Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 522/2025
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I-Relatório 1-O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional-LTC), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade ou da ilegalidade, com vista à apreciação, pelo Plenário, da ilegalidade da norma constante do artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro), na redação dada pelo Decreto Lei 26/2022, de 18 de março, na parte em que dispõe sobre o momento inicial da contagem do prazo da propositura da ação judicial para efeito de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, por violação do disposto no artigo 10.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 abril.
Para legitimar o seu pedido, o requerente alega que tal norma foi julgada ilegal por este Tribunal em mais de três casos concretos, nomeadamente nos Acórdãos n.os 768/2024 e 895/2024 e na Decisão Sumária n.º 78/2025.
2-Notificado, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, LTC, na pessoa do Senhor PrimeiroMinistro, para se pronunciar sobre o pedido, o Governo ofereceu o merecimento dos autos.
3-O requerente tem legitimidade processual para deduzir o pedido ao abrigo do disposto no artigo 82.º da LTC.
4-As decisões referidas pronunciaram-se no sentido da ilegalidade da norma fiscalizada e transitaram em julgado, pelo que se têm por verificadas as condições previstas no artigo 82.º da LTC.
5-Discutido o memorando apresentado pelo Senhor Presidente do Tribunal Constitucional nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da LTC e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de acordo com o que então se estabeleceu.
IIFundamentação 6-Nos presentes autos, trata-se de apreciar um pedido de generalização do juízo de ilegalidade que este Tribunal afirmou em mais de três casos concretos relativamente à norma constante do artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro), na redação dada pelo Decreto Lei 26/2022, de 18 de março, na parte em que dispõe sobre o momento inicial da contagem do prazo da propositura da ação judicial para efeito de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, por violação do disposto no artigo 10.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 abril.
O juízo de ilegalidade relativamente à norma identificada foi afirmado pela primeira vez no Acórdão 768/2024, cuja fundamentação, no essencial, se transcreve:
6.2-A revisão constitucional de 1997, na redação dada ao artigo 112.º, repôs, no n.º 2, a versão de 1982 (
[a]s leis e os decretos leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos leis publicados no uso de autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos
») e aditou um novo n.º 3, do seguinte teor:
[t]êm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem da aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou por outras devam ser respeitadas
». O valor reforçado traduz-se na consistência atribuída a certas leis em face de outras, na medida em que não podem ser infringidas ou contraditadas por elas.
No referido artigo 112.º, n.º 3, constam quatro categorias de leis reforçadas, as duas primeiras tendo por base critérios “formais ou procedimentais” e as duas últimas assentando em critérios “materiais”
:
(i) as leis orgânicas;
(ii) as leis que careçam de aprovação por maioria de dois terços;
(iii) as leis que por força da Constituição sejam pressuposto normativo necessário de outras leis;
(iv) as leis que por outras devem ser respeitadas.
O valor reforçado de uma lei tem de derivar sempre da Constituição, estando subtraída à liberdade conformadora do legislador. Pode, por isso, falar-se aqui em tipicidade constitucional:
só são leis reforçadas as que como tal resultem da Constituição.
Para o que ora importa, as leis orgânicas, que também são só aquelas que a Constituição assim qualifica (artigo 166.º, n.º 2), caracterizam-se por disciplinarem matérias respeitantes à reserva absoluta da Assembleia da República (artigo 164.º, alíneas a) a f), h), j), e primeira parte das alíneas l), q) e t), e artigo 255.º da Constituição). Vigora quanto a elas não só uma reserva de órgão, já que as matérias que lhes dizem respeito pertencem ao domínio absoluto da competência da Assembleia da República, mas também, no tocante às alíneas a), b), c), primeira parte da alínea d), alíneas e), f), h), primeira parte da alínea l), e alínea q) do artigo 164.º da Constituição, uma reserva de ato, cabendolhes esgotar a regulação das referidas matérias, sem possibilidade de se
destacarem áreas complementares, disciplinadas por legislação de valor diferente
»(
reserva orgânica de carácter integral
»)-cf. Carlos Blanco de Morais, As leis reforçadas:
as leis reforçadas pelo procedimento no âmbito dos critérios estruturantes das relações entre atos legislativos, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pp. 701-702. Como aí se sintetiza,
em relação a um conjunto de matérias constitucionalmente qualificadas, o ordenamento autoriza unicamente que a sua disciplina regulatória seja ditada não apenas por um órgão determinado, mas essencialmente por normas legais produzidas e reveladas através de uma tramitação tradutora de um maior assentimento na vontade decisora em relação à volição legiferante comum
». Nas palavras de Gomes Canotilho:
[o]bserva-se claramente o princípio da competência [...] e da “reserva total” ou “absoluta”. A lei orgânica pode incluir normas sobre matérias de lei ordinária, mas não pode reenviar para uma “lei não orgânica” algumas regulações normativas sobre matérias constitucionalmente incluídas no âmbito das leis orgânicas
»-cf. Direito constitucional e teoria da constituição, 7.ª edição, Coimbra, Almedina, 2003, p. 751.
O mesmo autor (ob. cit., p. 784) salienta que
[u]ma ideia fulcral parece estar subjacente à enumeração de leis orgânicas expressamente feita pelo artigo 166.º, n.º 2:
o relevo político do regime jurídico dessas leis (alíneas a) a f), h), j), primeira parte da alínea l), q) e t) do artigo 164.º e artigo 255.º)
».
Porque versam sobre matérias politicamente sensíveis, as leis orgânicas exigem, ainda, um procedimento agravado para a sua aprovação e um regime reforçado de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Uma dessas matérias é, justamente, a aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa, que, por isso, foi integrada na reserva de lei orgânica (cf. artigos 164.º, alínea f), e 166.º, n.º 2, da Constituição).
Como se resume no Acórdão 497/2019:
Em matéria de acesso à nacionalidade portuguesa, a jurisprudência deste Tribunal tem vindo a reafirmar algumas premissas fundamentais originariamente desenvolvidas no Acórdão 599/2005.
Em primeiro lugar, a de que o direito à cidadania portuguesa tem a natureza de direito fundamental, o que “postula a sua subordinação a alguns corolários garantísticos que constitucionalmente enformam os direitos fundamentais, nomeadamente, aos princípios da sua universalidade e da igualdade, a vocação para a sua aplicabilidade direta, a vinculação de todas as autoridades públicas e privadas e a sujeição das restrições legais ao regime exigente constante dos n.os 2 e 3 do artigo 18.º da CRP”.
Em segundo lugar, a de que não só deve ser reconhecido o direito fundamental a não ser privado da cidadania portuguesa, como deve também reconhecer-se o direito de aceder à cidadania portuguesa a qualquer pessoa que tenha a expectativa jurídica de a adquirir, “observados que sejam determinados pressupostos que o legislador interno entende como expressando aquele vínculo de integração efetiva na comunidade nacional”.
Em terceiro lugar, a de que o legislador não goza de liberdade ilimitada na determinação desses pressupostos, porquanto dos artigos 4.º e 26.º, n.os 1 e 4, da Constituiçãoassim como de outros preceitos constitucionais e de direito internacional (sobretudo do artigo 15.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 19/2000, de 06 de março, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 7/2000 e publicada no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 55) ―, resulta delimitado um “conteúdo mínimo que o legislador ordinário não poderá postergar na definição do regime de acesso ao direito em causa”.
Em quarto e último lugar, a de que, consequentemente, as condições legalmente fixadas para o acesso à cidadania, “[p]or mor da força vinculativa da natureza de direito fundamental de que comunga o direito em causa
», não poderão deixar de
passar o crivo da adequação, necessidade e proporcionalidade, tendo em vista precisamente a preservação do núcleo essencial de tal direito que, por natureza, há de corresponder à evidenciação de um específico vínculo de integração na comunidade portuguesa”
».
E, nas palavras de Carlos Blanco de Morais (ob. cit., pp. 713-714):
Ao definir-se a cidadania, determina-se quem pode fazer parte do povo português e precisamente, como estatuto ou qualidade jurídica pessoal, a cidadania conforma-se cumulativamente como:
-Objeto de um direito fundamental, já que pressupõe a existência de posições jurídicas ativas criadas pela relação de pertença do respetivo sujeito o Estado, podendo a mesma posição jurídica adquirir-se, perder-se e readquirir-se (cf. alínea f) do artigo 164.º);
-“Direito fundamental-condição” da titularidade e exercício de outros direitos fundamentais, como resulta do artigo 15.º da CRP;
-Objeto de deveres fundamentais, expressos na Constituição (artigo 276.º) e na lei.
Sem prejuízo da sua natureza jurídica complexa, a catalogação da aquisição, perda e reaquisição da cidadania como domínio da reserva de lei orgânica sugere o seu posicionamento no hemisfério dos direitos fundamentais e, dentro destes, a posição jurídica ativa em análise ganha (sem prejuízo do seu carácter multiangular) uma especial ênfase no campo dos direitos, liberdades e garantias de essência política.
[...]
É precisamente nos momentos de maior fragilidade dos vínculos humanos e jurídicos de um povo em relação à respetiva coletividade estadual que o poder político procura ultrapassar as suas próprias inseguranças, diferindo a responsabilidade pela tomada de certas decisões de objeto e escopo mais crítico para o universo difuso do consenso.
O regime do direito de cidadania detém, em qualquer caso, um importante nexo causal com a legitimidade dos órgãos do poder político do Estado, já que esta repousa na vontade soberana do povo (artigos 1.º e n.º 1 do artigo 3.º da CRP), o qual atua nessa qualidade, quando vinculado ao mesmo Estado através da cidadania.
Nesta base, a cidadania é um direito pessoal com reflexos estruturantes na legitimação dos órgãos soberanos do Estado.
»Revestindo a forma de lei orgânica, a Lei da Nacionalidade é, pois, subsumível ao conceito constitucional de lei com valor reforçado.
Na doutrina, a infração de uma lei orgânica é considerada na ótica quer da inconstitucionalidade quer da ilegalidade qualificada. No caso, o recurso foi interposto ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC e estruturado apenas na invocação da ilegalidade qualificada e não da inconstitucionalidade da norma impugnada, pelo que o Tribunal Constitucional nunca poderá apreciar a eventual existência de vícios suscetíveis de fundar um juízo de inconstitucionalidade da norma, por não lhe ser permitido convolar o recurso previsto na alínea c) para o plano da inconstitucionalidade (cf., por exemplo, os Acórdãos n.os 161/2003 e 374/2004).
6.3-A Lei da Nacionalidade já foi por diversas vezes objeto da intervenção do legislador (inicialmente, do legislador ordinário e, mais tarde, do legislador orgânico). Em concreto, registam-se as alterações introduzidas pela Lei 25/94, de 19 de agosto, pelo Decreto Lei 322-A/2001, de 14 de dezembro, pela Lei Orgânica 1/2004, de 15 de janeiro, pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, pela Lei 43/2013, de 03 de julho, pela Lei Orgânica 1/2013, de 29 de julho, pela Lei Orgânica 8/2015, de 22 de junho, pela Lei Orgânica 9/2015, de 29 de julho, pela Lei Orgânica 2/2018, de 05 de julho, pela Lei Orgânica 2/2020, de 10 de novembro, e, por último, pela Lei Orgânica 1/2024, de 5 de março.
Além da Lei da Nacionalidade, a matéria relativa à aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa também é objeto do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, inicialmente aprovado pelo Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro. Este Regulamento foi editado pelo Governo com base na alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, no uso, portanto, de poder legislativo em matéria concorrencial. Não obstante a designação “Regulamento”, dúvidas não há de que se trata de diploma de natureza legislativa, aprovado sob a forma de decretolei com invocação da competência legislativa do Governo.
À semelhança da Lei da Nacionalidade, também o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa foi sujeito a várias alterações, mais concretamente, as operadas pelos DecretosLeis 43/2013, de 1 de abril, 30-A/2015, de 27 de fevereiro, 71/2017, de 21 de junho, 26/2022, de 18 de março e 41/2023, de 2 de junho.
No caso, está em causa a norma do artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, na redação dada pelo Decreto Lei 26/2022, de 18 de março, na parte em que dispõe sobre o momento inicial da contagem do prazo da propositura da ação judicial para efeito de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo com fundamento em violação do artigo 10.º da Lei da Nacionalidade, na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril.
[...]
6.4-Cabe, agora, apurar se a norma questionada desrespeita a Lei da Nacionalidade, em concreto, por colidir com o preceituado pelo seu artigo 10.º, n.º 1, na redação aplicável.
É este o teor do artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, na redação dada pelo Decreto Lei 26/2022, de 18 de março:
O Ministério Público deduz nos tribunais administrativos e fiscais a ação judicial para efeito de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, no prazo de um ano a contar da data do registo da aquisição da nacionalidade
».
Por sua vez, dispõe o artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade, na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, que:
A oposição é deduzida pelo Ministério Público no prazo de um ano a contar da data do facto de que dependa a aquisição da nacionalidade, em processo a instaurar nos termos do artigo 26.º
».
Para aferir se a solução prevista no artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa contraria a disciplina do artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade, importa apurar o significado da expressão
facto de que depende a aquisição da nacionalidade
», que constitui o dies a quo do prazo para o Ministério Público deduzir oposição.
[...]
De acordo com a sistematização da Lei da Nacionalidade, encontramos no seu Título I, Capítulo II, Secção I, sob o título
Aquisição da nacionalidade por efeito da vontade
», o artigo 2.º (
Aquisição por filhos menores ou incapazes
»), aplicável ao caso em apreço, segundo o qual
[o]s filhos menores ou incapazes de pai ou mãe que adquira a nacionalidade portuguesa podem também adquirila, mediante declaração
» e, também, o artigo 3.º (Aquisição em caso de casamento ou união de facto
»), que dispõe, paralelamente, no n.º 1, que
[o] estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio
».
Trata-se de duas das hipóteses em que a lei faz decorrer diretamente a aquisição da nacionalidade da manifestação da vontade do interessadodiretamente, porque é esta vontade que surge como elemento desencadeador da aquisição, o que constitui um sinal da
importância nuclear
» reconhecida no âmbito do regime à vontade do indivíduo na modelação do vínculo da nacionalidadecf. Rui Moura Ramos, Do direito português da nacionalidade, Coimbra, Coimbra Editora, 1992, pp. 146 e 147).Com efeito, a propósito da aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, tem vindo a ser reiteradamente entendido na doutrina e na jurisprudência que o facto relevante para a aquisição da nacionalidade não é o estabelecimento de uma relação familiar, mas a declaração de vontade do estrangeiro em condições de adquirir a nacionalidade portuguesa.
Na doutrina, Rui Moura Ramos indica como facto constitutivo da aquisição da nacionalidade por efeito da vontade a
manifestação da vontade do interessado
» e, coerentemente, conta o prazo para o Ministério Público deduzir oposição a partir da data dadeclaração de vontade do interessado
» por ser ofacto de que depende a aquisição da nacionalidade
», nos termos do artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade (ob. cit., pp. 161 e 162). Na modalidade de aquisição da nacionalidade em caso de casamento, o autor escreve que
o facto relevante para a aquisição não é o casamento (o estabelecimento de uma relação familiar), mas a declaração de vontade do estrangeiro que case com um nacional português
»,
[o] casamento não é mais do que um pressuposto de facto dessa declaraçãomas não é ele o elemento determinante da aquisição
»(ob. cit., p. 151).
Também o Tribunal Constitucional afirmou, no Acórdão 615/2013, que
basta a mera declaração do interessado para desencadear o processo de aquisição da nacionalidade portuguesa
» e que o que funda o processo conducente à aquisição da nacionalidade portuguesaé a declaração de vontade do estrangeiro que pretende tornar-se cidadão português
».
Nos tribunais judiciais e administrativos, existe jurisprudência abundante e consolidadaproduzida sobre o artigo 3.º, mas inteiramente transponível para a hipótese do artigo 2.º da Lei da Nacionalidadeno sentido de que o facto relevante para a aquisição da nacionalidade portuguesa é a declaração de vontade do estrangeiro que reúne condições para a adquirir-cf., por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/10/2000, proferido no processo 0068276, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 26/05/2011, proferido no processo 04881/09, e os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 28/05/2015, 04/02/2016, 16/06/2016 e 07/07/2016, proferidos, respetivamente, nos processos n.os 01548/14, 01374/15, 0201/16 e 01264/15, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Do exposto resulta que, segundo a doutrina e a jurisprudência, o facto constitutivo da aquisição da nacionalidade é a manifestação/declaração de vontade do interessado. Consequentemente, embora não o diga expressamente, o artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade, na redação em causa, deve ser lido no sentido de que o
facto de que depende a aquisição da nacionalidade
» aí referido corresponde à manifestação/declaração de vontade do interessado.Acresce que não encontramos qualquer referência à relevância do registo da declaração para aquisição da nacionalidade enquanto facto constitutivo dessa aquisição ou para efeito de contagem do prazo para o Ministério Público deduzir oposição.
[...]
Em consequência, o artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, na redação dada pelo Decreto Lei 26/2022, de 18 de março, colide com a previsão normativa do artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade, na redação em causa.
[...]
6.5-Argumenta ainda o recorrente o seguinte:
a execução da lei orgânica que não afete o regime substantivo do direito de cidadania pode ser concretizada através de regulamento do Governo aprovado por decretolei; a execução da lei orgânica que não afete o regime substantivo do direito de cidadania pode ser concretizada através de regulamento do Governo aprovado por decretolei; a natureza quer do artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade, quer do artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa é procedimental ou adjetiva, visto que se reporta ao momento inicial de um prazo de caducidade (destinado ao Ministério Público para propor a ação de oposição); a execução da lei orgânica que não afete o regime substantivo do direito de cidadania pode ser concretizada através de regulamento do Governo aprovado por decretolei; a execução da lei orgânica que não afete o regime substantivo do direito de cidadania pode ser concretizada através de regulamento do Governo aprovado por decretolei; a natureza quer do artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade, quer do artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa é procedimental ou adjetiva, visto que se reporta ao momento inicial de um prazo de caducidade (destinado ao Ministério Público para propor a ação de oposição); não dispondo sobre o regime substantivo ou material relativo ao direito de cidadania, o artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa não afeta o núcleo essencial da Lei da Nacionalidade, designadamente quanto ao instituto da oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade.
À questão de saber se toda a matéria relativa à cidadania conforma reserva de lei orgânica Carlos Blanco de Morais responde negativamente, invocando o disposto no artigo 4.º da Constituição, nos termos do qual podem existir convenções internacionais que, à margem da lei orgânica e eventualmente contra as suas disposições, confiram regimes especiais de atribuição de cidadania (cf. ob. cit., p. 714).
Mesmo que se admita que a disciplina de certas formalidades não essenciais não integra a reserva de lei orgânica, a natureza substantiva ou adjetiva das matérias não pode servir como critério decisivo para as incluir ou excluir dessa reserva, na medida em que mesmo regras formais são suscetíveis de conformar o direito de cidadania ou contender com o acesso à cidadania. Por exemplo, o registo e a prova da cidadania são indicados como integrando a reserva legislativa absoluta da Assembleia da República prevista na alínea f) do artigo 164.º da Constituição [cf. Jorge Miranda e Catarina Santos Botelho, in Jorge Miranda e Rui Medeiros (Org.), Constituição Portuguesa anotada, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, 2018, Vol. II, anotação ao artigo 164.º, p. 532].
É esse também o caso da definição do dies a quo do prazo para o Ministério Público deduzir oposição à aquisição da nacionalidade, que, apesar da sua natureza processual, não pode deixar de pertencer à reserva de lei orgânica (tanto que, após as alterações introduzidas pela Lei Orgânica 1/2024, de 5 de março, a solução do artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa passou a estar também prevista na Lei da Nacionalidade). Com efeito, trata-se de uma opção políticolegislativa quanto ao prazo para acionamento de uma condição negativa de eficácia da aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, cuja data de iníciomais recuada ou avançadacontende com o acesso à cidadania portuguesa:
a fixação dessa data numa fase mais adiantada do procedimento concede mais tempo ao Ministério Público para intervir e alarga o período de exposição dos interessados à eventualidade dessa intervenção.
6.6-Estando em causa matéria abrangida pela reserva de lei orgânica e sendo evidente a incompatibilidade do n.º 1 do artigo 56.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, na redação do Decreto Lei 26/2022, de 18 de março, na parte em que dispõe sobre o momento inicial da contagem do prazo da propositura da ação judicial para efeito de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, com o artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade, na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 de abril, é forçoso concluir que a norma impugnada viola uma lei com valor reforçado, estando, por isso, ferida de ilegalidade (sem prejuízo da sua eventual inconstitucionalidade orgânica e formal, nos termos expostos nos pontos 6.2 e 6.3., que, pelas razões explicadas no ponto 6.3, não cabe aqui sindicar)
».
Este sentido decisório foi reiterado no Acórdão 895/2024 e na Decisão Sumária n.º 78/2025, indicadas no pedido do Ministério Público, e, posteriormente, nos Acórdãos n.os 146/2025 e 147/2025, em todos se defendendo a incompatibilidade entre a Lei da Nacionalidade e o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa no que respeita à contagem do prazo de propositura da ação judicial para efeito de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade.
No Acórdão 768/2024 entendeu-se que o “facto de que depende a aquisição da nacionalidade” corresponde sempre “à manifestação/declaração de vontade do interessado”. No entanto, mesmo que se considere que o “facto de que depende a aquisição da nacionalidade” é o da reunião dos pressupostos legais, o certo é que também este momento é distinto daquele que veio a ser consagrado na norma fiscalizada, continuando a verificar-se uma violação de lei com valor reforçado (cf. o Acórdão 895/2024 e a Decisão Sumária n.º 78/2025).
Assim, não se vislumbrando quaisquer razões para infirmála, a posição do Tribunal deve ser reafirmada.
Na sequência do exposto, conclui-se que deve ser declarada, com força obrigatória geral, a ilegalidade da norma sindicada.
7-Importa, porém, notar que o artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade foi alterado pela Lei Orgânica 1/2024, de 5 de março, passando a ter a seguinte redação:
A oposição é deduzida pelo Ministério Público no prazo de um ano a contar da data do registo de aquisição da nacionalidade, em processo a instaurar nos termos do artigo 26.º
».
Ora, o parâmetro de ilegalidade invocado veio a ser modificado, de tal modo que a norma constante do artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa já não se mostra hoje contrária ao artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidadealiás, ambos os preceitos estabelecem agora o mesmo dies a quo do prazo para o Ministério Público deduzir oposição à aquisição da nacionalidade:
a data do respetivo registo. Assim, é indubitável que a partir da entrada em vigor do artigo 10.º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade na redação dada pela Lei Orgânica 1/2024, de 5 de março, passou a ser esta a solução vigente no ordenamento jurídico português.
IIIDecisão Nestes termos, decide-se declarar a ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro), na redação dada pelo Decreto Lei 26/2022, de 18 de março, na parte em que dispõe sobre o momento inicial da contagem do prazo da propositura da ação judicial para efeito de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, por violação do disposto no artigo 10.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 abril.
Sem custas (artigo 2.º do Decreto Lei 303/98, de 7 de outubro, a contrario).
Atesto o voto de conformidade do Senhor Conselheiro Afonso Patrão, que não assina por não estar presente. João Carlos Loureiro Lisboa, 17 de junho de 2025.-João Carlos LoureiroJoana Fernandes CostaCarlos Medeiros de CarvalhoJosé Teles PereiraGonçalo Almeida RibeiroJosé Eduardo Figueiredo DiasMariana Canotilho-Rui Guerra da FonsecaDora Lucas NetoAntónio José da Ascensão RamosMaria Benedita Urbano (vencida de acordo com declaração de voto que junto)-José João Abrantes.
Declaração de voto Vencida.
Revendo posição (cf. Acórdãos n.os 146/2025 e 147/2025).
Discordo da conclusão a que se chegou no acórdão a que esta declaração de voto vai aposta, entendendo, ao invés, que não se verifica qualquer inconstitucionalidade.
A Lei da Nacionalidade (LN), na redação vigente à data dos factos, estabelecia que o dies a quo para o Ministério Público deduzir oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa se reportava ao
facto de que dependa a aquisição da nacionalidade
»-sem especificar de que facto se tratava. Já o Regulamento da Nacionalidade (RN), na redação aqui em apreciação, estabelecia que o referido dies a quo se reportava à
data do registo da aquisição da nacionalidade
».
Em face desta (aparente) desconformidade, foi decidido
declarar a ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo Decreto Lei 237-A/2006, de 14 de dezembro), na redação dada pelo Decreto Lei 26/2022, de 18 de março, na parte em que dispõe sobre o momento inicial da contagem do prazo da propositura da ação judicial para efeito de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, por violação do disposto no artigo 10.º da Lei 37/81, de 3 de outubro (Lei da Nacionalidade), na redação dada pela Lei Orgânica 2/2006, de 17 abril
».
Conforme antecipado, discordo da decisão em presença.
Como é sabido, a matéria relativa à aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade portuguesa integra a reserva absoluta da competência legislativa exclusiva da Assembleia da República. Acresce a isto que a lei que regule esta matéria deverá revestir a forma de lei orgânica (cf. artigos 164.º, alínea f), e 166.º, n.º 2, da CRP). As leis orgânicas são leis de valor reforçado (artigo 112.º, n.º 3, da CRP), devendo entender-se esse valor reforçado, no que respeita ao tipo de leis em apreço, como traduzindo-se na circunstância de que têm uma forma especial e um procedimento de elaboração com algumas especificidades (todas elas apontando para uma maior exigência na feitura destas leis).
As leis orgânicas, com muito raras exceções, dizem-se leis sob dupla reserva absoluta. Por um lado, porque vêm previstas no artigo 164.º da CRP (reserva absoluta). Por outro lado, porque as leis que regulem as matérias que devem assumir a forma de lei orgânica têm de esgotar a disciplina jurídica (inovatória) das mesmas. Ou seja, a atuação regulamentadora destas leis deve possuir natureza de pura execução.
Que a escolha do concreto facto que deve marcar o dies a quo para o Ministério Público deduzir oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa (O da declaração de vontade? O da reunião dos pressupostos para a aquisição da nacionalidade? O da data do registo da aquisição da nacionalidade?) não é um ato de mera execução (regulamentar) constitui uma evidência. Ainda assim, a aparente desconformidade entre a solução legislativa e a solução regulamentar pode não ser, justamente, mais do que meramente aparente. Com efeito, e lançando mão de uma interpretação sistemática da LN facilmente se percebe que, nela, o registo da aquisição da nacionalidade assume um papel fundamental. Atente-se, para o efeito, no teor do artigo 12.º (
Efeitos das alterações da nacionalidade
») da LN:
Os efeitos das alterações de nacionalidade só se produzem a partir da data do registo dos atos ou factos de que dependem
». De idêntico modo, atente-se no teor do artigo 18.º da LN (
Atos sujeitos a registo obrigatório
»):
1. É obrigatório o registo:
[...] b) das declarações para aquisição ou perda da nacionalidade
».
Posto isto, ao invés da solução segundo a qual o que se deve ter em conta é a data em que se manifesta a declaração da vontade-a aquisição da nacionalidade por efeito da vontade configura um dos tipos de aquisição da nacionalidade, não sendo a sua manifestação decisiva para efeitos dessa aquisição-e da solução nos termos da qual a reunião dos pressupostos da aquisição da nacionalidade por efeito da vontade é que deve contarsolução, apesar de tudo, mais satisfatória do que a anterior, pois parte da ideia, correta, de que a simples manifestação da vontade é insuficiente ―, a solução que preconizamos, que resulta de uma leitura conjugada dos preceitos relativos à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade e do artigo 12.º da LN, afigura-se a mais conforme com a LN. E, por assim ser, sempre se poderá afirmar que o artigo 56.º, n.º 1, do RN não se mostrava violador do então artigo 10.º da LN. Certamente com um propósito meramente clarificador, o legislador ordinário acabaria por, de forma expressa, para que não haja margem para dúvidas, vir estabelecer, no seu artigo 10.º, que a
oposição é deduzida pelo Ministério Público no prazo de um ano a contar da data do registo da aquisição da nacionalidade portuguesa, em processo a instaurar nos termos do artigo 26.º
»(nova redação dada pela LO n.º 1/2024, de 5 de março).-Maria Benedita Urbano.
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