Hugo Flores da Silva, os objetivos ou finalidades da LPCA são, assim, claros: "por um lado, criar regras que impeçam o nascimento de novos pagamentos em atraso e, por outro, reduzir o volume presentemente existente e acumulado de pagamentos em atraso, tudo sem perder de vista a possibilidade de responsabilizar, nos termos legalmente prescritos, os atores e entidades pelos atos ilegais e financeiramente reprováveis respetivos" (Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, Coimbra Ed., 2012, pp. 34-35).
Temos, então, que a LCPA alterou o foco de controlo da despesa pública, deslocando-o do momento do pagamento para o momento da assunção do compromisso. Enquanto que anteriormente se privilegiava a fase de pagamento, em que não existia juridicamente outra opção que não fosse a sua efetivação, com a entrada em vigor da LCPA o principal enfoque do controlo passou a ser efetuado ao nível (e no momento) da assunção do compromisso, sem, contudo, descurar uma fiscalização posterior e a responsabilidade dos agentes públicos decisores.
Assim, e por forma a atingir esse desiderato, a LCPA impõe, no seu artigo 5.º, n.º 1, na redação conferida pela 112/97, de 16 de setembro e 8/2012, de 21 de fevereiro, a Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Leis 229/95, de 11 de setembro, 287/2003, de 12 de novembro, 32/2012, de 13 de fevereiro, 127/2012, de 21 de junho, 298/92, de 31 de dezembro e 164/99, de 13 de maio, de 9 de fevereir (...)">Lei 64/2012, de 20 de dezembro, que "os titulares de cargos políticos, dirigentes, gestores e responsáveis pela contabilidade não podem assumir compromissos que excedam os fundos disponíveis", enquanto o artigo 7.º, n.º 2 do Decreto-Lei 127/2012, acolhe a mesma obrigação, de acordo com a qual: "Os compromissos assumidos não podem ultrapassar os fundos disponíveis". Importa notar que o diploma concretiza o conceito de fundos disponíveis, enquanto limite quantitativo à assunção de obrigações de efetuar pagamento a terceiros em contrapartida do fornecimento de bens e serviços ou da satisfação de outras condições, de acordo com o disposto na alínea f), subalíneas i) a vii) do artigo 3.º da LCPA, e no artigo 5.º do Decreto-Lei 127/2012. Abrange, pois: i) A dotação corrigida líquida de cativos, relativa aos três meses seguintes; ii) As transferências ou subsídios com origem no Orçamento do Estado, relativos aos três meses seguintes; iii) A receita efetiva própria que tenha sido cobrada ou recebida como adiantamento; iv) A previsão da receita efetiva própria a cobrar nos três meses seguintes; v) O produto de empréstimos contraídos nos termos da lei; vi) As transferências ainda não efetuadas decorrentes de programas e projetos do Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN) cujas faturas se encontrem liquidadas, e devidamente certificadas ou validadas; vii) Os montante de aumento temporário dos fundos disponíveis autorizados nos termos do artigo 4.º da LCPA. Comporta ainda, nos termos n.º 3 do artigo 3.º da LCPA, os saldos transitados do ano anterior e recebimentos em atraso.
8 - Para melhor compreensão da questão de constitucionalidade em apreço é necessário referir os termos da discussão que conduziu à aplicação na decisão recorrida da dimensão normativa impugnada e, nesse pressuposto, do disposto nos artigos 5.º, n.º 1, da LCPA e 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho.
Confrontado com a recusa de visto decidida pelo Acórdão 2/2013, 1.ª S/SS, o recorrente interpôs recurso perante o plenário da 1.ª secção, sustentando que o âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do Decreto-Lei 127/2012 era definido por referência tão só às entidades (classificadas e reclassificadas) que façam parte do setor público administrativo e de acordo com os critérios estabelecidos no Sistema Europeu de Contas (SEC 95). E, assim sendo, por aplicação de tais critérios, aos serviços municipalizados de transportes urbanos de Coimbra não seria aplicável o regime estatuído naqueles diplomas. E, nessa sede, suscitou a inconstitucionalidade da aplicabilidade da LCPA e do Decreto-Lei 127/2012 aos serviços municipalizados de transportes urbanos.
Diferentemente, o Tribunal a quo entendeu que o artigo 2.º, n.º 1 da LCPA remete para o artigo 2.º da Lei de Enquadramento Orçamental e que, regulando esse preceito também o subsetor local do setor público administrativo, as entidades nele integradas, como entendeu ser o caso dos serviços municipalizados, encontram-se naturalmente abrangidas pelo referido reenvio normativo, ficando consequentemente sujeitas a uma aplicação integral - i.e. tanto dos princípios como das regras - da LCPA e do Decreto-Lei 127/2012. E, por considerar infringida a exigência constante do artigo 5.º, n.º 1, da LCPA, e do artigo 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei 127/2012 - à qual atribuiu a natureza de princípio essencial, aplicando-se então tanto às entidades abrangidas no n.º 1 do artigo 2.º, como àquelas previstas no n.º 2 do preceito -, confirmou a decisão de recusa do visto.
Quanto à questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente, entendeu o Tribunal de Contas o seguinte:
«A recorrente invoca ainda que a interpretação do acórdão recorrido, segundo a qual a LCPA e o Decreto-Lei 127/2012 são aplicáveis aos serviços municipalizados de transportes urbanos de Coimbra, é inconstitucional por constituir uma excessiva e injustificada "restrição da autonomia económico-financeira e organizativa dos municípios (de escolha do formato organizativo adequado à iniciativa económica municipal em causa), violando a garantia institucional da livre iniciativa económica municipal consubstanciada nos artigos 80.º, alínea b) e c) e 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) artigos 235.º, 237.º e 238.º CRP".
No parecer junto ao recurso diz-se a este respeito:
"[...] A interpretação do Tribunal de Contas mais não vem fazer do que, por assim dizer, «castigar» o Município de Coimbra por ter escolhido (ou mantido a escolha) do formato Serviço Municipalizado, de entre os dois formatos possíveis de que se pode revestir a respetiva atividade empresarial (o formato publicístico do Serviço Municipalizado e o privatístico da Empresa Local constituída ao abrigo da lei comercial e sujeita em primeira linha ao direito privado - cf. artigo 2.º da Lei 50/2012, de 31 de agosto, Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local).
Com efeito, a vingar este entendimento [...], o formato serviço municipalizado estará pura e simplesmente condenado para aquelas atividades empresariais que impliquem a cobrança aos utentes dos bens ou serviços prestados a preços economicamente significativos [...]. É que deixando a empresa municipal com tal formato de poder beneficiar de margem mínima de manobra (em matéria de gestão de tesouraria) que a lei garante a esta categoria de entidades (ditas «sociedades mercantis») na gestão corrente da respetiva atividade, então outro remédio não restará aos municípios que não a adoção da forma societária e a sujeição em primeira linha ao direito privado, através do formato «Empresa Local»
Mas este resultado da interpretação do Tribunal de Contas não é, alem do mais, constitucionalmente admissível, por contender com a vertente da autonomia organizativa dos municípios objeto também da garantia constitucional (institucional).
Na verdade, quase todas as atividades desenvolvidas em setores básicos da economia reservados aos poderes públicos, ao abrigo do artigo 86.º, n.º 3, CRP - nomeadamente de produção e prestação de bens e serviços essenciais ou de interesse económico geral - estão reservados ao poder local, designadamente aos municípios: são, a saber, os casos do abastecimento público de água, do saneamento de águas residuais, da recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos, da exploração dos transportes públicos regulares urbanos e locais de passageiros e da distribuição de energia em baixa tensão.
Ora, como é bom de ver, se não está excluída aos municípios a opção pelo formato societário e pela aplicação em primeira linha do direito privado no desenvolvimento destas específicas atividades económico-empresariais, o formato que mais se lhes ajusta é o do serviço municipais que neles (serviços municipalizados) se mantêm na íntegra, sem necessidade de qualquer expressa e específica delegação de atribuições e competências. Não por acaso, note-se, são precisamente essas as atividades que constituem o objeto normal e típico dos serviços municipalizados, nos termos do artigo 10.º da Lei 50/2012.
Mas se assim é, como é que se pode configurar constitucionalmente legítima - e sobretudo em sede de serviços públicos locais essenciais - uma tal constrição, sem paralelo ao nível do Estado e das Regiões Autónomas, à «fuga para o direito privado»?
Assim, além de infundada, a interpretação seguida pelo Tribunal de Constas acaba por contender com o núcleo duro da autonomia local, objeto de garantia institucional, nas dimensões de auto-organização e de autonomia financeira, constituindo uma restrição injustificada da autonomia económico-financeira e organizativa dos municípios (de escolha do formato organizativo publicístico adequado à iniciativa económica municipal em causa) que viola a garantia institucional da livre iniciativa económica municipal consubstanciada nos artigos 80.º, alínea b) e c) e 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) nos artigos 235.º, 237.º e 238.º da CRP".
Nesta matéria deve começar por relembrar-se que a atividade das autarquias locais é uma atividade subordinada à lei. Nos termos dos artigos 237.º, 238.º, 241.º, 242.º e 254.º da Constituição, as autarquias locais exercem os poderes que a lei lhes confere e exercem-nos nos limites da Constituição e da lei. A elas se aplica ainda o disposto no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição. E, em especial, a autonomia financeira que lhes está atribuída é, de acordo com o disposto no artigo 238.º da Constituição e nos artigos 2.º, 3.º e 4.º, entre outros, da Lei das Finanças Locais, enquadrada e limitada pela lei.
Ora, se a lei aprovada pela Assembleia da República entendeu que as entidades integradas nos setor público administrativo, incluindo no seu subsetor local, por imperativos de controlo e restrição financeira num período de crise, deveriam limitar a assunção dos seus compromissos às suas disponibilidades e receitas efetivas, não se vislumbra como é que a interpretação para que a lei seja efetivamente aplicada pode estar afetada de inconstitucionalidade.
Refere-se que a aplicação da LCPA afeta a autonomia financeira local porque reduz a margem de manobra em matéria de gestão de tesouraria dos serviços municipalizados.
Não há dúvida de que a autonomia de gestão dos serviços públicos é constrangida pelo controlo acrescido introduzido pela LCPA.
O que ela faz é introduzir instrumentos de controlo, que até são, em primeira linha, de autocontrolo, para garantir que não são assumidos compromissos para além das efetivas disponibilidades de receita e que não são acumuladas dívidas e pagamentos devidos a terceiros que não possam ser pagos pelas receitas efetivamente [...] percebidas.
Ora, o princípio do equilíbrio orçamental anual entre receitas e despesas e as preocupações com a sustentabilidade do endividamento e a equidade intergeracional constam já das leis aplicáveis como limites à autonomia financeira local. Estão contidos, designadamente, na lei das finanças locais, na lei de enquadramento orçamental e na própria constituição.
Nessa perspetiva, a LCPA não está a instituir qualquer nova restrição à autonomia financeira local mas apenas a introduzir instrumentos de garantia de que as condições legais e constitucionais em que essa autonomia financeira existe são respeitadas.
De resto, a LCPA contém instrumentos para que a gestão de tesouraria se possa fazer, quer em função das receitas esperadas quer em função do tipo de compromissos e despesas em causa, como sejam o aumento temporário de fundos disponíveis e a autorização de encargos plurianuais. Para se afirmar que a gestão não é possível neste ambiente teria de se demonstrar que esses instrumentos não permitem resolver as situações de gestão necessárias à realização da missão pública. O que não foi feito.
Invoca-se, ainda, a restrição injustificada da autonomia organizativa local, por se empurrar os municípios a adotarem o formato da empresa local para a prestação dos serviços suscetíveis de serem prestados por serviços municipalizados.
Desde há muito que os municípios têm à sua disposição vários formatos organizativos para a prestação desses serviços, entre eles, a prestação direta, a municipalização, a empresarialização, a externalização, a concessão ou a parceria.
Desde há muito que sabem também que a cada formato organizativo corresponde um regime e um conjunto determinado de regras e que a sua escolha se faz ponderando as vantagens e desvantagens de cada modelo face aos contornos que em cada momento ele assume.
Desde há muito que o regime correspondente aos serviços municipalizados é balizado pelas regras administrativas e de contabilidade pública.
Não se pode concluir que a evolução dessas regras reduza a autonomia de escolha relativamente aos formatos a adotar, já que ela tão só coloca em cima da mesa novos elementos a considerar.
Termos em que se conclui não existir a inconstitucionalidade invocada.»
9 - Nessa sequência, o recorrente suscita perante este Tribunal a inconstitucionalidade da submissão às limitações e controlo decorrente da LCPA, e do diploma que a desenvolve, os serviços municipalizados, mormente àqueles cujo objeto verse a exploração mercantil dos transportes urbanos de passageiros, como é o caso dos serviços municipalizados de transporte urbano de Coimbra.
Na sua ótica, tal abrangência infringe o princípio da autonomia das autarquias locais, numa dimensão de garantia institucional de livre iniciativa económica municipal. E, para consubstanciar tal garantia, o recorrente invoca os princípios fundamentais de organização económica enunciados nas alíneas b) - princípio da coexistência ou compatibilidade entre setores, assegurando a possibilidade de opção entre a iniciativa económica pública e privada - e c) - princípio de liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista - do artigo 80.º, a que associa uma reserva aos poderes públicos de setores básicos da economia, ao abrigo do artigo 86.º, n.º 3, normas que, por sua vez, conjuga com os princípios gerais do poder local contidos nos artigos 235.º (âmbito da garantia institucional da autonomia local), 237.º (atribuições e organização das autarquias locais) e 238.º (autonomia financeira das autarquias locais), todos da Lei Fundamental.
10 - O Tribunal Constitucional pronunciou-se por diversas vezes sobre a garantia constitucional da autonomia local, em particular, da autonomia financeira e patrimonial das autarquias locais (cf. Artur Maurício, "A garantia constitucional da autonomia local à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional", relatório apresentado em novembro de 2002, acessível em www.tribunalconstitucional.pt; também inEstudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 625-657). Fê-lo, designadamente, no Acórdão 432/93, em que disse:
«1.2 - As autarquias locais concorrem, pela própria existência, para a organização democrática do Estado. Justificadas que são pelos valores da liberdade e da participação, as autarquias conformam um "âmbito de democracia" (Ruiz Miguel), num sistema que conta precisamente com o princípio básico de que toda a pessoa tem direito de participar na adoção das decisões coletivas que a afetam.
A Constituição define-as como "pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas" (cf. C.R.P., artigo 237.º). Não lhes traça um figurino de mera administração autónoma do Estado. Deixa claro o "sentido político que adquire o exercício das suas funções" (Jorge Miranda), que as autarquias "constituem também uma estrutura do poder político" (Gomes Canotilho e Vital Moreira). No programa constitucional (cf. C.R.P., Princípios Fundamentais, artigo 6.º, e Título VII, Poder Local), as normas que organizam o poder autárquico assumem uma justificação eminentemente democrática.
O poder autárquico funda-se numa ideia de consideração e representação aproximada de interesses. Como explica Ruiz Miguel, na justificação democrática da autonomia não é só o fator geográfico que está em causa. Trata-se também da razão política de fomentar as decisões suscetíveis de maior preferência e de maior controlabilidade pelos interessados.
Neste "espaço de participação" (Batista Machado), o elemento ordenador é o conjunto dos interesses específicos das comunidades locais. Esses interesses justificam a autonomia e porque a justificam delimitam-lhe o conteúdo essencial. Eles entranham as razões de proximidade, responsabilidade e controlabilidade que proporcionam a auto-organização.
O espaço incomprimível da autonomia é, pois, o dos assuntos próprios do círculo local, e "assuntos próprios do círculo local são apenas aquelas tarefas que têm a sua raiz na comunidade local ou que têm uma relação específica com a comunidade local e que por esta comunidade podem ser tratados de modo autónomo e com responsabilidade própria (...und von dieser örtlichen Gemeinschaft eigenverantwortlich und selbständig bewältigt werden können)" (Sentença do Tribunal Constitucional alemão n.º 15, de 30 de julho de 1958, in Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, 8.º volume, pág. 134; cf., no mesmo sentido, Parecer 3/82 da Comissão Constitucional in Pareceres da Comissão Constitucional, 18.º volume, pág. 151).»
Sendo esse o núcleo da garantia constitucional da autonomia local, o Tribunal também tomou já posição sobre o seu grau de resistência à prossecução de outros interesses públicos, que transcendam os específicos interesses comunitários locais, que a possam limitar ou condicionar.
Assim, no Acórdão 288/2004, o Tribunal não julgou inconstitucional a norma que atribuía a concessionária de serviço público de telecomunicações o direito de ocupação e utilização de vias de comunicação do domínio público, com isenção total de taxas e quaisquer outros encargos, sempre que tal se mostre necessário à implantação das infraestruturas de telecomunicações ou para a passagem de diferentes partes da instalação ou de equipamentos necessários à exploração do objeto da concessão, dizendo o seguinte:
«Importa começar por notar que está em causa a prossecução de uma indiscutível finalidade pública - assegurar a existência de um serviço público de telecomunicações (cf. o artigo 8.º, n.º 1, da citada Lei 91/97, segundo o qual ao Estado incumbe assegurar a existência e disponibilidade de um serviço universal de telecomunicações) - com clara relevância constitucional, e que tem de ser prosseguida a nível nacional.
Ainda que não expressamente autonomizada como incumbência do Estado - ao contrário do que acontece noutras Constituições (assim, na Lei Fundamental alemã, onde a própria estrutura federal do Estado torna necessária uma norma como o artigo 73.º, n.º 7, que atribui à Federação competência exclusiva em matéria de telecomunicações) - a manutenção, ou a criação de condições para a existência, de um serviço público de telecomunicações constitui uma forma de prossecução de objetivos com relevância constitucional [...].
A existência e a disponibilidade de um serviço público de telecomunicações de âmbito nacional corresponde, pois, a um interesse público que transcende o âmbito das autarquias locais. Trata-se, também aqui, de uma matéria que respeita ao "interesse geral da comunidade constituída em Estado", e que ultrapassa o "universo dos interesses específicos das comunidades locais, aquele mesmo que se desenvolve num horizonte de proximidade, participação, controlabilidade e autorresponsabilidade e que funda a legitimação democrática do poder local"».
11 - No caso em apreço, não se encontra em discussãoa possibilidade da recorrente prosseguir autonomamente e sob forma empresarial a atividade económica de transportes urbanos de passageiros, inequivocamente de interesse para a comunidade local e como tal considerado por lei (cf. artigos 10.º, n.º 1, alínea d) e 45.º, al. g), da Lei 50/2012, de 31 de agosto), mas sim a eleição do formato organizativo empresarial para o seu desenvolvimento, designadamente o formato de Serviço Municipalizado. Em rigor, não se encontra em discussão uma escolha originária, pois os serviços municipalizados existiam já no momento da prolação da decisão recorrida, mas a continuidade ou manutenção da exploração económica segundo esse modelo organizativo.
Seguramente, a garantia institucional da autonomia local, em termos positivos, comporta uma margem de liberdade de iniciativa económica e de autodeterminação organizativa na prossecução do interesse público local. A Carta Europeia da Autonomia Local, no seu artigo 6.º, n.º 1, dá expressão a essa dimensão: "Sem prejuízo de disposições gerais estabelecidas por lei, as autarquias locais devem poder definir as estruturas administrativas internas de que entendam dotar-se, tendo em vista adaptá-las às suas necessidades específicas, afim de permitir uma gestão eficaz" (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 28/90 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 58/90, de 23 de outubro).
Porém, daí não decorre a imunidade dos entes locais a limitações e constrangimentos de índole financeira, nos termos da lei. Como sublinham Guilherme Waldemar d'Oliveira Martins e Ana Rita Chacim, em reflexão sobre o impacto da LCPA na gestão financeira e orçamental local, "a autonomia financeira local convive desde há muito com os condicionalismos subjacentes ao controlo financeiro decorrente da Lei das Finanças Locais, em nome da estabilidade financeira nacional, e bem assim, do levado a cabo pelos competentes órgãos administrativos, como seja a Inspeção-Geral de Finanças, ou por órgãos jurisdicionais, como seja o Tribunal de Contas" (in "A 'Lei dos Compromissos' no âmbito da boa gestão financeira e orçamental: o caso especial da autonomia financeira local", Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano V, Mar/2012, pp 22-39; p. 38). Ponto é que tais imposições não anulem ou restrinjam arbitrariamente o núcleo essencial da autodeterminação organizativa decorrente do princípio autonómico, consagrado no artigo 6.º, n.º 1, e da garantia institucional constante do artigo 235.º, ambos da Constituição, pondo em causa a prossecução do interesse público nos termos constitucional e legalmente previstos (artigo 266.º da Constituição).
12 - Para o recorrente, a LCPA - toda ela - restringe "de forma considerável" a capacidade de decisão financeira pública, determinando, como único "remédio", a adoção da forma societária e a sujeição ao direito privado, através do formato Empresa Local, que considera não ser o mais adequado à atividade económica em causa. Ora, é desse impacto ablativo na esfera de autodeterminação do recorrente e da ocorrência de relação causal com a dimensão normativa questionada que cabe duvidar.
Com efeito, não se vê em que medida a mera inclusão do serviço municipalizado de transportes urbanos de Coimbra no perímetro subjetivo de controlo da despesa pública, mormente da assunção de compromissos financeiros - esse é o alcance da normação cuja conformidade constitucional vem impugnada - comporte, em si mesma, a inviabilidade económico-financeira de prossecução da referida atividade económica por essa forma.
Na verdade, a "condenação" a que o recorrente alude na motivação, ou a "constrição" invocada perante o Tribunal a quo, remete para os limites ou proibições a que a LCPA sujeita "aquelas atividades empresariais que impliquem a cobrança aos utentes dos bens ou serviços prestados a preços economicamente significativo", o que, refere, "é o caso das tarifas praticadas pelos SMTUC". Por ser assim, conclui mais adiante que "tal formato" deixou de "poder beneficiar da margem mínima de manobra" no que respeita à "gestão de tesouraria".
Todavia, o recorrente abstém-se de enunciar, como lhe cabia, as normas que suportam tal conclusão, ou seja, quais as concretas regras e princípios que, por conterem imposições excessivas e injustificadas, reduzem a margem injustificadamente a "gestão de tesouraria", e bem assim por que razão a sujeição uma disciplina votada a controlar a assunção de compromissos e a impedir, ou pelo menos reduzir, a geração de pagamentos em atraso, põe inexoravelmente em causa a manutenção do modelo de exploração dos serviços municipalizados de transportes urbanos, como os de Coimbra.
Aliás, como bem refere o Tribunal a quo, não basta invocar genericamente os limites e obrigações trazidas pela intervenção legislativa operada pela Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso: para se afirmar sustentadamente que o formato Serviço Municipalizado não é possível no domínio da LCPA, teria de se demonstrar que os vários instrumentos de gestão de tesouraria que o regime também contém, como sejam o aumento temporário de fundos disponíveis e a autorização de encargos plurianuais, não permitem resolver os problemas de gestão necessários à realização da missão pública. Tarefa que o recorrente nem mesmo ensaiou.
Recorde-se que o recorrente não inclui no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, as normas alojadas nos artigos 5.º, n.º 1, da LCPA e 7.º, n.º 2, do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, nem lhes dirige qualquer critica de desconformidade constitucional, mormente face às exigências do princípio da proporcionalidade em sentido estrito. Aliás, também na suscitação da questão de constitucionalidade perante o Tribunal a quo, ou nas alegações produzidas neste Tribunal, não lhes faz menção especificada.
13 - De todo o modo, sempre estaremos perante constrangimento financeiro, incidente unicamente sobre a assunção de compromissos que excedam os fundos disponíveis, e não face a restrição ao exercício da autonomia local no domínio da prossecução da atividade económica de transporte urbano mercantil. A aplicação do sentido normativo cuja constitucionalidade é impugnada deixa intocado o direito e a capacidade efetiva do recorrente prosseguir livremente a realização das suas atribuições, sob a sua responsabilidade e no interesse da população respetiva, optando, em matéria de gestão financeira e administrativa e dentro das soluções legais disponíveis a cada momento, pela estrutura organizativa mais adequada e conveniente à prossecução das tarefas públicas locais.
Com efeito, no processo de escolha do modelo organizativo empresarialmente mais adequado encontra-se necessariamente implicada uma valoração comparativa dos respetivos regimes legais, feita globalmente e não a partir de um único aspeto, como seja a maior ou menor flexibilidade de gestão de tesouraria. Como se diz na decisão recorrida, a cada formato organizativo de prestação de serviços ao dispor das autarquias locais, como sejam a prestação direta, a municipalização, a empresarialização, a externalização, a concessão ou a parceria, corresponde um regime e um conjunto determinado de regras, fazendo-se a escolha sobre aquele mais adequado de acordo com a ponderação das vantagens e desvantagens de cada modelo no momento histórico em que ocorre. Se assim é quando está em causa uma opção constitutiva, o mesmo acontece quando, como aqui ocorre, se trata da continuação da prestação de serviços mercantis através do formato serviço municipalizado de transportes urbanos, de acordo com as regras dos artigos 8.º a 16.º da Lei 50/2012, de 31 de agosto, os quais, geridos sob forma empresarial, têm naturalmente pressuposto um juízo positivo de viabilidade económico-financeira e de sustentabilidade do endividamento gerado.
Cabe, ainda, observar que o modelo privatístico da Empresa Local, relativamente ao qual o recorrente sustenta não incidirem obrigações constringentes do mesmo tipo, obedece igualmente a princípios de gestão e a critérios exigentes de viabilidade económico-financeira e de racionalidade económica, com equilíbrio entre receitas e despesas e controlo financeiro externo, de acordo com o disposto nos artigos 31.º, 32.º, 39.º e 40.º da Lei 50/2012, de 31 de agosto.
14 - Por outro lado, a regulação contida na LCPA e no Decreto-Lei 127/2012, de 21 de julho, aplicada na decisão recorrida, reveste indiscutível interesse público de índole nacional, como é o caso do controlo das contas públicas e a estabilidade financeira do Estado. Enquanto instrumento de controlo da despesa pública, a justificação do seu âmbito subjetivo - apenas dele aqui cuidamos - encontra, pois, suporte na salvaguarda de interesses constitucionalmente credenciados. Mostra-se igualmente congruente com os princípios orientadores da atividade financeira das autarquias locais, designadamente com os princípios da estabilidade orçamental e da coordenação das finanças locais com as finanças do Estado (cf. artigos 4.º e 5.º da Lei 2/2007, de 15 de janeiro, e, atualmente, 5.º e 11.º da Lei 73/2013, de 3 de setembro). Note-se que, por força do n.º 3 do artigo 16.º da Lei 50/2012, de 31 de agosto, o resultado líquido dos serviços municipalizados reflete-se no resultado líquido dos municípios e releva integralmente para o respetivo endividamento.
15 - Nenhum entorse se encontra, então, na norma questionada, à possibilidade de opção autárquica local entre o modelo publicista ou privatístico, ou à liberdade de iniciativa e de organização empresarial de uma economia mista, ou ainda à reserva aos poderes públicos de setores básicos da economia, nos termos estabelecidos nos artigos 80.º, alíneas b) e c) e 86.º, n.º 2, da Constituição. Como não se mostra infringida a garantia institucional da autonomia local, ou a autonomia organizativa e financeira das autarquias locais, consagradas nos artigos 235.º, 237.º e 238.º da Constituição.
Face ao exposto, conclui-se, que a norma constante dos artigos 2.º da Lei 8/2012, de 21 de fevereiro, e 2.º do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, quando interpretada no sentido de incluir no respetivo âmbito subjetivo de aplicação os serviços municipalizados de transportes urbanos de natureza mercantil, não ofende os parâmetros constitucionais invocados pelo recorrente, nem quaisquer outros.
III. Decisão
16 - Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 2.º da Lei 8/2012, de 21 de fevereiro, e 2.º do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, quando interpretada no sentido de abranger os serviços municipalizados de transportes urbanos de natureza mercantil;
b) Julgar improcedente o recurso;
c) Condenar o recorrente nas custas, que se fixam, atendendo à dimensão do impulso exercido e à graduação seguida por este Tribunal, em 25 (vinte e cinco) Ucs.
Notifique.
Lisboa, 11 de fevereiro de 2015. - Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.
208766431