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Acórdão 445/97, de 5 de Agosto

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Sumário

Declara inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do príncipio constante do n.º 1 do artigo 32º da Constituição (Garantias de Defesa no processo criminal) -, a norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal - Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro -, em conjugação com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, n.ºs 1 e 2, e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do Acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a designação de "assento n.º 2/93", na 1ª série-A do Diário da República, de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo Acordão n.º 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa. (Proc. n.º 154/97)

Texto do documento

Acórdão 445/97
Processo 154/97
I
1 - O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, fundado no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição e no artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio solicitar que fosse apreciada e declarada, com força obrigatória geral, «a inconstitucionalidade da norma constante do assento 2/93, emergente do Acórdão do plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 10 de Março de 1993, enquanto - com referência ao disposto no artigo 1.º, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.os 1 e 2, e 379.º, alínea b), do mesmo Código - interpreta como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa».

Baseou a entidade peticionante o seu pedido na circunstância de a dita norma ter sido julgada desconforme à lei fundamental, por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, através dos Acórdãos deste Tribunal n.os 279/95, 16/97 e 58/97.

2 - Notificado o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, nenhuma «pronúncia» veio a ser por ele apresentada.

Cumpre decidir.
II
1 - Em 27 de Janeiro de 1993, e precedendo pedido formulado em tal sentido por um arguido que, antecedentemente, tinha sido condenado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que, na sua perspectiva, seguia uma posição interpretativa da lei oposta àquela que foi seguida por um outro aresto daquele alto Tribunal, veio o mesmo Supremo, ex vi dos artigos 437.º e seguintes do vigente Código de Processo Penal, a tirar um acórdão no qual, por entre o mais, se fixou uma jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais com o seguinte teor:

«Para os fins dos artigos 1.º, alínea f), 120.º, 284.º n.º 1, 303.º, 309.º, n.º 2, 359.º, n.os 1 e 2, e 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.»

Desse acórdão, que veio a ser publicado na 1.ª série-A do Diário da República, de 10 de Março de 1993, sob a designação de «assento 2/93», veio a ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional, que, por intermédio do Acórdão 279/95 (que se encontra publicado na 2.ª série do jornal oficial, de 28 de Julho de 1995), o veio a revogar.

1.1 - Aí foi julgado «inconstitucional - por violação do princípio constante do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição - o disposto no artigo 1.º, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.os 1 e 2, e 379.º, alínea b), e interpretado, nos termos constantes do assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa».

Após a prolação desse aresto, este Tribunal, por meio do Acórdão 16/97 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 28 de Fevereiro de 1997), veio a julgar inconstitucional «o assento 2/93, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 27 de Janeiro de 1993, enquanto interpreta como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ele, oportunidade de defesa», tendo, no Acórdão 58/97 (ainda inédito), sido efectuado um julgamento de desconformidade com a lei fundamental precisamente nos mesmos termos dos agora transcritos.

1.2 - Neste contexto, poder-se-ia, numa postura mais formalista, afirmar que, in casu, não se reunia o condicionalismo pressuposto pelo n.º 3 do artigo 281.º da Constituição e pelo artigo 82.º da Lei 28/82, já que a «norma» cuja declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral se visa - ou seja, e estritamente, a constante do «assento 2/93» - não foi, ela mesma, ainda julgada desconforme à Constituição em três casos concretos.

E, em abono dessa postura, haveria que não passar em claro as considerações ínsitas no Acórdão 279/95 no passo em que, ao se determinar aí quais as realidades normativas a que o recurso então em causa se havia de reportar, se decidiu que elas diziam respeito à «apreciação da constitucionalidade do artigo 1.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na interpretação que» lhe foi dada na decisão na ocasião sob censura, integrando essa interpretação outras disposições do mesmo corpo de leis [mais exactamente as constantes dos artigos 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 1, em conjugação com os artigos 120.º, 359.º e 379.º, alínea b)] que vêm a utilizar o conceito considerado naquelas alínea, número e artigo.

Efectivamente, escreveu-se nesse Acórdão 279/95:
«[...]
Neste caso, porém, importa reter a circunstância de se estar perante o próprio processo de que resultou o acórdão de fixação e não perante uma aplicação - autonomizada do processo que o originou - desse acórdão, aplicação essa decorrente do seu carácter obrigatório.

A este propósito, ocorre sublinhar que 'os assentos não são os próprios acórdãos do tribunal pleno, mas estritamente as proposições normativas de estrutura geral e abstracta que se autonomizam, formal e normativamente, desses acórdãos', que o mesmo é dizer que estes, 'originados embora numa decisão jurisprudencial que deles constitui pressuposto jurídico [...] normativamente objectivam, para além dessa decisão, uma prescrição que fica a valer geral e abstractamente para o futuro' (correspondem as citações ao Acórdão do plenário deste Tribunal n.º 810/93, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 2 de Março de 1994).

Ora, neste caso, tratando-se de fiscalização concreta - necessariamente indissociável da específica relação processual em que incidentalmente aparece - emergente do próprio recurso de fixação de jurisprudência que originou o assento 2/93, o carácter autónomo deste não é relevante no processo em que o mesmo foi interposto. Neste processo a decisão 'tem eficácia', mas não 'constitui jurisprudência obrigatória', nas palavras do n.º 1 do artigo 445.º do Código de Processo Penal.

[...]»
1.2.1 - Simplesmente, se se atender à «norma» resultante do «assento 2/93», há-de convir-se que ela, na realidade das coisas, veio conferir ao conceito alteração substancial dos factos, tal como consta da «definição legal» levada a efeito pela alínea f) do n.º 1 do artigo 1.º do Código de Processo Penal, uma determinada interpretação (que, naturalmente, se projecta naqueloutros artigos, já acima indicados, para os quais se torna necessária a utilização daquele mesmo conceito) segundo a qual nele se não integra a simples alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, ainda que essa alteração se traduza na subsunção a uma figura criminal mais grave.

E se assim é, então concluir-se-á que o presente pedido, ao se reportar ao «assento 2/93», intenta, ao fim e ao resto, a apreciação da norma constante da aludida alínea f) do n.º 1 do artigo 1.º do Código de Processo Penal com a sobreposição interpretativa resultante daquele assento, interpretação essa que se vai repercutir nas demais disposições daquele Código, já acima citadas.

Ora, na senda de um tal raciocínio, somos levados a extrair que essa mesma «norma» foi, igualmente, objecto de um juízo de inconstitucionalidade por banda do Acórdão 279/95, e, destarte, não procederiam as razões de harmonia com as quais não estaria, no caso, reunido o condicionalismo previsto no artigo 82.º da Lei 28/82.

De outro lado, os Acórdãos n.os 16/97 e 58/97, conquanto na sua parte decisória sobre o juízo de inconstitucionalidade se reportem unicamente ao «assento 2/93», tendo em conta que este fez apelo a determinadas normas do Código de Processo Penal onde se projectava o conceito de alteração substancial dos factos, necessariamente se não desligaram, naquele juízo, das faladas normas pelo modo como, quanto a tal conceito, foram interpretadas pelo citado «assento».

2 - Duas outras questões, para além da antecedentemente tratada, se podem ainda colocar.

Consiste a primeira, justamente, em saber se a decisão de resolução do conflito, constante de acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, pode englobar o conceito de norma a que se referem, nomeadamente, os artigos 277.º, n.º 1, e 281.º da Constituição; a segunda, por seu turno, liga-se com a questão de saber se, tendo o decidido pelo Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 sido revogado pelo Acórdão 279/95, emitido por este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, a «norma» que emergiu do «assento» que aquele aresto consagrou ainda se deve perspectivar como detendo, do ponto de vista jurídico, plena efectividade.

2.1 - Concernentemente à primeira das agora equacionadas questões, deverá anotar-se que, definido que ficou que o presente pedido há-de ser reportado a determinadas normas constantes do diploma adjectivo criminal, numa determinada interpretação que lhes foi conferida pelo «assento 2/93», nem sequer, em verdade, se tornaria necessário abordar tal questão.

No entanto, sempre se dirá, quanto a ela, que este Tribunal - e excepção feita ao vertente pedido - apenas uma vez foi solicitado que apreciasse e declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de uma «norma» extraída de um acórdão produzido pelo Supremo Tribunal de Justiça em recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Sobre esse pedido veio a incidir o Acórdão 421/96, deste Tribunal (publicado na 2.ª série do Diário da República, de 21 de Maio de 1996), que veio a decidir dele não tomar conhecimento, e isso em virtude de se ter entendido que se não verificava, no caso então em apreço, «a subsistência de qualquer interesse de conteúdo prático apreciável ou com relevo bastante, susceptível de justificar» tal conhecimento. E, por força da solução conferida a essa questão prévia, não veio a ser enfrentado o problema de saber se a jurisprudência obrigatória' alcançada nos termos do artigo 445.º do Código de Processo Penal poderia ser entendida como «norma» susceptível de ser submetida a fiscalização de constitucionalidade.

Todavia, no já citado Acórdão 16/97 um tal problema foi expressamente tratado, sendo conferida solução afirmativa à questão que ele acarretava.

Para tanto, discreteou-se assim:
«[...]
A jurisprudência obrigatória que se contém no assento 2/93 traduzir-se-á numa realidade normativa susceptível de desencadear a fiscalização de constitucionalidade por parte deste Tribunal?

Vejamos.
A coberto da autorização concedida pela Lei 43/86, de 26 de Setembro, mais concretamente pelo seu artigo 2.º, n.º 2, alínea 75), o Código de Processo Penal de 1987, no livro IX ('Dos recursos'), título II ('Dos recursos extraordinários'), capítulo I ('Da fixação de jurisprudência'), instituiu nos artigos 437.º a 448.º o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência que abrange o recurso no interesse da unidade do direito.

Neste quadro normativo, os acórdãos que resolvem o conflito gerado por decisões contraditórias invocadas como fundamento do recurso e fixam a jurisprudência têm força obrigatória para os tribunais judiciais (artigo 445.º, n.º 1), podendo vir a ser reexaminados e modificados pelo plenário das secções criminais (artigo 447.º, n.º 2).

Estes acórdãos, que têm vindo a ser designados de assentos, distinguem-se no entanto dos assentos emitidos ao abrigo do artigo 2.º do Código Civil, preceito este, aliás, já revogado pelo artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro.

Com efeito, enquanto nestes últimos a fixação da doutrina pelo Supremo Tribunal de Justiça se concretizava através da criação de uma norma jurídica com eficácia erga omnes, a decisão tirada pelo plenário das secções criminais constitui jurisprudência obrigatória apenas para os tribunais judiciais. Há-de dizer-se, porém, quanto a esta específica distinção, que em bom rigor as decisões criminais (o processo penal e o direito criminal), pela sua natureza e sentido, se circunscrevem, nos seus efeitos, ao universo judiciário, isto é, aos tribunais e às instituições que os coadjuvam no exercício e concretização das suas competências.

[...]»
E, após um excurso sobre a jurisprudência constitucional a respeito do conceito de norma utilizado nos artigos 277.º e seguintes do diploma básico, prosseguia o acórdão que se tem vindo a transcrever:

«[...]
Ora, à luz desta jurisprudência e dos princípios nela definidos a propósito do conceito funcional de norma e dos diversos critérios com que se deve operar em ordem à sua consecução - e tão válidos são eles no domínio da fiscalização abstracta como no da fiscalização concreta -, há-de dizer-se que a jurisprudência obrigatória para os tribunais definida nos termos do artigo 445.º do Código de Processo Penal, deve ter-se por sindicável em sede de fiscalização de constitucionalidade.

E deve ter-se por sindicável pois que a decisão que resolveu o conflito da jurisprudência originador do recurso extraordinário não tem a natureza de uma simples decisão judicial, que se traduz na obrigatoriedade para os tribunais judiciais da doutrina que nela se contém.

Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça, em tais casos, acaba por definir critérios de decisão e regras de conteúdo interpretativo que não só vinculam os restantes tribunais judiciais como a ele próprio, a menos que, nos termos do artigo 447.º, n.º 2, proceda ao seu reexame e modificação. Cumpre, porém, acentuar que a auto-revisibilidade destas decisões se acha condicionada pelo facto de a iniciativa do processo pertencer ao Procurador-Geral da República e deste depender o juízo de avaliação sobre a interposição do recurso.

Nestas decisões, para além de se dizer o direito aplicável ao caso concreto (no processo em que o recurso extraordinário foi interposto), aquele Tribunal cria direito, estabelecendo regras de interpretação e entendimento aplicáveis a casos futuros.

Deste modo, a não se admitir, relativamente às 'normas' contidas nestas decisões, a sua sujeição ao controlo de constitucionalidade, ao arrepio do sistema de fiscalização constitucionalmente instituído, acabaria por pertencer ao Supremo Tribunal e não ao Tribunal Constitucional a última palavra sobre a sua conformidade ou desconformidade constitucional.

[...]»
Não se considerando necessário aditar o que quer que seja às transcritas razões, concluir-se-á que as proposições interpretativas resultantes dos acórdãos prolatados pelo Supremo Tribunal de Justiça em recursos extraordinários para fixação de jurisprudência ao abrigo dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal hão-de visualizar-se como «normas» para efeitos de fiscalização operada por este Tribunal, e cujo conceito tem vindo por ele, desde o seu Acórdão 26/85 (publicado na 2.ª série do Diário da República, de 26 de Abril de 1985), a ser prosseguido.

2.2 - Focalizar-se-á agora a acima designada segunda questão, que, recorda-se, consiste em saber se - atendendo à revogação (levada a efeito pelo Acórdão deste Tribunal n.º 279/95) do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça e do qual emergiu o «assento 2/93» - se poderá dizer que a injunção nele contida alguma vez produziu, ou continua a produzir, efeitos (ou, se se quiser, se ela é, ou alguma vez foi, um acto que contém uma regra de conduta ou um critério de decisão, designadamente para os tribunais).

É certo que, a partir do momento em que a própria decisão do Supremo Tribunal de Justiça que resolve o conflito jurisprudencial é revogada, a proposição normativa resultante de tal resolução não deve ter qualquer eficácia, ao menos em termos de poder vir a constituir um critério de decisão para os juízes dos tribunais judiciais na solução jurídica a conferir aos casos em que se coloque um problema de aplicação de norma cuja interpretação veio a ser imposta por aquela proposição. Contudo, a verdade é que, não obstante o concreto aresto de que emergiu o «assento 2/93» ter sido objecto de impugnação por meio de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, esse mesmo aresto veio a ser publicado na 1.ª série-A do Diário da República.

Neste circunstancionalismo, é crível que, pelo menos, alguns tribunais judiciais continuem a acatar a doutrina interpretativa firmada pelo dito «assento». E daí não ser de arredar um entendimento de acordo com o qual a proposição normativa constante desse «assento» continua a dever ser perspectivada como uma fonte intencional de direito oriunda de um dado centro jurígeno ou de um dado centro que, em certos casos, assume funções jurígenas (cf., sobre a problemática das fontes de direito e, de entre estas, a jurisprudência uniformizadora, Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Uma Perspectiva Luso-Brasileira, pp. 168 e segs.), sendo prova disso a ocorrência de decisões tais como aquelas que originaram os recursos decididos pelos Acórdãos deste Tribunal n.os 16/97 e 58/97, que foram lavradas em momentos posteriores à revogação operada pelo Acórdão 279/95.

Tem, assim, toda a utilidade o conhecimento deste pedido, pelo que isso é quanto basta para que se conclua pela existência de interesse quanto à sua apreciação, independentemente de uma tentativa em se conferir, tão exactamente quanto possível - questão certamente revestida de acentuadas dificuldades -, resposta à situação fenomenológica decorrente da revogação do Acórdão de 27 de Janeiro de 1993.

3 - Isto posto, impõe-se debruçar agora a atenção sobre a «norma» em crise, que, como resulta daquilo que acima ficou exposto, será a constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 1.º do Código de Processo Penal, projectada nos (ou conjugada com os) artigos 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.os 1 e 2, e 379.º, alínea b), na interpretação, conferida pelo «assento 2/93», segundo a qual não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou a pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.

Deflui da leitura do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1993, de onde veio a resultar a «norma» ora em apreço, que a simples alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, ainda que essa alteração se traduza na subsunção a uma figura criminal mais grave, se não compreende no conceito de «alteração substancial» definido na aludida alínea f) do n.º 1 do artigo 1.º e, consequentemente, quando um tribunal a efectue não tem de prevenir o arguido dessa alteração com o fim de lhe possibilitar oportunidade de defesa.

Foi precisamente na medida em que esta não obrigatoriedade decorria da «norma» sub specie que os acórdãos invocados no pedido a consideraram contrária ao princípio constitucional do asseguramento das garantias de defesa postulado pelo n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, cabendo agora, de novo, equacionar e decidir o problema.

3.1 - No domínio do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto 16489, de 15 de Fevereiro de 1929, os poderes cognitivos do tribunal quanto ao enquadramento jurídico dos factos constavam dos artigos 447.º e 448.º, sendo que, segundo o primeiro, era lícita a condenação por infracção diversa daquela pela qual o réu foi acusado, desde que os respectivos elementos constassem do despacho de pronúncia ou equivalente (respeitada que fosse a competência do tribunal - cf. seu § 1.).

Essa disposição foi objecto de acentuado labor doutrinal, sendo conhecidas obras de fôlego a esse respeito elaboradas, tais como, a título exemplificativo, o estudo de Beleza dos Santos publicado nos anos 63.º a 65.º da Revista de Legislação e de Jurisprudência e subordinado ao título «A sentença condenatório e pronúncia em processo penal», a obra de Eduardo Correia, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, além do tratamento que lhe conferiram, por entre outros, Silva e Sousa (no artigo «Condenações penais de surpresa», publicado na Revista dos Tribunais, 67.º), Cavaleiro de Ferreira (Curso de Direito Penal, III) e Castanheira Neves (Scientia Iuridica, n.º 78).

No vigente Código de Processo Penal não se encontram disposições semelhantes às acima citadas do seu antecessor, estatuindo-se no n.º 1 do artigo 359.º que uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, cominando-se a sentença com o vício de nulidade caso nela venha a impor-se condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia [artigo 379.º, alínea b)].

Perante essas disposições, surgiu determinada jurisprudência e até certa doutrina que, fundada no entendimento de que o arguido se deve defender da imputação fáctica que lhe é assacada, cabendo aos tribunais, até por via do artigo 206.º da Constituição, a qualificação jurídica, sustentaram que o legislador, ao estatuir os artigos 359.º, n.º 1, e 379.º, alínea b), não desejou afastar-se em muito do que fora consagrado no artigo 447.º do Código de Processo Penal de 1929 (cf. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Pactos e a Sua Relevância no Processo Penal Português, e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Junho de 1991 - publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1991, III, pp. 29 e segs. - e de 26 de Fevereiro de 1992, este proferido no processo 42222, justamente o aresto que foi objecto do recurso extraordinário originador do «assento 2/93»).

Todavia, outra jurisprudência, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, de que é exemplo o Acórdão de 18 de Janeiro de 1991, (in Colectânea, citada, 1991, I, p. 5), enveredou por outro caminho, precisamente suportada na abrangência do princípio do contraditório, quer quanto à matéria de facto quer quanto «ao tratamento que a esta é dado para o efeito de a subsumir aos preceitos incriminadores».

3.2 - No seu Acórdão 173/92 (Diário da República, 2.ª série, de 18 de Setembro de 1992), a propósito da norma ínsita no n.º 2 do artigo 418.º do Código de Justiça Militar e na parte em que permite que o tribunal condene por infracção diversa daquela pela qual o arguido foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os factos que subsumem o tipo se encontrem descritos no libelo acusatório, interrogava-se este Tribunal, após discretear sobre os fundamentos e «alcance do princípio do contraditório, expresso na regra da tramitação contraditória de determinadas fases do processo», se um tal princípio seria respeitado pela norma então em apreciação, tendo concluído pela negativa.

Na verdade, escreveu-se aí:
«[...]
A acusação, libelo ou requerimento acusatório, bem como o despacho judicial que os aprecia, representam a síntese da pretensão punitiva do Estado-Administração face ao arguido. São o coroar de todo um trabalho de investigação e de análise jurídica tendente à apresentação da causa ao tribunal do julgamento. Ora, assim como parece perfeitamente razoável que a defesa, na fase do julgamento, possa beneficiar, em princípio, de quaisquer deficiências da acusação em matéria de descrição dos factos, assim também não repugnará que a defesa beneficie de quaisquer deficiências da acusação em matéria de qualificação jurídico-penal desses mesmos factos, principalmente quando sobre a acusação recaiu uma pronúncia feita por um juiz, pronúncia que, ao fim e ao cabo, constitui um primeiro crivo de apreciação dos fundamentos factuais e jurídicos de tal acusação. Pelo menos, essa solução não parece menos razoável do que permitir a possibilidade de uma condenação que manifestamente exceda a pretensão punitiva constante da acusação e recebida na pronúncia.

[...]
Mas, de qualquer modo, quando não se queira subordinar o poder de julgamento do tribunal a um eventual erro de qualificação da acusação e da pronúncia, então indispensável será obter um dispositivo processual que permita uma correcta qualificação sem que isso implique prejuízo para a defesa do arguido.

É que o arguido não tem de ser sacrificado no altar da correcta qualificação jurídico-penal da matéria de facto; e uma eventual alteração final do enquadramento jurídico desta não tem necessariamente de fazer-se à custa do sacrifício dos seus direitos de defesa.

[...]»
E, no enfrentamento específico da questão de constitucionalidade, observou-se:
«[...]
É certo que a necessidade desta indicação [reportava-se ao dever de a acusação e pronúncia indicarem a lei que proíbe e pune os factos, com o fito de destinar esclarecer principalmente o arguido sobre a imputação jurídico-penal que lhe era dirigida] não decorre de norma constitucional expressa; mas decorre necessariamente do princípio do contraditório, e particularmente do princípio da acusação e da defesa, na medida em que tal defesa não pode ser eficazmente assegurada se não puder ter por referência e por objecto uma incriminação legal precisa, mesmo que eventualmente se admita a possibilidade de uma rectificação posterior dessa incriminação, que é justamente a matéria que aqui se discute.

[...]
Ora a referida preparação da defesa pode ser gravemente prejudicada não só se a acusação for omissa no que diz respeito à incriminação legal dos factos mas também se, depois de encerrada a discussão, o tribunal vier a optar por uma qualificação jurídico-penal com que a defesa não contava.

Não só a estratégia da defesa do arguido como a própria utilidade da defesa produzida podem resultar inteiramente frustradas por essa surpresa processual, conforme notam Silva e Sousa e Eduardo Correia: [...]»

Concluiu assim o acórdão que se vem transcrevendo que o consentimento legal da faculdade de alteração, pelo tribunal, da subsunção jurídico-criminal dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sem que ao arguido seja processualmente proporcionada a possibilidade de ser advertido dessa alteração e de adequar a ela a sua defesa, violava o princípio constante do n.º 1 do artigo 32.º do diploma básico.

3.2.1 - De seu lado, o Acórdão 279/95 não assumiu, quanto ao normativo in specie, postura substancialmente diversa, o que identicamente sucedeu com os Acórdãos n.os 16/97 e 59/97.

Nele foi sublinhado (conquanto, em direitas contas, se não pusesse em causa a liberdade que aos tribunais deve assistir quanto à qualificação jurídica) que no domínio do processo penal a afirmação de uma tal liberdade havia de compatibilizar-se com uma real eficácia das garantias de defesa que, quanto a tal processo, são exigidas pela lei fundamental.

E assim é, de facto.
Naquelas garantias, indubitavelmente, compreende-se um direito do arguido a poder pronunciar-se sobre as questões que, directa ou indirectamente, se repercutem na pretensão punitiva do Estado e da qual ele é alvo; e, em consequência, para que se efective adequadamente um tal direito, mister é que a lei adjectiva criminal preveja os adequados mecanismos possibilitadores, quer para alertar o arguido de que o tribunal do julgamento entende que não foi correcta a subsunção jurídico-penal levada a efeito na acusação ou na pronúncia - subsunção essa que implicaria uma condenação criminal menos grave do que aquela intentada pelo juízo do julgamento - quer para lhe facultar a oportunidade de, quanto à nova qualificação, exercer cabalmente os seus direitos de defesa.

Como tem sido enfatizado pelas doutrina e jurisprudência constitucionais, as «garantias de defesa não podem deixar de incluir a possibilidade de contrariar ou contestar todos os elementos carreados pela acusação» (palavras do Acórdão 54/87 deste Tribunal, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 17 de Março de 1987), sendo um dos significados jurídico-constitucionais do princípio do contraditório «o direito do arguido [...] de se pronunciar e contraditar [...] argumentos jurídicos trazidos ao processo» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 206).

Pois bem:
Sendo facilmente admissível, perante a realidade das coisas, que diferente pode ser a estratégia da defesa consoante a qualificação jurídico-criminal dos factos cujo cometimento é imputado ao arguido, há-de reconhecer-se que - independentemente da liberdade que deve ser concedida ao tribunal do julgamento para proceder a uma correcta subsunção jurídica - uma alteração da qualificação que foi acolhida na acusação ou na pronúncia pode vir a ter, e até por vezes acentuadamente, repercussão nos objectivos pelos quais aquela estratégia foi delineada.

Para obstar a um tal inconveniente não é forçoso que a porventura incorrecta qualificação jurídico-penal levada a efeito na acusação ou na pronúncia venha a subsistir na decisão do julgamento. Bastará que a perspectiva assumida pelo tribunal do julgamento seja transmitida ao arguido e lhe seja dada oportunidade de, quanto a ela e caso o deseje, se defender.

3.2.2 - Ora, a norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 1.º do Código de Processo Penal, na sobreposição interpretativa do «assento 2/92» e com a projecção que tem, inter alia, no n.º 1 do artigo 359.º e na alínea b) do artigo 379.º, não só não contempla a dação daquela transmissão, como também não faculta ao arguido a possibilidade de se defender quanto à nova qualificação, pelo que, nessa medida, se posta como contrária aos ditames que se extraem da expressão condensada «garantias de defesa», utilizada no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.

III
Em face do que se deixa exposto, este Tribunal declara inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição -, a norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1.º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.os 1 e 2, e 379.º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do Acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a designação de «assento 2/93», na 1.ª série-A do Diário da República, de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo Acórdão 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa.

Lisboa, 25 de Junho de 1997. - Bravo Serra (relator) - Antero Alves Monteiro Dinis - Alberto Tavares da Costa - José de Sousa e Brito - Messias Bento - Guilherme da Fonseca - Maria da Assunção Esteves - Fernando Alves Correia - Maria Fernanda Palma - José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/84533.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1929-02-15 - Decreto 16489 - Ministério da Justiça e dos Cultos - Direcção Geral da Justiça e dos Cultos

    APROVA O CODIGO DE PROCESSO PENAL.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1986-09-26 - Lei 43/86 - Assembleia da República

    Autorização legislativa em matéria de processo penal.

  • Tem documento Em vigor 1987-03-17 - Acórdão 54/87 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 2 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 437/75, de 16 de Agosto, na parte em que estabelece a ordem de intervenção do extraditando e do Ministério Público para alegações, por violação dos n.os 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição.

  • Tem documento Em vigor 1995-12-12 - Decreto-Lei 329-A/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Civil. Altera o Código Civil e a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2008-07-30 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 7/2008 - Supremo Tribunal de Justiça

    Fixa jurisprudência no seguinte sentido: Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 35 (...)

Aviso

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