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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 7/2008, de 30 de Julho

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Sumário

Fixa jurisprudência no seguinte sentido: Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º deste último diploma legal. (Proc. n.º 4449/07)

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008

Processo 4449/07 - 3.ª Secção

Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

José Alexandre Serôdio da Gama Lobo Xavier, com os sinais dos autos, interpôs recurso extraordinário, para fixação de jurisprudência, do Acórdão da Relação do Porto de 20 de Dezembro de 2006, proferido no recurso n.º 7030/07, que decidiu ser legalmente admissível, no caso de condenação pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir prevista no artigo 69.º, n.º 1, do Código Penal, independentemente da existência de qualquer referência na acusação àquela pena acessória, designadamente indicação da disposição legal que prevê a sua cominação (1).

Em sentido oposto indicou o Acórdão da Relação do Porto de 12 de Janeiro de 2005, proferido no recurso n.º 5023/04, o qual decidiu que, no caso de condenação por crime de condução perigosa de veículo rodoviário, sendo omissa a acusação quanto à aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, não incluindo qualquer referência à disposição legal que a prevê, e não se dando cumprimento ao disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal (2), não pode o arguido defender-se relativamente à cominação de tal sanção, ficando impossibilitado do exercício do contraditório, pelo que é inadmissível a sua condenação naquela pena acessória.

Em conferência concluiu-se pela admissibilidade do recurso, face à oposição de soluções relativamente à mesma questão de direito no domínio da mesma legislação, tendo-se ordenado o seu prosseguimento.

O recorrente nas alegações que apresentou, após motivada abordagem da questão a decidir, emitiu posição no sentido de ser fixada jurisprudência nos termos seguintes:

«Ao condenado pelos crimes previstos nos artigos 291.º ou 292.º, do Código Penal, não estando prevista na acusação a possibilidade de condenação pela sanção acessória ou a referência da disposição legal [artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal] e não se dando cumprimento ao disposto nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, não deve ser condenado pela sanção acessória, porquanto tal condenação violaria o princípio do contraditório.» A Exma. Procuradora-Geral-Adjunta, nas suas estruturadas e fundamentadas alegações, formulou as seguintes conclusões:

«1 - As penas acessória constituem verdadeiras penas.

2 - Para além de terem de estar expressamente previstas na lei, têm de ter limites mínimo e máximo, em ordem a possibilitar a sua graduação em consonância com as exigências de prevenção e sem afrontar o limite que a culpa constitui, comungando dos requisitos das penas principais.

3 - A sua imposição não pode, pois, nunca assumir carácter automático.

4 - O carácter não automático da pena acessória reside na necessidade de comprovação judicial dos requisitos formal - prévia punição pela prática de um crime - e substancial - 'particular conteúdo do ilícito que justifique materialmente a sua aplicação'.

5 - O Código Penal de 1982 não criou um verdadeiro sistema de penas acessórias, verificando-se então uma 'ruptura entre a culpa e a pena acessória'.

6 - O Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, que procedeu à revisão do Código Penal de 1982, veio responder à necessidade de se encontrar prevista no sistema sancionatório penal uma pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, com uma moldura penal determinada, que tivesse como 'pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização de veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante; e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável'.

7 - Com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei 77/2001, de 13 de Julho, foi agravada a moldura abstracta da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.

8 - Nos termos do artigo 283.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal, a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a 'indicação das disposições legais aplicáveis'.

9 - Depois da narração dos factos imputados ao agente, que fundamentam a aplicação de uma pena, a acusação deve mencionar as normas penais que prevêem e punem jurídico-criminalmente os aludidos factos, incluindo assim todas as disposições legais que cominem penas - sejam principais ou acessórias.

10 - Estando em causa a possibilidade de imposição da pena acessória prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, a acusação não podia deixar de conter essa referência.

11 - Com o despacho que, recebendo a acusação, designa dia para julgamento, fica estabilizado o objecto do processo e fixados os poderes de cognição do Tribunal, bem como a extensão do caso julgado.

12 - Uma alteração da qualificação jurídica dos factos imputados na acusação que se traduza na possibilidade de imposição de outra pena - principal ou acessória - só é possível nos termos do artigo 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, sob pena de violação do princípio do contraditório e ofensa do direito de defesa, ambos com consagração constitucional no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa.

13 - A consideração do princípio do contraditório e o respeito pelo direito de defesa implicam necessariamente se considere incluído no conceito 'alteração da qualificação jurídica dos factos', constante do artigo 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, todo o quadro punitivo aplicável, incluindo naturalmente as penas acessórias.

14 - Assim, não constando da acusação a indicação da aplicabilidade da pena acessória prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, não pode o Tribunal - ainda que considere verificados os respectivos pressupostos formal e substancial - condenar na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, sem que previamente tenha dado cumprimento ao disposto na norma do n.º 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal.

É este o sentido em que deve fixar-se a jurisprudência.» Após julgamento em conferência, cumpre decidir.

Como se reconheceu no acórdão interlocutório, verifica-se oposição de julgados.

A questão ora submetida à apreciação e julgamento do pleno das secções criminais deste Supremo Tribunal consiste em saber se é admissível a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, prevista no n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, no caso de condenação pela prática de qualquer um dos crimes indicados na sua alínea a) (3), sem que a acusação contenha qualquer referência àquela pena acessória, designadamente qualquer menção à disposição legal que prevê a sua cominação e estabelece o seu quantum, e sem que o tribunal dê cumprimento ao disposto no artigo 358.º, ou, ao invés, a condenação naquela pena acessória, inexistindo qualquer referência à mesma na acusação, designadamente ao preceito que a prevê e quantifica, só é legalmente admissível mediante prévia comunicação ao arguido nos termos do artigo 358.º Em defesa da posição que admite a aplicação daquela pena acessória sem necessidade de cumprimento do disposto no artigo 358.º vêm-se pronunciando, maioritariamente, as Relações, sob o entendimento de que a lei impõe, no caso de condenação por crime de condução em estado de embriaguez ou por crime de condução perigosa de veículo rodoviário, a cominação da pena acessória de proibição de conduzir, o que significa que esta pena acessória é um mero efeito penal dos correlativos factos criminosos descritos na acusação, pelo que a sua aplicação sem que da acusação conste qualquer referência ao dispositivo legal que a prevê e quantifica não viola o direito de defesa do arguido, nomeadamente o direito ao contraditório (4).

Em defesa da posição contrária, minoritária, alega-se que a lei adjectiva penal impõe que a acusação contenha, sob pena de nulidade, a indicação das disposições legais aplicáveis, designadamente as que estabelecem as sanções penais comináveis aos factos delituosos objecto da mesma, sendo que o processo fica tematicamente delimitado a essa indicação, tendo em vista o eficaz exercício do direito de defesa do arguido, só sendo legalmente admissível qualquer alteração desde que àquele dela seja dado conhecimento nos termos previstos na lei, razão pela qual não constando da acusação referência normativa à aplicabilidade da pena acessória de proibição de conduzir esta só pode ser aplicada lançando mão do disposto no n.º 3 do artigo 358.º (5).

Observação prévia que cumpre fazer é a de que a questão em apreciação, atenta a forma com vem configurada, não se confunde com outra, sobre a qual muito se disse e escreveu, que é a da conformidade constitucional da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, ao estabelecer e impor a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor a quem (sempre que alguém) seja condenado pelos crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas (6).

A questão que vem colocada ao pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça prende-se directamente com temas fundamentais do processo penal, designadamente o do seu fim e o das garantias de defesa do arguido.

Num Estado de direito democrático é a procura da verdade material e a realização da justiça que constituem o fim último do processo penal.

No entanto, num Estado de direito democrático a procura da verdade material e a realização da justiça não podem ser alcançadas a qualquer preço.

De há muito se vem reconhecendo e entendendo que a cadeia de actividades e procedimentos dirigidos à constatação, positiva ou negativa, do facto criminoso, para fins de aplicação da sanção penal ao seu autor, tem de respeitar rigorosamente o direito constitucional, com destaque para os direitos, liberdades e garantias pessoais, bem como os princípios gerais de processo penal, nomeadamente os decorrentes de textos de direito internacional, designadamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

Daí que a investigação e a procura da verdade, no âmbito do procedimento penal, se hajam de processar de acordo com as garantias constitucionais e os princípios gerais de processo penal.

De entre estes, à questão que ora nos ocupa, interessa, em primeira linha, o princípio da comunicação da acusação (7), segundo o qual deve ser dada a conhecer ao arguido, tempestivamente, ou seja, em tempo que lhe permita preparar e organizar uma defesa adequada, a acusação que contra si foi deduzida. A comunicação da acusação, como refere Bettiol (8), é um instituto inteiramente apontado para salvaguarda do direito de defesa do arguido, o que significa que ao arguido (através da acusação) deve ser dado a conhecer qualquer facto ou qualquer elemento essencial (momento constitutivo do crime) e acidental (circunstância) de que possa derivar a sua responsabilidade ou um seu agravamento (9).

Daqui que sobre a entidade a quem cabe acusar recai o estrito dever de no respectivo requerimento consignar [alíneas a) a g) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal], sob pena de nulidade:

As indicações tendentes à identificação do arguido;

A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

A indicação das disposições legais aplicáveis;

O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de 5;

A indicação dos peritos e dos consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;

A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;

A data e a assinatura.

Narração ou descrição factual e indicação normativa da maior importância, visto que o objecto do processo é o objecto da acusação, o qual se mantém até ao trânsito em julgado da sentença (10), protegendo o arguido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal, assegurando os direitos ao contraditório e à audiência, direitos essenciais à defesa do arguido e à democraticidade do processo penal, que se traduzem no direito de o arguido ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte [alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal], bem como no direito a que todos os actos e procedimentos processuais, na fase de julgamento, sejam susceptíveis de oposição e de discussão, o que implica uma efectiva participação neles, com possibilidade de os discretear, mediante a apresentação de razões e argumentos de facto e de direito (11).

A vinculação do tribunal, porém, quer no que concerne aos factos descritos na acusação quer no que tange ao enquadramento jurídico dos mesmos ali operado, não é absoluta.

Com efeito, em certos casos e situações, por razões várias, já depois de deduzida a acusação, algumas vezes no decurso do julgamento, outras já na fase de recurso, vêm-se a descobrir novos factos ou a constatar que os factos constantes da acusação foram deficientemente ou insuficientemente descritos ou deficientemente ou incorrectamente qualificados, possibilitando a lei, limitadamente, desde que salvaguardadas as garantias de defesa do arguido, a alteração dos factos e ou a alteração da sua qualificação jurídica, para que o processo possa alcançar o seu concreto fim, isto é, a descoberta da verdade e a realização da justiça.

É através do instituto denominado da alteração dos factos, instituto previsto nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, que se estabelece e regula a possibilidade de alteração dos factos descritos na acusação e na pronúncia, bem como a alteração da sua qualificação jurídica.

Prevê a lei duas situações distintas no que se refere à alteração dos factos, uma que contempla a ocorrência de alteração factual com repercussão relevante no tipo de crime imputado ou nos limites máximos das sanções legais aplicáveis, dando lugar à imputação de um crime diverso ou à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, a outra que prevê a verificação de alteração factual sem aquelas repercussões, no entanto, com relevância para a decisão da causa (12).

A primeira situação é denominada pela lei como alteração substancial dos factos (13), com regulamentação no artigo 359.º, a segunda como alteração não substancial dos factos, com regulamentação no artigo 358.º (14).

Prevê a lei, ainda, a possibilidade de alteração da qualificação jurídica, situação em que, não ocorrendo alteração factual, se verifica, porém, necessidade de modificar a qualificação jurídica que na acusação ou na pronúncia se atribuiu aos factos nas mesmas descritos, situação que o legislador entendeu submeter ao regime aplicável à alteração não substancial dos factos - n.º 3 do artigo 358.º No caso ora em apreciação não se estando perante qualquer alteração factual, vejamos, no entanto, se estamos face a situação que deva ser considerada de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, a implicar o cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 358.º No cumprimento dessa tarefa cabe em primeiro lugar verificar se a condenação do arguido em pena acessória, concretamente de proibição de conduzir veículos motorizados, perante acusação ou pronúncia omissas no que concerne à possibilidade de aplicação daquela pena acessória, designadamente a ausência de indicação da disposição legal que a prevê, se deve considerar como integrante de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

Caso a resposta seja positiva, cumprirá determinar se a alteração da qualificação jurídica implica ou não a necessidade de comunicação prevista no artigo 358.º Qualificar juridicamente os factos é subsumi-los ao direito constituído, ou seja, aplicar a lei aos factos, verificar se os mesmos possuem ou não relevância jurídica e em que termos devem ser integrados no respectivo ordenamento.

Verificada a relevância jurídica dos factos e feita a sua integração no ordenamento jurídico, ficam os mesmos qualificados, isto é, identificados do ponto de vista normativo, dando-nos a exacta medida do tratamento que a lei lhes confere.

Em processo penal, ex vi artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), 308.º, n.º 2, e 374.º, n.os 2 e 3, alínea a) (15), em sede de acusação, de pronúncia e de sentença, a qualificação jurídica dos factos opera-se mediante a indicação das disposições legais que lhes são aplicáveis, indicação que, obviamente, a lei manda se faça a seguir à narração ou descrição daqueles.

No caso vertente verifica-se que, perante os mesmos factos, o Ministério Público na acusação que deduziu indicou como disposições legais aplicáveis o artigo 292.º do Código Penal, enquanto que o juiz na sentença mencionou como disposições legais aplicáveis os artigos 292.º e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, tendo ao abrigo do primeiro normativo condenado o ora recorrente na pena de 80 dias de multa à taxa diária de (euro) 5 e, com fundamento no segundo, condenado aquele na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de quatro meses.

Ora, não sendo coincidente a indicação das disposições legais aplicáveis aos factos feita na acusação e na sentença, dúvidas não restam de que se verifica uma alteração da qualificação jurídica dos factos (16).

Consabido haver ocorrido em sentença uma alteração na qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, vejamos se tal alteração implica ou não a necessidade de comunicação prevista no artigo 358.º (17).

Conquanto o n.º 3 do artigo 358.º aluda a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia tout court, o que do ponto de vista literal inculca a ideia de que abrange toda e qualquer alteração (18), obviamente com a ressalva prevista no n.º 2, segundo a qual se dispensa a comunicação da alteração ao arguido quando resulte de alegação feita pelo mesmo, a verdade é que se vem entendendo que nem toda a alteração implica necessariamente a sua comunicação ao arguido.

A questão da necessidade daquela comunicação tem sido objecto de debate desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal (1987).

A versão originária do artigo 358.º que, tal como a actual, tinha por epígrafe «Alteração não substancial dos factos descritos na acusação» (19), não contendo, porém, qualquer alusão à alteração da qualificação jurídica, foi inicialmente interpretada no sentido de que o legislador ao nada prever relativamente àquela concreta alteração deixou à liberdade do julgador a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (20), posição que se estribou na orientação doutrinal defendida por Beleza dos Santos, face ao Código de Processo Penal de 1929, segundo a qual «Quanto à qualificação jurídica - isto é, à aplicação e à interpretação da lei - é manifesto que o réu não pode contar com aquela que o despacho de pronúncia adoptou. Ela pode evidentemente ser alterada, sem que se prejudiquem os legítimos interesses do réu, a quem fica sempre aberto o caminho de discutir livremente a qualificação jurídica dos factos e de recorrer contra sentenças que façam uma apreciação ou interpretação da lei que julgue erróneas», «Seria exorbitante e injustificado que se atribuísse ao réu a vantagem de beneficiar com qualquer erro de apreciação jurídica feita no despacho de pronúncia ou equivalente. Da mesma maneira seria injustificado e vexatório que se vinculasse o tribunal que tem de julgar a certa interpretação da lei seguida pelo juiz que pronunciou» (21).

Neste preciso sentido veio este Supremo Tribunal de Justiça, através do assento 2/93, a fixar jurisprudência nos seguintes termos:

«Para os fins dos artigos 1.º, alínea f), 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 4, 309.º, n.º 2, 359.º, n.os 1 e 3, e 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave.» Parte da doutrina, mais tarde, optou por diferente solução, defendendo a aplicação analógica do artigo 358.º (obviamente na sua versão originária) às situações de alteração da qualificação jurídica, assumindo a livre qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia com a dupla condição da comunicação prévia ao arguido e da concessão de tempo para a sua defesa (22).

Por sua vez, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão 279/95, em recurso interposto do assento 2/93, julgou inconstitucional a interpretação naquele assumida nos casos em que a convolação conduzisse à condenação do arguido em pena mais grave, sem que o mesmo fosse prevenido da nova qualificação jurídica e sem que lhe fosse dada oportunidade de defesa, sob a argumentação de que o arguido não tem de ser sacrificado no altar da correcta qualificação jurídico-penal da matéria de facto e que uma eventual alteração final do enquadramento jurídico desta não tem necessariamente de fazer-se à custa do sacrifício dos seus direitos de defesa, sendo que para assegurar esta defesa basta que lhe seja dado conhecimento prévio da nova qualificação.

E o mesmo Tribunal, pelo Acórdão 445/97, reiterou aquela doutrina, proferindo decisão de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

Foi então reformulado por este Supremo Tribunal o assento 2/93 no seguintes termos:

«Ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta exista, o Tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a sua defesa jurídica.» Mais tarde, através do acórdão de fixação de jurisprudência 3/00 foi aquela doutrina reforçada, tendo-se decidido que:

«Na vigência do regime dos Códigos de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa.» Com as alterações introduzidas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, o legislador entendeu dever tomar posição perante as diversas posições doutrinais e jurisprudenciais assumidas, tendo consagrado, por via de aditamento de um número ao artigo 358.º, n.º 3, a solução da livre qualificação jurídica dos factos pelo tribunal do julgamento, com reserva da obrigatoriedade de prévia comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e da concessão, a requerimento daquele, do tempo necessário à preparação da defesa, ressalvando os casos em que a alteração derive de alegação feita pela defesa - n.º 2 do artigo 358.º E com a publicação da Lei 48/2007, de 29 de Agosto, através de aditamento de um número ao artigo 424.º (n.º 3), alargou a possibilidade de a alteração da qualificação jurídica poder ser feita no tribunal de recurso (bem como de a alteração poder incidir sobre os factos descritos na decisão em recurso, desde que não substancial), alteração que, obviamente, no caso de ser desconhecida do arguido, terá de lhe ser comunicada para o mesmo, querendo, sobre ela se pronunciar (23).

Certo é que este alargamento já era jurisprudencialmente admitido, consabido que este Supremo Tribunal através do Acórdão 4/95 fixou jurisprudência obrigatória no sentido de que o tribunal superior pode em recurso alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus.

Com tudo isto, porém, não resulta pacífico o entendimento sobre a obrigatoriedade de comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e concessão ao mesmo de prazo para a defesa.

Com efeito, para além da ressalva contida no n.º 2 do artigo 358.º, segundo a qual a alteração não carece de ser comunicada ao arguido, o que bem se percebe, visto que a mesma é resultado de alegação por si produzida, vem-se entendendo que outros casos ocorrem em que é inútil prevenir o arguido da alteração da qualificação jurídica, razão pela qual se considera não dever ter lugar a comunicação.

Vejamos.

O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender.

Ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido - n.º 1 do artigo 32.º (24) - , consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado (25).

Assim e atenta a ratio do instituto, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido - artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República - o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-lhe prazo para preparação da defesa. Por isso, se considera que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou «menos agravado», ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto e normativos pelos quais vai ser julgado (26).

O mesmo sucede quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave que o da acusação ou da pronúncia em consequência de redução da matéria de facto na sentença, quando esta redução não constituir, obviamente, uma alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação (27).

Tal acontece, ainda, face a alteração decorrente da requalificação da participação do agente de co-autoria para autoria (28), bem como perante alteração resultante da requalificação da culpa do agente de dolo directo para dolo eventual (29).

Na situação objecto do presente recurso extraordinário verifica-se, porém, que as garantias de defesa do recorrente foram postas em causa.

Explicitemos.

A qualificação jurídica dos factos em sede de acusação não se circunscreve à indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes que aqueles preenchem.

Com efeito, a lei - alínea f) do n.º 3 do artigo 283.º - impõe a indicação das disposições legais aplicáveis, ou seja, de todas as disposições legais aplicáveis.

Deste modo, para além da indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes, terão de ser indicadas as normas que estabelecem a respectiva punição, ou seja, a espécie e a medida das sanções aplicáveis (30).

Pretende a lei que ao arguido seja dado conhecimento do exacto conteúdo jurídico-criminal da acusação, ou seja, da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se assim expressão aos princípios da comunicação da acusação e da protecção global e completa dos direitos de defesa, este último estabelecido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição Política, princípios a que já fizemos referência.

Só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada.

É que o arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação. A vertente jurídica da defesa em processo penal é, em muitos casos, mais importante (31). E esta para ser eficaz pressupõe que o arguido tenha conhecimento do exacto significado jurídico-criminal da acusação, o que implica, evidentemente, lhe seja dado conhecimento preciso das disposições legais que irão ser aplicadas.

Por isso, qualquer alteração que se verifique da qualificação jurídica dos factos feita na acusação ou na pronúncia (com excepção dos casos atrás referidos), nomeadamente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender, sob pena de se trair o favor defensionis (32).

Por outro lado, como deixámos assinalado nas considerações preliminares tecidas, a declaração do direito do caso penal concreto é tarefa conjunta do tribunal e dos sujeitos processuais, na qual o arguido é também chamado a intervir, porém, para isso terá de participar e de ser ouvido, nos diversos actos processuais, de acordo com o quadro jurídico pelo qual vai ser julgado e não com base noutro quadro jurídico.

Assim, se o quadro jurídico que lhe foi dado a conhecer através da comunicação da acusação ou da pronúncia é alterado, disso terá de ser informado para que possa influir, se assim o entender, na declaração do direito.

Aliás, o processo penal é um processo equitativo e justo, não sendo configurável, num Estado de direito, a possibilidade de ao arguido ser aplicada uma pena sem que disso seja prevenido, isto é, sem que lhe seja dado oportuno conhecimento da possibilidade de que nela pode vir a ser condenado (33).

E a pena acessória é, evidentemente, uma verdadeira pena.

Efectivamente, conquanto seja uma sanção dependente da aplicação da pena principal (como a própria denominação indica), não resulta directa e imediatamente da cominação desta, no sentido de que não é seu efeito automático, o que, aliás, constitui imposição constitucional, decorrente do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, que estabelece, tal qual o faz o n.º 1 do artigo 65.º do Código Penal, que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, constituindo uma sanção autónoma.

Aliás, a pena acessória de proibição de conduzir, para muitos, é bem mais gravosa que a pena principal (evidentemente, quando esta é não privativa da liberdade), sendo certo que a defesa passa aqui, necessariamente, pela alegação e prova de factos de natureza pessoal, factos da maior importância para a determinação concreta da medida daquela, os quais só podem ser dados a conhecer pelo arguido ao tribunal se o mesmo for prevenido de que a condenação no crime de que é acusado implica, também, a condenação na pena acessória, o que nas situações em que, como é o caso vertente, na acusação inexiste referência à norma que comina aquela, terá de ser feito mediante a comunicação prevista no artigo 358.º (34).

Assim, ao condenar-se o aqui recorrente em pena acessória cuja indicação da disposição legal que a prevê e estabelece a sua medida foi omitida na acusação contra ele deduzida, sem que da respectiva alteração tivesse sido prevenido nos termos do artigo 358.º, n.os 1 e 3, há que concluir que se incorreu na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º (35).

Termos em que se acorda, na procedência do recurso:

a) Fixar a jurisprudência seguinte:

«Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º deste último diploma legal.» b) Ordenar a remessa do processo ao Tribunal da Relação do Porto, para que reveja a decisão recorrida, conformando-a com a jurisprudência ora fixada.

Sem tributação.

(1) A decisão de 1.ª instância foi proferida no âmbito do processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 224/03, do 3.º Juízo Criminal do Porto.

(2) Serão deste diploma todos os demais preceitos a citar sem menção de referência.

(3) É do seguinte teor o artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal:

«É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) Por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º;» (4) Cf., entre muitos outros, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 9 de Outubro de 2002 e 17 de Maio de 2007, da Relação do Porto de 4 de Maio de 2005, 20 de Dezembro de 2006 e 7 de Novembro de 2007, da Relação de Coimbra de 17 de Janeiro de 2007 e da Relação de Évora de 13 de Junho de 2006, proferidos nos recursos n.os 39413/00, 2732/07, 11325/05, 17030/05, 13483/07, 172/05 (publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano xxxii, t. i, p. 42) e 593/06.

(5) Cf., para além do acórdão fundamento, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 200, publicado na Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ano xiv, t. iii, p. 187.

(6) Estoutra questão foi amplamente debatida há alguns anos, primeiro a propósito da aplicação da pena acessória de inibição de conduzir prevista no artigo 4.º, n.os 1 e 2, alínea a), do Decreto-Lei 124/90, de 14 de Abril, depois a propósito da pena acessória de proibição de conduzir prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, tendo sido objecto de várias decisões do Tribunal Constitucional, que firmou jurisprudência no sentido da constitucionalidade das normas em causa, sob o entendimento de que a circunstância de dever ser sempre aplicada a pena acessória de proibição de conduzir desde que aplicada a pena principal por crime de condução em estado de embriaguez ou por crime de condução perigosa de veículo rodoviário não implica colisão com a proibição de automacidade das penas acessórias, porquanto a aplicação da pena acessória, tal como a aplicação da pena principal, fundamenta-se na prova do facto típico ilícito e da respectiva culpa, sem necessidade de quaisquer factos adicionais - cf., entre muitos outros, os Acórdãos de 21 de Fevereiro de 1995, 30 de Maio de 1995, 7 de Junho de 1995, 26 de Junho de 1995, 6 de Julho de 1995, 28 de Março de 2001 e 4 de Novembro de 2004, proferidos nos processos n.os 828/93, 375/94, 105/94, 62/95, 63/95, 574/00 e 586/04.

(7) Este princípio é uma decorrência do princípio geral constitucionalmente consagrado (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República) da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo penal, princípio assim denominado por Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada (2007), I, p. 516.

(8) Instituições de Direito e Processo Penal (1974), p. 287.

(9) A jusante e a montante deste princípio encontra-se o do acusatório, princípio estruturante do processo penal, cuja essência se traduz na imposição de que o julgamento por um crime é sempre precedido de acusação por esse crime por parte de órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento, definindo e fixando, perante o tribunal, o objecto do processo, condicionando o se da investigação judicial, o seu como e o seu quantum, delimitando os poderes de cognição do tribunal e a sua actividade decisória - cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal (1981), I, pp. 144-145.

(10) O objecto da acusação delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e, consequentemente, a extensão do caso julgado, sendo que a este efeito se chama a vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, princípios segundo os quais o processo deve manter-se o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença, assim se assegurando o direito de defesa do arguido que desta forma se vê protegido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal e assegura os direitos ao contraditório e à audiência.

(11) Os direitos ao contraditório e à audiência assentam na ideia de que os mesmos são os instrumentos adequados para, a todo o tempo, assegurar ao arguido a sua intervenção no processo, facultando-lhe uma relação de imediação com tudo o que no processo ocorre e que o possa atingir ou afectar a sua esfera jurídica, implicando que a declaração do direito do caso penal concreto não seja apenas tarefa do tribunal (concepção «carismática» do processo), mas tenha de ser tarefa de todos, de acordo com a posição e funções processuais que cada um assuma - cf. Figueiredo Dias, ibidem, pp. 157-158, onde expressamente refere, ainda, que o direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão da justiça, das exigências inscritas num Estado de direito, da essência do direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do processo como «comparticipação» de todos os interessados na criação da decisão.

(12) Como se referiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de 21 de Março de 2007, proferido no recurso n.º 24/07: «Alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, e relativamente às quais não pode preparar a sua defesa;

Alteração não substancial constitui, diversamente, uma divergência ou diferença de identidade que não transformam o quadro factual da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal; a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.» (13) A noção de alteração substancial dos factos é dada pela alínea f) do artigo 1.º ao estabelecer:

«Para efeitos do disposto no presente Código considera-se:

................................................................................

f) 'Alteração substancial dos factos' aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.» (14) A lei não nos dá o conceito de alteração não substancial dos factos. Certo é que estaremos perante uma alteração não substancial dos factos sempre que, ocorrendo uma «alteração dos factos», com relevo para a decisão da causa, a mesma não caia na previsão da alínea f) do artigo 1.º (15) São do seguinte teor os n.os 2 e 3, alínea a), do artigo 374.º, sob a epígrafe «Requisitos da sentença»:

«Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém:

a) As disposições legais aplicáveis».

(16) É o que expressamente resulta do texto do n.º 1 do § 265.º da StPO (Código de Processo Penal alemão), como mais à frente se verá, normativo que serviu de fonte ao artigo 358.º, ao estabelecer que ocorre uma alteração da qualificação jurídica dos factos quando o acusado é julgado e condenado com base noutra norma penal que não seja a indicada na acusação.

(17) É do seguinte teor o artigo 358.º (redacção introduzida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto):

«1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para preparação da defesa.

2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.» (18) Mais expressivos, ainda, são os n.os 1 e 2 do § 265.º da StPO, que inspiraram o nosso Código, os quais estabelecem (tradução do Exmo. Colega Conselheiro João Luís Bernardo):

«1 - O acusado não pode ser condenado com base noutra norma penal que não seja a indicada na acusação judicialmente admitida, sem que primeiro seja especialmente advertido da modificação do ponto vista jurídico e lhe seja dada oportunidade de se defender.

2 - Do mesmo modo se deve proceder, quando só no julgamento forem demonstradas circunstâncias especialmente previstas na norma penal que elevem a punibilidade ou legitimem a decisão de uma medida de correcção e segurança.» (19) É do seguinte teor a redacção originária do artigo 358.º:

«1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, o presidente, oficiosamente, ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegado pela defesa.» (20) Neste sentido se pronunciaram, entre outros, Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português (1992), pp.

100 e segs., Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, Código de Processo Penal Anotado (1996), 2.º, pp. 327-329, Costa Pimenta, Código de Processo Penal (1991), p. 724, e Duarte Soares, «Convolações», in Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ano ii, t. iii, pp. 15-28.

(21) Cf. RLJ, ano 63, pp. 385-387 e 401-404 e ano 64, pp. 17-20.

(22) Cf. Teresa Pizarro Beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal (1995), III, pp. 91 e 104, e Figueiredo Dias, como nos noticia Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal (2007), p. 886.

(23) É do seguinte teor o n.º 3 do artigo 424.º:

«Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias.» O texto legal ao limitar o dever de comunicação/notificação à alteração «não conhecida do arguido» pretende subtrair do âmbito do dever de comunicação as situações em que a alteração já é do conhecimento do arguido por se haver verificado na sentença recorrida, ter derivado das conclusões de recurso ou das alegações orais do defensor, ter resultado das conclusões do recurso ou do visto do Ministério Público ou ter resultado das conclusões de recurso do assistente. Neste preciso sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque, ibidem, pp. 1164-1165.

(24) É do seguinte teor o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição Política:

«O processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.» (25) As disposições legais é que definem e estabelecem a natureza jurídica do facto, o tipo de culpa exigido para o seu preenchimento e demais elementos constitutivos, as sanções aplicáveis e outros elementos essenciais para a correcta e adequada defesa do arguido. Tenha-se em vista que a própria tramitação processual depende da qualificação jurídica dos factos. É o que acontece com a forma do processo, a competência do tribunal e o modo de exercício e a extensão do direito ao recurso.

(26) A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado, de forma pacífica, neste preciso sentido - entre outros, os Acórdãos de 17 de Julho de 2002, 12 de Novembro de 2003, 10 de Março de 2004, 6 de Abril de 2006, 10 de Maio de 2006, 14 de Junho de 2006 e 31 de Outubro de 2007, proferidos nos recursos n.os 3158/02, 1216/03, 4024/03, 658/06, 1290/06, 1415/06 e 3271/07.

(27) Cf. o Acórdão deste Supremo Tribunal de 3 de Abril de 1991, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano xvi, t. ii, p. 17, e o Acórdão do Tribunal Constitucional de 17 de Abril de 1997, proferido no processo 254/95.

(28) Cf. o Acórdão deste Supremo Tribunal de 9 de Novembro de 2005, publicado na Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ano xiii, t. iii, p. 205.

(29) Cf. o Acórdão 72/05 do Tribunal Constitucional.

(30) Para além da indicação destas normas poderá haver necessidade de indicação de outras. É o que sucede no caso de cumplicidade, reincidência, crime tentado, crime continuado, etc.

(31) Aliás, nos casos em que o arguido reconhece e aceita os factos que lhe são imputados, passando a estratégia de defesa pela sua assunção ou confissão, resta-lhe como meio de defesa o direito.

(32) Neste sentido se tem pronunciado o Tribunal Constitucional ao defender que um exercício eficaz do direito de defesa não pode deixar de ter por referência um enquadramento jurídico-criminal preciso. Dele decorrem, ou podem decorrer, muitas das opções básicas de toda a estratégia de defesa (a escolha deste ou daquele advogado, a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros, etc.) em termos que de modo algum podem ceder perante os valores subjacentes à liberdade (mesmo que lhe chamemos correcção) na qualificação jurídica do comportamento descrito na acusação.

É da essência das garantias de defesa que a operação de subsunção que conduz o juiz à determinação do tipo penal correspondente a determinados actos seja previamente conhecida e, como tal, controlável pelo arguido. Através da narração dos actos e da indicação das disposições legais aplicáveis, na acusação ou na pronúncia (v. artigos 283.º, n.º 3, e 308.º, n.º 2, do CPP), é fornecido um modelo determinado de subsunção constituído por aqueles factos entendidos como correspondendo a um específico crime. Tal modelo serve de referência à fase de julgamento - destinando-se esta, aliás à sua comprovação - e é em função dele que o arguido organiza a sua defesa. Importa aqui sublinhar que o conhecimento pelo arguido desse modelo, tornando previsível a medida em que os seus direitos podem ser atingidos naquele processo, constitui como se disse um imprescindível ponto de referência na estratégia de defesa, funcionando, assim, como importante garantia de exercício desta.

Sendo mais gravosa para o arguido a nova incriminação, não pode deixar de se lhe facultar, com a comunicação da eventualidade da sua ocorrência, uma sequência processual, situada na fase de julgamento, em que, sendo previsível essa nova incriminação, o arguido possa discuti-la e adaptar a sua defesa a essa alteração - entre outros, os Acórdãos n.os 173/92, 22/96, 445/97 e 463/04.

Em sentido coincidente manifesta-se Raul Soares da Veiga no Prefácio à 2.ª ed. do trabalho de Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português.

(33) É o que resulta do artigo 6.º, n.os 1 e 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

(34) Não servirá de argumento contrário a circunstância de o arguido ser obrigatoriamente representado em juízo e defendido por advogado, entidade que tem a obrigação de saber o exacto conteúdo jurídico-criminal dos factos descritos na acusação. A aceitação de tal argumentação implicaria, evidentemente, a desnecessidade de indicação de qualquer disposição legal na acusação e na própria sentença, incluindo pois a atinente ao próprio crime.

(35) Posição que este Supremo Tribunal tem assumido, também, relativamente à aplicação da pena acessória de expulsão quando na acusação ou pronúncia não consta qualquer referência à mesma, designadamente normativa - Acórdãos de 29 de Setembro de 1991, 9 de Abril de 1997, 16 de Janeiro de 2002, 5 de Fevereiro de 2002, 2 de Fevereiro de 2005, 8 de Junho de 2005, 22 de Março de 2006 e 26 de Março de 2008, o 1.º e o 5.º publicados na Colectânea de Jurisprudência, ano xvi, t. iv, p. 31, e na Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, ano xii, t. i, p. 189, os restantes proferidos nos recursos n.os 1322/96, 3059/01, 4223/04, 1672/05, 467/06 e 444/08, respectivamente.

Lisboa, 25 de Junho de 2008. - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes (relator) - José Adriano Machado Souto de Moura - Eduardo Maia Figueira da Costa - António Pires Henriques da Graça - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - António José Bernardo Filomeno Rosário Colaço - Jorge Henrique Soares Ramos - Fernando Manuel Cerejo Fróis - José António Carmona da Mota - António Pereira Madeira - Manuel José Carrilho de Simas Santos - José Vaz dos Santos Carvalho - António Silva Henriques Gaspar - António Artur Rodrigues da Costa - Armindo dos Santos Monteiro - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - José António Henriques dos Santos Cabral - Luís António Noronha do Nascimento (presidente).

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2008/07/30/plain-237085.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/237085.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1990-04-14 - Decreto-Lei 124/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Establece o novo regime sancionatório da condução sob a influência do álcool.

  • Tem documento Em vigor 1995-03-15 - Decreto-Lei 48/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, e procede à sua republicação.

  • Tem documento Em vigor 1995-07-06 - Acórdão 4/95 - Supremo Tribunal de Justiça

    O TRIBUNAL SUPERIOR PODE, EM RECURSO, ALTERAR OFICIOSAMENTE A QUALIFICAÇÃO JURIDICO-PENAL EFECTUADA PELO TRIBUNAL RECORRIDO, MESMO QUE PARA CRIME MAIS GRAVE, SEM PREJUÍZO, POREM, DA PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS. (PROC NUMERO 47407 - TERCEIRA SECCAO)

  • Tem documento Em vigor 1997-08-05 - Acórdão 445/97 - Tribunal Constitucional

    Declara inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do príncipio constante do n.º 1 do artigo 32º da Constituição (Garantias de Defesa no processo criminal) -, a norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal - Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro -, em conjugação com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, n.ºs 1 e 2, e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do Acórdão lavrado pelo S (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

  • Tem documento Em vigor 2001-07-13 - Lei 77/2001 - Assembleia da República

    Altera o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-29 - Lei 48/2007 - Assembleia da República

    Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.

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