Acórdão 288/98
Processo 340/98
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I
1 - O Presidente da República, nos termos do n.º 8 do artigo 115.º da Constituição da República Portuguesa, requereu ao Tribunal Constitucional, em 2 de Abril de 1998, a fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade, incluindo a apreciação dos requisitos relativos ao respectivo universo eleitoral, da proposta de referendo aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 16/98 (publicada no Diário da República, 1.ª série-A, de 31 de Março de 1998).
A resolução em causa é do seguinte teor:
«A Assembleia da República resolve, nos termos e para os efeitos dos artigos 115.º e 161.º, alínea j), da Constituição, apresentar a S. Ex.ª o Presidente da República a proposta de realização de um referendo em que os cidadãos eleitores recenseados no território nacional sejam chamados a pronunciar-se sobre a pergunta seguinte:
'Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?'»
Tendo em vista «a conveniência da eventual realização do referendo antes do tradicional período de férias de muitos portugueses», fixou o Presidente da República em apenas 15 dias o prazo para este Tribunal se pronunciar, fazendo uso da faculdade de encurtamento do prazo normal de 25 dias, nos termos do disposto no artigo 18.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo em vigor à data do requerimento (Lei 45/91, de 31 de Agosto).
2 - Admitido o pedido, foram solicitadas, por ofício, ao Presidente da Assembleia da República diligências instrutórias referentes à iniciativa e ao debate parlamentar relativos à resolução em causa e, bem assim, aos projectos de lei n.os 417/VII (PCP), 451/VII (PS) e 453/VII (PS), todos atinentes a matéria de despenalização da interrupção voluntária da gravidez.
Distribuídos os autos, foi imediatamente recebida toda a documentação solicitada.
3 - Na origem da referida Resolução da Assembleia da República n.º 16/98 esteve o projecto de resolução 75/VII (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 23, de 15 de Janeiro de 1998), apresentado por vários deputados do Grupo Parlamentar do PSD, que rezava assim:
«A Assembleia da República apresenta a S. Ex.ª o Presidente da República a proposta de realização de um referendo, prévio à votação final de qualquer iniciativa legislativa que vise a liberalização, ainda que limitada temporalmente, da interrupção voluntária da gravidez, em que os cidadãos eleitores sejam chamados a pronunciar-se, directamente, a título vinculativo, sobre a seguinte questão:
'Não existindo razões médicas, o aborto deve ser livre durante as primeiras 10 semanas?'»
Apontaram os subscritores do projecto os seguintes fundamentos para o mesmo:
«Trata-se [...] de matéria extremamente delicada e sensível, que se inscreve na reserva mais íntima da consciência moral de cada cidadão, atravessando, de forma indiscriminada, os vários partidos e os respectivos eleitorados.
De facto, a posição a adoptar sobre a liberalização da interrupção voluntária da gravidez, não se podendo catalogar na esfera das normais opções ideológicas ou político-partidárias, é essencialmente do foro individual de cada um, encontrando resposta nas convicções e no posicionamento que cada qual assume perante valores e direitos fundamentais.
[...]
Numa palavra, a posição do PSD é muito clara:
A decisão sobre uma alteração substancial e de filosofia da legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez deve ser tomada pelos Portugueses por via de referendo, antes de qualquer decisão parlamentar. Foi o que sempre defendemos, designadamente no debate travado na última sessão legislativa, e que posteriormente reiterámos e agora voltamos a reafirmar.
Se, porém, a maioria parlamentar assim o não entender e voltar a sustentar que deve ser o Parlamento a decidir na generalidade sobre a matéria, então, como segunda hipótese - para a eventualidade de existir uma aprovação na generalidade das iniciativas legislativas anunciadas -, deve desencadear-se o referendo imediatamente a seguir, ficando o processo legislativo na especialidade suspenso e a aguardar a decisão soberana dos Portugueses.»
Já na sessão legislativa anterior, o PSD havia apresentado o projecto de resolução 38/VII (publicado no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 12, de 9 de Janeiro de 1997), na sequência da apresentação dos projectos de lei n.os 177/VII (PCP), 235/VII e 236/VII (ambos do PS), que visavam alterar a legislação em vigor sobre a interrupção voluntária da gravidez. Nesse projecto de resolução também se propunha a realização de um referendo em que os cidadãos eleitores fossem chamados a pronunciar-se directamente e a título vinculativo sobre a sua concordância com a despenalização da prática do aborto durante as primeiras 12 semanas de gravidez. Contudo, o projecto em causa viria a ser retirado, antes da sua discussão e votação, no dia 4 de Fevereiro de 1998.
4 - Admitido, sem reservas, pelo Presidente da Assembleia da República, o projecto de resolução 75/VII foi discutido em plenário, tendo baixado posteriormente à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, para discussão, e elaboração de parecer (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 42, de 20 de Fevereiro de 1998).
Após parecer favorável daquela Comissão e da Comissão para a Paridade, Igualdade de Oportunidades e Família (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 33, de 21 de Fevereiro de 1998), o projecto foi remetido a plenário, para votação.
Foram então apresentadas propostas de substituição relativas a esse projecto de resolução. Assim, pelos Grupos Parlamentares do PSD e do CDS-PP foi apresentada uma proposta de substituição da pergunta dele constante, passando a figurar duas perguntas, do seguinte teor:
«1 - Concorda que o aborto seja livre nas primeiras 10 semanas de gravidez?
2 - Concorda que razões de natureza económica ou social possam justificar o aborto por constituírem perigo grave para a saúde da mulher?»
Por sua vez, o PS apresentou uma proposta de substituição da pergunta, nos termos seguintes:
«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, nas 10 primeiras semanas?»
O mesmo grupo parlamentar apresentou ainda uma proposta de substituição da fórmula inicial e do proémio, do seguinte teor:
«Nos termos e para os efeitos dos artigos 115.º e 161.º, alínea j), da Constituição da República, a Assembleia da República apresenta a S. Ex.ª o Presidente da República a proposta de realização de um referendo em que os cidadãos eleitores recenseados no território nacional sejam chamados a pronunciar-se sobre a pergunta seguinte:»
Por fim, o Grupo Parlamentar do PS apresentou outra proposta de substituição da pergunta, que correspondia a uma versão corrigida da anterior proposta de substituição, nos seguintes termos:
«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»
Submetidas à votação, a proposta subscrita pelo PSD e pelo CDS-PP foi rejeitada, com votos contra do PS, do PCP e de Os Verdes e votos a favor do PSD, do CDS-PP e de dois deputados do PS; a proposta contendo a versão corrigida da pergunta, apresentada pelo PS, foi aprovada, com votos a favor do PS, votos contra do PCP, de Os Verdes e de dois deputados do PS e abstenções do PSD, do CDS-PP e de 12 deputados do PS; votada seguidamente a proposta de substituição, apresentada pelo PS, da fórmula inicial e do proémio do projecto da resolução, a mesma foi aprovada, com votos a favor do PS e do PSD, votos contra do PCP, de Os Verdes e de dois deputados do PS e a abstenção do CDS-PP (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 51, de 20 de Março de 1998).
O texto final, assim aprovado, resultou na resolução agora em análise.
5 - A consagração do referendo nacional só veio a ocorrer, entre nós, com a 2.ª revisão constitucional (Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho), não existindo uma tradição referendária anterior - salvo a referente à aprovação da Constituição de 1933, em que as abstenções foram contabilizadas como votos a favor -, o que justifica a ausência de quaisquer mecanismos desse tipo na versão originária da Constituição de 1976.
Passou, então, em 1989, a constar do artigo 118.º (hoje artigo 115.º) a possibilidade de os cidadãos eleitores poderem vir a ser chamados «a pronunciar-se, directamente, a título vinculativo, através de referendo, por decisão do Presidente da República mediante proposta da Assembleia da República ou do Governo, nos casos e nos termos previstos na Constituição e na lei».
Como se refere no já mencionado relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, indicando, exemplificativamente, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra), a doutrina portuguesa entendia de forma pacífica que o referendo consagrado entre nós - no âmbito do então artigo 118.º da Constituição - se regia, basicamente, por três princípios:
«a) O referendo nunca é obrigatório, mas sempre facultativo, ou seja, o recurso ao referendo implica sempre uma decisão livre dos órgãos de soberania competentes. Quer a proposta, quer a decisão são sempre actos discricionários, pelo que não existe nenhuma decisão cuja legitimidade careça de submissão a decisão, referendária;
b) O direito de participação no referendo é limitado aos cidadãos eleitores recenseados no território nacional;
c) O resultado do referendo é vinculativo no sentido de os órgãos do Estado se deverem conformar com o seu resultado, decidindo em conformidade com ele, podendo o sentido ser negativo (impedindo a aprovação de leis ou de convenções internacionais cujo conteúdo tenha sido rejeitado por referendo), positivo (obrigando a Assembleia ou o Governo a aprovar, dentro de prazo razoável, o acto legislativo ou a convenção internacional correspondentes ao sentido de votação) e ainda, no que se refere ao Presidente da República, implicará a proibição do veto político de actos legislativos ou de recusa de ratificação ou assinatura das convenções internacionais na parte em que esses actos normativos se limitem a converter em regras jurídicas os resultados do referendo, bem como a obrigação de veto de quaisquer actos que sejam desconformes com os resultados de um referendo.»
6 - Actualmente, após a 4.ª revisão constitucional (Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro), o referendo encontra-se consagrado no artigo 115.º do texto constitucional, tendo sido introduzidas algumas alterações à versão anterior.
Dispõe aquele preceito constitucional:
«1 - Os cidadãos eleitores recenseados no território nacional podem ser chamados a pronunciar-se directamente, a título vinculativo, através de referendo, por decisão do Presidente da República, mediante proposta da Assembleia da República ou do Governo, em matérias das respectivas competências, nos casos e nos termos previstos na Constituição e na lei.
2 - O referendo pode ainda resultar da iniciativa de cidadãos dirigida à Assembleia da República, que será apresentada e apreciada nos termos e nos prazos fixados por lei.
3 - O referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional que devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo.
4 - São excluídas do âmbito do referendo:
a) As alterações à Constituição;
b) As questões e os actos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro;
c) As matérias previstas no artigo 161.º da Constituição, sem prejuízo do disposto no número seguinte;
d) As matérias previstas no artigo 164.º da Constituição, com excepção do disposto na alínea i).
5 - O disposto no número anterior não prejudica a submissão a referendo das questões de relevante interesse nacional que devam ser objecto de convenção internacional, nos termos da alínea i) do artigo 161.º da Constituição, excepto quando relativas à paz e à rectificação de fronteiras.
6 - Cada referendo recairá sobre uma só matéria, devendo as questões ser formuladas com objectividade, clareza e precisão, e para respostas de sim ou não, num número máximo de perguntas a fixar por lei, a qual determinará igualmente as demais condições de formulação e efectivação de referendos.
7 - São excluídas a convocação e a efectivação de referendos entre a data da convocação e a da realização de eleições gerais para os órgãos de soberania, de governo próprio das Regiões e do poder local, bem como de Deputados ao Parlamento Europeu.
8 - O Presidente da República submete a fiscalização preventiva obrigatória da constitucionalidade e da legalidade as propostas de referendo que lhe tenham sido remetidas pela Assembleia da República ou pelo Governo.
9 - São aplicáveis ao referendo, com as necessárias adaptações, as normas constantes dos n.os 1, 2, 3, 4 e 7 do artigo 113.º
10 - As propostas de referendo recusadas pelo Presidente da República ou objecto de resposta negativa do eleitorado não podem ser renovadas na mesma sessão legislativa, salvo nova eleição da Assembleia da República, ou até à demissão do Governo.
11 - O referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento.
12 - Nos referendos são chamados a participar cidadãos residentes no estrangeiro, regularmente recenseados ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 121.º, quando recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito.»
7 - As principais alterações introduzidas pela revisão constitucional no regime do referendo são as seguintes:
a) A possibilidade de o mesmo resultar da iniciativa de cidadãos dirigida à Assembleia da República (n.º 2);
b) A possibilidade de cidadãos residentes no estrangeiro, regularmente recenseados, participarem nos referendos, «quando recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito» (n.º 12);
c) A dependência da vinculatividade do resultado da consulta popular relativamente ao número de votantes, que deverá, para esse efeito, ser necessariamente superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento (n.º 11).
No mesmo contexto, há que referir a alteração operada no artigo 223.º, n.º 2, alínea f), da Constituição, nos termos do qual passou a competir ao Tribunal Constitucional «verificar previamente a constitucionalidade e a legalidade dos referendos nacionais, regionais e locais, incluindo a apreciação dos requisitos relativos ao respectivo universo eleitoral».
Na decorrência da revisão constitucional foi aprovada nova Lei Orgânica doRegime do Referendo (LORR) - a Lei 15-A/98, de 3 de Abril -, que revogou a anterior Lei 45/91.
Por outro lado, através da Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro, foram introduzidas varias modificações à Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei 85/89, de 7 de Setembro, e pela Lei 88/95, de 1 de Setembro), concretamente aos seus artigos 11.º e 105.º O artigo 11.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC) veio a receber a nova alínea f) do n.º 2 do artigo 223.º da Constituição.
E o artigo 105.º da mesma LTC passou a estabelecer que «os processos relativos à realização de referendos nacionais, regionais e locais são regulados pelas leis orgânicas que disciplinam os respectivos regimes».
8 - A iniciativa parlamentar do PSD relativamente à proposta de referendo que veio a resultar na adopção da resolução agora em análise - tal como, aliás, a apresentada pelo mesmo grupo parlamentar no decurso da sessão legislativa anterior - surgiu no âmbito de recentes debates parlamentares sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez.
Foi o Código Penal de 1852 que, pela primeira vez, entre nós, consagrou expressamente o aborto como crime autónomo, no seu artigo 358.º, abandonando, assim, a generalizada equiparação na doutrina entre o aborto e o homicídio, consumando-se aquele com a morte do feto. Com efeito, essa era a opinião, nomeadamente, de Levy Maria Jordão (Commentario ao Codigo Penal Portuguez, IV vol., 1854, p. 59) e de Pereira e Sousa (Classes de Crimes por Ordem Sistemática com as Penas Correspondentes Segundo a Legislação Actual, 1830, 3.ª ed., p. 309, citado por Alcides de Almeida, O Aborto Consensual, Lisboa, 1964, p. 23), os quais, considerando aquela equiparação, entendiam que o crime de aborto se encontrava previsto nas Ordenações, variando quanto à determinação do momento a partir do qual podia o mesmo ocorrer (fixando, para o efeito, o meio da gestação, Pascoal José de Melo Freire, Institutionum Juris Criminalis Lusitani, 1794, pp. 122 e 123); opinião divergente era, contudo, a de Silva Ferrão (Theoria do Direito Penal Applicada ao Codigo Penal Portuguez, vol. VII, p. 82, nota 3), segundo o qual o texto das Ordenações, «[...] só dava causa em tempos antigos à prática de muitos juízes obrigarem as mulheres pejadas a fazerem termo de dar conta do fruto do seu ventre, com penas cominadas no mesmo termo: prática inútil, desnecessária e infamante [...]», não sendo o aborto punido, ainda que condenável.
Aquele artigo 358.º previa a punição do aborto com pena de prisão maior temporária com trabalho, no caso de não consentimento da mulher (corpo da disposição), cominando a pena de prisão maior temporária para o perpetrante e para a mulher, no caso de consentimento desta (§ 1.º e § 2.º); já na hipótese de o crime ser praticado para «ocultar a sua desonra», a pena aplicável à mulher seria apenas a de prisão correccional (§ 3.º), e quando o crime fosse praticado por médico, cirurgião ou farmacêutico, previa-se o agravamento daquelas penas (§ 4.º).
Segundo Levy Maria Jordão (Commentario, cit., p. 60), os elementos deste crime eram a expulsão prematura do feto, a provocação da expulsão por meios (quaisquer meios) capazes de a produzir e a vontade de cometer o aborto, sendo certo que este ocorreria desde a concepção. Todavia, Silva Ferrão entendia que só poderia existir crime de aborto a partir do 3.º mês de gravidez (ibidem, p. 83).
A reforma penal de 1886 manteve este tipo de incriminação, com diferentes penalidades: prisão maior celular de dois a oito anos, no caso de aborto não consentido (corpo do artigo) ou consentido, podendo, nesta última hipótese, em alternativa, ser cominada a pena de prisão maior temporária (§ 1.º), e ainda, para a própria mulher, nos casos de auto-aborto e de consentimento (§ 2.º); prisão correccional se o crime fosse cometido honoris causa (§ 3.º); finalmente, as mesmas penas para o aborto qualificado (praticado por médico, cirurgião ou farmacêutico), agravadas segundo as regras gerais (§ 4.º).
O Código não definia o aborto, persistindo na doutrina e na jurisprudência a ideia de que o mesmo consistiria na expulsão do feto.
Alcides de Almeida (ob. cit.) analisa essa questão, distinguindo, nomeadamente, os casos de morte do feto sem expulsão e ainda os de parto acelerado, concluindo que, à face do sistema vigente, se deveria entender que «o crime de aborto consiste na interrupção provocada da gravidez, com morte do feto», e que, como tal, este seria o objecto material do crime de aborto.
Notar-se-á ainda que não existia qualquer previsão legal para o aborto terapêutico. A esse respeito, Alcides de Almeida entendia que a expressão «abusando da sua arte», utilizada pelo § 4.º do artigo 358.º, no tocante ao «médico, cirurgião, ou farmacêutico», se destinava a «excluir da incriminação a actuação do médico dirigida a salvar a vida da grávida, ou seja, visa a permitir a prática de aborto terapêutico».
9 - O Código Penal de 1982, além da incriminação específica do aborto nos artigos 139.º a 141.º, procedeu também à sua penalização como crime contra a integridade física da mulher grávida, pelo artigo 143.º, alínea c).
Assim, reservou um capítulo, sob a epígrafe «Dos crimes contra a vida intra-uterina», ao crime de aborto, punindo com pena de dois a oito anos de prisão o aborto não consentido (artigo 139.º), com pena de prisão até três anos, para o autor e para a mulher, o aborto consentido, sendo diminuída para até dois anos se se destinasse a ocultar a desonra da mulher (artigo 140.º), aumentando tais penas de um terço no caso do aborto agravado, excluindo a grávida dessa agravação (artigo 141.º).
Logo em 1982, o projecto de lei 309/II (PCP) viria a propugnar a exclusão da ilicitude do aborto, quando praticado, dentro de certos prazos, em estabelecimento de saúde autorizado, havendo indicação terapêutica, eugénica, sentimental ou económico-social. Esse projecto de lei foi, porém, rejeitado na Assembleia da República.
Só em 1984, portanto, pela Lei 6/84, de 11 de Maio, se viriam a consagrar, no nosso ordenamento jurídico-penal, as chamadas «causas de exclusão da ilicitude», correspondentes a indicações de ordem terapêutica, eugénica e sentimental (também designada como ética ou criminológica), introduzindo nova redacção aos artigos 139.º, 140.º e 141.º do Código.
Assim, o artigo 140.º passou a ter a seguinte redacção:
«1 - Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
a) Constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 sem nas de gravidez;
c) Haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e seja realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez;
d) Haja sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez.
2 - A verificação das circunstâncias que excluem a ilicitude do aborto deve ser certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, o aborto é realizado.
3 - A verificação da circunstância referida na alínea d) do n.º 1 depende ainda da existência de participação criminal da violação.»
10 - Sobre a questão da interrupção voluntária da gravidez, teve este Tribunal, então, ocasião de se pronunciar, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, a requerimento do Presidente da República, relativamente à norma constante do artigo 1.º do decreto 41/III da Assembleia da República, e, mais tarde, em processo de fiscalização abstracta sucessiva, a requerimento do Provedor de Justiça, relativamente às normas constantes dos artigos 140.º e 141.º do Código Penal, na redacção que lhes foi dada pelo artigo 1.º da Lei 6/84, bem como às normas dos artigos 2.º e 3.º da mesma lei.
Em ambas as ocasiões, pelo Acórdão 25/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2.º vol., pp. 7 e segs.) e pelo Acórdão 85/85 (id., 5.º vol., pp. 245 e segs.), o Tribunal concluiu pela não inconstitucionalidade das normas em causa.
11 - A Lei 6/84 viria a ser revogada com a revisão do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março. Esta revisão introduziu algumas alterações ao regime penal do aborto.
Foi, desde logo, eliminada a incriminação do aborto como crime contra a integridade física da mulher.
Por outro lado, o aborto passou a estar previsto no artigo 140.º, eliminando-se a referência ao aborto honoris causa, anteriormente constante do n.º 4 do artigo 139.º
Os três números do artigo 140.º reproduzem, no essencial, os anteriores n.os 1, 2 e 3 do artigo 139.º, com alterações de redacção consistentes na eliminação da expressão «fora dos casos previstos no artigo seguinte», a qual se referia às cláusulas de exclusão da ilicitude constantes da anterior versão do artigo 140.º, já transcrito.
O artigo 141.º («Aborto agravado») corresponde, no essencial, aos n.os 5 e 6 da anterior versão do artigo 139.º, mas com profundas alterações de redacção, substituindo-se a expressão «grave lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, que aquele que a fez abortar poderia ter previsto como consequência necessária da sua conduta», pela simples referência a «uma ofensa à integridade física grave da mulher grávida».
Finalmente, o artigo 142.º, correspondente ao anterior artigo 140.º, adoptou a epígrafe «Interrupção da gravidez não punível» (abandonando-se assim a anterior fórmula «Exclusão da ilicitude do aborto»), correspondendo o seu n.º 1 à anterior versão do artigo 140.º, transcrita apenas com a substituição da expressão «aborto» pela de «interrupção voluntária da gravidez» e da expressão «violação» por aquela mais abrangente de «crime contra a liberdade e autodeterminação sexual». Não havendo alterações substanciais ao n.º 2, foi acrescentado um n.º 3, que estabelece as formas de prestação do consentimento, prevendo o n.º 4 os casos de impossibilidade de obtenção do mesmo e de urgência na realização da intervenção. Foi ainda eliminada a exigência (anteriormente constante do n.º 3 do artigo 140.º) da participação criminal, nos casos de crimes de natureza sexual.
12 - Foi clara a intenção do legislador de 1995 em reformular aquelas disposições, não caindo tais alterações no âmbito de meros aprimoramentos técnicos ou linguísticos. A propósito destas alterações, introduzidas ainda no âmbito do respectivo projecto de 1991, escreveu Rui Pereira («A incriminação do aborto na reforma penal de 1991», in Estudos Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora, Lisboa, 1995, p. 166):
«A adopção de uma nova linguagem terá sido ditada por um anseio de descomprometimento: pretendeu-se, presumivelmente, deixar em aberto a questão de saber se nas hipóteses previstas o aborto não é punível por ser atípico (em nome da ideia de inexigibilidade de que se prevalece a jurisprudência alemã), ou por ser justificado (o que parece sugerir uma afirmação de valor ou, pelo menos, de ausência de desvalor), ou por ser desculpável (não sendo passível de censura penal), ou, finalmente, por faltar uma condição objectiva de punibilidade (ditada por razões de mera oportunidade político-criminal).»
Em resumo, a partir de 1995, o aborto - a interrupção voluntária da gravidez - continuou a ser qualificado como crime (artigos 140.º e 141.º), punindo-se com a pena de prisão de dois a oito anos o aborto não consentido e com a pena de prisão até três anos o aborto consentido, agravando-se essa pena em um terço no aborto agravado. Consagraram-se, todavia, três situações, já não de exclusão da ilicitude, mas de não punibilidade (artigo 142.º, n.º 1): o aborto terapêutico, quando constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, [alínea a)], ou ainda quando se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez [alínea b)]; o aborto eugénico, quando haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e seja realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez [alínea c)], e o aborto sentimental (ético ou criminológico), quando haja sérios indícios de que a gravidez resultou de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da mulher, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez [alínea d)].
13 - Foi neste quadro que, em 1997, novos projectos de despenalização do aborto foram apresentados na Assembleia da República, um pelo Grupo Parlamentar do PCP e os restantes dois projectos de deputados do Grupo Parlamentar do PS, um subscrito pelo deputado Manuel Strecht Monteiro e outro tendo por primeiro subscritor o deputado Sérgio Sousa Pinto.
O projecto do PCP (com o n.º 177/VII) visava:
«A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez, quando realizada nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher;
Nos casos de mãe toxicodependente, o alargamento do período atrás referido para as 16 semanas;
O alargamento de 16 para 22 semanas nos casos de aborto eugénico, especificando-se que o risco de o nascituro vir a ser afectado pelo síndroma de imunodeficiência adquirida constitui um dos casos em que pode ser praticado o aborto eugénico;
O alargamento de 12 para 16 semanas do prazo dentro do qual a interrupção voluntária da gravidez pode ser praticada, sem punição, nos casos em que a mesma se mostre indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para o corpo ou saúde física ou psíquica da mulher grávida. Na verdade, a vida demonstrou, nomeadamente nas doentes submetidas a tratamentos antidepressivos, a necessidade de alargamento do prazo;
O alargamento de 12 para 16 semanas no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual e, quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica, o alargamento para 22 semanas. De facto, a situação de incapacidade pode determinar atraso no recurso à interrupção voluntária da gravidez;
A obrigação de organização dos serviços hospitalares distritais, por forma que respondam às solicitações de prática da interrupção voluntária da gravidez;
A impossibilidade de obstruir o recurso à interrupção voluntária da gravidez através da previsão da obrigação de encaminhar a mulher grávida para outro médico não objector de consciência ou para outro estabelecimento hospitalar que disponha das condições necessárias à prática da interrupção voluntária da gravidez;
A despenalização da conduta da mulher que consinta na interrupção voluntária da gravidez fora dos prazos e das condições estabelecidos na lei;
O acesso a consultas de planeamento familiar.»
Por sua vez, o projecto n.º 235/VII (conhecido por Projecto Strecht Monteiro), de acordo com a respectiva «Exposição de motivos», pretendia o seguinte:
«A exclusão da ilicitude da interrupção da gravidez sem limite gestacional nas situações de feto inviável;
Alargamento de 16 para 24 semanas, comprovadas ecograficamente, nos casos de aborto eugénico [...];
Alargamento de 12 para 16 semanas do prazo dentro do qual a IVG pode ser praticada sem punição no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica [...];
Deverá ser criada uma comissão técnica de avaliação de defeitos congénitos com competências para a emissão de parecer prévio quando estejamos perante IVG por malformação, ou doença grave do embrião ou feto. Esta comissão deverá ser instituída em todos os estabelecimentos autorizados a praticar a IVG e definida nos termos regulamentares e nomeada anualmente pelo conselho de gerência de cada estabelecimento de saúde [...];
A obrigação de reorganização dos serviços hospitalares para que estejam dotados de estruturas adequadas à prática da IVG;
O acesso e o apoio pré e pós-IVG, bem como o direito a consultas de planeamento familiar.»
Finalmente, o projecto de lei 236/VII (deputado Sérgio Sousa Pinto e outros) propunha:
«A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez quando realizada nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher.
Entende-se que não deverá ser susceptível de procedimento criminal a interrupção voluntária da gravidez até às 12 semanas, nos casos em que a mulher considerou não poder exercer a maternidade consciente, tal como constitucionalmente consagrada no artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa;
O alargamento do prazo de 16 para 24 semanas de gravidez, quando haja seguros motivos para crer que o nascituro virá a sofrer de forma incurável de doença grave ou malformação congénita [...];
Alargamento do prazo de 12 para 16 semanas em que a prática da IVG surge por se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para o corpo ou saúde física e psíquica da mulher grávida;
Alargamento do prazo de 12 para 16 semanas no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, aumentando-se aquele prazo para as 18 semanas, quando praticados contra menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica [...];
Penalizar a propaganda à IVG com uma pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias [...].
Desenvolver, no âmbito da rede pública de cuidados de saúde, a valência de aconselhamento familiar, que deverá organizar-se por distrito, devendo os mesmos ser de fácil acesso a todas as mulheres grávidas, quer numa fase de pré-aborto, quer em fase pós-abortiva.
Os centros de aconselhamento familiar destinam-se a fornecer o aconselhamento e o apoio necessários à mulher grávida, visando a superação de problemas relacionados com a gravidez, contribuindo através dos recursos técnicos nela integrados para uma decisão responsável e consciente;
Organizar de forma adequada os estabelecimentos públicos de saúde ou convencionados à prática da IVG, de molde que esta se verifique nas condições e nos prazos legalmente estatuídos [...];
Assegurar um direito à objecção de consciência que não colida com o direito da mulher à IVG, estabelecendo-se regras claras e exigindo-se que o médico objector inclua no documento onde fundamenta a sua objecção o nome de outro profissional do foro, que assegurará a prática da IVG;
Estabelecimento do dever de sigilo dos médicos, demais profissionais de saúde e restante pessoal de saúde pública ou convencionada em que se pratique a IVG.»
14 - Apresentados todos os projectos a plenário para votação, após emissão de pareceres favoráveis pelas competentes comissões parlamentares, apenas o projecto n.º 235/VII viria a ser aprovado (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 42, de 21 de Fevereiro de 1997), sendo os outros rejeitados.
Daí resultou a Lei 90/97, de 30 de Julho, a qual introduziu a seguinte redacção às alíneas c) e d) do artigo 142.º do Código Penal:
«c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas.»
Assistiu-se, assim, a um alargamento dos prazos em que podem ser efectuados o aborto eugénico e o aborto sentimental e incluiu-se uma referência científica e mais ampla aos casos de doença congénita, malformação ou inviabilidade do feto.
15 - Na sessão legislativa seguinte, novos projectos de lei sobre a interrupção voluntária da gravidez foram apresentados: o projecto de lei 417/VII (PCP); o projecto de lei 451/VII (PS), tendo como primeiro subscritor o deputado Sérgio Sousa Pinto, e ainda o projecto de lei 453/VII, apresentado pelos deputados António Braga e Eurico de Figueiredo (PS).
O projecto n.º 417/VII (PCP) correspondia ao projecto n.º 177/VII, apresentado na anterior sessão legislativa pelo mesmo grupo parlamentar.
Por sua vez, o projecto n.º 451/VII (PS) retomou também o anterior projecto n.º 236/VII, com algumas alterações, tendo em conta a aprovação da Lei 90/97. Assim:
a) Preconizava a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, após consulta de aconselhamento, «para preservação da integridade moral, dignidade social e da maternidade consciente», fixando-se em 10 semanas tal prazo;
b) Alargava de 12 para 16 semanas a prática da interrupção voluntária da gravidez, «caso se mostre indicada para evitar perigo de morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, designadamente por razões de natureza económica ou social».
Por fim, o projecto n.º 453/VII elegeu as seguintes orientações:
«A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez, quando realizada a pedido da mulher, por motivos sócio-económicos, após decisão favorável da Comissão de Apoio à Maternidade, nas primeiras 12 semanas;
Tratando-se de mulher menor, para além do seu pedido de IVG, exige-se, ainda, o consentimento dos seus representantes legais;
Criação em cada sede de distrito ou região de uma comissão de apoio à maternidade, com competência para analisar os motivos invocados pela requerente da IVG, promover as condições adequadas à prossecução ou interrupção da gravidez e esclarecer a requerente da IVG quanto ao significado e consequências da IVG;
A comissão deverá, no prazo de cinco dias a contar da apresentação do requerimento, autorizar ou indeferir fundamentadamente o pedido de IVG;
A comissão é composta por cinco elementos, com formação nas seguintes áreas:
um médico com título da especialidade em obstetrícia, um médico com o título de especialidade em psiquiatria, um psicólogo, um magistrado e um técnico de serviço social.
Por último, tendo em conta a matéria em causa, é conferido aos pedidos de IVG carácter urgente, gratuito e sigiloso.»
16 - Simultaneamente com estas propostas, o CDS-PP apresentou um projecto, com o n.º 448/VII, que propunha uma alteração ao n.º 1 do artigo 66.º do Código Civil, no sentido de substituir o «nascimento completo e com vida» pelo «momento da concepção» como condição de atribuição da personalidade jurídica.
Considerou aquele Grupo Parlamentar que:
«O artigo 66.º consagra uma doutrina tradicional, de origem romanística. Essa doutrina, com a limitação da personalidade pelo nascimento, suscitou sempre grandes interrogações, por parecer paradoxal reconhecer direitos ao nascituro, e não obstante negar a sua personalidade jurídica.
[...]
Só o reconhecimento da personalidade jurídica pode constituir resposta adequada à radical novidade que é doravante a presença imediata e visível, na vida social, do ser humano não nascido.
[...]
E não será decerto temerário, nem incorrerá em ridículo, arriscar aqui a profecia de que, no futuro, o reconhecimento da personalidade jurídica do ser humano desde a concepção, no artigo 66.º do Código Civil português, será citado pelos nossos netos e bisnetos com o mesmo legítimo comprazimento com que [...] nos revemos hoje na abolição definitiva da pena de morte na lei de 1867.»
17 - Após a elaboração dos relatórios e pareceres das comissões parlamentares envolvidas, os projectos foram discutidos, na generalidade, pela Assembleia da República (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 36, de 5 de Fevereiro de 1998), donde resultou a aprovação, também na generalidade, do projecto n.º 451/VII, com a rejeição dos restantes projectos.
Este projecto n.º 451/VII, aprovado na generalidade, consagra, como decorre do já referido, a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se efectuada até às 10 semanas, por iniciativa da mulher, em estabelecimento de saúde oficial, mediante consulta prévia em centro de aconselhamento familiar.
Ou seja, a sua opção central corresponde ao teor da pergunta aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 16/98, donde consta a proposta de referendo, ora em apreço.
II
18 - Competindo ao Tribunal Constitucional, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 115.º, n.º 8, e 223.º, n.º 2, alínea f), da Constituição, do artigo 26.º da LORR e do artigo 11.º da LTC, proceder obrigatoriamente à prévia verificação da constitucionalidade e legalidade da proposta de referendo, incluindo a apreciação dos requisitos relativos ao respectivo universo eleitoral, cumpre apreciar sucessivamente as diversas questões que se podem suscitar.
Tendo em conta que a Lei 15-A/98 apenas foi publicada no dia 3 de Abril - entrando, consequentemente, em vigor no dia 8 do mesmo mês -, em data posterior à apresentação, discussão e aprovação, na Assembleia da República, da proposta de referendo a que se reportam os autos, será ainda à face da Lei 45/91 que se apreciará a sua legalidade, relativamente ao respeito pelas atinentes regras de competência e ao cumprimento, no decurso do respectivo processo parlamentar, dos trâmites legalmente estabelecidos. Já a conformidade da pergunta aos requisitos legais atinentes à respectiva formulação terá de ser averiguada, em função dos correspondentes critérios, à face da lei nova, tendo em atenção as regras sobre aplicação de leis no tempo.
19 - Em primeiro lugar, cabe assinalar que a proposta do referendo foi aprovada pelo órgão competente para o efeito, nos termos do disposto no artigo 115.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Efectivamente, não só a Assembleia da República é, juntamente com o Governo, um dos dois órgãos de soberania constitucionalmente autorizados, em geral, a propor ao Presidente da República a realização de referendos, como, no caso vertente, a proposta do referendo só a ela podia caber, pois que a matéria sobre que incide a pergunta - despenalização, em certas circunstâncias, da interrupção voluntária da gravidez - se insere na sua esfera de competência legislativa reservada e, de acordo com o estabelecido no citado artigo 115.º, n.º 1, a proposta há-de respeitar a matéria da competência do órgão proponente.
A inclusão de tal matéria na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, definida no artigo 165.º da Constituição, ocorre, aliás, a dois títulos.
Por um lado, porque, tratando-se de uma despenalização, se inscreve, desde logo, na previsão, da alínea c) do n.º 1 do mencionado artigo 165.º, que se refere à «definição dos crimes e penas», sendo certo que este Tribunal vem uniformemente entendendo, desde o Acórdão 56/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3.º vol., pp. 153 e segs.), que a reserva parlamentar tanto abrange os casos de criminalização ou penalização, como os de descriminalização ou despenalização (no mesmo sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 3.ª ed., 1993, nota IX ao artigo 168.º, p. 672), no que se refere à definição do «cerne do proibido, o ilícito típico» (cf. Acórdão 427/95, in Diário da República, 2.ª série, de 10 de Novembro de 1995).
Por outro lado, porque a matéria atinente à interrupção voluntária da gravidez, pelas questões que suscita, se há-de ter como abrangida na alínea b) do mesmo n.º 1 do artigo 165.º, como, aliás, já o havia reconhecido a extinta Comissão Constitucional, no seu parecer 21/82 (Pareceres da Comissão Constitucional, 20.º vol., pp. 92 e 93), em que afirmou:
«O parecer que se solicita surge em volta da apontada ofensa ao artigo 25.º (actual artigo 24.º) da Constituição, mais propriamente em volta do seu n.º 1, em que se declara ser a vida humana inviolável.
Não são, como se sabe, pacíficas as leituras desse preceito constitucional quando se põe a questão da interrupção voluntária da gravidez, em que na defesa do que se tem como valores subjacentes se joga com argumentos ora de ordem biológica, social ou política, ora de natureza ontológica, para não dizer teológica, retirados das diversas confissões religiosas.
Todos, pode dizer-se, reinvindicam o direito de intervir na discussão desta matéria, propondo o seu testemunho com a exigência de uma plena garantia da liberdade de expressão.
Estão em causa direitos fundamentais da nossa ordem constitucional, é o que isso significa.
Dir-se-á que, independentemente do sentido da opção de cada um, da medida da sua intervenção no debate ou das soluções que mais o atraiam, a posição assumida, qualquer que ela seja, haverá constitucionalmente de pautar-se pelos direitos, liberdades e garantias, com assento no título II da primeira parte da Constituição.
[...]
E essa é uma matéria reservada para a Assembleia da República [...]»
Sendo a matéria da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República, dúvidas não podem, pois, existir sobre a sua competência para propor o referendo em causa.
20 - Em conformidade com o preceituado no n.º 3 do artigo 115.º da Constituição da República Portuguesa, «o referendo só pode ter por objecto questões de relevante interesse nacional que devam ser decididas pela Assembleia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo».
Do facto de a matéria em causa se incluir, como se apurou, na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República resulta necessariamente que se está perante uma questão que deve ser por ela decidida através da aprovação de acto legislativo.
E, por outro lado, a indiscutível controvérsia que, ao longo dos anos, a questão tem gerado na sociedade portuguesa e o debate político, jurídico, científico e filosófico que, em seu torno, se tem desenvolvido não permitem duvidar que a mesma assume relevante interesse nacional, pelo que não importa agora esclarecer se esse requisito deve constituir objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional - pelo menos, quando se pretenda submeter a referendo questões manifestamente irrelevantes ou mesquinhas - ou se, pelo contrário, se encontra na margem de livre apreciação do órgão proponente e do Presidenteda República (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição ..., cit., nota VIII ao artigo 118.º, pp. 532 e 533; Maria Benedita Malaquias Pires Urbano, «O referendo - Perfil histórico-evolutivo do instituto. Configuração jurídica do referendo em Portugal», Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Stvdia Ivridica, 30, 1998, p. 184).
Também, pois, nesta perspectiva - e sendo igualmente manifesto que o interesse da questão é de índole nacional, e não apenas regional ou local -, se não encontram óbices à realização do referendo.
21 - Consoante se determina no n.º 4 do artigo 115.º da lei fundamental, são excluídas do âmbito do referendo, para além das alterações à Constituição, as questões e os actos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro, as matérias da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (salvo a atinente às bases do sistema de ensino), bem como a generalidade das matérias previstas no artigo 161.º
Afigura-se evidente que a matéria a que se reporta a proposta de referendo em apreciação não reveste conteúdo orçamental, tributário ou financeiro; e tão-pouco se enquadra na reserva absoluta de competência legislativa parlamentar, já que antes integra a reserva relativa.
Por outro lado, também a matéria em causa se não encontra prevista no artigo 161.º, pois que, de entre as aí mencionadas, apenas poderia ser abrangida pela alínea c), onde se atribui à Assembleia da República competência para «fazer leis sobre todas as matérias». Só que a referência à exclusão das matérias do artigo 161.º não pode obviamente aplicar-se em tal caso, pois que, então, se entraria em contradição com o n.º 1 e o n.º 3 do artigo 115.º, porque nenhuma matéria que devesse ser tratada por via legislativa - salvo se da reserva do Governo - poderia ser objecto de referendo.
Com a presente proposta de referendo também se não pretende alterar a Constituição. E com esta questão se não deve confundir essoutra que consiste em saber se as eventuais respostas - afirmativa ou negativa podem determinar a adopção de soluções normativas desconformes à lei fundamental, caso em que se terá de concluir pela inconstitucionalidade do referendo.
Com efeito, uma coisa será pretender, através da via referendária, modificar a própria Constituição, de tal sorte que a legislação a aprovar na sequência do referendo venha a assumir valor constitucional - e, designadamente, só sendo susceptível de fiscalização da constitucionalidade nos exactos termos em que o possam ser as leis constitucionais; e outra, bem diferente, será pretender introduzir, mediante prévio recurso ao referendo, uma alteração legislativa - isto é, uma alteração à legislação ordinária preexistente - incompatível com a Constituição. Ora, a proibição constante da alínea a) do n.º 4 do artigo 115.º da Constituição da República Portuguesa só se dirige ao primeiro caso - tendo que, contudo, a título autónomo, ser assegurado que não ocorre o segundo caso, no âmbito da verificação da constitucionalidade do referendo.
Poderá, contudo, entender-se que a questão da possibilidade de submeter a referendo a pergunta aprovada pela Assembleia da República, no que diz respeito a saber se a mesma não incide sobre matéria excluída do âmbito da democracia directa, se não esgota com a mera circunstância de se haver verificado que a despenalização, em certos casos, da interrupção voluntária da gravidez se não encontra abrangida pela previsão do n.º 4 do artigo 115.º da Constituição.
Com efeito, bem se compreenderá que se deva entender que, para além das matérias excluídas do âmbito do referendo por força do preceituado naquela disposição constitucional (e no artigo 3.º da LORR), se encontram subtraídas da possibilidade de recurso a referendo aquelas matérias em que ao legislador apenas caberá, através de uma operação juridicamente vinculada, concretizar a única solução legislativa constitucionalmente exigida face ao conteúdo das atinentes normas ou princípios da lei fundamental. É que, em tal caso, dir-se-á que, obviamente, se não justifica submeter a questão à consideração do voto popular, uma vez que não existe qualquer margem de discricionariedade legislativa, a resolver através de uma opção política devolvida ao eleitorado (cf. Luís Barbosa Rodrigues, O Referendo Português a Nível Nacional, Coimbra Editora, 1994, p. 173).
Nesta conformidade, quando se entenda que a matéria sobre que incide o referendo se encontra subtraída à liberdade de conformação do legislador, esse juízo acaba por se projectar simultaneamente como um juízo de incompatibilidade material de uma das soluções jurídicas determinadas pelas eventuais respostas - afirmativa ou negativa - resultantes da votação e como um juízo de exclusão da matéria em causa do âmbito do referendo.
Na verdade, afigura-se evidente que, no caso de o legislador se encontrar constitucionalmente vinculado a legislar em determinado sentido, uma das eventuais respostas resultantes do referendo - a afirmativa ou a negativa - implicará necessariamente a adopção de solução legislativa conflituante com a Constituição, tendo em consideração o preceituado nos artigos 241.º e 243.º da LORR, os quais constituem o legislador no dever de, respectivamente, aprovar ou não aprovar o acto legislativo correspondente à pergunta, consoante o teor da resposta haja sido afirmativo ou negativo.
Assim sendo, no caso vertente, quem entender que, em matéria de interrupção voluntária da gravidez, não é constitucionalmente permitido ao legislador, abstracta e genericamente, prever situações de descriminalização, ou despenalização ou definir específicas causas de justificação, terá tendência a logicamente considerar que a matéria de despenalização do aborto, em geral, não será referendável - e a considerar que, in casu, o referendo é inconstitucional, porque uma eventual resposta afirmativa determinaria uma solução jurídica conflituante com o direito à vida. E, paralelamente, quem entender que ao legislador se encontra vedado criminalizar a interrupção voluntária da gravidez, pelo menos dentro de certo prazo, porque a tal se opõe o direito da mulher à livre escolha e à autodeterminação, terá idêntica tendência a considerar a mesma matéria de despenalização do aborto como não referendável - e o referendo como inconstitucional, pois que a eventual resposta negativa implicaria a manutenção de uma violação de direitos das mulheres, assegurados na lei fundamental. Já, porém, para quem entender que a matéria de despenalização do aborto pode ser tratada pelo legislador, no uso da sua margem de discricionariedade, designadamente determinando zonas de despenalização ou definindo causas de justificação, embora dentro de certos limites constitucionalmente desenhados, aquela matéria será referendável; e isto sem prejuízo de se poder considerar que, no caso concreto, a pergunta se encontra formulada de molde que uma das eventuais respostas necessariamente implicará uma solução materialmente inconstitucional - questão que deve ser autonomamente analisada.
Numa outra perspectiva, também se pode visionar que se pretenda negar a possibilidade de recorrer a referendo em matéria como a dos autos, pois que, estando em causa uma questão de conflito de direitos ou de conflito de direitos e valores - ou de concretização de limites imanentes -, que depende «de um juízo de ponderação, no qual se procura, em face de situações, formas ou modos de exercício específico (especiais) dos direitos, encontrar e justificar a solução mais conforme ao conjunto de valores constitucionais (à ordem constitucional)», tal «actividade simultaneamente de interpretação e de restrição» parecer dever «integrar-se na competência interpretativa do juiz e, em geral, dos aplicadores da Constituição» (José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, Almedina, Coimbra, 1987, p. 224).
Só que o legislador ordinário é também, ele próprio, em certa medida, um aplicador da Constituição, desde logo porque não parece que esteja excluído que, implicando a harmonização ou concordância prática de direitos e valores constitucionalmente protegidos «ponderações nem sempre livres de carga política» (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, p. 1098), esses juízos de ponderação se efectuem «logo a nível legislativo» (id., ibid., p. 1141). E, podendo ser esse o caso, então também se não antolha motivo para excluir que o referendo incida eventualmente sobre uma questão dessa natureza: é que, ainda aí, por um lado, o povo apenas será chamado a escolher, no plano das opções políticas, entre ponderações suportadas pelo texto constitucional; e, por outro lado, não se descortina que, fora dos casos expressamente previstos na Constituição, se possa excluir o referendo aí onde o legislador pode livremente intervir, no exercício do seu poder soberano.
Não se vê, pois, que a matéria da pergunta - a despenalização da interrupção voluntária da gravidez - se encontre entre aquelas sobre as quais, nos termos constitucionais e legais, não possa recair um referendo, desde que se entenda que a mesma matéria se não encontra subtraída a uma regulação genérica e abstracta do legislador, questão que, por ora, se deixa em aberto.
22 - Estabelece o artigo 4.º da LORR:
«1 - As questões suscitadas por convenções internacionais ou por actos legislativos em processo de apreciação, mas ainda não definitivamente aprovados, podem constituir objecto de referendo.
2 - Se a Assembleia da República ou o Governo apresentarem proposta de referendo sobre convenção internacional submetida a apreciação ou sobre projecto ou proposta de lei, o respectivo processo suspende-se até à decisão do Presidente da República sobre a convocação do referendo e, em caso de convocação efectiva, até à respectiva realização.»
Ora, no caso em apreço, a proposta de referendo incide sobre matéria que constitui objecto do projecto de lei 451/VII, já aprovado na generalidade, após votação efectuada em data anterior à da aprovação da proposta de referendo.
Na ausência de clara disposição constitucional, salvo no que se refere ao facto de o referendo só poder ter como objecto questões «que devam ser decididas» - e, portanto, ainda não tenham sido decididas - pela Assembleia da República ou pelo Governo através da aprovação de convenção internacional ou de acto legislativo, pode-se colocar a questão de saber se o referendo «apenas poderá ser desencadeado num momento situado, dentro do processo convencional ou legislativo, entre a iniciativa e a aprovação», ou se terá de inscrever-se «num momento antecedente à eclosão do procedimento em causa» ou, finalmente, se «será viável em qualquer momento anterior a aprovação» (Luís Barbosa Rodrigues, ob. cit., p. 199), tendo sido esta última a opção do legislador ordinário.
Não se vê motivo para não aceitar a solução recebida na LORR, até porque a segunda alternativa - única que conduziria inexoravelmente à inconstitucionalidade do referendo no caso dos autos - se apresenta inaceitável, como assinala Barbosa Rodrigues, porque, «desde logo, erigiria indirectamente a iniciativa convencional ou legislativa num potencial mecanismo de obstrução referendária, susceptível de utilização quer pela maioria quer pelas minorias, já que o referendo se tornaria inviável desde o momento em que esse impulso legislativo ocorresse».
Todavia, se o referendo deve ser considerado viável em qualquer momento anterior à aprovação do texto legislativo, ainda se poderá perguntar o que se deve entender por aprovação: se apenas a aprovação definitiva - isto é, em votação final global -, como resulta da LORR, ou se logo a aprovação na generalidade, após a primeira votação em plenário, para se assegurar uma mais efectiva salvaguarda da democracia representativa. Nesta última hipótese, a proposta de referendo em análise não respeitaria as exigências constitucionais, já que, como vimos, é subsequente à aprovação na generalidade do projecto de lei 451/VII, aprovação essa que, de todo o modo, não permitirá dar seguimento ao processo legislativo, caso o povo venha a dar resposta negativa à pergunta, na consulta referendária, assim se provocando a desautorização da instituição parlamentar e se dando prevalência à democracia directa relativamente à democracia representativa.
Esta questão, aliás, não deixa de ser referida no relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre o projecto de resolução 75/VII, onde, sem dar resposta explícita ao problema suscitado, se afirma:
«Por outro lado, têm alguns autores colocado a questão de saber se, ao abrigo das disposições constitucionais em vigor, um referendo nacional pode alterar uma deliberação, tomada legitimamente pelos titulares do órgão de soberania com poderes legislativos por excelência - a Assembleia da República -, interrompendo-se o processo legislativo. No caso em apreço têm expresso dúvidas sobre a admissibilidade de uma consulta em que o objecto da pergunta se reporte concretamente ao conteúdo do diploma já aprovado na generalidade pela Assembleia da República, sob pena de conflito entre a legitimidade representativa e a democracia participativa. Ou seja, será que, à face do nosso sistema jurídico-constitucional, o exercício da democracia directa se pode sobrepor ao exercício da democracia representativa?»
Acontece, porém, que a Constituição não perfila a aprovação, em votação na generalidade, como manifestação de uma vontade definitiva da Assembleia da República, pelo que não será anómalo que um texto legislativo aprovado na generalidade não venha a merecer aprovação em votação final global, sendo mesmo que essa possibilidade resulta facilitada pela especificação constitucional de que para as leis orgânicas se exige a aprovação, em votação final global, por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções, quando essa mesma maioria qualificada já não é requerida nas votações na generalidade e na especialidade. A votação na generalidade, versando «sobre a oportunidade e o sentido global do projecto ou da proposta de lei», no fundo, quando desemboca numa aprovação nessa fase, «apenas abre caminho, para a discussão e votação na especialidade», pelo que «um juízo definitivo» sobre o texto legislativo só se verifica com a votação final global (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição ..., nota IV ao artigo 171.º, p. 693).
Aliás, bem se poderá entender que, para afastar o questionamento da democracia representativa através do referendo, a Constituição se satisfaz com a rejeição do referendo ab-rogativo, não sendo esse o caso dos autos. E que, afinal, apesar da estranheza que a situação poderá causar, um referendo efectuado depois do debate parlamentar na generalidade poderá ocorrer com base num mais efectivo esclarecimento do eleitorado, sendo igualmente certo que as dúvidas apenas se suscitam em função da transparência do processo legislativo parlamentar, não sendo idêntica situação perceptível para a opinião pública, no caso de proposta de referendo apresentada pelo Governo.
Nesta conformidade, entende-se que, também sob este ponto de vista, não ocorre qualquer inconstitucionalidade, por não se descortinar um verdadeiro conflito entre «a legitimidade representativa e a democracia participativa», sendo, aliás, manifesta a compatibilidade do referendo, neste caso, com a respectiva Lei Orgânica.
23 - De acordo com as disposições conjugadas do artigo 115.º, n.º 6, da Constituição da República Portugugesa e do artigo 7.º da LORR, cada referendo recai sobre uma só matéria, não podendo comportar mais de três perguntas, as quais não podem ser precedidas de quaisquer considerandos, preâmbulos ou notas explicativas.
Todos estes requisitos são evidentemente respeitados no caso em apreço, já que existe uma só pergunta, sem qualquer intróito, incidindo sobre uma só matéria (a despenalização da interrupção voluntária da gravidez).
Por outro lado, a pergunta deve ser formulada para uma resposta de «sim» ou «não», segundo uma lógica «que é necessariamente dilemática, bipolar, ou binária, ou seja: que pressupõe uma definição maioritariamente unívoca da vontade popular, num ou noutro dos sentidos possíveis de resposta à questão cuja resolução é devolvida directamente aos cidadãos» (Acórdão 360/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19.º vol., p. 701), o que também se verifica quanto à pergunta proposta.
Finalmente, as questões devem ser formuladas «com objectividade, clareza e precisão». E é quanto a esta exigência que se poderiam suscitar mais problemas.
Desde logo, é a clareza da pergunta que se pode legitimamente afigurar duvidosa, face à utilização de expressões ou vocábulos como «despenalização», «interrupção voluntária da gravidez» ou «opção», seguramente de reduzida utilização na linguagem corrente da maioria do eleitorado e de muito difícil compreensão para aqueles que possuem um menor grau de literacia.
A esta objecção, contudo, se responderá de duas formas.
Em primeiro lugar, dir-se-á que o risco derivado de um deficiente entendimento da pergunta, que pode decorrer do nível de instrução de uma parte do eleitorado, é inerente à utilização do processo referendário, em que os boletins de voto se não podem revestir da simplicidade que caracteriza os utilizados nos actos eleitorais, designadamente através do recurso aos símbolos partidários.
Em segundo lugar, sublinhar-se-á que a clareza da pergunta se há-de conjugar com a sua objectividade e precisão, o que implica uma maior complexidade na formulação e a utilização de terminologia rigorosa, para se evitar posteriormente a existência de equívocos quanto às soluções propugnadas, por a pergunta abranger situações não pretendidas ou consentir leituras ambíguas.
Face a uma pergunta rigorosamente formulada, embora de difícil entendimento para uma importante parte do eleitorado, sempre se poderá obter uma resposta consciente, caso exista um esforço de esclarecimento da opinião pública - e para isso serve a campanha regulada na lei. Mas, pelo contrário, face a uma pergunta aparentemente simples, mas recheada de ambiguidades ou imprecisões, nunca se poderá conhecer o verdadeiro sentido da resposta. E isto até porque se a pergunta se encontrar deficientemente formulada do ponto de vista técnico, utilizando conceitos pouco rigorosos, não disporá sequer da clareza necessária para aqueles que, afinal, terão necessariamente de proceder a uma mediação explicativa perante a opinião pública.
Ora, no caso em apreciação, algumas hipóteses de simplificação da pergunta teriam como consequência uma indesejável imprecisão, já que se afigura importante - até para que a pergunta possa ter uma mínima correspondência com o objecto da iniciativa legislativa - que dela constem, por exemplo, referências à iniciativa da mulher e ao facto de a interrupção da gravidez se efectuar em estabelecimento de saúde. E se é possível sustentar que esses elementos da pergunta poderiam ter sido enunciados de forma mais acessível, embora tecnicamente menos perfeita, a verdade é que ao Tribunal Constitucional não cabe averiguar se a pergunta se encontra formulada da melhor maneira, mas tão-só certificar-se que ela ainda satisfaz adequadamente as exigências constitucionais e legais, o que se afigura ocorrer no caso sub judicio.
Por outro lado, assinale-se que, não permitindo a Constituição e a lei que se proceda a um referendo sobre um concreto projecto de lei, daí resulta que - por razões de necessária limitação da dimensão da pergunta, já que cada novo elemento pode contribuir para atentar contra a sua clareza - nem todos os aspectos do regime que se pretenda estabelecer têm obrigatoriamente de constar da pergunta formulada. É o que acontece, por exemplo, no caso dos autos, com a consulta em centro de aconselhamento familiar, prevista no projecto de lei 451/VII, que não ficará afastada pelo facto de não se encontrar mencionada na pergunta.
Outras eventuais críticas à formulação da pergunta não parece deverem merecer acolhimento.
Assim a crítica consistente em a pergunta não explicitar, com objectividade, que, ainda que haja uma resposta negativa, nem por isso todos os casos de interrupção voluntária da gravidez serão criminalmente puníveis, já que se manterá o «sistema de indicações» do Código Penal. Só que uma tal explicitação, não sendo legalmente possível através de «considerandos, preâmbulos ou notas explicativas», só poderia decorrer da própria pergunta, o que nunca seria suficientemente eficaz e, para além disso, ainda iria tornar a pergunta mais complexa.
E, do mesmo modo, também se não aceita a crítica tendente a considerar que a pergunta se encontra mal formulada, porquanto não permite uma opção clara entre o «sim» e o «não» a quem entenda que a solução mais conveniente na matéria consiste em despenalizar apenas a mulher que aborta. É que a solução em causa não se encontra colocada na pergunta em análise, bem podendo dizer-se que constituiria objecto para uma outra pergunta. E quanto à pergunta em apreço, devendo ser respondida, nos termos constitucionais e legais, por uma afirmativa ou uma negativa, não pode necessariamente abrir espaço para soluções matizadas.
Também se entende que não ofende a necessária objectividade da pergunta o facto de nela se fazer referência a estabelecimento de saúde «legalmente autorizado», já que uma tal expressão inculcaria à partida uma autorização legal que só poderia vir a ser conferida após uma resposta afirmativa no referendo.
Com efeito, para que um estabelecimento de saúde possa ser tido como legalmente autorizado, para efeitos da pergunta formulada, não é necessário que aquela autorização decorra de uma eventual lei aprovada na sequência de maioritária resposta afirmativa no referendo: a definição das condições indispensáveis à atribuição de uma tal autorização poderá constar de lei autónoma e, mesmo, preexistente, até porque já hoje é possível efectuar, em certas circunstâncias, a interrupção voluntária da gravidez em «estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido».
Nestes termos, e considerando especialmente a indispensável harmonização entre clareza, precisão e objectividade, também a formulação da pergunta não merece reparo, do ponto de vista da sua conformidade com a Constituição e a lei.
24 - Cabe também assinalar que a iniciativa da presente proposta de referendo respeitou integralmente as exigências constantes dos artigos 10.º a 14.º da Lei 45/91, em vigor à data em que se desenrolou o respectivo processo parlamentar.
Na verdade, como foi sendo mencionado, a iniciativa da proposta de referendo coube a deputados (cf. artigo 10.º, n.º 1), sob a forma de projecto de resolução (artigo 10.º, n.º 2), o qual foi devidamente aprovado (artigo 13.º) e, posteriormente, publicado na 1.ª série do Diário da República (artigo 14.º).
Por outra banda, o projecto de resolução de referendo em causa não envolve, no ano económico em curso, aumento de despesas ou diminuição de receitas do Estado previstas no Orçamento (artigo 11.º).
25 - O artigo 115.º, n.º 12, prevê a possibilidade de participação no referendo dos cidadãos regularmente recenseados no estrangeiro, quando o referendo recaia «sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito», devendo o Tribunal Constitucional apreciar esses requisitos relativos ao universo eleitoral [artigo 223.º, n.º 1, alínea f)].
No caso vertente, a proposta de referendo apenas prevê a participação dos cidadãos eleitores recenseados no território nacional.
Entende-se que, relativamente a um referendo que tem como objecto a despenalização de determinada conduta, não seria possível outra opção, salvo se os cidadãos residentes no estrangeiro se encontrassem em situação de constituírem as vítimas privilegiadas dessa mesma conduta ou caso se tratasse de um ilícito criminal em regra punível quando praticado fora do território nacional e que particularmente interessasse àqueles cidadãos.
Efectivamente, tendo em consideração o princípio da territorialidade da lei penal, consagrado no artigo 4.º do Código Penal, é manifesto que aos cidadãos residentes no estrangeiro não diz especificamente respeito a questão da despenalização da interrupção voluntária da gravidez em território português, porque só nos casos previstos no artigo 5.º tal poderia vir a reflectir-se sobre eles (cf., a propósito, Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 1.º vol., 1995, p. 133; em sentido contrário, Maria Fernanda Palma, Direito Penal, Parte Geral, 1994, p. 153; e sobre assunto correlacionado, a sentença do Tribunal Constitucional espanhol n.º 75/84, de 27 de Junho, Jurisprudencia Constitucional, t. 9.º, p. 259); e também porque não é aí, nesse espaço territorial português, que se encontra organizada a sua vida e ocorrem as condições sociais em que se concretizaria a maternidade.
De todo o modo, não se descortina como a matéria em causa tenha a ver especificamente com a situação dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, sendo certo que só em tais casos, isto é, relativamente a matérias cujo tratamento jurídico possa ter uma particular incidência relativamente aos interesses da emigração portuguesa, se justifica a abertura do universo eleitoral a que se reporta o n.º 12 do artigo 115.º
26 - Resta, finalmente, saber se a pergunta formulada não coloca os eleitores perante uma questão dilemática em que um dos respectivos termos aponta para uma solução jurídica incompatível com a Constituição.
É que, competindo ao Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no artigo 223.º, n.º 2, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, «verificar previamente a constitucionalidade e legalidade dos referendos nacionais», não poderia deixar de lhe caber a análise da conformidade material do objecto do referendo com a lei fundamental. Por isso se entende que, no âmbito do controlo da constitucionalidade do referendo, se inscreve a apreciação da licitude da questão colocada (neste sentido, cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição..., nota XIV ao artigo 118.º, p. 535;
e, bem assim, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. V, Coimbra Editora, 1997, p. 284).
Aliás, seria absurdo que, apesar de a Constituição estabelecer uma fiscalização preventiva obrigatória da constitucionalidade do referendo, o povo pudesse ser chamado a pronunciar-se directamente sobre certa questão, quando o Tribunal Constitucional, à partida, havia detectado a sua inutilidade, porquanto sempre uma das possíveis respostas, a ser adoptada, determinaria a aprovação de legislação que não poderia vir a ser aplicada, por inconstitucional.
Trata-se, afinal, de tentar harmonizar, tanto quanto possível, o princípio maioritário com o princípio da constitucionalidade, reconhecendo a prevalência deste último (cf. Vital Moreira «Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da justiça constitucional», Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, Coimbra Editora, 1995, p. 192), mas comprimindo o primeiro o menos possível. É que, na verdade, o princípio maioritário é bem menos atingido quando, por razões de constitucionalidade, se impede a expressão da vontade popular directamente expressa do que quando se inviabiliza a execução dessa mesma vontade, depois de livremente manifestada. E se, in casu, o conflito não pode ser integralmente eliminado - designadamente em função do sistema de fiscalização da constitucionalidade -, pode, pelo menos, reduzir-se o risco da sua eventual ocorrência.
Entende-se, pois, que o Tribunal Constitucional deve apreciar se o objecto da pergunta é inconstitucional - ou, melhor, se qualquer das duas eventuais respostas que lhe venham a ser dadas determina a adopção de normas legais desconformes com a Constituição.
É o que se passará a fazer.
III
A)
27 - Tentando proceder a um enquadramento do debate sobre o alargamento dos casos de despenalização da interrupção voluntária da gravidez, escreveu-se, em 1997, no relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, em que se procedeu à apreciação dos projectos de lei n.os 177/VII, 235/VII e 236/VII:
«1 - Cada mulher que, por vicissitudes da vida humana, seja algum dia levada a ter de ponderar a interrupção de uma gravidez, é colocada, de forma inevitável, perante complexas e dramáticas interrogações.
A resposta final pode fundar-se em muitos e diferentes critérios, em função de convicções, valores éticos, crenças religiosas e distintas representações do mundo e da lei. Poucas serão especialistas em direito, em filosofia ou em ética das ciências da vida, mas a nenhuma é poupado o acto de decidir.
Só raramente a opção estará imune a pressões psicológicas, sociais, culturais, económicas. Demasiadas vezes, poderá faltar o acesso à melhor informação e o bom aconselhamento na hora em que seria necessário.
Tocando o que de mais profundo caracteriza a existência humana, uma tal ponderação, mesmo que por desventura se repita, nunca se torna mais simples ou mais fácil. É sempre uma dolorosa teia de Penélope, demasiado bem conhecida de milhões de mulheres que em todo o mundo e em todas as épocas experimentaram esse desfazer refazer dos mais graves conflitos de valores e emoções humanamente possíveis, num 'choque de absolutos', incessantemente renovado.
Cada decisão, duramente sujeita à ampulheta do tempo - e seguramente das mais difíceis para a mulher -, é indelegável, pessoal. Tão concreta que não pode ser considerada em abstracto, nem estar tomada de antemão. Tão única que, uma vez assumida, vale para essa vez, não para todas as circunstâncias e tempos.
2 - Bem ao invés, o legislador de um Estado de direito democrático, quando tenha de decidir em consciência sobre o quadro jurídico aplicável à interrupção voluntária da gravidez, não carece de recomeçar sempre a partir do ponto zero a avaliação de todas as múltiplas questões que a problemática do aborto suscita desde os mais distantes tempos.
Antes pode e deve - retendo a memória do seu tempo e das suas anteriores decisões - avaliar rigorosamente a forma como as mesmas foram executadas ou rejeitadas e, se necessário e possível, tomar as adequadas medidas de correcção na sede própria.
Tratando-se de uma matéria que forçosamente divide - e pode dividir muito - as sociedades e a opinião pública, afigura-se razoável e mesmo indispensável que nesse processo de decisão sejam exploradas todas as formas de não criar fracturas aí onde as mesmas possam ser evitadas.
E há que buscar, o mais possível, denominadores comuns, solidariedades e esforços conjuntos, aí onde estes relevem para defesa de interesses sociais importantes, desde logo os suscitados pelos perigos que ameaçam a saúde das mulheres.
Quanto às questões que não dispensem o apuramento de uma maioria de decisão, importa que sejam cuidadosamente equacionadas, por forma a evitar esse mal maior que são os acesos debates jurídicos centrados sobre propostas inexistentes ou os violentos afrontamentos de valores e convicções - que enquanto tais ninguém tem legitimidade para pôr em questão - a propósito (ou a pretexto) de soluções legais que não suscitam relevante rejeição social.»
Nesta introdução ao mencionado relatório da referida comissão parlamentar expressa-se, de forma assaz sugestiva, a complexidade da questão que ora urge apreciar, não podendo este Tribunal ignorar que, competindo-lhe tão-só aferir da constitucionalidade das soluções propugnadas e não da respectiva oportunidade ou conveniência, a verdade é que um tal juízo - apesar de ter de ser radicalmente distinto de um juízo ético-político de concordância ou discordância -, por pressupor a determinação e avaliação mútua de valores plasmados na lei fundamental, nunca pode ser inteiramente alheio a um sistema subjectivo de mundividências, e pré-compreensões.
Por ser, aliás, esta uma questão em que multifacetadamente se entrecruzam e defrontam diferentes convicções filosóficas e religiosas, posições éticas, perspectivas sociais, concepções jurídicas e, até, apreciações de ordem científica, designadamente nos domínios da medicina e da biologia, não admira que nas últimas décadas se tenha verificado em torno dela intenso debate, com reflexo em profundas mutações nos diversos ordenamentos jurídicos, nomeadamente dos países que hoje integram a União Europeia (cf. «Questões de Bioética Interrupção voluntária da gravidez», Legislação Comparada, vol. 1, Assembleia da República, Divisão de Informação Legislativa e Parlamentar, 1997).
28 - Na Alemanha, a reforma do Código Penal, efectuada na RFA em 1974, veio despenalizar a interrupção voluntária de gravidez, praticada por médico, com fundamento em certas razões de ordem eugénica ou terapêutica ou, ainda, a pedido da mulher, nas 12 semanas seguintes à nidação, e após prévia consulta de aconselhamento.
Imediatamente contestada junto do Tribunal de Karlsruhe, a lei viria a ser julgada inconstitucional pela célebre sentença de 25 de Fevereiro de 1975, na parte em que despenalizava os abortos realizados nas primeiras 12 semanas de gravidez, sem que ocorresse qualquer indicação específica.
Arrancando da convicção de que a consagração constitucional do direito à vida abrange toda a vida intra-uterina após a nidação, e não apenas a vida das pessoas já nascidas ou dos nascituros já autonomamente viáveis, o Tribunal considerou que aquele direito constituía o Estado na obrigação de adoptar medidas administrativas e legais que o protegessem, incluindo medidas de natureza penal, sempre que necessário. Todavia, no balanceamento entre esse direito e o direito da mulher ao livre desenvolvimento da personalidade, o Tribunal reconheceu que certas situações a colocavam numa situação em que não se tornava exigível obrigá-la a levar a gravidez até ao seu termo sob a ameaça de sanções penais, assim abrindo caminho à despenalização do aborto com indicação terapêutica, eugénica, ética ou económico-social (cf. Georg Ress, «L'interprétation du droit à la vie par le Tribunal Constitutionnel allemand par rapport à la question de l'avortement volontaire», Annuaire International de Justice Constitutionnelle, 1986, Economica/Presses Universitaires d'Aix-Marseille, pp. 89 e segs.).
Na sequência desta decisão do Tribunal Constitucional, na nova redacção de 1976, o Código Penal manteve a penalização da interrupção voluntária da gravidez praticada fora das indicações especificamente elencadas - terapêutica, eugénica, ética e social, esta em caso de especial angústia da mulher.
Após a reunificação, em 1992, foi aprovada nova lei, que, de facto, vinha instituir o «sistema dos prazos», despenalizando o aborto consensual praticado por médico durante as primeiras 12 semanas da gravidez, desde que a mulher se tivesse previamente submetido a uma consulta de aconselhamento em que lhe fossem dadas «as explicações médicas e práticas necessárias para a orientar correctamente na sua escolha» (Marilisa d'Amico, Donna e Aborto nella Germania Riunificata, Giuffrè, Milão, 1994, p. 4).
Chamado a apreciar estas alterações legislativas, por decisão de 28 de Maio de 1993, o Tribunal Constitucional considerou que a lei fundamental obriga o Estado a proteger a vida humana, incluindo a não nascida, e que o direito do nascituro a gozar de protecção jurídica, face à própria mãe, só é viável se o legislador proibir a esta, em princípio, a interrupção da gravidez, impondo-lhe a obrigação jurídica de dar à luz. O alcance desta obrigação (protecção da vida do nascituro) deve, no entanto, definir-se atendendo à importância e necessidade de protecção do bem jurídico seu objecto e, por outro lado, dos bens jurídicos em colisão; entre estes encontram-se os direitos da mulher à vida e à integridade física, à dignidade humana e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
Assim, o Estado deve assegurar uma protecção adequada aos bens e valores jurídicos contrapostos, combinando elementos de protecção preventiva e de protecção repressiva. Ora, não sendo os direitos fundamentais da mulher tão amplos que possam ir ao ponto de abolir, por completo, a obrigação de dar à luz, já justificam, todavia, que, em situações excepcionais, seja admissível - e em certos casos seja mesmo indicado - que se lhe não imponha essa obrigação, competindo ao legislador definir esses casos, atendendo ao critério explanado de não exigibilidade. Por outro lado, não se encontra vedado ao legislador adoptar um conceito de protecção do nascituro que, na fase inicial da gravidez, centre a sua atenção em medidas de tipo preventivo, designadamente no aconselhamento da grávida, prescindindo de uma eventual ameaça penal, tida como uma extrema ratio, demonstradamente ineficaz para defender a vida pré-natal. Esta «descriminalização» não pode contender com a ilegitimidade do aborto, pois a grávida tem o dever de não interromper a gravidez, continuando assim aquela conduta a dever ter-se como um acto ilícito, embora legalmente não punível, pelo que o Tribunal nessa medida, declarou a inconstitucionalidade de várias normas sujeitas à sua apreciação.
Procurando dar execução aos princípios estabelecidos na decisão do Tribunal Constitucional, uma lei de 21 de Agosto de 1995 procedeu a uma modificação do Código Penal, sendo que, actualmente, a interrupção voluntária da gravidez praticada por um médico, com o acordo da mulher grávida, também nunca é punível, desde que efectuada nas primeiras 12 semanas e a mulher se tenha submetido a aconselhamento, no mínimo três dias antes da intervenção, sendo que esse aconselhamento visa encorajar a mulher a prosseguir a gravidez e abrir-lhe perspectivas para uma vida com a criança, ajudando-a a tomar uma decisão responsável e em consciência.
29 - Na Áustria, a situação legal, desde 1975, é a do reconhecimento do direito da mulher a livremente decidir efectuar a interrupção voluntária da gravidez, após consulta médica, durante os primeiros três meses de gestação.
O Código prevê ainda a não punibilidade do aborto, sem qualquer prazo, nos casos de indicações médicas, eugénicas ou de menoridade da grávida.
O Tribunal Constitucional austríaco foi chamado a pronunciar-se sobre esta alteração legislativa, tendo concluído pela sua não inconstitucionalidade, entendendo que não se verificava violação do artigo 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pois que este apenas protegeria a vida já nascida. E, por outro lado, considerou que as leis básicas em matéria de direitos fundamentais apenas asseguram protecção contra o Estado e não contra outros cidadãos, mantendo-se estritamente fiel a uma visão clássico-liberal (Théo Ohlinger, «L'interruption volontaire de grossesse et le droit à la vie en Autriche», Annuaire ..., cit., pp. 97 e segs.).
30 - Na Bélgica, uma nova lei relativa à interrupção voluntária da gravidez foi aprovada em 1990, modificando a redacção até aí em vigor das pertinentes disposições do Código Penal.
Segundo esta lei, a interrupção voluntária da gravidez não será tida como infracção quando requerida pela mulher e praticada por um médico, até à 12.ª semana, em estabelecimento de saúde dotado das condições adequadas. A mulher é sujeita a aconselhamento prévio, devendo ser informada dos riscos médicos da intervenção e, bem assim, dos direitos e apoios de natureza social e psicológica que pode obter no caso de levar a gravidez até ao seu termo. Por outro lado, a intervenção só pode ser efectuada, no mínimo, seis dias após a primeira consulta.
Após a 12.ª semana, a interrupção voluntária da gravidez apenas poderá ser praticada no caso de o seu prosseguimento pôr em risco a saúde da mulher ou de a criança a nascer vir a ser portadora de doença grave.
31 - Na Dinamarca, a regulamentação da interrupção voluntária da gravidez consta de legislação de 1973, com alterações introduzidas em 1975.
Nos termos dessa legislação, a interrupção voluntária da gravidez é livre, se solicitada pela mulher até às 12 semanas de gestação.
Após esse prazo, a grávida necessita de apresentar requerimento fundamentado, numa das indicações específicas constantes da lei - perigo de diminuição da saúde da mulher, gravidez resultante de crime sexual, risco de o feto vir a sofrer graves doenças físicas ou psíquicas, inaptidão ou imaturidade da mulher, e ainda factores sociais, pessoais, familiares ou profissionais -, a fim, de obter autorização para a realização do aborto.
32 - Em Espanha, desde 1985, o aborto não é punível quando praticado, com o consentimento da mulher, por um médico, num estabelecimento oficial ou particular, devidamente licenciado:
Para evitar um grave perigo para a vida ou saúde física ou psíquica da grávida;
Em caso de gravidez que tenha resultado de crime de violação, que tenha sido denunciado, e desde que não tenham decorrido mais de 12 semanas a partir da concepção;
Quando se presuma que o feto poderá nascer com graves taras físicas ou psíquicas, até às 22 sem nas de gestação.
Numa sentença de 11 de Abril de 1985 (Jurisprudência Constitucional, t. 11.º, 1986, p. 546), o Tribunal Constitucional, em fiscalização preventiva, adoptou uma solução de compromisso, aceitando as indicações do projecto de lei, mas considerando que as exigências processuais estabelecidas eram insuficientes.
Assim, entendeu que o embrião constitui um bem jurídico constitucionalmente protegido, mas não goza ainda, no entanto, do direito absoluto à vida. A vida começa com a gestação, a qual origina um tertium relativamente à mãe, devendo ser dada importância ao momento do nascimento e também ao momento em que o nascituro é susceptível de vida independentemente da mãe. Reconhecendo, ainda, que a Constituição consagra o valor jurídico fundamental à dignidade humana, intimamente relacionado com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, ao direito à vida e à integridade física e psíquica, que são naturalmente direitos da mulher grávida, o Tribunal retira a conclusão de que os direitos da mulher podem entrar em conflito com a vida do embrião; mas na medida em que nenhum deles poderá prevalecer sistematicamente sobre o outro, caberá ao legislador, sob o controlo do Tribunal Constitucional, procurar conciliar esses direitos e esse bem constitucionalmente protegidos (cf. Pierre Bon, «L'interruption volontaire de grossesse dans la jurisprudence du Tribunal Constitutionnel espagnol», Annuaire ..., cit., pp. 119 e segs.).
É comum reconhecer que a lei espanhola tem sido objecto de interpretação lata, quiçá ampliativa, designadamente no que se refere ao conflito com a saúde psíquica da mulher. Neste sentido, o citado relatório de 1997 da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias assinalava:
«No caso em apreço, uma lei cuja letra é mais restritiva que a portuguesa conduziu em Espanha à elevação do número de abortos, tanto em meio hospitalar como no sistema de saúde privado. Mulheres portuguesas recorrem, de resto, a essas clínicas do outro lado da antiga fronteira, em condições de sigilo e segurança razoáveis, no quadro das regras europeias em matéria de liberdade de circulação. Aí encontram o que, com letra de lei menos restritiva, o sector privado não lhes propicia e o sector público lhes recusa em Portugal.»
Todavia, o Governo Espanhol (cf. El Mundo, de 8 de Julho de 1995) e os grupos parlamentares do PSOE e da Esquerda Unida, em 1995, apresentaram iniciativas legislativas, visando a despenalização da interrupção voluntária da gravidez efectuada nas primeiras 12 semanas, após prévio aconselhamento e decurso de um período de reflexão, quando, a juízo da mulher, aquela lhe pudesse causar um grave conflito pessoal, familiar ou social; e incluindo o que é designado el cuarto supuesto como causa de justificação da interrupção voluntária da gravidez - a saber, o caso de extrema necessidade económica e social da mãe.
Só que estas iniciativas não chegaram a ser debatidas, devido à dissolução antecipada do Congresso.
33 - Na Finlândia, uma lei de 1970, revista em 1971 (Schwangerschaftsabbruch im internationalen Vergleich - Teil 1: Europa, AIbin Eser/Hans-Georg Koch, Baden-Baden, 1988, p. 1479), determina que a interrupção voluntária da gravidez é da iniciativa da mulher, verificando-se alguma das seguintes circunstâncias:
Quando a continuação da gravidez ou o parto, por motivos de saúde, constituição física ou deficiência da mulher, impliquem um risco inadmissível para a sua saúde ou vida;
Quando a gravidez tenha resultado de crime contra a autodeterminação sexual da mulher ou de relações sexuais entre parentes;
Quando seja previsível que a criança a nascer venha a sofrer de doença grave ou de deficiência física ou psíquica;
Quando, à data do início da gravidez, a mulher não tenha atingido os 17 anos ou tenha completado os 40, ou já tenha quatro filhos;
Quando os pais da criança ou um deles sofra de doença, perturbação psíquica ou outra causa semelhante que limite de forma séria a sua capacidade de cuidar da criança a nascer;
Quando o parto ou os cuidados a dar à criança representem um fardo demasiado pesado, atendendo às circunstâncias de vida da mulher e da sua família ou a outras circunstâncias relevantes.
A mesma lei dispõe ainda que a interrupção voluntária da gravidez deve ocorrer o mais cedo possível, não devendo ser realizada após as 16 semanas, excepto nos casos de doença ou deficiência da mulher, podendo a administração médica, no caso de a mulher ainda não ter completado os 17 anos, ou havendo motivos específicos, autorizá-la após esse prazo, ainda que não além das 20 semanas.
34 - Em França, a interrupção voluntária da gravidez foi regulada por uma lei de 1975, que sofreu posteriormente algumas alterações.
A mulher grávida, cujo estado a coloque em situações de angústia, pode pedir a um médico a interrupção de gravidez até à 10.ª semana. A intervenção só pode ser efectuada após período de reflexão subsequente a consulta de aconselhamento, em que, designadamente, a mulher seja informada dos direitos e ajudas sociais de que poderia beneficiar se viesse a ter o filho.
No entanto, a interrupção voluntária da gravidez pode ser praticada a todo o tempo se dois médicos atestarem que a sua prossecução põe em perigo grave a saúde da mulher, ou se existir uma forte probabilidade de que o nascituro venha a sofrer de uma afecção de particular gravidade, reconhecida como incurável no momento do diagnóstico.
Na sua decisão de 15 de Janeiro de 1975 (Louis Favoreu/Loïc Philip, Les grandes décisions du Conseil constitutionnel, 9.ª ed., Dalloz, 1997, p. 305), em que se debruçou sobre um pedido de apreciação da conformidade das normas relativas à interrupção voluntária da gravidez com o direito internacional (Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e com o texto constitucional, o Conselho Constitucional procurou também uma solução de compromisso quanto à questão de fundo. Considerou aquele órgão que as normas em causa não eram inconstitucionais, porque, designadamente, respeitavam a liberdade das pessoas chamadas a intervir numa interrupção voluntária da gravidez e não permitiam qualquer afronta ao princípio do respeito pelo ser humano, desde o início da vida (mas sem indicar quando este se verifica), se não em caso de necessidade e nas condições e limites definidos por lei.
35 - Na Grécia, a interrupção voluntária da gravidez, efectuada por um médico com o consentimento da mulher, é permitida desde que:
Não ultrapasse as 12 semanas de gravidez, não sendo exigível qualquer justificação;
Por meios modernos de diagnóstico pré-natal, haja indicações de anomalias no embrião, das quais resultaria o nascimento de uma criança patológica, e a duração da gravidez não ultrapasse as 24 semanas;
Exista perigo de morte ou perigo de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher grávida;
A gravidez resulte de violação da mulher, sedução de menor, incesto ou abuso de mulher incapaz de resistir e a duração da gravidez não ultrapasse as 19 semanas.
36 - Na Holanda, uma lei de 1981 (Schwangerschaftsabbruch ..., cit., p. 1068) estabelece que a interrupção voluntária da gravidez só pode ser praticada em hospital ou clínica autorizados pelo Ministério da Saúde Pública, depois de decorrido um prazo de reflexão e consulta informativa e se comprovar que a mulher manifestou e manteve o seu pedido de abortar de livre vontade. A situação de emergência da mulher que a conduz ao aborto é apenas por ela apreciada com o seu médico.
Apesar de a lei não fixar qualquer prazo limite para a realização do aborto, remetendo para a viabilidade do feto, tem-se entendido que, na prática, não deve exceder as 20 semanas (Hans-Joseph Scholten, Schwangerschaftsabbruch ..., cit., p. 1020).
37 - Na Irlanda, o aborto não é permitido, reconhecendo a Constituição o direito à vida do nascituro.
No seguimento de uma decisão do Supremo Tribunal de 5 de Março de 1992, relativa ao aborto, em que foi reconhecido o direito de viajar para fora do país para a prática do mesmo, passaram pelas duas câmaras três propostas de alteração à Constituição. A primeira, visando a legalização da interrupção voluntária de gravidez quando a vida da mãe estiver em perigo; a segunda, a possibilidade de viajar para o estrangeiro para a prática do aborto, e a terceira, o acesso à informação sobre os serviços de interrupção da gravidez legalmente disponíveis no estrangeiro. Uma vez que, na Irlanda, qualquer proposta de alteração à Constituição tem de ser aprovada por referendo, os referidos projectos foram submetidos a voto popular ainda em 1992, tendo sido rejeitado o projecto relativo à interrupção da gravidez para salvaguarda do direito à vida da mãe e aprovados os dois restantes, que entraram logo em vigor.
Assim, na Irlanda é proibido o aborto em qualquer circunstância, mas livre a divulgação dos locais onde se pode ir abortar no estrangeiro.
38 - Uma lei de 1978 regula, em Itália, a protecção social da maternidade e a interrupção voluntária da gravidez. Nela se determina:
«O Estado garante o direito a uma procriação responsável e desejada, reconhece o valor social da maternidade e protege a vida humana desde o início.
A interrupção voluntária da gravidez criada pela presente lei não é um meio de controlo dos nascimentos [...]»
Os centros de consulta familiar prestam assistência à mulher grávida, devendo ajudá-la a ultrapassar as causas que poderiam conduzi-la a interromper a sua gravidez. A mulher deve contactar um centro de consulta pública, ou um serviço médico-social, ou um médico, quando se encontra em situação tal que a continuação da gravidez, o nascimento ou a maternidade constituam um grave perigo para a sua saúde física ou psíquica, tendo em consideração o seu estado de saúde, as suas condições económicas, sociais ou familiares, bem como as circunstâncias em que se realizou a concepção, ou a probabilidade de que a criança a nascer apresente anomalias ou malformação. Estes serviços devem realizar um exame médico e esclarecer e ponderar em conjunto com a mulher e com o autor da concepção - se a mulher assim consentir - todas as soluções possíveis.
Em todo o caso, durante os primeiros 90 dias da gravidez, a decisão de abortar cabe à mulher, apenas sujeita à mencionada consulta e a um prazo de reflexão, salvo em caso de urgência.
Esta legislação foi aprovada na sequência de uma decisão do Tribunal Constitucional Italiano de 1975 (Giurisprudenza Costituzionale, anno ventesimo, 1975, p. 117), que se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade da norma punitiva do aborto, na medida em que não previa a possibilidade da interrupção voluntária da gravidez quando o prosseguimento da gestação implicasse dano ou perigo grave para a saúde da mãe, desde que medicamente comprovado, e não evitável de outro modo. Para tanto considerou que o embrião constitui um interesse constitucionalmente protegido e tem direito à vida; todavia, não há equivalência entre o direito à vida ou à saúde da mulher, a qual é já uma pessoa humana, e a defesa do embrião, que ainda deverá tomar-se pessoa (Gustavo Zagrebelsky, «Table Ronde sur l'Interruption Volontaire de Grossesse», Annuaire ..., cit., pp. 169 e segs.).
Mais tarde, já em 1981, chamado a pronunciar-se sobre a nova legislação, o Tribunal Constitucional Italiano viria a considerar que a despenalização de certas condutas se inscreve exclusivamente na competência do legislador, restringindo-se a sua intervenção à defesa das liberdades dos cidadãos, pelo que não tomou sequer conhecimento das questões de constitucionalidade suscitadas (Giurisprudenza Costituzionale, ano XXVI, 1981, sent. 108, fasc. 6, pp. 908 e segs.).
Mais recentemente, em 1997 (Giurisprudenza Costituzionale, ano XLII, 1997, sent. 35, fasc. 1, pp. 281 e segs.), o Tribunal viria a julgar inadmissível uma proposta de referendo ab-rogativo, tendente a eliminar toda a regulamentação legal da interrupção da gravidez durante os primeiros 90 dias.
Reafirmando o direito à vida do nascituro e o princípio segundo o qual a interrupção voluntária da gravidez não pode constituir meio de controlo da natalidade, o Tribunal considerou que tal era incompatível com a revogação de todas as disposições legais que tinham como objectivo assegurar a protecção daqueles interesses nos primeiros 90 dias de gravidez. E isto, desde logo, porque se pretendia «uma pura e simples supressão de toda a regulamentação legal - e não apenas uma irrelevância penal».
39 - No Luxemburgo, o aborto é regulado por uma lei de 1978, relativa à informação sexual, à prevenção do aborto clandestino e à regulamentação da interrupção da gravidez.
A lei em causa permite a interrupção voluntária da gravidez até às 12 semanas de gestação quando:
O seu prosseguimento acarrete perigo para a saúde psíquica e física da mulher grávida;
Exista um risco sério para o nascituro de ser atingido por doença grave, malformações físicas ou alterações psíquicas importantes;
Resulte de violação da mulher;
A grávida tenha consultado um médico, ginecologista ou obstetra que a tenha informado dos riscos médicos da intervenção e ela tenha manifestado por escrito a sua vontade de abortar.
A interrupção voluntária de gravidez apenas poderá ser efectuada, salvo perigo iminente para a vida da mulher, após um período de reflexão, designadamente nos casos em que o aborto resulta de livre decisão da mulher, sem qualquer indicação específica.
40 - No Reino Unido, o aborto é punido por legislação de 1861, mas alterações introduzidas em 1967 e 1990 vieram regular, ex novo, a interrupção voluntária da gravidez.
Assim, não é considerada infracção a interrupção voluntária da gravidez realizada por médico, após parecer de outros dois médicos, desde que:
A gravidez não tenha excedido as 24 semanas e a sua continuação envolva um risco, maior do que a sua interrupção, para a saúde física ou mental da mulher grávida ou de qualquer criança da sua família;
A interrupção da gravidez seja necessária para prevenir dano grave permanente para a saúde física ou mental da mulher grávida;
A continuação da gravidez envolva um risco superior para a vida da mulher grávida do que o resultante da sua interrupção;
Haja um risco substancial de que a criança a nascer sofra de anomalias físicas ou mentais susceptíveis de a diminuírem seriamente.
Na prática, o sistema veio permitir uma crescente liberalização da interrupção voluntária da gravidez (cf. Albin Eser/Hans-Georg Koch, Schwangerschaftsabbruch ..., cit., p. 688).
41 - Finalmente, na Suécia, a interrupção voluntária da gravidez é regulada por uma lei de 1974 (Schwangerschaftsabbruch ..., cit., p. 1471), podendo ser efectuada, a pedido da mulher, por médico em estabelecimento oficial ou clínica autorizada:
Até às 12 semanas de gravidez, desde que a intervenção não apresente risco para a saúde da mulher;
Entre a 12.ª e a 18.ª semanas, após consulta com o assistente da segurança social (Kurator), o qual apreciará a situação e condições, sociais e psicológicas, da mulher, informando-a ainda do necessário para que esta tome uma decisão, mas sem quaisquer consequências jurídicas para a não observância deste processo;
Após a 18.ª semana de gestação, ocorrendo «fundamentos específicos», mediante uma autorização da segurança social, a qual poderá não ser concedida em caso de se constatar que o feto tem viabilidade.
42 - Da análise comparativa do regime jurídico atinente à punibilidade da interrupção voluntária da gravidez no quadro dos países da União Europeia resulta que, salvo na Irlanda, o aborto não é punido quando efectuado dentro de certos prazos e existam indicações de ordem terapêutica, eugénica ou ética.
Para além disso, na esmagadora maioria desses países, que partilham uma comum concepção dos direitos fundamentais da pessoa humana - todos reconhecendo designadamente o direito à vida, desde logo no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem -, durante a fase inicial da gestação (geralmente nas 12 primeiras semanas), é possível praticar a interrupção voluntária da gravidez, em estabelecimento de saúde, por opção da mulher. Nalguns casos, essa opção da mulher, nos termos da lei, só deve ser tomada se ocorrerem motivos ponderosos; em todo o caso, a avaliação concreta das circunstâncias, embora com o auxílio do médico ou de outro aconselhamento, bem como a decisão final, cabem-lhe por inteiro. No fundo, salvo em Portugal, na Espanha e na Irlanda, «deixa-se à mulher a liberdade de decisão, embora sob diferentes modalidades» (Marilisa d'Amico, ob. cit., p. 36), sendo certo que o modo como tem sido interpretada a lei espanhola tende a aproximar o sistema vigente no país vizinho do adoptado na generalidade dos restantes componentes da União Europeia.
Todavia, também na generalidade dos casos, a decisão de abortar supõe a existência de prévia consulta de aconselhamento, designadamente destinada a informar a mulher dos direitos sociais e das ajudas de que poderia usufruir no caso de optar por levar a gravidez até ao fim. E, outrossim, essa decisão de abortar só pode normalmente ser levada à prática depois de decorrido um período de reflexão, salvo em manifesto caso de urgência.
No que diz respeito à jurisprudência constitucional, cumpre sublinhar que a maioria das jurisdições dos países em que existe um tribunal constitucional ou instituição congénere - e que tenha sido chamado a apreciar a questão da despenalização da interrupção voluntária da gravidez - reconheceu a protecção constitucional da vida intra-uterina, sendo a Áustria a única excepção.
Todavia, essa posição de partida não impediu as diversas jurisdições constitucionais de, mais tarde ou mais cedo, embora trilhando caminhos por vezes bem distintos, acabarem por aceitar a conformidade constitucional da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, não só quando ocorram certas indicações, mas também durante o primeiro terço do período gestacional, por decisão da mulher, nos termos já enunciados, quando foram confrontadas com essa situação.
B)
43 - Dispõe o artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa:
«1 - A vida humana é inviolável.
2 - Em caso algum haverá pena de morte.»
A primeira questão que se suscita, a propósito deste artigo da Constituição da República Portuguesa, é a de saber se nele se protege também a vida intra-uterina, problema de que dá conta a informação-parecer 31/82, da Procuradoria-Geral da República, elaborada pelo então procurador-geral-adjunto Manuel António Lopes Rocha (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 320, Novembro de 1982, pp. 224 e segs.; paralelamente, sobre a interpretação do artigo 2.º, § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cf. a decisão de 13 de Maio de 1980 da CEDH, no caso X. c/Reino Unido, Décisions et Rapports, vol. 19, Outubro de 1980, p. 244).
A referida informação-parecer começa por analisar as actas da Assembleia Constituinte a propósito do debate e votação da norma em causa, extraindo a conclusão de que daí «não se retira o mínimo indício de que na mente dos constituintes estivesse uma especial noção de vida humana, designadamente no plano que nos interessa, isto é, o de saber se o conceito abrange a vida intra-uterina», até porque o facto de ter sido, então, especialmente saudada a proibição absoluta da pena de morte constitui indicação ponderável «no sentido de que o preceito não foi expressamente pensado como norma reveladora de uma posição especificamente antiabortista».
Seguidamente, considera-se no mesmo documento, face ao teor e origem histórica de vários textos internacionais e, bem assim, à evolução legislativa recente em outros países, que «não se julga possível, pelas razões expostas, firmar, com carácter de certeza ou com o rigor necessário, uma interpretação do artigo 25.º (actual artigo 24.º) da Constituição da República Portuguesa no sentido de que a inviolabilidade da vida humana, aí proclamada, abranja a vida fetal ou embrionária, à luz de normas e princípios de direito internacional, inclusive constantes de convenções ou outros instrumentos a que Portugal está vinculado».
Assim, embora considerando-se que «a vida em gestação é um interesse protegido, ao menos indirectamente, na lei fundamental», o que exige uma ponderação dos interesses em presença, não se deixa de remeter, naquela informação-parecer, para um texto de Otto Bachof («Estado de direito e poder político: os tribunais constitucionais entre o direito e a política», Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LVI, 1980, pp. 9 e segs.), crítico da decisão de 1975 do Tribunal Constitucional Alemão, onde, no fundo, se entende que essa ponderação terá de caber ao legislador, designadamente quando se assinala:
«[...] Ora, pode certamente concordar-se com o tribunal em que este preceito tem por objecto não só a protecção dos indivíduos já nascidos mas também da vida ainda por nascer. Todavia, o problema de saber se esta protecção é melhor assegurada através de medidas penais ou através de outros meios (por exemplo, através de serviços de consulta e assistência, etc.), o problema de saber se a protecção começa imediatamente após a concepção, ou só passadas 12 semanas, o problema de saber se existem razões, e quais, que devam levar a considerar admissível excepcionalmente uma interrupção da gravidez (indicação médica, indicação eugénica, indicação criminológica, indicação social, etc.) - tudo isso são questões que não encontram resposta imediata na Constituição, e para cuja decisão o legislador há-de dispor consequentemente de uma larga margem de liberdade [...]»
Nesta perspectiva das coisas, que alguns perfilham, não será difícil antever uma resposta positiva à questão da constitucionalidade do referendo proposto.
Com efeito, nessa visão, constituindo a vida em gestação um bem jurídico (em colisão com certos direitos da mulher), mas não beneficiando ela necessariamente da tutela concedida pelo artigo 24.º da Constituição, bem se compreende que a solução de todos os problemas elencados por Otto Bachof - entre os quais se encontra o que ora nos ocupa - recaia sobre o legislador. É que, neste entendimento das coisas, a questão da despenalização do aborto tem de ser tratada como uma mera questão de política criminal, pertencendo obviamente ao legislador a opção entre punir e não punir. Aliás, a solução idêntica ou, pelo menos, não muito diversa chegou o Tribunal Constitucional da Hungria na sentença de 9 de Dezembro de 1991 (coligida por Georg Brunner/László Sólyom, «Verfassungsgerichtsbarkeit in Ungarn», Nomos Verlagsgesellschaft, Baden-Baden, 1995, p. 256).
Assim sendo, para quem sufrague este mesmo entendimento, nem a resposta afirmativa, nem a resposta negativa, à pergunta formulada, no proposto referendo, conduzirão à adopção de medidas legislativas conflituantes com a lei fundamental.
E dir-se-á mesmo que sempre a legitimidade de submeter a referendo uma matéria em que se reconhece uma relativa discricionariedade do legislador é fundamentada, claramente, na própria dificuldade em conhecer a dimensão social do consenso sobre esta incriminação.
44 - Sublinhe-se, uma vez mais, que aquela conclusão pressupõe, apesar de tudo, que «a vida em gestação é um interesse protegido, ao menos indirectamente, na lei fundamental», avalizando, assim, o legislador ordinário a recorrer aos meios penais, se assim o considerar necessário e conveniente.
É que, a entender-se que não se está perante um bem jurídico autónomo, por o feto ser mera portium viscera matris, ou que só obtém essa autonomia como bem jurídico, por exemplo, a partir do momento em que é susceptível de sofrimento consciente, com o desenvolvimento do córtex cerebral e das suas ligações ao hipotálamo (cf. Harold J. Morowitz and James S. Trefil, The Facts of Life - Science and the Abortion Controversy, Oxford University Press, 1992), ou a partir do momento em que é susceptível de vida autónoma viável, facilmente se chegará a conclusão idêntica à encontrada pela Supreme Court norte-americana, em 1973, no célebre caso Roe v. Wade (United States Reports, vol. 410, p. 113): o aborto não pode ser restringido - e, muito menos, penalmente perseguido - antes desse momento.
A jurisprudência americana (cf. Ronald Dworkin Life's Dominion - An Argument about Abortion and Euthanasia, Harper Collins Publishers, 1993; e, também, José de Sousa e Brito, «The Ways of Public Reason - Comparative Constitutional Law and Pragmatics», International Journal for the Semiotics of Law, vol. IX, n.º 26, 1996, pp. 173 e segs.), considerando que a mulher tem constitucionalmente garantido um direito à privacy - que inclui a autodeterminação, a autonomia individual - em matéria de procriação, deduziu daí um direito a abortar até ao fim do 1.º semestre da gestação, altura em que o feto adquire viabilidade. Durante o 2.º trimestre, a interrupção voluntária da gravidez só pode ser condicionada ou restringida de forma adequada a proteger a saúde da própria mulher; até ao fim do 1.º trimestre, a livre escolha da mulher é absoluta ou, pelo menos, não pode ser sujeita a obstáculos substanciais, a undue burdens, como se esclareceu posteriormente, em 1992, no caso Planned Parenthood of Southeastern Pensylvania v. Casey (United States Reports, vol. 505, p. 833).
45 - A verdade, porém, é que não foi deste pressuposto que se partiu na anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, vertida no Acórdão 25/84 e no Acórdão 85/85, já oportunamente citados.
No primeiro daqueles arestos, escreveu-se:
«Cremos, porém, que se pode e deve concluir que também essa vida humana intra-uterina está abrangida nesses preceitos e princípios que lhes subjazem.
O que daí não resultará é a conclusão de que, então, se impõe ao direito, penal ou civil, tutelar essa vida, como veremos adiante.
Para tanto não será necessário recorrer à metafísica, como alguns pretenderiam.
Se assim fosse, não poderia o direito conferir tutela mesmo à vida humana já nascida. Também há uma metafísica ou pode haver centrada na pessoa humana com plena capacidade jurídica de direitos e deveres. Para não cair nela, há que deixar a preocupação de conceituá-la desse ângulo ou ponto de vista metafísico. Todo o direito é para o homem e não este para aquele, tendo de contentar-se com as realidades da vida individual ou social, tal como são entendidas para os fins práticos, mesmo empíricos, a alcançar na regulação (jurídica) dessas realidades.
A expressão 'vida humana' está aí na linguagem vulgar e na linguagem científica (ciências que se baseiam na observação dos sentidos, com ou sem o recurso aos instrumentos mais sofisticados de que dispõe a ciência e a medicina). Está aí, digamos, na natureza das coisas apreensível pelos sentidos e pela intuição sensível. Nesse sentido torna-se evidente, sem necessidade de demonstração conceitual ou racional.
Também assim para a vida humana, na fase intra-uterina, anterior ao nascimento. Os progressos da ciência, designadamente da genética, embriologia e fetologia, são hoje tão conhecidos que dispensam aqui desenvolvimentos ou demonstrações de qualquer outra ordem.»
E, posteriormente, no Acórdão 85/85, explicitou-se:
«[...] entende-se que a vida intra-uterina compartilha da protecção que a Constituição confere à vida humana enquanto bem constitucionalmente protegido (isto é, valor constitucional objectivo), mas que não pode gozar da protecção constitucional do direito à vida propriamente dito - que só cabe a pessoas -, podendo portanto aquele ter de ceder, quando em conflito com direitos fundamentais ou com outros valores constitucionalmente protegidos.
[...]
[...] a vida intra-uterina não é constitucionalmente irrelevante ou indiferente, sendo antes um bem constitucionalmente protegido, compartilhando da protecção conferida em geral à vida humana enquanto bem constitucional objectivo (Constituição, artigo 24.º, n.º 1). Todavia, só as pessoas podem ser titulares de direitos fundamentais - pois não há direitos fundamentais sem sujeito -, pelo que o regime constitucional de protecção especial do direito à vida, como um dos 'direitos, liberdades e garantias pessoais', não vale directamente e de pleno para a vida intra-uterina e para os nascituros.
É este um dado simultaneamente biológico e cultural, que o direito não pode desconhecer e que nenhuma hipostasiação de um suposto 'direito a nascer' pode ignorar: qualquer que seja a sua natureza, seja qual for o momento em que a vida principia, a verdade é que o feto (ainda) não é uma pessoa, um homem, não podendo por isso ser directamente titular de direitos fundamentais enquanto tais. A protecção que é devida ao direito de cada homem à sua vida não é aplicável directamente, nem no mesmo plano, à vida pré-natal, intra-uterina.
Esta distinção é de primacial importância, sobretudo no que respeita a conflitos com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Sendo difícil conceber que possa haver qualquer outro direito que, em colisão com o direito à vida, possa justificar o sacrifício deste, já são configuráveis hipóteses, em que o bem constitucionalmente protegido que é a vida pré-natal, enquanto valor objectivo, tenha de ceder em caso de conflito, não apenas com outros valores ou bens constitucionais, mas sobretudo com certos direitos fundamentais (designadamente os direitos da mulher à vida, à saúde, ao bom nome e reputação, à dignidade, à maternidade consciente, etc.).»
Este entendimento de que a vida intra-uterina se encontra abrangida pelo artigo 24.º, n.º 1, da lei fundamental é partilhado por boa parte da doutrina, quer a que sustenta que ela merece protecção ao mesmo título que a vida já nascida (cf., por todos, António Manuel de Almeida Costa, «Aborto e direito penal - Algumas considerações a propósito do novo regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez», Revista da Ordem dos Advogados, ano 44, Dezembro de 1984, pp. 614 e segs.), quer a mais próxima das teses defendidas na jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf. Maria Fernanda Palma, Direito Penal - Parte Especial. Crimes contra as Pessoas, Lisboa, 1983, p. 138; e A Justificação por Legítima Defesa como Problema de Delimitação de Direitos, vol. I, AAFDL, 1990, p. 554, e, também, Rui Pereira, ob. cit., pp. 143 a 147). A este propósito, referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição ..., nota IV ao artigo 24.º, p. 175):
«A Constituição não garante apenas o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas. Protege igualmente a própria vida humana, independentemente dos seus titulares, como valor ou bem objectivo - é nesse sentido que aponta a redacção do n.º 1. Enquanto bem ou valor constitucionalmente protegido, o conceito constitucional de vida humana parece abranger não apenas a vida das pessoas mas também a vida pré-natal, ainda não investida numa pessoa, a vida intra-uterina (independentemente do momento em que se entenda que esta tem início). É seguro, porém, que: (a) o regime de protecção da vida humana, enquanto simples bem constitucionalmente protegido, não é o mesmo que o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas, no que respeita à colisão com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (v. g., vida, saúde, dignidade, liberdade da mulher, direito dos progenitores a uma paternidade e maternidade consciente); (b) a protecção da vida intra-uterina não tem de ser idêntica em todas as fases do seu desenvolvimento, desde a formação do zigoto até ao nascimento; (c) os meios de protecção do direito à vida - designadamente os instrumentos penais - podem mostrar-se inadequados ou excessivos quando se trate da protecção da vida intra-uterina.»
46 - Nesta visão das coisas, reconhecer-se-á que o artigo 24.º da Constituição da República, para além de garantir a todas as pessoas um direito fundamental à vida, subjectivado em cada indivíduo, integra igualmente uma dimensão objectiva, em que se enquadra a protecção da vida humana intra-uterina, a qual constituirá uma verdadeira imposição constitucional.
Todavia, essa protecção da vida humana em gestação não terá de assumir o mesmo grau de densificação nem as mesmas modalidades que a protecção do direito à vida individualmente subjectivado em cada ser humano já nascido - em cada pessoa. Aliás, existe uma bem radicada e inegável tradição jurídica tendente a tratar diferenciadamente os já nascidos e os nascituros, que se revela, desde logo, na negação da personalidade jurídica a estes últimos (basta recordar o modo sugestivo como se refere à aquisição da personalidade jurídica o artigo 66.º, n.º 1, do Código Civil) e se manifesta, no âmbito do direito penal, exactamente com a incontestada punição diferenciada do aborto relativamente ao homicídio, designadamente no que se refere à distinta medida legal da pena e à não punição do aborto por negligência - e actualmente, entre nós, com a autonomização sistemática dos crimes contra a vida intra-uterina.
De todo o modo, de acordo com esta leitura, o legislador ordinário estará vinculado a estabelecer formas de protecção da vida humana intra-uterina, sem prejuízo de, procedendo a uma ponderação de interesses, dever balancear aquele bem jurídico constitucionalmente protegido com outros direitos, interesses ou valores, de acordo com o princípio da concordância prática.
A propósito do princípio da concordância prática, afirma José Carlos Vieira de Andrade (ob. cit., p. 221):
«A solução dos conflitos ou colisão não pode ser resolvida com o recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais. Não se pode sempre (ou talvez nunca) estabelecer uma hierarquia entre os bens para sacrificar os menos importantes. Os próprios bens da vida e integridade pessoal, que o n.º 4 do artigo 19.º parece positivamente considerar como bens supremos, podem ser sacrificados, total ou parcialmente [...]»
E, sobre o mesmo tema, ensina J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional ..., cit., p. 1098):
«Reduzido ao seu núcleo essencial, o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros.
O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia), que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens.»
47 - Neste contexto se perceberá que, para quem entenda que a vida humana intra-uterina constitui um bem jurídico constitucionalmente protegido pelo artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa, uma primeira questão consista em determinar em que casos e circunstâncias, efectuada uma adequada ponderação de interesses, se pode admitir a licitude da interrupção voluntária da gravidez, assim se resolvendo os eventuais conflitos entre aquele referido bem jurídico e os direitos da mulher, não só à vida, à saúde ou à dignidade, mas também a uma maternidade consciente - a que se refere o artigo 67.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa -, principalmente quando conjugado com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, recentemente consagrado no artigo 26.º da lei fundamental, com a última revisão constitucional.
Ora, não se afigura inadequado que a ponderação de interesses em causa tenha em conta o período de gestação, «sendo certo que não é indiferente, à luz da consciência cultural e jurídica, a fase de desenvolvimento do feto, reclamando este uma tutela tanto maior quanto mais próximo estiver o seu nascimento», conforme se afirmou no Acórdão 85/85.
Esta tutela, progressivamente mais exigente à medida que avança o período de gestação, poderia encontrar, desde logo, algum apoio nos ensinamentos da biologia, já que o desenvolvimento do feto é um processo complexo em que ele vai adquirindo sucessivamente características qualitativamente diferentes (cf. Harold J. Morowitz and James S. Trefil, ob. cit.); e também, para alguns, na história da filosofia e da teologia moral, onde são conhecidas, por exemplo, as diferenciações medievais entre embrio formatus e informatus ou entre foetus animatus e inanimatus, bem como teses mais recentes sobre a hominização retardada (cf. Glanville Williams, The Sanctity of Life and the Criminal Law, Faber and Faber, Ltd., 1958, pp. 140 e segs.; Joseph F. Donceel, S. J., «Immediate Animation and Delayed Hominization», Theological Studies, n.º 31, 1970, pp. 76 e segs.); ou ainda, na história jurídica comparada, já que, por exemplo, até 1803, nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, o aborto só era punido se o feto já se movimentasse no ventre materno - o quickening (Glanville Williams, ibid.). Mas o que releva, sobretudo, é que essa tutela progressiva encontra seguramente eco no «sentimento jurídico colectivo», sendo visível que é muito diferente o grau de reprovação social que pode atingir quem procure eventualmente «desfazer-se» do embrião logo no início de uma gravidez ou quem pretenda «matar» o feto pouco antes do previsível parto; aliás, esse sentimento jurídico colectivo, que não pode deixar de ser compartilhado por povos de uma mesma comunidade cultural alargada que encontra a sua expressão na União Europeia, encontra-se bem reflectido na legislação dos países que a compõem e a que se fez detida referência.
Aliás, uma diferente protecção temporal após a concepção já se encontra hoje consagrada no nosso direito penal, uma vez que se entende que, à semelhança do que acontece explicitamente com a lei alemã desde 1975, o Código Penal português só pune o aborto após a nidação (neste sentido, Maria da Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e Crime - Uma Perspectiva da Criminalização e da Descriminalização, Universidade Católica Portuguesa, Porto, 1995, p. 364, nota 996; e Rui Pereira, ob. cit., p. 131), deixando, assim, fora da tipificação penal, por exemplo, o consumo da denominada «pílula do dia seguinte», e também porque várias das indicações que conduzem à não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, desde 1984, só operam dentro de certos prazos.
48 - Ora, poderá acrescentar-se, a harmonização entre a protecção da vida intra-uterina e certos direitos da mulher, na procura de uma equilibrada ponderação de interesses, é susceptível de passar pelo estabelecimento de uma fase inicial do período de gestação em que a decisão sobre uma eventual interrupção voluntária da gravidez cabe à própria mulher.
Nem se diga que, nessa hipótese, se renuncia a qualquer harmonização ou concordância prática, uma vez que, durante esse período - in casu, as primeiras 10 semanas -, um dos interesses em jogo é absolutamente sacrificado, ficando inteiramente desprotegido.
É que a harmonização, a concordância prática, se faz entre bens jurídicos, implicando normalmente que, em cada caso, haja um interesse que acaba por prevalecer e outro por ser sacrificado. Quer isto dizer que, sempre dentro da perspectiva que agora se explicita, o legislador não poderia estabelecer, por exemplo, que o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da mulher era hierarquicamente superior ao bem jurídico «vida humana intra-uterina» e, consequentemente, reconhecer um genérico direito a abortar, independentemente de quaisquer prazos ou indicações; mas, em contrapartida, já pode determinar que, para harmonizar ambos os interesses, se terão em conta prazos e circunstâncias, ficando a interrupção voluntária da gravidez dependente apenas da opção da mulher nas primeiras 10 semanas, condicionada a certas indicações em fases subsequentes e, em princípio, proibida a partir do último estádio de desenvolvimento do feto.
Assim, neste último caso, procura-se regular a interrupção voluntária da gravidez, ainda de acordo com uma certa ponderação de interesses que tem também como critério o tempo de gestação, pelo que a referida ponderação se há-de efectuar, tendo em conta os direitos da mulher e a protecção do feto, em função de todo o tempo de gravidez, não sendo, portanto, exacto considerar isoladamente que, durante as primeiras 10 semanas, não existe qualquer valoração da vida intra-uterina; num contexto global, esta será quase sempre prevalecente nas últimas semanas, enquanto nas primeiras se dará maior relevo à autonomia da mulher (uma vez respeitadas certas tramitações legais, que, aliás, podem traduzir uma preocupação de defesa da vida intra-uterina).
49 - Todavia, há quem entenda, como Dworkin (ob. cit., p. 157), que, embora constituindo a vida humana intra-uterina um valor constitucional a proteger, a verdade é que não é possível «restringir a liberdade, em ordem a proteger um valor intrínseco, quando o efeito sobre um grupo de cidadãos for específico e grave, a comunidade estiver seriamente dividida sobre o que é necessário para assegurar o respeito por esse valor e a opinião do povo sobre esse valor reflectir essencialmente convicções religiosas fundamentais para a personalidade moral», o que impediria a punição do aborto nas primeiras fases da gravidez.
Ora, a adopção de uma tal posição conduziria inevitavelmente à inconstitucionalidade da presente proposta de referendo, uma vez que a resposta negativa à pergunta formulada determinaria uma solução jurídica materialmente inconstitucional.
No entanto, cumpre recordar que o ponto de partida dessa posição é, afinal, o adoptado na jurisprudência americana sobre a privacy, com o consequente reconhecimento de um direito constitucional a abortar na fase inicial da gestação, tal como foi delineado em Roe v. Wade.
Só que, entre nós, se o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, englobando a autonomia individual e a autodeterminação e assegurando a cada um a liberdade de traçar o seu próprio plano de vida, designadamente quando associado ao direito a uma maternidade consciente, terá a virtualidade de avalizar uma eventual opção legislativa no sentido da exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez efectuada nas primeiras 10 semanas - ou, pelo menos, no sentido de conferir à mulher o direito de, dentro desse prazo, ser ela a determinar os casos e circunstâncias que a podem justificar -, já não implicará o reconhecimento de que a mulher tem inteira liberdade de controlar a sua própria capacidade reprodutiva (um direito constitucional a livremente abortar).
Ou seja, a colisão de bens jurídicos constitucionalmente protegidos, existente no caso dos autos, pode ser resolvida pelo legislador, estando dentro da sua margem de liberdade de conformação a opção por punir - suposto que permanece, neste caso, o modelo das indicações - ou não punir a interrupção voluntária da gravidez efectuada nas primeiras 10 semanas.
Quer isto dizer, em suma, que também quem considera que a vida humana intra-uterina se encontra abrangida pela disposição do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa concluirá, neste entendimento das coisas, pela não inconstitucionalidade da proposta de referendo.
50 - De todo o modo, e ainda que se considere que a interrupção voluntária da gravidez constitui um acto ilícito, nem por isso se tem obrigatoriamente de concluir pela inconstitucionalidade da solução despenalizadora implicada pela resposta afirmativa à pergunta formulada.
Com efeito, logo no Acórdão 25/84, este Tribunal, depois de referir que a generalidade dos autores assinala as elevadas cifras negras do crime de aborto e a raridade das efectivas condenações penais, sublinhava que «a repressão penal, à luz do chamado princípio da subsidiariedade, só se justifica se for proporcionada e, para o ser, precisa de ter eficácia. Quando esta não se alcance, então devem procurar-se outros meios ou processos de evitar tal flagelo».
E, a este mesmo propósito, escreveu-se no Acórdão 85/85:
«[...] Por outro lado, independentemente da natureza da protecção constitucional da vida intra-uterina, nada, porém, impõe constitucionalmente que essa protecção tenha de ser efectivada, sempre e em todas as circunstâncias, mediante meios penais, podendo a lei não recorrer a eles quando haja razões para considerar a penalização como desnecessária, inadequada ou desproporcionada, ou quando seja possível recorrer a outros meios de protecção mais apropriados e menos gravosos.»
E, mais adiante, acrescentou-se:
«Enquanto bem constitucionalmente protegido, também a vida intra-uterina reclama portanto a protecção do Estado. Todavia, entre afirmar isso e sustentar que essa protecção tem de revestir, por força da Constituição, natureza penal, mesmo contra a mulher grávida (que em si aloja e sustenta o feto), vai uma enorme distância, não podendo por isso partir-se do princípio de que a ausência de protecção penal equivale pura e simplesmente a desamparo e desprotecção.
A verdade é que o recurso a meios penais está constitucionalmente sujeito a limites bastante estritos. Consistindo as penas, em geral, na privação ou sacrifício de determinados direitos (máxime, a privação da liberdade, no caso da prisão), as medidas penais só são constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e proporcionadas à protecção de determinado direito ou interesse constitucionalmente protegido (cf. artigo 18.º da Constituição), e só serão constitucionalmente exigíveis quando se trate de proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e essa protecção não possa ser garantida de outro modo. Existe aqui, sem dúvida, ampla margem de discricionariedade legislativa, na opção por meios penais ou por outros. Mas parece evidente que é bastante mais gravosa a penalização indevida do que a falta de penalização, lá onde ela deveria existir: pode haver alternativas para a penalização, não há remédio para a penalização desnecessária ou injusta ... Em princípio, a norma penal, sobretudo quando recorre a penas privativas da liberdade, deve constituir uma última instância dos meios de tutela estaduais dos valores constitucionalmente protegidos.
No caso do aborto e da garantia da vida intra-uterina, outros meios de tutela e de combate ao aborto existem que devem preceder os meios penais (medidas de educação sexual que previnam os casos de gravidez indesejada, medidas de aconselhamento, de facilidades laborais e de apoio económico e social que ajudem a mulher a assumir a gravidez e a desejar levá-la a termo) e cuja ausência ou insuficiência só torna mais gravosas e desproporcionadas as normas penalizadoras.
Sob um ponto de vista jurídico-constitucional, a tutela penal há-de ser a ultima ratio das medidas culturais, económicas, sociais e sanitárias, e não um sucedâneo para a falta delas.
A verdade é que, não só não se tem por adquirido que a protecção da vida intra-uterina exija em geral e em absoluto o instrumento da penalização, como nem sequer se tem por indiscutível (para dizer o menos ...) que a penalização geral seja instrumento adequado para combater eficazmente o aborto.»
51 - É este o entendimento que se continua a sufragar, na esteira do ensinamento de Costa Andrade («O aborto como problema de política criminal», Revista da Ordem dos Advogados, ano 39, Maio-Agosto de 1979, pp. 293 e segs.):
«[...] a política criminal determina-se por critérios de eficácia e de rentabilidade. Sem que tal implique a recusa de todo o lastro ético, a política criminal deve concretizar-se em soluções dirigidas à maximização do conformismo e dos ganhos sociais e à minimização dos seus custos.
Assente, v. g., que o aborto constitui um acto em si irrecusavelmente negativo e intrinsecamente mau, daí não decorre axiomaticamente a necessidade da sua criminalização. Entre aquela constatação e esta injunção de política criminal medeia uma solução de continuidade e um salto qualitativo que só podem vencer-se se, e na medida em que, se concluir que a criminalização do aborto é um instrumento efectivo de prevenção e não acarreta consequências disfuncionais significativas.»
Aliás, o mesmo autor viria ainda a afirmar («O novo Código Penal e a moderna criminologia», Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, fase I, Lisboa, 1983, nota 34, p. 228):
«Este entendimento das coisas revela-se prenhe de consequências. Tanto no plano material - a ilegitimidade constitucional de criminalizar/descriminalizar em contravenção dos princípios sumariamente expostos - como no plano orgânico-formal. Quanto a este último, importa, acima de tudo, salvaguardar o 'primado político do legislador' (Bachof) nos espaços de discricionariedade decorrentes do princípio da subsidiariedade. A sub-rogação de qualquer outro órgão neste domínio, designadamente do Tribunal Constitucional, representaria uma questionável transposição das fronteiras entre o jurídico e o político e uma violação do princípio da separação dos poderes. Como refere Bachof, deve reservar-se ao legislador a competência para definir os objectivos políticos e os critérios de adequação, como assumir os riscos pelas expectativas ou prognósticos sobre cuja antecipação assentam as suas decisões normativas.»
E no mesmo sentido se pronuncia, a propósito da punição do aborto no Estado social de direito, Maria Fernanda Palma (Direito Penal, cit., p. 139):
«Para além disso, a protecção da vida ou de qualquer outro bem jurídico não assume, na ideologia subjacente a este tipo histórico de Estado, uma imediata carência de protecção penal. Não é sequer verdadeiro, para o sistema jurídico-político deste tipo de Estado, que, sempre que certos comportamentos lesionem bens jurídicos fundamentais, se tenha de recorrer à intervenção do direito penal.»
Quer isto dizer que se reconhece a discricionariedade do legislador para optar pelo uso de meios penais, até porque, no caso vertente, nem existe consenso social em torno da criminalização, nem se exclui que se esteja perante um direito penal simbólico, nem se demonstra que aqueles meios não possam ser vantajosamente substituídos por outros de maior eficácia prática.
A isto acresce que as circunstâncias de facto, às quais só o legislador poderá dar resposta, permitem que, numa sociedade europeia em que praticamente foram abolidas as fronteiras, se crie uma escandalosa situação de desigualdade perante a lei penal: quem usufruir de razoável situação económica e pretender interromper a gravidez, quiçá por comodismo, poderá impunemente fazê-lo numa boa clínica de um país europeu; mas quem não tiver capacidade económica e for levada ao aborto por necessidade correrá o duplo risco da intervenção clandestina e da sanção penal.
Como recorda Marc Verdussen, «se a repressão penal é um atributo da soberania do Estado» e se, por outro lado, «a reacção do Estado à transgressão dos valores sociais fundamentais é inelutável, não tem ela necessariamente, porém, de tomar o caminho das sanções penais» (Contours et enjeux du droit constitutionnel pénal, Bruylant, Bruxelas, 1995, p. 698).
52 - A admissibilidade constitucional do reconhecimento da licitude da interrupção voluntária da gravidez realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, ou, pelo menos, da renúncia à utilização de sanções penais, nessas circunstâncias, não pode, porém, ser interpretada como aceitação de que a lei fundamental consagra o aborto como método de planeamento familiar ou de controlo da natalidade.
A isso se opõe o entendimento de que a vida humana intra-uterina constitui um bem jurídico protegido, independentemente do título a que deva tal protecção.
Nesta conformidade, afiguram-se particularmente importantes, por poderem vir a revelar-se bem mais eficazes que a própria repressão penal, medidas comuns à generalidade das legislações europeias sobre a matéria, como sejam a obrigatoriedade de uma prévia consulta de aconselhamento, em que possa ser dada à mulher a informação necessária sobre os direitos sociais e os apoios de que poderia beneficiar no caso de levar a termo a gravidez, bem como o estabelecimento de um período de reflexão entre essa consulta e a intervenção abortiva, para assegurar que a mulher tomou a sua decisão de forma livre, informada e não precipitada, evitando-se a interrupção da gravidez motivada por súbito desespero.
É bem verdade que estes elementos não constam da pergunta formulada. Todavia, como já se referiu, não seria possível integrá-los a todos na mencionada pergunta sem que esta assumisse proporções inadmissíveis. E nada permite concluir que, em caso de resposta afirmativa no referendo, não possam vir a constar da legislação aprovada na sua sequência.
53 - Em suma, entende-se que, não havendo uma imposição constitucional de criminalização na situação em apreço, cabe na liberdade de conformação legislativa a opção entre punir criminalmente ou despenalizar a interrupção voluntária da gravidez efectuada nas condições referidas na pergunta constante da proposta de referendo aprovada pela Resolução 16/98 da Assembleia da República.
Assim, também sob o ponto de vista da conformidade material com a Constituição das soluções jurídicas envolvidas pela resposta - afirmativa ou negativa - à pergunta formulada se não suscitam obstáculos àquele referendo.
IV
54 - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
1.º Considerar que:
a) A proposta de referendo constante da Resolução 16/98 da Assembleia da República foi aprovada pelo órgão competente para o efeito, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 115.º da Constituição da República Portuguesa;
b) O referendo proposto tem por objecto questão de relevante interesse nacional que deve ser decidida pela Assembleia da República através de acto legislativo, conforme se preceitua no n.º 3 do mesmo artigo;
c) A matéria sobre que ele incide não se encontra excluída do âmbito referendário, de acordo com o estabelecido no n.º 4 do mencionado artigo 115.º;
d) Não constitui óbice à sujeição a referendo, consoante resulta do estatuído no artigo 4.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo, aprovada pela Lei 15-A/98, de 3 de Abril, a circunstância de a questão a referendar ter sido suscitada por acto legislativo em processo de apreciação, tendo o correspondente projecto de lei sido já aprovado na generalidade;
e) O referendo proposto recai sobre uma só matéria, através de uma só pergunta, sem quaisquer considerandos, preâmbulos ou notas explicativas, sendo a questão formulada para uma resposta de sim ou não, cumprindo, nestes aspectos, as exigências constantes do n.º 6 do artigo 115.º da Constituição e do artigo 7.º da referida Lei Orgânica do Regime do Referendo;
f) A pergunta formulada satisfaz os requisitos de objectividade, clareza e precisão enunciados nas mesmas disposições;
g) A proposta de referendo respeitou as formalidades especificadas nos artigos 10.º a 14.º da Lei Orgânica do Regime do Referendo, aprovada pela Lei 45/91, de 31 de Agosto, ainda em vigor à data em que se desenrolou aquele processo parlamentar;
h) A restrição da participação no referendo proposto aos cidadãos residentes em território nacional cumpre os requisitos do universo eleitoral definido no n.º 12 do mencionado artigo 115.º da Constituição;
i) O Tribunal Constitucional, no âmbito da verificação prévia da constitucionalidade do referendo, a que se refere a alínea f) do n.º 2 do artigo 223.º da Constituição, é competente para apreciar se a pergunta formulada não coloca os eleitores perante uma questão dilemática em que um dos respectivos termos aponta para uma solução jurídica inconstitucional;
j) Nenhuma das respostas - afirmativa ou negativa - à pergunta formulada implica necessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição;
2.º Consequentemente, ter por verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na mencionada Resolução 16/98 da Assembleia da República.
Lisboa, 17 de Abril de 1998. - Luís Nunes de Almeida - Maria Helena Brito - José de Sousa e Brito - Maria Fernanda Palma - Bravo Serra - Artur Maurício - Guilherme da Fonseca [com declaração quanto à alínea d) do n.º 1.º da decisão] - Alberto Tavares da Costa [vencido, nos termos da declaração junta, quanto à alínea j) do n.º 1.º da decisão e, consequencialmente, quanto ao n.º 2.º] - Paulo Mota Pinto [vencido quanto às alíneas f) e j) do n.º 1.º e, consequentemente, quanto ao n.º 2.º, nos termos da declaração de voto que junto; com declaração de voto quanto à alínea h) do n.º 1.º] - Vítor Nunes de Almeida [vencido quanto à alínea j) do n.º 1.º da decisão e, consequentemente, quanto ao n.º 2.º, nos termos da declaração de voto que junto] - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza [vencida quanto às alíneas f), i) e j) do n.º 1.º e, consequentemente, quanto ao n.º 2.º, nos termos da declaração de voto que junto] - Messias Bento [vencido quanto à alínea j) do n.º 1.º e, consequencialmente, quanto ao n.º 2.º da decisão, nos exactos termos da declaração de voto que junto] - José Manuel Cardoso da Costa [com declaração de voto relativamente às alíneas f) e h) do n.º 1.º, e vencido relativamente à alínea j) do mesmo número e, consequencialmente, ao n.º 2.º da decisão, nos termos da declaração de voto que junto].
Declaração de voto
1 - Votei toda a decisão, acompanhando, de modo geral, a fundamentação utilizada no acórdão, quanto às várias questões nele versadas [e, em especial, os n.os 26, 43 e 44, relativamente às alíneas i) e j) do n.º 1.º da decisão].
Não posso, porém, deixar de registar dúvidas quanto à decisão constante da alínea d) do n.º 1.º da decisão, conquanto tenha entendido que elas não foram decisivas para me inclinar por um voto de vencido.
O próprio acórdão, remetendo para o relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, sobre o projecto de resolução 75/VII, assume o problema da «desautorização da instituição parlamentar», para concluir «por não se descortinar um verdadeiro conflito entre a 'legitimidade representativa e a democracia participativa'» (n.º 22 do acórdão).
Para tanto adopta um entendimento de aprovação do texto legislativo que passa pela aprovação definitiva, isto é, em votação final global, realçando a consideração de que um texto legislativo aprovado na generalidade pode acabar por não merecer aprovação em votação final global.
Ora, é aqui que residem as minhas dúvidas, já que aquele entendimento ampliativo degrada o exercício da democracia representativa, por via do órgão legislativo por excelência que é a Assembleia da República, a «assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses» (artigo 147.º da Constituição), abrindo a porta, com o referendo, a um mecanismo de retenção - podendo conduzir até à eliminação - de um processo legislativo parlamentar, que, aliás, no caso, envolveu um amplo debate parlamentar, polémico, esclarecedor, no qual os representantes de «todos os cidadãos portugueses» assumiram fundadamente as suas posições e expressaram-nas em votação nominal.
Aliás, as mesmas dúvidas resultam desse debate, como se pode ver do respectivo Diário da Assembleia da República, tendo alguns deputados afirmado que:
«Esta Assembleia da República, sede de representação nacional, tinha e tem toda a legitimidade para decidir sobre esta matéria» (Manuel Alegre);
A intenção «não é ouvir os portugueses mas, sim, o resultado da votação feita na Assembleia da República no dia 4 de Fevereiro» (Heloísa Apolónia);
«Só a partir de 4 de Fevereiro de 1998, quando a proposta de despenalização da interrupção voluntária da gravidez foi aprovada pela maioria desta Assembleia, é que os Srs. Deputados [...] se lembraram novamente do referendo» (Octávio Teixeira);
«Sinónimo do desrespeito do Parlamento pelas suas próprias decisões» (Isabel Castro).
Só, por consequência, num entendimento restritivo da dita aprovação, que se compadece com o teor literal do artigo 4.º da LORR, nele incluindo desde logo a aprovação na generalidade do texto legislativo - sobretudo, como no presente caso, e é reconhecido no acórdão, a opção central desse texto corresponde ao teor da pergunta em causa -, é que poderá travar um percurso de possíveis e sucessivas desautorizações da instituição parlamentar, nada impedindo que futuramente o Tribunal Constitucional reveja este seu inicial posicionamento.
2 - Também comecei por manifestar dúvidas quanto à clareza da pergunta (n.º 23 do acórdão), que se reconhece «que se pode legitimamente afigurar duvidosa», mas elas foram minimamente ultrapassadas com as respostas dadas no acórdão.
Lisboa, 17 de Abril de 1998. - Guilherme da Fonseca.
Declaração de voto
1 - Vencido, na medida em que considero não existir liberdade de conformação do legislador quanto à opção entre punir criminalmente ou despenalizar a interrupção voluntária da gravidez efectuada, por vontade da mulher, nas condições referidas na pergunta constante da proposta de referendo - pelo que entendo não ser constitucional a realização deste.
2 - A questão submetida à apreciação deste Tribunal é, na sua essência, constitucionalmente parametrizada, por um lado, pelo n.º 1 do artigo 24.º da lei fundamental, segundo o qual «a vida humana é inviolável», e, por outro, pelo direito a todos reconhecido ao livre desenvolvimento da personalidade, expressamente consagrado no n.º 1 do artigo 26.º do mesmo texto, por si ou conjugadamente com o direito a uma maternidade consciente que, para protecção da família, incumbe ao Estado garantir, organizando as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o seu exercício [alínea d) do n.º 2 do artigo 67.º da Constituição].
Neste enquadramento, que a dignidade da pessoa humana e o respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais - a que se referem, respectivamente, os artigos 1.º e 2.º da lei fundamental - densificam, há que ter presente não poderem os direitos, liberdades e garantias sofrer restrições senão nos casos expressamente previstos na Constituição, «devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos», em caso algum podendo diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (n.os 2 e 3 do artigo 18.º do mesmo diploma).
3 - Neste contexto, depara-se-me a tarefa de, preventivamente, «verificar a constitucionalidade» de um referendo onde a questão posta se compadece com a eventual despenalização da interrupção voluntária da gravidez, desde que ocorrida, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas.
Hoje, é incontroverso afirmar-se que, a partir do momento da fecundação, se inicia uma forma de vida que, desde logo, contém um acabado programa genético, único e irrepetível, o qual, se entretanto não conhecer destruição, culminará, inevitavelmente, com o nascimento de um ser humano.
Pode, assim, falar-se, no mínimo, da constituição de uma forma específica de vida humana que já contém, em si, a completa potencialidade da pessoa (assim, Albin Eser, «Genética humana. Aspectos jurídicos e sócio-políticos», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2.º, n.º 1 de 1992, p. 63) que, desde aquele momento até ao acto de nascer, nas várias fases que atravessa, deve ser respeitada e tutelada.
4 - Em conformidade com esta leitura, mesmo para quem não veja no direito à vida, cuja inviolabilidade constitucionalmente se consagra, a expressão do respeito e protecção da vida humana, de modo absoluto entendida, desde o momento da concepção, não fará sentido que o n.º 1 do artigo 24.º não contemple a vida intra-uterina, tutelando-a, sem prejuízo de se poder entender que essa tutela não tem de ser idêntica em todas as fases do seu desenvolvimento.
Semelhante foi, de resto, a orientação seguida pelos dois acórdãos do Tribunal Constitucional que se debruçaram sobre a problemática da interrupção voluntária da gravidez - os n.os 25/84 e 85/85, citados -, que o presente acórdão não enjeita: reconhecer-se-á, nessa visão das coisas, lê-se no n.º 46, que o artigo 24.º, para além de garantir a todas as pessoas um direito fundamental à vida, subjectivado em cada indivíduo, integra igualmente uma dimensão objectiva, em que se enquadra a protecção da vida humana intra-uterina, a qual constituirá uma verdadeira imposição constitucional.
E, do mesmo passo em que acrescenta não ter essa vida humana em gestação de ser protegida com o mesmo grau de densificação nem mediante as mesmas modalidades de protecção do direito à vida individualmente subjectivado, o acórdão, para solucionar os conflitos entre esse «bem jurídico» e outros direitos, interesses ou valores, socorre-se, tal-qualmente os anteriores, do princípio da concordância prática.
Com efeito, e como observa J. C. Vieira de Andrade, quando a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens que se encontrem em contradição directa, todos se encontrando efectivamente protegidos como fundamentais, a solução passará - impedido o recurso à ideia de hierarquização de valores e vedado o sacrifício puro e simples de um deles (ou alguns deles) em relação a outro - por uma harmonização que se executará através de um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito, numa óptica de necessidade e adequação (cf. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pp. 220 a 224).
A mecânica deste método passa por um juízo de ponderação e pressupõe o respeito do núcleo essencial de cada direito fundamental.
Subjacente a este princípio, como igualmente vem observando Gomes Canotilho, com recente expressão na sua obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição (Coimbra, 1998), «está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens» (p. 1098).
5 - O que ora sucede, no entanto, é que as ponderações que o princípio implica - independentemente de nem sempre serem livres de carga política, como reconhece o mesmo autor (loc. cit.) - apontam unidireccionalmente: durante um significativo lapso de tempo do período pré-natal - as 10 primeiras semanas após a concepção - releva uma única vertente do conflito: nas palavras do acórdão a «dos direitos da mulher, não só à vida, à saúde ou à dignidade, mas também a uma maternidade consciente [...] principalmente quando conjugado com o direito ao livre desenvolvimento de personalidade [...]». Ou, se se preferir, não releva, de todo, o valor vida (que, no entanto, se reconhece), tudo lhe podendo suceder nesse período, uma vez que tudo será permitido.
Caberá, então, perguntar como se alcançará a harmonização ínsita no princípio da concordância prática.
O acórdão não desconhece o ilogismo de uma ponderação de interesses feita num só sentido: a ponderação deve ser entendida globalmente, escreve-se, tendo também como critério o tempo de gestação.
Não se aceita esta lógica, salvo o devido respeito. É que a ponderação acompanhada só com esse critério (os Acórdãos n.os 25/84 e 85/85 pressupuseram o modelo das indicações) desconsidera absolutamente as 10 primeiras semanas de um ser humano em devir, negando-lhe qualquer tipo de protecção em nome do livre exercício de um outro direito que, no entanto, com ele está em aberta colisão.
Acompanha-se, assim, neste ponto, quem tem por inconstitucional a iniciativa do legislador que pretende, abstractamente, proceder à operação de concordância prática dos valores em conflito, de maneira que um deles seja destruído completamente. Não disporá o legislador, por conseguinte, de liberdade de conformação para agir consoante o pretendido, sendo certo que a «terapia» da tutela penal, ainda que temperada pela consideração de factores não meramente cronológicos, continua a dar consistência à protecção da vida.
6 - Como tal, a meu ver, a pergunta da proposta de referendo implica a eventual adopção de uma solução jurídica incompatível com o quadro constitucional, tendo presente o disposto no n.º 1 do artigo 24.º, conjugadamente com os n.os 2 e 3 do artigo 18.º da lei fundamental. - Alberto Tavares da Costa.
Declaração de voto
Votei vencido as alíneas f) e j) do n.º 1 e, consequentemente, a decisão constante do n.º 2, pelas razões que passo a expor sucintamente:
1 - Segundo os artigos 115.º, n.º 6, da Constituição e 7.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Regime do Referendo, as perguntas objecto de referendo devem ser formuladas com objectividade, clareza e precisão. Trata-se, a meu ver, de exigências que, não tendo a ver com as matérias submetidas ao referendo, são, todavia, cruciais para assegurar a correcção e a idoneidade democrática do procedimento referendário. Os princípios da inteligibilidade ou compreensibilidade e clareza e o princípio da objectividade da pergunta visam permitir aos eleitores a sua leitura e compreensão acessível e sem ambiguidades, evitando «que a vontade expressa dos eleitores seja falsificada pela errónea representação das questões» e eliminando a possível sugestão de respostas, directa ou implícita (J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, anot. X ao artigo 118.º). Exige-se, assim, a minoração, na medida do possível, do risco de leituras e entendimentos da questão pelos seus destinatários, que possam - directa ou implicitamente, por interrogações ou ambiguidades que suscitem no eleitor - apontar para uma das respostas alternativas. Sendo esta a finalidade precípua das referidas exigências, impõe-se concluir que elas devem ser apreciadas a partir justamente do ponto de vista dos destinatários, considerando mesmo, mais do que um «tipo médio» de eleitor, um tipo de eleitor com graus de instrução e literacia abaixo da média, e não podendo, assim, a precisão e o rigor técnico-científicos da questão prevalecer, na medida em que sejam susceptíveis de afectar a clareza para aquele tipo de eleitor. Por outro lado, clareza e objectividade afiguram-se-me necessariamente atributos relativos, podendo dizer-se que esta ou aquela formulação é mais ou menos clara, ou mais ou menos objectiva, em termos de respeitar os requisitos constitucionais e legais mínimos, mas tendo de considerar-se neste juízo a maior ou menor frequência do uso de certas expressões na linguagem acessível aos destinatários da questão, bem como a existência de expressões ou formulações alternativas, muito próximas ou praticamente equivalentes, mas significativamente mais claras e objectivas.
Nestes termos, considero que a pergunta proposta não satisfaz o requisito de objectividade, designadamente, por o enquadramento na frase da expressão «em estabelecimento legalmente autorizado» se afigurar susceptível de conduzir a um enviesamento da resposta, ou, pelo menos, de despertar dúvidas nos destinatários. A condição contida nesta parte final da pergunta pressupõe a existência de estabelecimentos legalmente autorizados a realizar a interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, mas estes só existirão em caso de resposta positiva à própria pergunta posta à consideração do eleitorado. A hipótese da pergunta pressupõe, pois, uma resposta positiva, e pode predispor a esta resposta por se entender que, existindo estabelecimentos legalmente autorizados a realizar a interrupção voluntária da gravidez nas condições definidas, seria paradoxal penalizar esta interrupção. Este ponto pode, pelo menos, despertar dúvidas ao leitor que ignore o estado actual da nossa legislação, no que toca à inexistência de tal autorização legal, e considero que o seu esclarecimento não é de remeter apenas para a campanha eleitoral, não devendo o Tribunal permitir qualquer enviesamento, por menor que seja, da questão a submeter a referendo. Nem creio que à utilização do instituto do referendo seja inerente o risco de tais ambiguidades. Deve antes dizer-se, a meu ver, que, não podendo simplesmente elencar-se nomes ou símbolos (como nos restantes actos eleitorais), e antes se tendo de formular questões - tarefa mais sujeita a manipulações e distorções - «por maioria de razão, a exigência de objectividade surge acrescida»(assim, Maria Benedita Urbano, O Referendo, Coimbra, 1998, p. 210).
Para além desta reserva, ficam-me dúvidas quanto à clareza do termo «despenalização» em face de hipóteses alternativas, de sentido equivalente mas indubitavelmente mais claras, segundo o critério que apontei e que julgo decisivo.
2 - Concordo com a consideração - que vem, aliás, no seguimento da anterior jurisprudência do Tribunal e da maioria da doutrina - de que a vida humana pré-natal é abrangida pelo artigo 24.º da Constituição, o qual não se limita a garantir um direito fundamental à vida a todas as pessoas, mas consagra igualmente uma tutela não subjectivada do bem «vida humana em formação» (e, direi, impõe ao legislador um correspondente dever de protecção). Subscrevo também a tese de que esta protecção não tem de assumir as mesmas formas nem o mesmo grau de densificação da exigida para o direito à vida subjectivado em cada pessoa, bem como a tese de que tal protecção se pode e deve ir adensando ao longo do período de gestação. Aceito, ainda, que, quando se verifique estarem outros direitos constitucionalmente protegidos em conflito com a vida intra-uterina, se possa e deva proceder a uma tentativa de optimização, não sendo esta possibilidade vedada por qualquer escala hierárquica de valores constitucionais - embora defenda que a inegável importância do bem «vida humana», como pressuposto necessário de todos os outros direitos, e, desde logo, o seu carácter de comando prima facie (portanto, mesmo não invocando, nem a específica estrutura desse bem, nem a sua eventual consagração numa regra, assentes numa lógica de tudo ou nada), sempre requerem, pelo menos, a verificação da existência de um direito em conflito com esse bem (cf., aliás, para o caso de interrupção da gravidez por motivo de violação, J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, p. 1140, e, em geral, Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 1985, pp. 87-90), assim como a definição, pelo legislador, das circunstâncias em que a ponderação pode conduzir a uma limitação da tutela da vida humana intra-uterina.
Afigura-se-me claro, por outro lado, que a vida intra-uterina, apesar de ser objecto de uma tutela constitucional não subjectivada, é um bem perfeitamente adequado para desempenhar uma função de limite perante os direitos invocados em conflito com ela (v. J. J. Gomes Canotilho, «Direito constitucional de conflitos e protecção de direitos fundamentais», in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 125.º, p. 295).
O que não aceito é que a «concordância prática» entre certos direitos da mulher e a vida intra-uterina possa conduzir a desproteger inteiramente esta última nas primeiras 10 semanas (durante as quais esse bem é igualmente objecto de protecção constitucional), por a deixar à mercê de uma livre decisão da mulher, que se aceita será lícita, em abstracto, ou seja, independentemente da verificação de qualquer motivo ou indicação no caso concreto. Rejeito, por outras palavras, que pela via da harmonização prática dos interesses em conflito, a Constituição permita chegar à «solução dos prazos», com aceitação da «indiferença dos motivos» ou de uma «equivalência de razões» para proceder à interrupção voluntária da gravidez - a qual será lícita, quer seja realizada por absoluta carência de meios económicos e de inserção social, quer seja motivada por puro comodismo, quer resulte de um verdadeiro estado depressivo da mãe, quer vise apenas, por exemplo, selar a destruição das relações com o outro progenitor.
A meu ver, a garantia da inviolabilidade da vida humana, incluindo a vida intra-uterina, pode ter de ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, se se verificar em concreto a presença de um motivo constitucionalmente relevante para a realização da interrupção voluntária da gravidez. Considero que aquela garantia há-de ter, pelo menos, o conteúdo de tutelar o bem em causa contra a liberdade da mulher de prática de «aborto a pedido», sem invocação de qualquer motivo e, em princípio, com indiferença deste para a ordem jurídica (tendo igualmente por inconstitucional a solução de total liberdade da mãe quanto ao «destino» de uma vida humana que já iniciou o seu percurso, v. Maria Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e Crime, Porto, 1995, p. 386; no mesmo sentido Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995, p. 166, n.º 241). Ou seja, entendo que o dever de protecção da vida humana intra-uterina que a Constituição impõe tem como conteúdo mínimo a protecção contra a liberdade de pôr termo a esta vida intra-uterina sem invocação de razões. Assim, considero que o direito à liberdade da mulher, bem como o direito ao «livre desenvolvimento da personalidade» (direito onde, como se sabe, no limite tudo poderia caber, e, que, aliás, se refere aqui apenas a um dos progenitores), não são suficientes para fundamentar a desprotecção da vida pré-natal, mesmo nas primeiras 10 semanas, se não forem reforçados com a presença de uma indicação no caso concreto (e não curando sequer de saber qual o tipo de indicação que seria constitucionalmente relevante ou a quem deve competir avaliá-la - pressuposto apenas que não basta a simples avaliação pela mãe). Consideração esta, aliás, reforçada por não descortinar argumentos para fundamentar a menor ponderação em termos de «concordância prática», justamente até às primeiras 10 semanas, da vida intra-uterina que se reconhece tutelada na Constituição (a «concordância prática» exige, aliás, como se sabe, sob pena de se esgotar numa mera «fórmula vazia», o cumprimento de um ónus de argumentação jurídica dirigido a fundamentar o tipo de concordância a que se chega - no sentido de ligar a estrutura da ponderação a fazer para a concordância prática de direitos fundamentais a uma teoria da argumentação jurídica que remete para uma teoria da argumentação prática em geral (v. R. Alexy, Theorie der Grundrechte, cit., p. 154).
A harmonização entre a garantia de uma maternidade consciente, por um lado, e a vida intra-uterina, por outro, em termos de conduzir ao sacrifício geral desta durante as primeiras 10 semanas, não pode também merecer o meu acordo.
Subjacente à afirmação da licitude da interrupção voluntária da gravidez com base na garantia de uma maternidade consciente parece-me estar uma visão do aborto como meio de contracepção ou, mesmo, de planeamento familiar, que não considero constitucionalmente admissível (a garantia da maternidade consciente é, aliás, prevista na Constituição a par do direito ao planeamento familiar). E mesmo que se considerasse que a garantia da maternidade consciente tem uma dimensão subjectiva que vai além do planeamento familiar, podendo incluir o aborto, não vejo o que poderia este argumento acrescentar à invocação do direito à liberdade, em termos de prevalecer em geral, durante as primeiras 10 semanas, sobre a garantia da vida intra-uterina, a qual, como condição de base de todos os outros direitos, assume uma posição-chave.
Consideraria, assim, a resposta afirmativa à pergunta - na medida em que conduz à despenalização da interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, e, portanto, com irrelevância dos motivos invocados para pôr termo à gravidez - como inconstitucional, por violar o princípio da «proibição do défice» («Untermaßverbot» - v. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 265) de tutela de um bem cuja protecção é constitucionalmente assegurada (sem que esta exigência seja afastada pela proposta compatibilização com outros interesses constitucionalmente protegidos). Isto, uma vez que, por outro lado, não se divisam outros meios a que o legislador possa recorrer para adequadamente proteger esse bem, afirmando a sua dignidade ética para a comunidade jurídica (e notando igualmente que a questão submetida a apreciação não contende directamente com a da punibilidade do aborto clandestino, não sendo sequer líquido que uma resposta positiva venha a contribuir para a diminuição deste).
3 - A verificação da constitucionalidade do universo eleitoral do referendo proposto suscitou-me igualmente reservas, apenas não me tendo pronunciado pela inconstitucionalidade por não ter superado dúvidas quanto ao sentido da fórmula constante do artigo 115.º, n.º 12, da Constituição e reproduzida no artigo 37.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Regime do Referendo - matérias que digam «também especificamente respeito» aos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro. Tenho por seguro que: a) não se prevê a participação destes cidadãos em todos os referendos nacionais, como resulta da formulação e da própria localização sistemática das referidas normas; b) não se requer um interesse específico apenas dos cidadãos não residentes, distinguindo-se a fórmula empregue, por exemplo, da do interesse específico exigido para a delimitação dos poderes legislativos das Regiões Autónomas (trata-se de matérias que digam também especificamente respeito aos cidadãos não residentes em Portugal). E parece-me mesmo excessiva a exigência de que a matéria do referendo «tenha a ver com a específica situação dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro», ou de uma «particular incidência relativamente aos interesses da emigração portuguesa». Em face da formulação legal, dever-se-á ponderar seriamente a hipótese de, nas matérias que digam «também especificamente respeito» aos cidadãos não residentes se incluírem ainda aquelas que são susceptíveis de interessar a estes ao mesmo título que aos cidadãos que residem em Portugal, ou simplesmente as que não respeitem a um interesse específico destes cidadãos residentes. Respondendo-se afirmativamente a esta questão, seria de exigir o chamamento dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro a participar no presente referendo, caso o Tribunal entendesse que este implica uma alteração fundamental nos valores subjacentes à ordem jurídica nacional. - Paulo Mota Pinto.
Declaração de voto
1 - Dissenti da conclusão a que se chegou no acórdão, na parte - alínea j) do n.º 1 e n.º 2 da decisão - em que considerou conforme à Constituição a norma de que resultou a pergunta a fazer no referendo, essencialmente pelas seguintes razões.
A pergunta, que a proposta de referendo contém, é a seguinte: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»
2 - Aceitando-se que a pergunta assim formulada respeita, ainda que minimalmente, os princípios da inteligibilidade, de objectividade e de clareza, bem como o da homogeneidade e de dilematicidade que a Constituição impõe, o certo é que, quanto à questão fundamental de saber se a matéria da pergunta é ou não compatível com a Constituição, se me suscitam muitas dúvidas.
Portanto, importa perguntar quais os efeitos do referendo. Se a resposta for positiva e o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento, então o referendo terá efeito vinculativo, o que significará que a Assembleia da República e o Presidente da República serão obrigados, a primeira, a aprovar e, o segundo, a promulgar o acto legislativo em causa.
Assim, quem entenda que, apesar de a pergunta que integra a proposta em apreciação respeitar a generalidade das exigências constitucionais, todavia a matéria sobre que recai contraria a Constituição então, não poderá deixar de rejeitar um tal referendo.
3 - Sendo esta a nossa posição, importa que fiquem consignadas as razões deste entendimento.
A norma que desencadeou o referendo em causa e está na génese da pergunta que consta da proposta em apreciação é uma norma que tem como objectivo a descriminalização do aborto durante as primeiras 10 semanas de gravidez, por simples opção da mulher.
Ora, uma norma com um tal conteúdo é incompatível com o preceituado no artigo 24.º da Constituição, que estabelece que (1) vida humana é inviolável e que (2) em caso algum haverá pena de morte.
Esta norma, quando se fala de aborto, não pode deixar de conjugar-se com o artigo 1.º da Constituição, em que se reconhece a dignidade da pessoa humana.
De facto, a inviolabilidade da vida humana não pode deixar de ter o sentido de proteger a existência do ser desde o momento da concepção até ao da sua morte natural: toda a vida pré-natal é também vida humana e, enquanto tal, credora da dignidade pessoal que a Constituição garante à pessoa humana e, por isso, deve ser protegida, mais ainda, se possível, do que a vida extra-uterina.
É a ciência que preenche o conceito de vida humana e os dados científicos actuais confirmam que a vida existe desde a concepção, passando, é certo, por diferentes estádios da sua evolução, mas desde o início, isto é, desde a concepção, o ser intra-uterino contém em si todas as potencialidades da pessoa em que se tornará se puder nascer naturalmente. O que significa que o direito constitucional à inviolabilidade da vida, enquanto direito assente na essencial dignidade da pessoa humana, não pode deixar de garantir o direito de nascer, enquanto direito fundante de todos os outros.
Assim sendo, e sabendo-se que no nosso direito constitucional a restrição dos direitos fundamentais é excepcional (artigo 180.º, n.º 3, da Constituição), impondo-se tais direitos a entidades públicas e privadas, a Constituição há-de garantir o direito do feto à vida, impondo a todos o dever de nada fazer contra esse direito e protegendo esse direito através do direito penal, que é, apesar das dificuldades de concretização, a forma mais eficaz de protecção. Seria, de facto, algo de contraditório e substancialmente intolerável se a ordem penal protegesse o património e não entendesse proteger o bem jurídico da vida, em qualquer das suas formas ou estádios. Ao invés do decidido no acórdão, entendo que existe uma imposição constitucional no sentido de criminalizar os actos que ponham em causa a vida humana, desde a concepção, assim se garantindo a maior protecção possível da vida intra-uterina.
Ora, dada a excepcionalidade da restrição dos direitos fundamentais, uma norma - como a que está na base da pergunta contida na proposta em apreço - que descriminalize, por forma absoluta, o aborto ou a interrupção voluntária da gravidez, por mera opção da mulher, não pode deixar de ser incompatível com o artigo 24.º da Constituição.
Com efeito, a defesa do direito de nascer, e por consequência, do direito da inviolabilidade da vida humana não pode deixar de caber ao direito penal. Se é certo que a este ramo de direito apenas deve caber a tutela dos bens jurídicos essenciais que permitam a livre realização e o desenvolvimento da vida em comunidade, não é menos certo que, no caso, está em causa o bem mais essencial de todos, sem o qual não é possível a existência de vida em comunidade - a própria vida dos entes comunitários.
Não é, todavia, o direito à vida um direito absoluto (embora tenha a pretensão de absoluto - cf. declaração de voto do conselheiro Messias Bento, aposto ao Acórdão 85/85), tendo de sofrer as limitações decorrentes da existência de outros direitos, uma vez que os direitos constitucionalmente garantidos não estão hierarquizados, havendo necessidade de recorrer à teoria da concordância, não podendo deixar o legislador de recorrer ao princípio da proporcionalidade, sacrificando um direito apenas na medida em que isso seja necessário para salvaguardar o outro.
Situações haverá, portanto, em que o sacrifício de um dos direitos se torna admissível, por não ser exigível outro comportamento, não completando o tempo de gravidez, mas essas hipóteses têm de ser averiguadas em concreto e submetidas à análise dos princípios quer da não exigibilidade quer, mais precisamente, do estado de necessidade (desculpante) em que as circunstâncias do caso permitem que se isente a mulher da ilicitude do acto ou de culpa.
Mas uma norma que permita a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, de forma inteiramente livre, por mera opção da mulher não procura a harmonização de direitos em conflito: limita-se a optar por um deles em detrimento do outro que é inteiramente sacrificado, em violação do artigo 24.º da Constituição.
O que significa que, se o resultado da consulta referendária for vinculativo - quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento -, então a AR deverá aprovar a lei subjacente no prazo de 60 dias (artigo 241.º da Lei 15-A/98, de 3 de Abril) e o Presidente da República não pode recusar a promulgação do acto legislativo em causa (artigo 242.º da mesma lei), «por discordância com o sentido apurado em referendo com eficácia vinculativa».
A única maneira de evitar esta consequência será votar contra a admissibilidade da proposta de referendo por se tratar de matéria incompatível com a Constituição.
São estas, apresentadas de forma muitíssimo sintética, as razões que me levam a dissentir, nas partes referidas, da decisão em apreço. - Vítor Nunes de Almeida.
Voto de vencida
Votei vencida quanto à alínea f) do n.º 1.º porque entendo que a pergunta não satisfaz, tanto quanto podia e devia satisfazer, os requisitos constitucionalmente exigidos de objectividade, clareza e precisão.
No plano da objectividade, importaria sobretudo garantir, na medida do possível, a neutralidade da pergunta relativamente às posições dominantes no debate público da questão, em especial a posição que se traduz em manter o actual sistema legal de não punibilidade do aborto terapêutico eugénico ou criminológico, nas condições definidas pelo artigo 142.º do Código Penal, o qual se não pode confundir de modo nenhum com a ideia de penalização absoluta da interrupção voluntária da gravidez. Ora, nos termos em que se encontra formulada, a pergunta sugere uma escolha entre penalização e despenalização que não exprime a alternativa emergente dos debates que lhe deram origem, e que se coloca entre a despenalização relativa da lei actual e a despenalização absoluta até às 10 semanas de gravidez.
Quanto aos requisitos da clareza e da precisão, eles mostram-se imperfeitamente cumpridos, tanto do ponto de vista da resposta, positiva ao referendo, como do ponto de vista da resposta negativa. Com efeito, uma resposta positiva pode ser entendida como favorável a uma simples eliminação da incriminação do aborto, mantendo-se este, no entanto, como um acto não lícito para outros efeitos, da mesma forma que pode ser entendida no sentido da liberalização - e, portanto, da licitude - do aborto nas primeiras 10 semanas de gravidez, como sugere a parte final da pergunta ao referir-se à sua prática em estabelecimento legalmente autorizado. Uma resposta negativa, por seu lado, pode traduzir quer o entendimento de que a criminalização deve ser mantida nos termos actuais, quer a opinião de que tanto deve ser despenalizado o aborto realizado em estabelecimento legalmente autorizado como o que é executado fora desses estabelecimentos.
Votei vencida quanto à alínea i) do n.º 1.º por ter sérias dúvidas quanto à possibilidade de o Tribunal Constitucional, na fase de fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo, se pronunciar sobre a constitucionalidade material da pergunta do ponto de vista da eventual desconformidade de alguma das respostas possíveis. Os referendos exigem um grau de simplificação das questões que normalmente inviabilizará um juízo fundado sobre a conformidade constitucional das respostas hipotéticas. Só mais tarde, se e quando uma lei vier a ser aprovada em consequência do referendo, e em face dos termos concretos da regulamentação que nela se contiver, o Tribunal Constitucional estará em condições de se pronunciar acerca da adequação constitucional das soluções adoptadas. O referendo apenas produz consequências mediatas sobre a ordem jurídica, relativamente indeterminadas e, não obstante o efeito vinculativo sobre o legislador, aliás sem qualquer sanção eficaz, também incertas.
Poderá, em sentido contrário, argumentar-se que há questões em que os parâmetros constitucionais são tão nítidos e peremptórios que não oferecerá dificuldades um juízo sobre a constitucionalidade de uma questão submetida a referendo, ainda que reduzida à sua máxima simplicação. Mesmo, todavia, que fosse esse o caso presente, a apreciação da constitucionalidade material da pergunta, quanto a este aspecto, encontra-se inviabilizada por força de imprecisões e ambiguidades de que, a meu ver, ela padece. Refiro-me, nomeadamente, à incerteza do significado de uma resposta positiva, a que acima aludi, pois a diferença entre a liberalização e a simples despenalização do aborto tem decerto profundas implicações constitucionais.
Se, no limite, se poderia talvez defender que a simples descriminalização é compatível com o princípio da inviolabilidade da vida humana, ficando esta protegida por formas de tutela jurídica sem carácter penal, já, porém, a liberalização, no sentido de tornar a interrupção voluntária da gravidez um acto lícito não condicionado por qualquer causa justificativa, me parece inconciliável com o princípio da inviolabilidade da vida humana, razão pela qual entendo que deveria ser mantida a jurisprudência deste Tribunal, fixada nos Acórdãos n.os 25/84 e 85/85, apenas compatível com o sistema das indicações. Fica, assim, igualmente fundamentado o meu voto de vencida quanto à alínea j) do mesmo n.º 1.º
Fica de igual modo justificado que, na falta de objecções à formulação da pergunta, me teria pronunciado no sentido de considerar preenchidos os requisitos de realização do referendo que, na perspectiva atrás desenvolvida, incumbe ao Tribunal, neste momento, apreciar, possibilitando assim o conhecimento qualificado da concepção dominante sobre a matéria em causa.
Tendo, porém, em conta as considerações precedentes, votei contra o segundo ponto da decisão. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.
Declaração de voto
Entendi, contrariamente à posição que fez vencimento, que a pergunta que se pretende submeter a referendo (a saber: «concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?») é inconstitucional.
É o que procurarei demonstrar.
1 - Quando a pergunta submetida a referendo for respondida por um número de votantes superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento, tem o referendo efeito vinculativo (cf. artigos 115.º, n.os 1 e 11, da Constituição e 240.º da Lei 15-A/98, de 3 de Abril).
Por isso, se a resposta for afirmativa, a Assembleia da República - e outro tanto sucede com o Governo, quando for ele o autor da proposta - fica obrigada a aprovar acto legislativo de sentido correspondente (cf. artigo 241.º da citada Lei 15-A/98).
Mas, sendo isto assim, as perguntas a submeter a referendo - para além de não poderem incidir sobre as matérias enunciadas no n.º 4 do artigo 115.º da Constituição - não podem ser tais que, caso venham a ser respondidas afirmativamente, conduzam à consagração de soluções legislativas incompatíveis com a Constituição.
2 - Para ajuizar da constitucionalidade da pergunta sobre que, no caso, se pretende ouvir o eleitorado, importa, então, saber se, na hipótese de lhe ser dada resposta afirmativa, a Assembleia da República pode, sem violar a Constituição, editar lei de sentido correspondente. Ou seja: importa decidir se é compatível com a Constituição uma norma que permita a livre prática do aborto, a pedido da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Na verdade, usando palavras que todos entendem, a pergunta a que os eleitores irão responder pode enunciar-se do modo seguinte: o aborto praticado nas primeiras 10 semanas, a pedido da mulher, em estabelecimento legalmente autorizado, deve ser livre?
Para responder à questão da constitucionalidade de uma norma com o sentido e alcance assinalados, deve ter-se presente que, ali onde a interrupção voluntária da gravidez não constituir crime, o Estado tem de garantir a sua realização, sempre que ela seja solicitada nos termos da lei.
De facto, o Governo tem, por imposição legal, de adoptar «as providências organizativas e regulamentares necessárias, designadamente por forma a assegurar que do exercício do direito de objecção de consciência dos médicos e demais profissionais de saúde não resulte inviabilidade de cumprimento dos prazos legais» (cf. artigo 2.º da Lei 90/97, de 30 de Julho).
Ora, desincumbindo-se dessa tarefa, o Governo editou a Portaria 189/98, de 21 de Março, nela dispondo que os estabelecimentos oficiais de saúde devem «providenciar pela realização da intervenção adequada nos termos e prazos legais» (cf. artigo 2.º, n.º 4). E, se a existência de objectores de consciência impossibilitar «a realização da interrupção voluntária da gravidez nos termos e prazos legais», devem tais estabelecimentos «desde já providenciar pela garantia da sua realização, adoptando as adequadas formas de cooperação com outros estabelecimentos de saúde ou com profissionais de saúde legalmente habilitados, assumindo os encargos daí resultantes» (cf. artigo 5.º). E mais: «em quaisquer circunstâncias devem os estabelecimentos resolver qualquer situação dentro dos prazos previstos na lei para a interrupção da gravidez» (cf. artigo 6.º).
3 - Pois bem: uma norma que consinta a livre prática do aborto, a pedido da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente reconhecido, em meu entender, viola o artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, que estabelece que «a vida humana é inviolável».
As razões por que assim entendo expu-las, in extenso, nas declarações de voto que apus aos Acórdãos n.os 25/84 e 85/85 (publicados no Diário da República, 2.ª série, de 4 de Abril de 1984 e 25 de Junho de 1985, respectivamente). É para essas razões que agora me remeto. Não me dispenso, porém, de aqui as enunciar numa síntese apertada.
O princípio da inviolabilidade da vida humana impõe ao Estado que respeite esta em todas as circunstâncias; exige-lhe que a faça respeitar por terceiros (mãe incluída); e reclama-lhe que adopte medidas positivas para a defender.
O Estado só defende com seriedade a vida humana quando adopta medidas conducentes a garanti-la na sua vertente mais radical e primária, que é o direito a nascer, pois que, sem a defesa deste direito, todos os demais direitos do nascituro são vazios de conteúdo, transformando-se em puras ficções.
A inviolabilidade da vida humana não é, assim, uma garantia de que apenas goze o homem nascido ou, no que aqui agora importa, o feto com mais de 10 semanas. Dessa garantia goza a vida humana toda - a vida humana nascida e a vida humana por nascer, desde o seu primeiro momento de existência.
Na verdade, o feto (e, obviamente, o embrião) não é um ser humano meramente potencial - um ser humano que ainda o não é. É já homem aquele que está a caminho de o ser: a primeira célula embrionária contém virtualmente o completo desenvolvimento da vida de um homem, pois esse desenvolvimento processa-se sob o impulso directivo e ordenado do respectivo genótipo. «A capacidade de um desenvolvimento plenamente humano dá-se na primeira célula embrionária» - escrevem A. Fargot, Largeault e Delalsi de Parseval [«Les droits de l'embryon (foetus) humaine et la notion de personne humaine potentialle», in Révue de Metaphysique et de Morale, n.º 92 (1987), p. 364].
O zigoto tem um programa genético próprio, distinto do de sua mãe e - nos dizeres de J. R. Lacadena («Status» del embrión previo a su implantación, Madrid, 1988, p. 36) -, «posto que esse programa genético é especificamente humano, e não de rato ou de cenoura, a nova vida é, evidentemente, humana».
A vida humana intra-uterina merece, pois, o respeito e a reverência devidas à vida humana nascida. E, no que toca à protecção jurídica, deve conceder-se-lhe a que for necessária ao seu pleno desenvolvimento - é dizer: deve garantir-se que ele possa continuar a existir e vir a nascer. De outro modo, a vida humana não tem sempre a mesma eminente dignidade: há uma vida de primeira categoria - a vida já nascida -, merecedora de todo o respeito e titular de direitos fundamentais; e, a par dessa, há uma outra vida - a vida não nascida a quem, ao menos enquanto não atingir um certo estádio de desenvolvimento, se não garante, sequer, o direito de nascer. É uma vida esta que não tem direitos, nem sequer goza da expectativa de os vir a ter. Uma vida de ínfima categoria - de tão ínfima categoria que será difícil reconhecer nela uma chispa de humanidade.
Ora, como adverte Rafael Gomez Perez, Problemas Morais da Existência Humana, ed. CAS, 1983, p. 103), «se houvesse uma só vida que não fosse 'importante' nenhuma seria importante».
O direito a nascer acaba, assim, por ser uma exigência da dignidade humana. A defesa do direito à vida nesta sua vertente de direito a nascer só se organiza com um mínimo de eficácia pelo recurso à tutela penal.
O legislador tem, por isso, obrigação de tutelar penalmente a vida humana - de tutelar a vida humana toda, intra-uterina e extra-uterina, pese embora o facto de, no tocante à vida intra-uterina, esta forma de protecção se ter mostrado sempre muito pouco eficaz: com efeito, o aborto, conquanto seja punido, entre nós, há mais de um século, tem sido o campo de eleição da chamada «criminalidade oculta», apresentando elevadas «cifras negras».
É que o direito penal - que deve, é certo, limitar-se à tutela dos bens jurídicos essenciais para a livre realização e desenvolvimento, em comunidade, da personalidade de cada homem, intervindo tão-só quando os meios não criminais de política social se mostrem insuficientes- tem, apesar de tudo, uma importante função pedagógica a cumprir, pois, algumas vezes, a cominação de penas é essencial para afinar a consciência ética dos cidadãos.
Assim, a norma penal que defina o aborto como crime, que, mais não seja, sempre terá a função de servir de «avisador das consciências», servirá, além do mais, para não deixar perder a ideia de que a interrupção voluntária da gravidez é um facto ilícito. E não se tratará aí de «legislar moralidade», mas apenas de cumprir o dever constitucional de tentar impedir que o valor «vida humana», na sua fase intra-uterina, se desvalorize e acabe por perder-se como valor ético-social.
É preciso, na verdade, ter consciência de que quaisquer outras formas de tutela serão de todo ineficazes para proteger o direito à vida, se forem oferecidas num contexto legislativo que permita, incondicionalmente, a interrupção voluntária da gravidez, a pedido da mãe, nas primeiras 10 semanas. Num tal quadro legislativo, de pouco valerá, por exemplo, que ao nascituro se possam fazer doações, pois que se permite à mãe que o não deixe nascer.
Não ignoro que cabe ao legislador, em primeira linha, decidir o modo como deve tutelar determinados bens jurídicos, nem tão-pouco recuso a ideia de que ele deve procurar um certo «consenso comunitário» para as normas penais que editar. Mas penso também que há certos bens jurídicos, como é o caso do direito à vida, que não podem deixar de ser penalmente tutelados. Ou seja: entendo que existem acções humanas que se hão-de inscrever sempre no «domínio penal». E isso, mesmo que essa tutela se mostre muito pouco eficaz e que haja largos sectores de opinião a pensar que não existe obrigação de criminalizar a violação de tais bens jurídicos.
Seria, na verdade, insuportável que, em nome de certos valores próprios de uma sociedade democrática plural e aberta, como é o valor da «tolerância», ou que, por haver um sentimento social, mais ou menos amplo, de que não existe «carência» de punição, se deixasse a vida intra-uterina ou a vida de certas pessoas (verbi gratia, a dos doentes incuráveis) sem a protecção que, apesar de tudo, ainda é a única que revela possuir alguma eficácia. Para a causa da vida, importa mais não haver défice de protecção do que satisfazer o sentimento de não existir «carência» de punição.
A vida humana - a vida humana toda, intra e extra-uterina- é, assim, um daqueles bens jurídicos (valores) que não pode ser objecto de qualquer relativização. É um valor incondicionado.
Por isso, a causa da descriminalização da interrupção voluntária da gravidez só pode acabar por desservir a causa da vida.
Existe, pois, uma imposição constitucional de tutela da vida humana - da vida humana toda, intra e extra-uterina. E essa imposição constitucional só a cumprirá o legislador, lançando mão da tutela penal, pois que ela é - insisto - a que possui um mínimo de eficácia.
O direito à vida é um direito com pretensão de absoluto, pois que é o pressuposto fundante de todos os outros direitos. Não é, porém, um direito absoluto, nem ilimitado. Admite limitações. Concretamente no que toca à vida intra-uterina, há, seguramente, situações em que haverá de compreender-se que a mulher não leve a gravidez até ao fim. Trata-se de situações em que, atentas as circunstâncias, não seria razoável exigir que ela agisse de outro modo. Em tais casos, está, obviamente, excluída a punição.
Estas situações de exculpação da mulher que, acaso, interrompa a gravidez sempre deverão, no entanto, ser avaliadas, em concreto, pelo juiz, e não abstractamente, ao nível da lei, pela formulação de «contratipos» ou de «tipos justificadores».
Mas a norma que, no caso de obter resposta afirmativa à pergunta a submeter a referendo, se editará não vai, sequer, reger para situações do tipo apontado.
Não são, na verdade, casos em que se impõem limitações ao direito à vida do feto que ela regulará. Ela autorizará, isso sim, a supressão da vida do feto, por pura decisão infundamentada da mãe.
Uma norma assim violará frontalmente o direito à vida do feto.
De facto, suposto que possam invocar-se direitos da mãe (direito à vida, direito à integridade física, direito à saúde, direito à autonomia ou direito à intimidade), nada justifica que, em abstracto, ao nível da lei, se sacrifique, de plano, a vida do feto a uma decisão infundamentada de sua mãe. - Messias Bento.
Declaração de voto
I - 1 - Acompanhei, em geral, a precedente decisão, no que toca às alíneas a) a i) do seu n.º 1.º, e a respectiva fundamentação. Impõem-se-me, no entanto, relativamente a alguns desses pontos, as explicitações ou reservas que passo enunciar - o que farei muito sucintamente, brevitatis causa.
2 - Assim - e desde logo quanto à alínea c) - sublinharei que, no meu modo de ver as coisas, o que a alínea a) do n.º 4 do artigo 112.º da Constituição implica, no plano da aferição da constitucionalidade de um referendo nacional, é tão-só verificar se porventura ele se preordena, intencional e directamente, à «alteração» da Constituição. A questão de saber se alguma das suas possíveis respostas «é contrária» à Constituição situa-se já noutro plano.
Por outro lado, e ainda quanto a dita alínea c) do n.º 1.º da decisão, não quereria deixar de referir a pergunta que se me põe, de saber se a admissibilidade do «procedimento» referendário (e só a essa vertente «procedimental» me reporto) sobre matérias como a agora em causa, pode e deve parificar-se, pura e simplesmente, a admissibilidade do procedimento legislativo parlamentar sobre as mesmas. De tal pergunta - devo, porém, reconhecer - não tenho encontrado eco significativo: ao contrário. Por isso a deixei de lado, ao menos por agora.
3 - Quanto à alínea f) do n.º 1.º da decisão, ficaram-me algumas dúvidas sobre a «objectividade» e a «clareza» da pergunta que se pretende submeter a referendo.
Tais requisitos, em meu modo de ver, hão-de ser apreciados não só de uma perspectiva «objectiva» mas também da perspectiva «subjectiva» dos destinatários das perguntas referendarias, que são em primeira linha, ainda segundo o que penso, os cidadãos eleitores. Ora, desta última perspectiva, pode realmente questionar-se se a pergunta a propor, no caso, satisfaz suficientemente as exigências constitucionais, nomeadamente no que toca ao seu inciso final, e que sublinho («estabelecimento de saúde legalmente autorizado»).
Foi só na dúvida, por conseguinte (e também pela desnecessidade de aprofundar mais detidamente o ponto, no contexto da minha posição final sobre a questão posta ao Tribunal), que votei a decisão, na parte a que agora me refiro.
4 - Finalmente, fiquei vencido quanto à fundamentação da alínea h) do n.º 1.º da decisão.
Efectivamente, ela assenta numa interpretação demasiado estrita, a meu ver, do n.º 12 do artigo 115.º da Constituição, no que concerne ao entendimento do que seja matéria que «diga também especificamente respeito» aos cidadãos residentes no estrangeiro. A expressão transcrita inclui dois qualificativos - «também» e «especificamente» - donde se me afigura que o segundo não pode ser entendido em termos equivalentes aos do seu correspondente na cláusula do «interesse específico», cujo preenchimento é pressuposto, como se sabe, da competência legislativa regional [artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição].
O que penso - e para me limitar ao caso, deixando para outra oportunidade a explicitação e fundamentação dos pressupostos deste entendimento - e que a Assembleia da República podia restringir a participação no referendo, como o fez, aos cidadãos residentes no território nacional; mas poderia igualmente alargar essa participação aos eleitores residentes no estrangeiro. É que, se a matéria do referendo em apreço, vista à luz das considerações tidas por relevantes pelo Tribunal (a localização da vida das pessoas e as regras de aplicação territorial do direito criminal), justifica a solução adoptada, a mesma matéria, vista a outra luz - a saber, a de que está em causa, como seguidamente salientarei, uma alteração de fundo, no plano valorativo, da ordem jurídica nacional -, já poderia justificar o alargamento do universo eleitoral aos portugueses residentes no estrangeiro.
II - 5 - Diversamente do que sucedeu quanto à parte da decisão antes considerada, já não subscrevi, porém, a conclusão acolhida na alínea j) do seu n.º 1.º, nem tão-pouco, consequentemente, no seu n.º 2.º Trata-se, evidentemente, de um ponto central da questão submetida ao Tribunal - decerto, o ponto nuclear dela. Tratá-lo-ei, pois, com algum desenvolvimento, nas considerações subsequentes.
6 - Tal como escrevi na declaração de voto que juntei ao Acordão n.º 25/84 deste Tribunal, «tenho por seguro que o artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República, ao reconhecer que 'a vida humana e inviolável', protege não apenas a vida 'já nascida', mas também a 'a vida por nascer' - a vida intra-uterina. E protege-as - tenho-o igualmente por seguro - ao mesmo título, já que da mesma vida se trata: daquela que se abre a cada homem para a realização de um projecto e de um destino únicos e irrepetíveis, mas cuja potencialidade singular já se encontra inteira no próprio embrião.
Esta visão das coisas tem por si os mais modernos ensinamentos da ciência, mormente da biologia e da genética. Mas, além disso, é a que corresponde à concepção antropológica inscrita na longa tradição cultural inspiradora da nossa comunidade e sua matriz axiológica: a concepção do homem como portador de uma identidade pessoal absoluta, identidade que não surge com o nascimento, mas vem de um momento anterior, e que leva, portanto, a incluir os próprios nascituros naqueles que Vinit Haksar, expressivamente, chama o egalitarian club, ou seja o conjunto dos seres que, segundo uma right-based tradition, têm o direito a igual respeito e consideração (autor citado, Equality, Liberty and Perfectionism, Oxford, 1979, passim). Dito por outras palavras, as palavras impressivas que foram as do então deputado H. Barrilaro Ruas: a concepção antropológica segundo a qual o nascituro e já 'um ser humano, um daqueles para quem se criou a lei e o direito, a sociedade e o Estado, um daqueles que foram sonhados desde do fundo dos tempos e trazem já em si, pequenina e discreta, a estrela de um destino pessoal' (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 12 de Novembro de 1982, p. 341)».
7 - «A vida humana» - sublinhei seguidamente na declaração de voto a que me reporto - «é protegida na Constituição em sede de direitos fundamentais e a esse título», dispondo, por conseguinte, da protecção «qualificada» ou «reforçada» concedida a esses direitos.
Sendo assim, e como resulta do que antes disse, é essa mesma protecção constitucional a que a vida humana intra-uterina recebe. Não cabe aí - e retomo, de novo, aquela declaração de voto - «nenhuma distinção essencial entre a vida já nascida e a vida intra-uterina, nenhuma distinção, isto é, assente na ideia de que a protecção desta última é só uma protecção menor ou parcial».
A esta conclusão não obstam quaisquer dificuldades que possam encontrar-se - de resto, no plano meramente instrumental da dogmática e da construção jurídica - ao reconhecimento de verdadeiros «direitos subjectivos» (em sentido técnico-jurídico) ao embrião e ao feto, e, portanto, à qualificação verdadeiramente como tal (como um «direito», no sentido técnico mais preciso da palavra) do direito do feto a nascer.
Não julgo - como disse na declaração de voto que venho seguindo - que tais dificuldades sejam insuperáveis. É, de resto, de um «direito próprio do nascituro à vida» (eines eigenen Lebensrechts des Ungeborenen) que fala o Tribunal Constitucional alemão (na sua mais recente sentença sobre a interrupção voluntária da gravidez, de 28 de Maio de 1993) - direito que extrai da consideração de que a vida humana por nascer é já portadora, em razão de si mesma, de «dignidade humana», já que, onde haja vida humana, a ela advém aquela «dignidade» (Wo menschliches Leben existiert, kommt ihm Menschenwürde zu): cf. Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, 88.Band, p. 252.
Mas, ainda que as dificuldades referidas fossem insuperáveis, tenho o ponto por irrelevante, já que (como acrescentei na mesma declaração), tratando-se agora da questão da conformidade com a Constituição de uma determinada solução normativa a introduzir ao ordenamento legal, é o lado objectivo-valorativo do princípio constitucional em presença (o lado objectivo do «direito fundamental» em causa) que directamente importa, sendo ele que há-de fornecer o critério da solução do problema (cf. J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, p. 167). Ou, como disse o mencionado Tribunal Constitucional Federal alemão, na sua primeira sentença sobre a matéria agora em apreço: «Se e, sendo o caso, em que medida o Estado está constitucionalmente obrigado à protecção jurídica da vida intra-uterina, é coisa que pode logo extrair-se do conteúdo jurídico objectivo dos direitos fundamentais» (sentença de 25 de Fevereiro de 1975, in L'Aborto nelle sentenze delle corti constituzionali, Milano, 1976, p. 209).
Bem pode, pois, prescindir-se aqui do lado ou da dimensão estritamente «subjectiva» do princípio (e direito) em apreço.
É que, mesmo postas as coisas unicamente nessa perspectiva «objectiva, dir-se-á então (e direi eu, como já dissera na citada declaração de voto) que a protecção constitucional da vida intra-uterina, no artigo 24.º, n.º 1, da lei fundamental, «não tem sentido se nela não for incluída, antes de mais, a possibilidade de nascer» - ou, mais precisamente, a garantia dessa possibilidade. Uma garantia (parafraseando ainda o Bundesverfassungsgericht naquela sua citada segunda sentença: cf. loc. cit.) referida, pois, «não à vida humana em geral», mas àquela vida individual (das einzelne Leben) ainda por nascer.
Eis por que - ainda só na perspectiva ora considerada - insisto em afirmar que, do ponto de vista da protecção constitucional (e, pelo menos, para os efeitos que neste momento importam), «não tem cabimento uma distinção essencial entre a vida já nascida e a vida intra-uterina»; e eis aí, do mesmo passo, o que pretendo significar com tal afirmação.
8 - Do exposto decorre que, no meu entendimento, à protecção reconhecida pela Constituição à vida intra-uterina não é admissível (seguramente não o é na nossa tradição cultural) contrapor um direito da mulher à «privacidade» ou a «dispor do seu próprio corpo», como manifestação, este último, do seu «direito ao desenvolvimento da personalidade», ou ainda o direito «ao exercício de uma maternidade consciente». Na protecção constitucional da vida intra-uterina, nos termos antes enunciados, vai implicado o reconhecimento de uma «alteridade» do embrião e do feto relativamente à mãe, e mesmo de uma «identidade pessoal» em devir, diferente da desta - o que significa que a gravidez, e a sua eventual interrupção voluntária, não podem reconduzir-se exclusiva e simplesmente ao foro individual e íntimo da mulher, e deixadas na livre disponibilidade do exercício daqueles direitos. Trata-se antes, sim, de algo que assume uma indiscutível «dimensão social» (cf., nestes termos, ainda a referida primeira sentença do Tribunal Constitucional Federal alemão, loc. cit., p. 209) e, logo, juridicamente relevante.
Daí que, da protecção constitucional da vida intra-uterina - traduzida, antes de mais, no «direito» do feto (daquele feto) a nascer ou, ao menos, na «garantia» da possibilidade (biológica) do seu nascimento - decorra, sim, em último termo, e ao contrário, a obrigação jurídica de a mulher levar a gravidez ao seu termo - salvo, evidentemente, a ocorrência de «causas de justificação» constitucionalmente admissíveis e legalmente estabelecidas. É essa, pois, uma «obrigação» constitucionalmente fundada, e relevante, desde logo, a esse nível, e uma obrigação cuja quebra, fora da verificação de uma qualquer daquelas causas, gera um ilícito - como o não deixou de acentuar enfaticamente (quanto aos dois aspectos mencionados) ainda o Tribunal Constitucional Federal alemão, na segunda das suas já citadas sentenças (cf. loc. cit., pp. 203 e 253).
9 - A protecção constitucional da vida humana, incluindo a vida intra-uterina, implica antes de mais para o Estado - e passo a transcrever, de novo, quase na íntegra, a minha declaração de voto de 1984 - o dever de abster-se de condutas que representem agressões a esse bem ou valor jurídico fundamental. Mas implica também uma vertente ou dimensão positiva, que se traduz na obrigação para o Estado de adoptar procedimentos e tomar medidas que salvaguardem e promovam a possibilidade de cada homem viver a sua vida, na realização do projecto ou destino pessoal único que é o seu. E isto, que se diz para o direito à vida, dir-se-á também, naturalmente, para a generalidade dos direitos e valores jurídicos fundamentais.
Entre tais procedimentos conta-se, evidentemente - e logo em primeiro lugar -, o da conformação do ordenamento jurídico, ao nível do direito ordinário, a esses valores constitucionais, de modo, designadamente, que a sua tutela fique assegurada não só em relação ao Estado mais ainda em relação a terceiros. Trata-se aqui, na verdade, de uma tarefa primária, de uma tarefa a cuja realização - no domínio dos direitos, liberdades e garantias - o Estado (scilicet, o legislador) se acha adstrito num especial grau de vinculação.
Ora, no contexto dela, cabe ao direito criminal um papel particularmente relevante e decisivo. E isto não só porque o seu instrumentário continua a ser imprescindível para tutela daqueles valores (já que, muitas vezes, pelo menos, outro se não vê capaz de substituí-lo com idêntica eficácia) como ainda porque as suas normas continuam a ser um mediador privilegiado (e, em larga medida, insuprível) na transposição dos valores jurídicos constitucionais para a diuturna vida jurídica e social. (E não é um indicador disso mesmo a remissão que se faz, v. g., no artigo 46.º, n.º 1, in fine, da Constituição?)
De resto, se de todos os lados se vem reclamando uma contenção do legislador penal, traduzida tanto no abandono de preocupações e objectivos puramente moralistas como numa exigência racional de eficácia e de respeito pelos limites da exequibilidade das normas de incriminação, e se de todos os lados se vem desse modo insistindo, pondo a tónica na «subsidiariedade» do direito criminal ou no carácter de ultima ratio da tutela jurídica por ele oferecida, na necessidade de o mesmo se confinar à protecção dos valores ético-jurídicos básicos e essenciais da vida comunitária, se é assim, não deixa, por outra parte, de justamente apontar-se a tal legislador (ao legislador penal) o quadro de normas e princípios constitucionais como aquele por onde deve orientar-se na busca desses valores ou bens jurídicos essenciais que lhe cabe especificamente proteger. A Constituição surge, assim, como horizonte que há-de inspirar e por onde há-de pautar-se qualquer programa de política criminal (sobre este específico ponto, cf. Figueiredo Dias, Novos Rumos da Política Criminal e o Direito Português do Futuro, separata da Revista da Ordem dos Advogados, 1983, e Costa Andrade, Contributo para o Conceito de Contra-Ordenação, separata da Revista de Direito e Economia, 1980-1981, pp. 117 e segs.). E um horizonte que «não joga exclusivamente contra a criminalização ou a favor da descriminalização», mas, «pelo contrário, pode também apontar para soluções de criminalização ou opor-se a soluções de descriminalização» (Costa Andrade, «O novo Código Penal e a moderna criminologia», in Jornadas de Direito Criminal, fase I, p. 34). Certo que das considerações precedentes não se costumam extrair, por via de regra, imperativos constitucionais absolutos de criminalização, mas se extraem seguramente imposições relativas (assim chamadas) de criminalizar ou de não descriminalizar. Uma imposição ou um imperativo desta ordem será o que deriva de o legislador não dispor para a criminalização de um sucedâneo igualmente eficaz, nomeadamente no que respeita à caracterização da conduta como ilícita, ou seja, no que respeita à «função pedagógica» (poderia dizer-se: à função de «valoração de condutas» e de «discernimento dos espíritos») que ao direito ordinário, em geral, ao direito criminal, em particular, cabe desempenhar (sobre isto, cf. a primeira das referidas sentenças do Tribunal Constitucional Federal alemão, loc. cit., pp. 210 e segs., 219 e segs.). Uma outra imposição constitucional relativa em matéria de criminalização ou descriminalização será a de que ao legislador penal se encontra vedado editar normas que acabem por subverter a ordem de valores constitucional (cf. Costa Andrade, loc. cit., por último).
Entretanto, e no contexto que vem de referir-se, não deixa a doutrina de pôr em relevo que o «ónus da prova implícito no princípio da subsidiariedade joga em sentido inverso, consoante se trate de descriminalizar ou antes de criminalizar ex novo (Müller-Dietz, apud Costa Andrade, loc. cit.). O que não pode senão significar duas coisas: por um lado, que no primeiro tipo de casos há-de ser fornecida uma prova clara da desnecessidade ou inconveniência da criminalização e de que para esta se encontrou um sucedâneo igualmente eficaz (no sentido acima apontado); por outro lado, que a tradição jurídica é um factor que não pode deixar de ser aí levado em conta.
10 - Ora (continuando a transcrever a declaração de voto que venho seguindo), dito isto - e voltando à obrigação positiva de protecção da vida humana, incluindo a vida intra-uterina, que para o Estado decorre do reconhecimento constitucional da inviolabilidade desse valor jurídico -, nenhuma dificuldade haverá em concluir, cingindo-nos ao aspecto que agora importa, que esse reconhecimento impõe, decerto, a criminalização, em geral, do aborto (ou da interrupção da gravidez). Pois do que se trata, com efeito, é de proteger um valor ou bem jurídico comunitário essencial - de proteger, bem vistas as coisas, o bem jurídico supremo, aquele que é a «base vital» da dignidade humana, pressuposto de todos os outros direitos fundamentais e fundamento mesmo no próprio sentido de uma comunidade jurídica, e de proteger esse bem jurídico pelo único modo «eficaz», nomeadamente em termos de ficar claro que a violação dele constitui um «ilícito», um acto «contrário ao direito».
E decerto também não haverá dúvida em concluir que um tal imperativo de criminalização se estende mesmo, em geral, à conduta da mulher grávida - face ao que se pôs em relevo supra, no n.º 8.º
O problema - o problema que pode colocar-se - é, porém, o de saber se tal imperativo de criminalização não conhece reservas nem limites; e é agora, mais precisamente (e, por isso, só esse ponto cabe também agora considerar), o de saber se ele se verifica ainda quanto à interrupção da gravidez, decidida ad nutum pela mulher, desde que realizada em estabelecimento de saúde autorizado.
11 - À luz das premissas postas - premissas que, como se vê, vem já da posição que assumi no Acórdão 25/84, deste Tribunal, e que não encontrei nenhuma razão para abandonar - concluo, de todo o modo, que ainda aí, na situação acabada de delimitar, ora sub judicio, esse imperativo de criminalização subsiste, enquanto decorrência dos termos em que a Constituição reconhece, garante e protege a inviolabilidade da vida humana intra-uterina. E hei-de concluir assim - cabe sublinhá-lo - não só por maioria de razão, relativamente ao voto que emiti naquele outro aresto do Tribunal, mas também sem as dúvidas que então, confessadamente, tive de vencer.
É que - e este é, para mim, o ponto decisivo - a descriminalização da interrupção da gravidez, realizada por livre decisão da mulher, nas primeiras 10 semanas de gestação, tem o sentido e o alcance de excluir a ilicitude dessa conduta - uma conduta que se traduz e implica o sacrifício total de um bem ou valor jurídico constitucionalmente protegido, como é o da vida humana intra-uterina, e, portanto do «direito» do embrião e do feto a nascerem. Tal conduta passa a ficar revestida da marca da «juridicidade» ou da «licitude».
E, com isto, não só a lei penal deixa de cumprir a função - para que constitucionalmente é vocacionada - de valoradora de comportamentos e de mediadora dos valores jurídico-constitucionais (supra, n.º 9), como ainda acaba por subverter a ordem de valores da Constituição.
Eis entretanto, e também, por que entendo não ser viável justificar a solução à luz de uma operação de «concordância prática» de valores em conflito: é que, mesmo a entender-se (contra o que penso) que à solução em causa ainda subjaz uma situação conflitual (dando, para o efeito, algum relevo, no correspondente contexto, a direitos como os do livre desenvolvimento da personalidade da mulher ou da maternidade consciente), sempre a solução, para além do mais, desrespeitará - e desrespeitará claramente, no meu modo de ver as coisas - um critério ou princípio fundamental a que aquela operação tem de subordinar-se, a saber, o princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso.
12 - É bem certo que, partindo também de premissas (para além de outras, aqui não assumidas ou sequer consideradas) que são as da presente declaração de voto - nomeadamente quanto à «ilicitude» (constitucionalmente fundada) da interrupção da gravidez por livre decisão da mulher, mesmo nas primeiras semanas da gestação -, o Tribunal Constitucional Federal alemão, na segunda das suas decisões atrás citadas, chegou a um resultado diverso do acabado de firmar.
Não ignoro o facto. Mas o que, desde logo, justamente se me afigura é que esse outro resultado se defronta com as maiores dificuldades (se não mesmo aporias) argumentativas, e é passível das maiores dúvidas quanto ao seu bom fundamento - dúvidas que a escassez de tempo me não permite explicitar neste momento.
Independentemente disso, porém, o certo é que - importa sublinhá-lo aqui -, para chegar a um tal resultado, o Bundesverfassungsgericht operou com um modelo de solução legal de contornos qualitativamente muito diversos (nomeadamente no que toca à natureza do aconselhamento da grávida) e muito mais exigentes, não só do que aqueles que constam da pergunta que integra a proposta de referendo ora em apreço, como inclusivamente daqueles para que aponta a alteração legislativa a introduzir na nossa ordem jurídica, no seguimento de uma eventual resposta positiva a esse referendo. O que vale por dizer que esse precedente judicial comparado é, em qualquer caso, intransponível, sem mais, para a situação ora sub judice.
13 - Pois bem: muito embora a pergunta a submeter ao referendo dos cidadãos portugueses, de acordo com a proposta da Assembleia da República, se reporte, mais precisamente, à «despenalização» da interrupção voluntária da gravidez, por livre opção ou decisão da mulher grávida, nas primeiras 10 semanas da gestação, o facto é que nessa «despenalização» vai verdadeiramente implicada a discriminalização de tal conduta e a consequente eliminação da qualificação dela como uma conduta ilícita. É, pois, a possibilidade dessa profunda mudança de valoração jurídica do comportamento em causa - verdadeiramente, uma autêntica mudança do correspondente «paradigma» valorativo - que aí está em causa.
Pelas razões que deixei expostas, tenho essa substituição do paradigma de valoração jurídica da interrupção voluntária da gravidez, por livre decisão da mulher, mesmo nas primeiras 10 semanas da gestação, como constitucionalmente inadmissível.
Assim sendo, a pergunta a submeter ao referendo, cujos requisitos de admissibilidade ora se encontram em apreciação, comporta uma alternativa de resposta (a resposta afirmativa) que será, no meu entendimento das coisas, violadora da Constituição. Eis por que havia de votar - como votei - no sentido de que o referendo em causa não é constitucionalmente admissível. - José Manuel Cardoso da Costa.