Acórdão 348/93
Processo 233/93
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Questão
1 - No dia 7 de Abril de 1993, o Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 278.º, n.º 2, da Constituição e 57.º e seguintes da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhes foi dada pela Lei 85/89, de 7 de Setembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 2.º, 3.º, n.º 2, e 4.º de um decreto sobre «acréscimo do número de utentes a cada médico de clínica geral». Tal decreto foi aprovado pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores no dia 26 de Março de 1993 e foi recebido pelo requerente no dia 2 de Abril do mesmo ano.
2 - As normas ora submetidas à fiscalização preventiva da constitucionalidade dispõem o seguinte:
Artigo 2.º
Acréscimo da lista de utentes
Considera-se aumento de lista a inscrição de utentes, a partir de 2000 até ao máximo de 2500.
Artigo 3.º
Remuneração
...
2 - O montante referido no número anterior poderá ser aumentado por despacho conjunto dos Secretários Regionais das Finanças, Planeamento e Administração Pública e Segurança Social, sempre que tal se justifique.
Artigo 4.º
Prestação de trabalho
1 - O aumento da lista de utentes implica, para além do horário de trabalho a que o médico está sujeito, a prestação de trabalho proporcional ao número de utentes inscritos, tendo como referência seis horas semanais por 500 utentes.
2 - A prestação de trabalho acrescida ao horário a que o médico está sujeito não dá lugar ao abono de trabalho extraordinário.
3 - O requerente entende que as normas transcritas são inconstitucionais, aduzindo, em síntese, os seguintes argumentos:
a) O artigo 2.º será inconstitucional por contrariar o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, que atribui a todos os trabalhadores o «direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual». É que o regime legal das carreiras médicas em vigor em todo o território nacional impõe o limite de 1500 utentes para cada médico de clínica geral [alínea a) do artigo 20.º do Decreto-Lei 73/90, de 6 de Março]. Ora, a norma sub judicio determinaria que um médico de clínica geral que tivesse a seu cargo 1999 utentes recebesse, nos Açores, a mesma remuneração que lhe seria atribuída, no continente, por prestar serviços a 1500 utentes. Mesmo que este acréscimo de utentes não implicasse alteração do período normal de trabalho, seria maior a intensidade do trabalho prestado e, nesse sentido, seria maior a sua quantidade;
b) Por seu turno, o n.º 2 do artigo 3.º será inconstitucional, em conjugação com o n.º 1 do mesmo artigo, que estabelece que «o aumento da lista é remunerado por uma importância mensal fixa, por utente inscrito, cujo montante mínimo será de 200$00». A actualização deste montante mínimo por simples despacho conjunto de membros do Governo Regional dos Açores corresponderia a uma modificação da norma legal. Assim, seria violado o disposto no n.º 5 do artigo 115.º da Constituição (com a redacção que lhe foi dada pela Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro):
Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
c) Por fim, o artigo 4.º implicaria o alargamento do período normal de trabalho dos médicos, previsto no n.º 3 do artigo 9.º do Decreto-Lei 73/90, de 6 de Março, em seis horas semanais. Ora, a previsão deste período normal de trabalho contraria o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 59.º da Constituição, que atribui ao Estado «a fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho». Violará, por outro lado, o disposto na alínea a) do artigo 230.º da Constituição, que veda às Regiões Autónomas «restringir os direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores». E violará, ainda, o disposto nos artigos 115.º, n.º 3, e 229.º, n.º 1, alíneas a), b), e c), da Constituição, por estar em causa matéria de direitos dos trabalhadores, que reclama a intervenção do legislador nacional e que é, portanto, reservada aos órgãos de soberania.
4 - Notificada para se pronunciar sobre o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade, nos termos do disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, a Assembleia Legislativa Regional dos Açores sustentou que as normas em apreciação respeitam a Constituição, expendendo, em síntese, esta argumentação:
a) O artigo 2.º não ofende o princípio de que a trabalho igual deve corresponder salário igual, porque a alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Decreto-Lei 73/90 não estabelece um limite máximo de utentes a afectar a cada médico, mais sim uma mera indicação legal, com o fim de promover a personalização das relações entre ele e os utentes, o que é documentado pela expressão «de cerca». Assim, a administração de saúde pode aumentar o número de utentes atribuído a cada médico, tendo em conta, entre outras razões, os recursos existentes. Por outro lado, os clínicos da Região Autónoma dos Açores auferem um subsídio mensal referente ao número de utentes que tenham a seu cargo para além de 1500, de acordo com a localização do concelho, tal como os clínicos dependentes da administração central, ao abrigo do n.º 5 do artigo 11.º do Decreto-Lei 310/83, de 3 de Agosto, com o montante previsto na Portaria 796/91, de 9 de Agosto. Deste modo, a norma em apreciação instituiria uma remuneração suplementar, com o fim de aumentar a produtividade: os médicos da Região Autónoma dos Açores passariam, afinal, a auferir remunerações superiores aos seus colegas do continente quando tivessem a seu cargo 2000 ou mais utentes e iguais nos casos restantes;
b) O n.º 2 do artigo 3.º não viola o disposto no n.º 5 do artigo 115.º da Constituição, por consagrar uma deslegalização parcial (ulterior) do montante mínimo da remuneração a atribuir aos médicos (por cada utente a seu cargo a partir de 2000), a partir de uma definição legal inicial (200$00);
c) O artigo 4.º não altera os limites de duração do trabalho, normal ou extraordinário, definidos pelos artigos 9.º e 24.º do Decreto-Lei 73/90. Com efeito, o n.º 7 deste último artigo prevê a obrigação de os médicos prestarem até seis horas de trabalho extraordinário por semana. O regime do decreto será menos gravoso do que este, na medida em que a prestação de trabalho dependerá do acordo do médico, nos termos do artigo 1.º Assim, não haverá violação do disposto nos artigos 59.º, n.º 2, alínea b), e 229.º, n.º 1, da Constituição, porque não são alterados os limites máximos de duração do trabalho e porque é respeitada a lei geral da República aplicável ao caso (Decreto-Lei 73/90, de 6 de Março).
II - Fundamentação
A) Artigo 2.º do decreto
5 - A exposição de motivos do decreto sobre «acréscimo do número de utentes a cada médico de clínica geral» identifica «a falta de meios humanos [que] não tem permitido satisfazer, adequadamente, a procura da população», como ratio essendi do acréscimo da lista de utentes. Trata-se de medida que visa «rentabilizar os recursos existentes», a que se pretende associar a «concretização de medidas que incentivem o recrutamento e fixação de mais médicos».
O autor da norma sustenta que ela não é inconstitucional, afirmando, desde logo, que a alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Decreto-Lei 73/90 não estabelece um limite máximo de utentes a afectar a cada médico:
Artigo 20.º
Relação personalizada médico-utente
1 - A personalização das relações do médico de clínica geral com os utentes é promovida principalmente da seguinte forma:
a) A cada médico é confiada uma população de cerca de 1500 utentes, nominalmente designada em lista;
...
Entende o Tribunal que a expressão «cerca de», utilizada na norma, autoriza, com efeito, a ultrapassagem do número de 1500 utentes. No entanto, não se concebe que ainda admita um aumento em um terço desse número (para 2000 utentes). Literalmente, não é sustentável afirmar que 2000 utentes são «cerca de 1500» utentes.
A fórmula utilizada pelo legislador deve ser entendida como um limite, mas não como um limite fixo. Do teor da norma decorre que se terá pretendido aceitar que a um médico seja atribuído um número ligeiramente inferior ou superior ao de 1500 utentes. O número de 2000 utentes traduz já uma alteração sensível do limite aproximado estatuído na norma.
6 - A norma em apreço - o artigo 2.º do decreto - não regula, directamente, os direitos profissionais dos clínicos gerais. Ao aumentar de «cerca de 1500» para 2000 a lista de utentes de cada médico, a norma reporta-se à ministração dos cuidados de saúde e disciplina o relacionamento - que se pretende personalizado (artigo 20.º, n.º 1, do Decreto-Lei 73/90) - entre médicos e utentes.
Desta sorte, o artigo 2.º do decreto modifica o regime fixado, a nível nacional, pela alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Decreto-Lei 73/90. E esse regime é aplicável nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 2.º do mesmo diploma legal, «sem prejuízo das competências dos órgãos de governo próprio».
7 - A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido, uniformemente, que o artigo 229.º, n.º 1, alínea a), da Constituição consagra três requisitos - autónomos e cumulativos - a que deve obedecer a legislação emanada das Regiões Autónomas (cf., nomeadamente, os Acórdãos n.os 92/92, 212/92, 220/92 e 328/92, todos proferidos em sede de fiscalização preventiva e publicados no Diário da República, 1.ª série-A, de 7 de Abril, 21 e 28 de Julho e 12 de Novembo de 1992, respectivamente):
a) As matérias a tratar deverão ser de interesse específico para a Região (limite positivo);
b) Tais matérias não podem estar reservadas à competência própria dos órgãos de soberania (primeiro limite negativo);
c) Ao legislarem, as Assembleias Legislativas Regionais não podem estabelecer disciplina que contrarie a Constituição e as leis gerais da República (segundo limite negativo).
8 - O respeito pelas leis gerais da República constitui hoje um requisito negativo da competência legislativa das Regiões Autónomas, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição.
A inobservância deste requisito traduz-se, porém, em ilegalidade e não em inconstitucionalidade [cf. a alínea c) do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição; v. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 133/90, Diário da República, 2.ª série, de 4 de Setembro de 1990, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., 1993, p. 854]. E, em sede de fiscalização preventiva, o Tribunal Constitucional apenas pode apreciar a inconstitucionalidade de normas - não a sua ilegalidade (cf., para o caso em apreço, o n.º 2 do artigo 278.º da Constituição).
9 - Mas a alínea a) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição consagra ainda como requisito negativo da competência legislativa das Regiões Autónomas que as matérias a versar «não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania».
Ora, o Tribunal Constitucional tem entendido que o carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses reclamam que a legislação sobre matérias com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos seja produzida pelos órgãos de soberania (cf., nomeadamente, os Acórdãos n.os 220/92, cit., e 91/84 e 256/92, Diário da República, 1.ª série, de 6 de Outubro de 1984, e 1.ª série-A, de 6 de Agosto de 1992, respectivamente). Tais matérias - e não apenas as expressamente previstas nos artigos 167.º, 168.º e 201.º da Constituição - estão reservadas à competência dos órgãos de soberania.
10 - Nas matérias «com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos» inclui-se, seguramente, a definição das condições de acesso destes aos cuidados da medicina (cf. o artigo 64.º da Constituição). Por conseguinte, é aos órgãos de soberania que compete tal definição. A norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Decreto-Lei 73/90 constitui uma concretização do exercício dessa competência, que está vedada às Regiões Autónomas. E, como se viu, tal norma é aplicável a estas Regiões, ressalvando-se apenas as competências dos seus órgãos de governo próprio (n.º 2 do artigo 2.º do mesmo diploma legal).
11 - Deste modo - e abstraindo da questão de saber se são ou não (indirectamente) afectados direitos profissionais dos clínicos gerais -, a norma sub judicio contraria o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 229.º, na medida em que respeita a matéria reservada à competência própria dos órgãos de soberania. A esta luz, não pode relevar o alegado interesse específico da matéria regulada no artigo 2.º do decreto, visto que, pelo seu interesse nacional, ela está reservada aos órgãos de soberania da República.
E, embora o requerente não tenha invocado, quanto ao artigo 2.º do decreto, a violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição, o Tribunal Constitucional pode apreciar tal questão, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 51.º da Lei 28/82.
12 - Alcançada esta conclusão, inútil se torna ponderar a argumentação aduzida pelo requerente, segundo a qual um acréscimo não remunerado do número de utentes a cargo dos médicos de clínica geral, nos Açores, violaria a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, por postular que o trabalho não fosse pago segundo a sua quantidade.
Igualmente se dispensa discutir a argumentação contrária do autor da norma, segundo o qual a remuneração de 200$00 por utente a partir de 2000 (e até 2500) constituiria uma remuneração complementar de outra remuneração complementar já prevista; em suma: os clínicos gerais da Região Autónoma dos Açores seriam discriminados, mas positivamente.
b) Artigo 3.º, n.º 2, do decreto
13 - O n.º 1 do artigo 3.º do decreto legislativo regional estabelece que por cada utente inscrito a partir de 1999 o médico é remunerado «por uma importância mensal fixa [...] cujo montante mínimo será de 200$00». O n.º 2 do mesmo artigo determina que este montante mínimo poderá ser aumentado por despacho conjunto dos Secretários Regionais das Finanças, Planeamento e Administração Pública e da Saúde e Segurança Social, «sempre que tal se justifique».
Esta última norma constitui pois um desenvolvimento do regime consagrado no artigo 2.º do decreto. Deste modo, também a norma contida no n.º 2 do artigo 3.º é consequencialmente inconstitucional.
c) Artigo 4.º do decreto
14 - O n.º 1 do artigo 4.º do decreto legislativo regional contém uma presunção (ilidível) de que o aumento da lista de utentes - de 2000 para 2500 - implica, no seu limite máximo, um acréscimo de seis horas ao período normal de trabalho semanal. O n.º 2 determina que «a prestação de trabalho acrescida ao horário a que o médico está sujeito não dá lugar ao abono de trabalho extraordinário».
Estas normas desenvolvem, igualmente, o regime previsto no artigo 2.º do decreto e também elas são consequencialmente inconstitucionais.
III - Decisão
15 - Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º do decreto da Assembleia Legislativa Regional dos Açores aprovado em 26 de Março de 1993 sobre «acréscimo do número de utentes a cada médico de clínica geral», por violar o disposto no artigo 229.º, n.º 1, alínea a), da Constituição e, em consequência, das normas dos artigos 3.º, n.º 2, e 4.º do mesmo decreto.
Lisboa, 19 de Maio de 1993. - José de Sousa e Brito - Armindo Ribeiro Mendes - Messias Bento - Alberto Tavares da Costa - Maria da Assunção Esteves - Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração que junta) - António Vitorino (vencido, nos termos da declaração junta) - Bravo Serra (vencido, de harmonia com a declaração de voto que junta) - José Manuel Cardoso da Costa - Mário de Brito (tem voto de conformidade; não assina por não estar presente) - José de Sousa e Brito.
Declaração de voto
Dissenti da posição assumida pela maioria do Tribunal no presente acórdão, quanto a todas as questões nele suscitadas, pelas razões que passo a expor:
1 - Numa apreciação geral do diploma, resulta com clareza do seu articulado e do respectivo preâmbulo que, tendo por base a legislação aplicável no continente e na Região, se pretendeu «rentabilizar os recursos [médicos] existentes» através de um expediente que permitisse, a partir de um certo número de beneficiários atribuído a cada médico e até um limite máximo prefixado, uma majoração da respectiva remuneração global.
Assim, a filosofia do diploma, partindo do regime geral em vigor consistente na atribuição de uma lista de utentes a cada médico como forma de realização do princípio da personalização das relações do médico com os utentes, que integra uma das vertentes da implementação dos «cuidados primários de saúde», assenta no expresso reconhecimento de que «a falta de meios humanos não tem permitido satisfazer, adequadamente, a procura da população», procurando-se, para além de outras medidas de incentivação e de fixação de médicos, tornar mais atractivas as condições de exercício da actividade de médico de clínica geral a todos quantos já exercem essas funções na Região.
2 - Um enfoque mais pormenorizado do teor do diploma emanado da Assembleia Legislativa Regional mostra claramente que o diploma visa unicamente regular uma situação em que «o número de clínicos gerais não permita assegurar a inscrição da população em lista de utentes, de acordo com o número legalmente indicado», ou seja, em que os médicos existentes não sejam em número suficiente para que, a cada um, seja «confiada uma população de cerca de 1500 utentes, nominalmente designada em lista» - artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 73/90, de 6 de Março.
Em tal situação concreta, que delimita o âmbito do diploma, os conselhos de administração dos centros de saúde, depois de obterem o acordo do médico, podem propor o aumento do número de utentes por lista, sendo o único e exclusivo objecto do diploma regular a forma de remuneração de tal aumento (artigo 1.º do diploma em análise).
Para este efeito, o artigo 2.º cria o conceito de «aumento de lista», que passa a designar o acréscimo de lista de utentes que, com acordo do respectivo médico, abrange os inscritos a partir de 2000 e até ao máximo de 2500.
Realizando a finalidade do diploma, o artigo 3.º vem estabelecer uma forma de remuneração específica para o «aumento de lista»: o médico receberá, por aqueles utentes, o montante mínimo de 200$00 por cada inscrito (n.º 1 do artigo 3.º), prevendo-se no n.º 2 que tal montante possa vir a ser aumentado, sempre que tal se justifique, por despacho conjunto dos Secretários Regionais das Finanças, Planeamento e Administração Pública e da Saúde e Segurança Social.
No artigo 4.º prevêem-se as consequências da adopção do sistema de «aumento de lista» do artigo 2.º: o aumento de inscrição de utentes implicará, necessariamente, o aumento do tempo de prestação de trabalho dos médicos que o aceitarem, pelo que o diploma prevê que os 500 utentes ocupem um máximo de seis horas semanais, tempo este que acrescerá ao horário de trabalho, mas que não deverá ser remunerado como trabalho extraordinário (n.º 2).
Nos artigos 5.º e 6.º, o diploma prevê a homologação pela direcção regional de saúde para poder ser efectivado qualquer aumento de lista de utentes e a revisão semestral da capacidade de gestão da lista de utentes.
3 - O entendimento global do diploma que vem questionado impõe que se analise, ainda que sumariamente, o regime remuneratório dos médicos de clínica geral no continente, regime este também em vigor na Região Autónoma dos Açores.
No aspecto remuneratório, o Decreto-Lei 310/82, de 3 de Agosto, que estabeleceu o regime legal das carreiras médicas, previa para os médicos de clínica geral, para além da fixação de uma letra correspondente à remuneração da função pública (artigos 11.º e 39.º, n.º 1, além do quadro I anexo ao diploma), a existência de um subsídio adicional mensal em função do concelho onde o médico estiver colocado e do número efectivo de utentes inscritos a seu cargo, de acordo como quadro II anexo ao diploma.
No que se refere ao número de utentes a cargo, o artigo 20.º, n.º 3, alínea a), estabelece que, em nome da personalização das relações com os assistidos, a cada médico é «confiada uma população definida não inferior a 1500 utentes, nominalmente designada em listas». Pelo quadro II antes referido, o médico pode ver, segundo o concelho em que presta serviço, o número de utentes gradativamente aumentado até 1750, de 1750 a 2000 e acima de 2000, para efeitos do subsídio adicional.
O regime legal das carreiras médicas constantes do Decreto-Lei 310/82 foi reformulado pelo Decreto-Lei 73/90, de 6 de Março, sendo este diploma expressamente aplicado nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores (artigo 2.º, n.º 2).
Em matéria de trabalho e de remunerações, o diploma de 1990 prevê um regime de trabalho a tempo completo e em dedicação exclusiva, a que cabem trinta e cinco horas de trabalho normal por semana, podendo os médicos da carreira médica hospitalar e de clínica geral em regime de dedicação exclusiva solicitar um horário de quarenta e duas horas (artigo 9.º). Os médicos da carreira de clínica geral devem ainda prestar, quando necessário e consoante o respectivo horário semanal seja de quarenta e duas horas ou trinta e cinco horas, um período semanal máximo de doze ou seis horas em serviço de urgência ou de atendimento permanente, convertíveis, por conveniência de serviço e com o acordo do médico, no dobro de horas de prevenção (artigo 24.º, n.º 5).
As remunerações, nos termos do artigo 11.º, fixadas na base do regime de dedicação exclusiva e no horário de trinta e cinco horas semanais, constam de escala anexa, sendo o valor de índice 100 fixado por portaria conjunta do Primeiro-Ministro e do Ministro das Finanças, correspondendo no regime de tempo completo a remuneração a 0,66 dos valores fixados para as mesmas categorias e, no caso de o horário ser de quarenta e duas horas semanais, havendo um acréscimo de 25% sobre a respectiva remuneração base mensal.
No diploma de 1990, a personalização das relações do médico de clínica geral com os utentes é promovida confiando-se a cada médico «uma população de cerca de 1500 utentes, nominalmente designada em lista».
Assim, ao invés do diploma de 1982, em que a lista não seria inferior a 1500 e depois se fixavam graus de 250 em 250 utentes até mais de 2000, agora a lista deverá andar à volta dos 1500 utentes.
Porém, do diploma de 1990 não resulta, de forma expressa, a revogação do regime de 1982, embora a aprovação de um novo «regime legal das carreiras médicas» pareça apontar para uma derrogação de tal regime.
Todavia, a expressa referência no artigo 4.º do Decreto-Lei 171/90, de 28 de Maio, à revogação «do n.º 3 do artigo 11.º do Decreto-Lei 310/82, de 3 de Agosto», permite concluir pela não revogação deste diploma através do Decreto-Lei 73/90, de 6 de Março.
Só que, no que se refere ao subsídio mensal adicional previsto na legislação de 1982, ele continuou a ser praticado, tanto no continente como nas Regiões Autónomas, designadamente na Região Autónoma dos Açores, que agora interessa considerar, sem dúvida por se ter considerado que se tratava de um daqueles subsídios que o Decreto-Lei 353-A/89, de 16 de Outubro, ressalva no seu artigo 37.º, sujeitando-os à actualização legal e excluindo-os da remuneração base a considerar para efeitos de transição para a nova estrutura salarial (artigo 30.º do Decreto-Lei 353-A/89).
Tanto assim é que os valores fixados pelo Decreto-Lei 310/82 para este subsídio vieram a ser aumentados, já na vigência do Decreto-Lei 73/90, através da Portaria 796/91, de 9 de Agosto.
Nesta estrutura remuneratória tentou a Assembleia Legislativa Regional intervir no sentido de optimizar os meios humanos existentes na Região na satisfação das necessidades de cuidados primários de saúde, fazendo-o pela forma descrita no n.º 2.
No entendimento que venho fazendo de tal diploma, considero que não ocorre a violação do preceito constitucional que o Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores referencia no seu pedido de apreciação preventiva de constitucionalidade e que o Tribunal maioritariamente teve por verificada.
4 - Dos argumentos invocados pelo Ministro da República no sentido da inconstitucionalidade do diploma em análise, o acórdão reteve um que considerou suficiente para se pronunciar pela inconstitucionalidade de todas as normas, tal como vinha requerido.
Do teor do acórdão resulta que a norma que foi, na verdade, julgada inconstitucional foi o artigo 2.º do diploma, sendo a inconstitucionalidade do artigo 3.º, n.º 2, e do artigo 4.º reconhecida apenas consequencialmente ou por arrastamento.
O argumento decisivo para tal conclusão assenta em que compete aos órgãos de soberania legislar sobre «matérias com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos», e nestas matérias se há-de incluir «seguramente a definição das condições de acessso destes [cidadãos] aos cuidados da medicina (artigo 64.º da Constituição)», pelo que não poderia a Assembleia Legislativa Regional legislar sobre tal matéria, sem violação do preceito do artigo 229.º, n.º 1, alínea a), da Constituição.
Para poder alcançar esta conclusão, o acórdão sentiu necessidade de isolar o artigo 2.º do diploma em apreço do respectivo contexto, tomando-o no seu significado literal como integrando uma modificação do número limite de 1500 utentes por médico de clínica geral constante do artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 73/90.
Ora, é para mim claro que o artigo 2.º em causa não tem esse sentido - nem nunca poderia ter -, como se procurará demonstrar.
O artigo 2.º só adquire um sentido completo e coerente quando entendido no contexto do tal diploma e essencialmente quando lido em consonância com o artigo 1.º e com o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo diploma, como resulta da análise que acerca do mesmo se fez nos pontos antecedentes.
E, como se referiu, o artigo 2.º do diploma em apreço veio criar um conceito jurídico até então inexistente em sede de legislação de carreiras médicas, o «aumento de lista», resultante da inscrição de utentes de 2000 até um máximo de 2500, conceito este unicamente utilizado para efeitos de alteração da forma de remuneração dos médicos que derem o seu acordo a tal «aumento de lista».
Aceite a conclusão de que estão plenamente em vigor, quer no continente quer nas Regiões Autónomas, os escalões relativos ao «número de utentes efectivamente inscritos» a que se referem o artigo 39.º, n.º 1, e os quadros anexos II e III do Decreto-Lei 310/82 («1500 até 1750», «1751 até 2000» e «acima de 2000»), não faz qualquer sentido afirmar que integra uma modificação do número limite de 1500 utentes por média a determinação do artigo 2.º em causa, no sentido de que se «considera aumento de lista a inscrição de utentes, a partir de 2000 ou até um máximo de 2500».
Com efeito, a possibilidade legal de um médico ter efectivamente inscrito um número de utentes acima de 2000 existia já na legislação do Governo para todo o território nacional, não necessitando este diploma em análise de fazer aí e com tal sentido uma qualquer modificação.
Tal conclusão seria até absurda - para não dizer totalmente irrealista - se se pensar que o artigo 2.º está directamente relacionado com o artigo 1.º em que se faz depender do acordo do médico a situação visada no artigo 2.º
Tem, pois, de se concluir que o artigo 2.º teve unicamente a finalidade de definir, para os específicos efeitos do diploma, o entendimento do que era o conceito novo introduzido pelo artigo 1.º, de «aumento de lista» e ainda estabelecer garantisticamente que tal conceito nunca poderia abranger um número de utentes por médico de clínica geral superior a 2500, valor este que não estava legalmente garantido pela legislação de 1982.
Não pode, por isso, afirmar-se, como se faz no acórdão, que o artigo 2.º, entendido apenas enquanto reportado à ministração dos cuidados de saúde e disciplinando o relacionamento entre médicos e utentes, modifica uma lei geral da República, que seria - na óptica da maioria que fez vencimento - a norma do artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 73/90, de 6 de Março, na parte em que ali se estabelece que «a cada médico é confiada uma população de cerca de 1500 utentes, nominalmente designada em lista».
Não existe, por isso e em meu entender, relativamente a esta compreensão estrita do artigo 2.º do diploma em análise, qualquer outra inovação relativamente ao sistema legal em vigor no continente e que continua a ser inteiramente aplicável na Região Autónoma dos Açores.
5 - Nem pode, em meu entender, existir em tal perspectiva qualquer intenção inovatória.
É que o sentido do diploma - como decorre da análise inicialmente feita - é totalmente diferente daquele que foi assumido no acórdão.
Efectivamente, a intervenção legislativa da Assembleia Regional processa-se apenas a nível remuneratório como forma de optimizar os recursos humanos existentes na Região, como é referido no curto preâmbulo do diploma e reiterado na resposta do Presidente da Assembleia Legislativa Regional.
Na verdade, o sentido da disposição do artigo 2.º só é compreensível quando o seu teor se relaciona com o artigo 1.º e com o n.º 1 do artigo 3.º do diploma.
E, na perspectiva deste entendimento conjugado, então tem de reconhecer-se que a norma é inovadora.
Com efeito, definido que foi o conceito de «aumento de lista», resulta da parte final do artigo 1.º do diploma que esse aumento de lista será «remunerado nos termos do presente diploma», ou seja, como se refere no n.º 1 do artigo 3.º, «por uma importância mensal fixa por utente inscrito, cujo montante mínimo será de 200$00».
Significa este conjunto normativo, dentro do entendimento geral atrás definido, que os médicos de clínica geral, nos Açores, deverão auferir, consoante o número de utentes que tiverem em lista, exactamente as mesmas retribuições que no continente; mas, se o diploma em apreço viesse a ser aprovado, então, os que tivessem dado o seu acordo a um «aumento de lista» proposto pelos conselhos de administração dos centros de saúde e homologado pela Direcção-Geral de Saúde (artigo 5.º) poderiam vir a auferir, para além daquela retribuição, uma importância fixa de 200$00, no mínimo, por mês e por doente, entre os 2000 e os 2500.
Independentemente da posição que venho defendendo quanto à questão das matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania, no sentido de que não são apenas as que lhes estão reservadas expressamente pela lei fundamental, mas também todas aquelas matérias que exigem a intervenção do legislador nacional, atento o carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses - e que, no essencial, coincide com a exposta no acórdão -, o certo é que me parece que, sendo a matéria do diploma em causa exclusivamente respeitante a certa forma de remuneração dos médicos de clínica geral, enquanto prestadores de cuidados primários de saúde, não pode deixar de ter, nas Regiões Autónomas, uma especificidade tal que permita aos órgãos legislativos regionais uma intervenção para optimização dos meios humanos ali existentes, desde que o façam com respeito pela Constituição e pelas leis gerais da República - como me parece que no caso sucede - e com recurso apenas aos meios financeiros próprios.
Do que se trata, com efeito, no diploma em apreço, é apenas da atribuição aos médicos de clíncia geral que aceitem expressamente suportar um «aumento de lista» de um complemento de remuneração que permita à direcção regional de saúde, atentas as difíceis e específicas condições geográficas da Região Autónoma dos Açores e a carência de médicos de clínica geal, a prestação dos cuidados primários de saúde ao maior número de utentes possível, garantindo mesmo que o número de utentes não ultrapassará, em caso algum, o máximo previsto por médico (2500).
Esta matéria, a meu ver, não tem de ser objecto de lei geral da República e não está também reservada à competência própria dos órgãos de soberania, sendo inegavelmente matéria de interesse específico da Região Autónoma.
De facto, colocada apenas nesta perspectiva - única possível, como considero que ficou demonstrado - de expediente remuneratório, dependente da prévia e expressa aceitação do médico interessado, a finalidade de intervenção legislativa da Assembleia Regional dos Açores, parece-me manifesto que tal matéria não se pode considerar incluída no âmbito da competência dos órgãos de soberania nacionais, uma vez que não pode considerar-se que tenha um «relevo imediato para a generalidade dos cidadãos».
E nem sequer a invocação feita no acórdão do artigo 64.º da Constituição constitui arrimo bastante para poder modificar a conclusão a que não se podia ter deixado de chegar, no meu entendimento das coisas.
Na verdade, consagrando tal preceito no seu n.º 1, que «todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e preservar», tal direito não está minimamente posto em causa com o normativo regional, pois o objectivo deste visa os prestadores dos cuidados de saúde e não se dirige aos titulares do direito social, às medidas e prestações estaduais visando a prática de saúde.
Como se referiu antes, este direito social genérico está também garantido nos Açores e decorre da legislação nacional aí aplicável, a qual, conforme se mostrou, não é afectada pelo diploma em causa.
Também não serve invocar, como se faz no acórdão, a ideia de que «a definição das condições de acesso dos cidadãos aos cuidados da medicina» é uma matéria com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos.
Desde logo porque o diploma em causa não tem nada a ver com tal definição das condições de acesso dos cidadãos aos cuidados da medicina, definição essa que continua regulada pela mencionada legislação nacional, sendo o diploma algo que está para além de tal definição e fora dela.
Porém, admitindo mesmo - como hipótese de trabalho - que o diploma em causa tinha a ver com o direito à protecção da saúde, nem por isso, em meu entender, seria ele violador da Constituição. É que sempre se poderia considerar que, nesta perspectiva, a Assembleia Legislativa Regional estava a desenvolver - no uso da competência própria [artigo 229.º, n.º 1, alínea c), da Constituição] - uma das bases do sistema de segurança social e do Serviço Nacional de Saúde [cf. artigo 168.º, n.º 1, alínea f), da Constituição], não sendo sequer de questionar o interesse específico de tal matéria para a Região.
Mas, como se acentuou, nem sequer é necessário recorrer a esta competência própria constitucionalmente reconhecida, porquanto, na dimensão do diploma em questão, não trata ele de matéria de relevo imediato para a generalidade dos cidadãos, mas tão-somente da forma de tornar plenamente funcionais os recursos humanos disponíveis do sector, tendo em atenção as particularidades geográficas e populacionais da Região, criando um complemento remuneratório específico.
6 - No que se refere ao artigo 3.º, n.º 2, do diploma aprovado em 26 de Março de 1993, o acórdão considerou-o um mero desenvolvimento do regime do artigo 2.º e, por isso, consequencionalmente inconstitucional.
Ora, como não subscrevo a tese de inconstitucionalidade do artigo 2.º, importa referir, ainda que sumariamente, as razões porque não subscreveria, de qualquer modo, o entendimento de inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 3.º do diploma em apreço.
O Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores entende que o n.º 2 do artigo 3.º do diploma questionado viola o n.º 5 do artigo 115.º da Constituição ao permitir que o montante mínimo de 200$00, fixado no n.º 1, possa ser aumentado por despacho conjunto dos Secretários Regionais das Finanças, Planeamento e Administração Pública.
Não me parece que tenha razão.
É certo que o n.º 5 do artigo 115.º da lei fundamental determina, após a revisão constitucional de 1982, que «nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspenser ou revogar qualquer dos seus preceitos».
Numa interpretação meramente formal seria eventualmente aceitável a posição do requerente.
Porém, a norma em causa admite uma outra leitura que lhe retira qualquer veleidade de autorização para a prática de um acto administrativo modificador da lei - o que seria manifestamente inconstitucional.
A norma em causa pode (e, em meu entender, deve) ser lida como determinando que «o aumento de lista é remunerado por uma importância mensal fixa, por utente inscrito, fixada por despacho conjunto dos Secretários Regionais das Finanças, Planeamento e Administração Pública e da Saúde e Segurança Social, cujo montante mínimo será [desde já] fixado em 200$00», permitindo-se, então, no n.º 2 do preceito, o aumento pontual, pela mesma forma, do seu quantitativo.
Uma tal leitura da norma permite que se entenda que no seu n.º 2 se contém uma hipótese de «reenvio normativo», não proibido pelo n.º 5 do artigo 115.º da Constituição, para um despacho conjunto que passará a funcionar como um «regulamento integrativo» da norma.
Nesta perspectiva, nenhuma inconstitucionalidade se vislumbra na norma em causa.
7 - Também em relação ao artigo 4.º do diploma, o acórdão o considerou como um desenvolvimento do regime previsto no artigo 2.º e por isso concluiu pela sua inconstitucionalização consequencial.
Porém, tal como para o artigo 3.º, não considerando o artigo 2.º inconstitucional, importa aduzir as razões pelas quais também não subscreveria a tese de inconstitucionalidade do artigo 3.º
Também o Ministro da República questiona a conformidade constitucional do artigo 4.º do diploma em apreço, por violar a alínea a) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 2 do artigo 59.º da Constituição.
Estas normas estabelecem o princípio da retribuição do trabalho segundo a regra de a trabalho igual salário igual e o princípio da fixação do horário de trabalho, recte, dos limites da duração do trabalho, a nível nacional.
A norma do artigo 4.º em causa começa por estabelecer no n.º 1 que o aumento de lista dos utentes implica, para além do horário de trabalho a que o médico está sujeito, uma prestação de trabalho proporcional ao número de utentes inscrito, fixando, como referência, que tal prestação não ultrapassará seis horas semanais por 500 doentes e determinando no n.º 2 que tal prestação acrescida ao horário não dá lugar a abono de trabalho extraordinário.
Começar-se-á por dizer que não está aqui, de todo em todo, em causa a fixação dos limites da duração do trabalho: esses, conforme resulta do próprio pedido, estão fixados pelas normas do Decreto-Lei 73/90. Em causa, com o preceito do artigo 4.º, está tão-somente a forma de retribuição do trabalho resultante do «aumento de lista» acordado e devidamente homologado.
E, se bem a entendemos, a lógica do diploma é a seguinte: como o médico receberá sempre a retribuição derivada do acréscimo do número de utentes em lista, nos termos em vigor e que decorrem do Decreto-Lei 310/82, a retribuição complementar, prevista no artigo 3.º, n.º 1, do diploma em causa, há-de acrescer àquela retribuição e, embora o aumento de lista implique um acréscimo de trabalho proporcional ao número de utentes inscritos (que a norma presume corresponder a seis horas semanais por 500 utentes), tal trabalho, mesmo que prestado para além do horário a que o médico está sujeito, não pode nunca dar lugar ao pagamento de trabalho extraordinário, na medida em que a respectiva remuneração se contém já no complemento retributivo mensal, que é calculado por utente inscrito, isto é, independentemente de o utente ser ou não consultado, ou seja, de provocar ou não trabalho acrescido.
Mas, caso assim se não entenda, e tal como já atrás referimos, o certo é que, de acordo com as normas dos artigos 9.º, n.º 3, e 24.º, n.os 5 e 6, ambos do Decreto-Lei 73/90, o horário de trabalho dos médicos da carreira de clínica geral é de trinta e cinco horas semanais (ou de quarenta e duas horas, se o solicitarem), acrescendo um máximo de seis horas (ou de doze para os de quarenta e duas horas) a prestar em serviço de urgência ou de atendimento permanente (ou convertíveis, por conveniência de serviço e de acordo com o médico, no dobro de horas em prevenção).
As seis ou doze horas referidas fazem parte do horário normal e não são consideradas como correspondendo a trabalho extraordinário nem como tais remuneradas, o que equivale a dizer que o horário normal destes médicos é de trinta e cinco horas semanais acrescidas de seis horas em serviço de urgência ou de atendimento permanente ou doze horas de prevenção (sem cuidar agora do que se passa com o regime de dedicação exclusiva).
Nesta perspectiva, também a presunção do artigo 4.º, n.º 1, do diploma em apreço, fixada em seis horas semanais para os 500 utentes acima dos 2000, não gera qualquer trabalho extraordinário dos referidos médicos que dê direito a abono por trabalho para além do respectivo horário.
Com efeito, se o «horário de trabalho a que o médico está sujeito» comporta apenas trinta e cinco horas de trabalho semanais, então o trabalho acrescido e presumido de seis horas semanais por 500 utentes cabe dentro daquele período previsto no artigo 24.º, n.º 5, do Decreto-Lei 73/90, antes referenciado. Se, ao invés, o horário a que o médico está sujeito comporta as trinta e cinco horas semanais acrescidas das seis horas e a este horário vem acrescer o trabalho resultante do «aumento de lista», então poderá estar-se perante um trabalho acrescido para além do horário, mas a respectiva remuneração, como tal, está compreendida no complemento remuneratório que, como se referiu, acresce em todas as circunstâncias à retribuição pelo período de trabalho a que está sujeito o médico, sendo, aliás, calculada de forma diversa - verba fixa por utente e por mês -, assim se remunerando por tal verba mensal fixa todo o trabalho decorrente do «aumento de lista», independentemente de a tal remuneração corresponder ou não uma efectiva ocupação para além do horário de trabalho a que o médico está sujeito.
Pretender, para além do pagamento desta remuneração complementar, que seja pago o trabalho prestado além do horário como trabalho extraordinário seria como remunerar não duplamente mas quase triplamente tal trabalho - remuneração correspondente ao horário normal, subsídio adicional mensal para um número de inscritos acima de 2000 e «remuneração complementar» pelo «aumento de lista» -, o que não é certamente exigido pelas normas invocadas no pedido, não envolvendo, por isso, a norma questionada qualquer inconstitucionalidade, pelo que o diploma aprovado em 26 de Março de 1993 pela Assembleia Legislativa Regional não viola, em meu entender, qualquer preceito ou princípio constitucional.
São estes os fundamentos com base nos quais entendi afastar-me da decisão constante do acórdão em que esta declaração se integra, sem que, com tal entendimento, considere modificado o meu posicionamento relativamente aos requisitos autónomos e cumulativos que balizam a competência legislativa das Regiões Autónomas constantes do n.º 7 do acórdão, que continuo a subscrever, uma vez que julgo ter deixado demonstrado que o diploma em apreço não contende com nenhum desses requisitos. - Vítor Nunes de Almeida.
Declaração de voto
1 - Votei vencido o acórdão quanto à inconstitucionalidade das normas dos artigos 2.º e 4.º do decreto em apreço e, embora entendendo que a norma do artigo 3.º, n.º 2, também padece de vício de inconstitucionalidade, discordo do fundamento invocado, pois em meu entender também aí não há violação do artigo 229.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, mas antes violação do disposto no artigo 115.º, n.º 5, da lei fundamental (tal como invocado no pedido do Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores), pois o preceito em causa permite que um despacho conjunto de membros do Governo Regional altere norma constante de um decreto legislativo regional.
2 - Quanto ao artigo 2.º do decreto (e consequentemente quanto ao artigo 4.º), a decisão de inconstitucionalidade funda-se no entendimento de que na matéria em causa («acréscimo do número de utentes a cada médico de clínica geral») não pode haver interesse específico regional, uma vez que «o carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses reclamam que a legislação sobre matérias com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos seja produzida pelos órgãos de soberania», o que seria o caso do decreto em apreço, pois ele cura da «definição das condições de acesso [dos cidadãos] aos cuidados da medicina».
Reedita-se assim uma orientação jurisprudencial já firmada, por maioria, neste Tribunal, de que me tenho distanciado por razões expressas em diversas declarações de voto (especialmente as juntas aos Acórdãos n.os 212/92, 220/92 e 256/92, publicados todos no Diário da República, 1.ª série-A, respectivamente de 21 e 28 de Julho e 6 de Agosto de 1992).
Desta feita, contudo, parece-me particularmente excessiva a conclusão a que se chegou, centrada num vício não invocado pelo requerente (ao qual, aparentemente, não suscitou dúvida a competência da Assembleia Legislativa Regional para o emitir), mas antes num juízo acerca dos limites do «interesse específico» da Região que legitima a dúvida de saber se neste caso não existe tal interesse específico, então em que casos é que, com tal apertadíssimo crivo, poderá ter-se por verificado esse interesse específico habilitador do exercício de poderes legislativos pelas Regiões Autónomas.
3 - O meu entendimento é o de que esta é uma matéria de inegável interesse específico, que encontra a necessária habilitação no próprio Estatuto Político-Administrativo dos Açores, sobre a qual a Região pode legislar desde que respeitando as leis gerais da República aplicáveis, com tentarei demonstrar.
3.1 - A nível nacional a matéria em causa era regulada pelo Decreto-Lei 310/82, de 3 de Agosto, que dispunha no seu artigo 20.º, n.º 3, que «a personalização das relações [do médico] com o assistido é promovida principalmente da seguinte forma: a cada médico em exercício de funções de clínica geral é confiada uma população definida não inferior a 1500 utentes, nominalmente designada em lista».
Nos termos do artigo 39.º do mesmo diploma (e relacionado com o n.º 5 do seu artigo 11.º), o médico de clínica geral tinha direito a um vencimento e a um «subsídio adicional mensal em função do concelho onde estiver colocado e do número efectivo de utentes inscritos a seu cargo», de acordo com o quadro II anexo ao aludido decreto-lei.
Este quadro II era do seguinte teor:
(ver documento original)
Ou seja, segundo o regime do diploma de 1982, haveria uma lista «desejável» (do ponto de vista do legislador), em que o número de inscritos não poderia ser inferior a 1500, e admitia-se como possível uma lista a que correspondia um sistema remuneratório complementar, o qual variava em função do concelho onde se exercia funções e em função do número de utentes, em que os quantitativos eram acrescidos de 250 em 250 novos inscritos por médico e mantinha-se uniformes acima dos 2000 (sem limite máximo legal do número de utentes incluído neste último escalão).
3.2 - Este decreto-lei de 1982 viria a ser revogado pelo Decreto-Lei 73/90, de 6 de Março, que no seu artigo 20.º, n.º 1, passou a dispor que «a personalização das relações do médico de clínica geral com os utentes é promovida principalmente da seguinte forma: a cada médico é confiada uma população de cerca de 1500 utentes, nominalmente designada em lista». Sobre as remunerações dos médicos de clínica geral passou a dispor o artigo 11.º deste novo decreto-lei, sem qualquer referência ao subsídio mensal adicional a que aludia o diploma de 1982, e acolhendo regras relacionadas com o denominado novo sistema retributivo da função pública e aplicadas em função do regime de exercício das funções em causa (tempo completo e dedicação exclusiva).
Assim sendo, poderia colocar-se a questão da subsistência do regime de subsídio adicional previsto pelo artigo 11.º, n.º 5, do Decreto-Lei 310/82. Mas a Portaria 796/91, de 9 de Agosto, invocando expressamente aquele normativo do diploma de 1982, veio actualizar aquele subsídio para os anos de 1984 a 1991, dela se inferindo a subsistência daquele regime nos termos decorrentes do aludido quadro II.
3.3 - Deste enunciado resulta, pois, que após 1990 a «lista desejável» de médicos por utente é de cerca de 1500 assistidos por médico, mas é possível que tal lista comporte um maior número de assistidos, verificando-se aumento da remuneração adicional por cada grupo de 250 até 2000 e acima de 2000 com uma remuneração complementar uniforme.
4 - A esta luz, o que faz o decreto em apreço? Creio, com efeito, que se limita a estabelecer o limite máximo de 2500 utentes por médico, fixando assim um tecto inultrapassável para o escalão máximo do decreto-lei de 1982 (acima de 2000, sem limite fixado na lei), e sujeitando tal solução a acordo do próprio médico.
Nesta óptica, não haverá, pois, verdadeira inovação nem derrogação do regime constante das leis gerais da República aplicáveis, os Decretos-Leis n.os 310/82 e 73/90, antes se limitando a fixar um limite máximo ao último escalão, em conformidade, aliás, com a lógica da «lista desejável» constante do diploma de 1990 - «cerca de 1500 utentes.
Será esta «adaptação» justificável à luz do «interesse específico» da Região? Independentemente de saber se a solução em causa, em termos materiais, se mostra conforme com o intuito legislativo invocado (fazer face à falta de médicos na Região), questão que não cabe a este Tribunal apreciar, creio poder concluir que os confinados limites da intervenção legislativa regional em apreço, na interpretação ora perfilhada, inserem-se no âmbito de poderes das Regiões de emitirem actos legislativos em matéria de interesse específico (cuidados de saúde) que em nada afectam as competências próprias dos órgãos de soberania nem põem em causa o exercício do direito à saúde por parte dos cidadãos portugueses residentes na Região Autónoma dos Açores.
Razão pela qual votei vencido. - António Vitorino.
Declaração de voto
Votei vencido no presente acórdão pelas razões que, muito sinteticamente, passarei a expor.
Assim:
1 - Como claramente se extrai da norma constante do artigo 1.º do decreto da Assembleia Legislativa Regional dos Açores aprovado em 26 de Março do corrente ano, naquela Região, caso o número de clínicos gerais o permita, a ratio entre o clínico geral e o número de utentes haverá que obedecer ao número fixado na legislação em vigor para todo o território nacional [número esse que, mercê do estatuído no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 73/90, de 6 de Março, é de «cerca de 1500»].
Anteriormente à vigência daquele Decreto-Lei 73/90, dispunha-se no Decreto-Lei 310/82, de 3 de Agosto [cf. seu artigo 20.º, n.º 3, alínea a)], que a «personalização das relações» do médico de clínica geral «com os assistidos» era «promovida principalmente», de entre o mais, de forma que a «cada médico em exercício de funções de clínica geral» fosse «confiada uma população definida não inferior a 1500 utentes, nominalmente designados em lista».
Se é certo que o diploma de 1990, mercê da matéria de que cura, aponta para que o regime das carreiras médicas constante do Decreto-Lei 310/82 tivesse sido substituído por aquele sobre o qual incide o aludido diploma de 1990, o que não é menos certo é que o indicado decreto-lei de 1982 não foi objecto de expressa revogação.
Essa não expressa revogação não obstaria, todavia, a que o intérprete entendesse que o Decreto-Lei 310/82 estaria derrogado face à vigência de um novo diploma que veio regular o regime das carreiras médicas.
Contudo, mesmo depois de entrar em vigor o Decreto-Lei 73/90, surgiram a lume, por um lado, a Portaria 796/91, de 9 de Agosto - que veio, ao abrigo do n.º 5 do artigo 11.º do Decreto-Lei 310/82, a rever, para os anos de 1984 a 1991, os quantitativos correspondentes ao subsídio adicional mensal atribuídos aos médicos da carreira de clínica geral -, e o Decreto-Lei 171/90, de 28 de Maio, o qual, por entre o mais, veio a estabelecer novas remunerações a abonar mensalmente aos médicos abrangidos pelo dito Decreto-Lei 310/82.
Significa isto, no meu entender, que, perante os diplomas atrás referidos (Decreto-Lei 171/90 e Portaria 796/91), o legislador nacional aceitou estar ainda em vigor - ao menos em certa parte - o Decreto-Lei 310/82.
E nessa parte, ainda no meu entendimento, não pode deixar de ser incluído o subsídio adicional mensal concedido «em função do concelho em que estiver colocado e do número efectivo de utentes inscritos a seu cargo» (cf. artigo 39.º do Decreto-Lei 310/82), a que se reporta o quadro II anexo ao citado diploma.
Na verdade, só assim, na minha óptica, se consegue racionalmente explicar a razão de ser do Decreto-Lei 171/91 e da Portaria 796/91, emitidos, como se viu, após a vigência do Decreto-Lei 73/90.
Perguntar-se-á como é possível que, dispondo este último decreto-lei sobre uma matéria sobre a qual regia o Decreto-Lei 310/82 - aí se incluindo o que concerne à razão entre o médico de clínica geral e o número de utentes e às remunerações (cf. artigos 11.º e 20.º do Decreto-Lei 73/90) -, mantenha ainda eficácia o sistema previsor do subsídio adicional mensal, constante daquele Decreto-Lei 310/82, o qual, claramente, pressupõe que ao médico de clínica geral seja confiada uma população de utentes que pode alcançar um número que se situa já para além de «cerca de 1500».
A meu ver, a resposta a uma tal questão - que, à primeira vista, poderia ser considerada ilógica - baseia-se na circunstância de a realidade fáctica nacional não ter, em concretos casos, permitido, face ao número de médicos de clínica geral e à população existente, que se viesse a concretizar a ratio médico de clínica geral/população de cerca de 1500 utentes, desejada pelo Decreto-Lei 73/90.
Ora, perante essas concretas situações de impossibilidade de concretização da ratio estabelecida no Decreto-Lei 73/90, a fim de se poder assegurar a saúde pública, creio que foi intenção do legislador não afastar totalmente o regime instituído no Decreto-Lei 310/82 e segundo o qual a um médico de clínica geral poderia vir a ser confiada uma população de utentes que ultrapassasse o número de «cerca de 1500».
A ser assim, e porque, nessas situações, em abstracto, o médico de clínica geral via o seu trabalho acrescido, tornava-se, mesmo após a vigência do Decreto-Lei 73/90, necessário assegurar-lhe a necessária compensação remuneratória; daí que, em tais casos, continuasse o médico de clínica geral ao qual estava confiada uma população de utentes em número superior ao de «cerca de 1500» a vencer o subsídio a que se reporta o quadro II anexo ao Decreto-Lei 310/82.
Na minha perspectiva, só assim se explica e adquire coerência a sucessão no tempo dos diplomas a que acima fiz referência (Decretos-Leis n.os 310/82, 72/90 e 171/90 e Portaria 796/91) e a constância de dois diferentes sistemas no que concerne à razão médico de clínica geral/população de utentes, consoante as situações concretas encontradas no País - aqui se incluindo, como me parece óbvio, as Regiões Autónomas.
Se, de facto, como entendo, assim se passam as coisas, então há que concluir que o decreto da Assembleia Legislativa Regional em apreço em nada inova no tocante à relação médico de clínica geral/população de utentes. Na realidade, o artigo 1.º daquele decreto aprovado em 26 de Março de 1993, como se viu, aponta, em primeiro lugar, para que a inscrição da população em lista de utentes é assegurada de acordo com o número legalmente fixado, ou seja, o número de «cerca de 1500» consagrado no Decreto-Lei 73/90; prevê, porém, que tal número, «quando o número de clínicos gerais não permita» tal asseguramento, possa ser aumentado pelos concelhos de administração dos centros de saúde, com o acordo do médico, aumento que, em meu modo de ver, em algumas situações específicas, ocorre e está coberto pelo sistema legislativo existente, tal como deve ser perspectivado e atrás referi.
As diferenças que, no fundo e bem vistas as coisas, se deparam entre o consagrado nos artigos 1.º e 2.º (e apelando ainda ao seu artigo 3.º, n.º 1) do decreto em análise e o sistema que a nível nacional deve ser entendido como regulando a relação médico de clínica geral/número de utentes - naqueles casos específicos em que a realidade fáctica não consegue o asseguramento de uma ratio médico/utentes na ordem de 1 para «cerca de 1500» - são que, no decreto, por um lado, se prevê, garantisticamente, que tal relação não pode, em caso algum, ultrapassar o máximo de 2500 utentes - garantia que não é, por qualquer forma, alcançada, em tais específicos casos, em que, então, rege o sistema instituído pelo Decreto-Lei 310/82, uma vez que, como se alcança do quadro II anexo a este diploma, não se fixa um limite máximo acima de 2000 utentes - e, por outro, que, quando o número de utentes ultrapasse este número, o médico de clínica geral, para além do subsídio adicional mensal previsto no artigo 39.º, n.º 1, do Decreto-Lei 310/82 e no aludido quadro II a ele anexo, tem ainda direito, na Região Autónoma dos Açores, a uma outra remuneração «complementar» de 200$00 por utente, sendo certo que esta última diferença é que explica o conceito de «aumento de lista» - conceito esse inexistente na legislação vigente - usado no artigo 2.º do decreto.
Este, pois, na minha perspectiva, o entendimento a conferir, quer ao que se consagra no decreto sub specie, quer à legislação que, a nível nacional, regula a relação médico de clínica geral/população de utentes e remuneração devida àquele nas situações em que as condições existentes não permitam que tal relação se não estabeleça em 1 para «cerca de 1500».
Nesta postura, então, não se pode dizer, na minha óptica, que o estabelecimento das assinaladas diferenças seria vedado ao legislador regional.
Neste particular, cumpre-me assinalar que é profunda a minha dissenção com a tese seguida no acórdão de que a presente declaração faz parte integrante e que, aliás, representa a reedição de uma tese seguida maioritariamente pelo Tribunal.
Na verdade, segundo a fundamentação que se pode deduzir do acórdão, as matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania não se circunscrevem unicamente àquelas a que a lei fundamental reserva à competência legislativa da Assembleia da República e do Governo nos seus artigos 167.º, 168.º e 201.º, antes abarcando, para além dessas, todas aquelas matérias que reclamam a intervenção do legislador nacional, atento o carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses, o que implica que, nesses campos, ou seja, nas matérias com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos, as Regiões Autónomas, em nenhum caso, possam desfrutar de poder normativo, porquanto este deve, e tão-só, ser produzido pelos falados órgãos de soberania.
Pois bem.
Conforme já tive ocasião de realçar na declaração de voto aposta ao Acórdão 220/92 (publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 28 de Julho de 1992) e também como ressalta do que consta do Acórdão 256/92 (publicado no jornal oficial, 1.ª série-A, de 6 de Agosto de 1992), de que fui relator, partilho da opinião segundo a qual a posição assumida pelo Tribunal quanto à questão da delimitação de competência do poder legislativo das Regiões Autónomas, e que, uma vez mais, ficou retratada no presente acórdão, «deixa nas mãos dos aplicadores do direito um verdadeiro 'cheque em branco' para definir» quais as «matérias, não reservadas constitucionalmente de modo expresso aos órgãos legiferantes da República, sobre as quais há um interesse nacional obstaculante à edição normativa regional, podendo, por isso, paralisar, perante tal definição casuística, a produção de efeitos resultantes dessa edição eventualmente produzida».
Significa isto que tenho para mim que só ali onde o diploma básico reserve expressamente aos órgãos de soberania a produção legislativa sobre certas matérias é que sobre elas não pode haver intervenção legislativa das Regiões Autónomas, sendo certo que, na minha perspectiva, fora dessas matérias, não veda a Constituição tal intervenção, respeitadas que sejam esta e as leis gerais da República, e desde que exista um interesse específico regional que justifique a citada intervenção, sendo certo que, na minha óptica, aquela reserva expressa se reporta, quer às matérias elencadas nos ditos artigos 167.º, 168.º e 201.º do diploma básico, quer a matérias que, concreta e especificamente, sejam detectadas em preceitos constitucionais que expressamente sejam postulantes da intervenção do legislador nacional.
Vale isto por dizer que, na minha maneira de ver, não será da natureza das matérias que se extrairá o limite negativo dos poderes legiferantes das Regiões Autónomas quando em causa não estiverem as matérias constantes dos citados artigos 167.º, 168.º e 201.º da Constituição (e, claro, não haja ofensa desta e das leis gerais da República e esteja presente um interesse específico regional), mas sim, no fundo, da existência de concretas e expressas disposições constitucionais que, quanto à matéria de que curam, impõem, especificamente, o seu tratamento legislativo pelos órgãos de soberania dotados de poder legislativo.
Este posicionamento, por mim seguido, conduzirá a que o preceituado no decreto em apreciação - sabidas que são as difíceis e específicas condições geográficas da Região Autónoma dos Açores e a carência de médicos de clínica geral ali sediados - seja amplamente justificado pela especificidade da Região Autónoma em causa, sendo certo que, in casu, a matéria objecto de tratamento em tal decreto não consta, concreta e expressamente, de disposição constitucional que exija o seu tratamento legislativo por parte dos órgãos legiferantes da República.
É certo que no presente acórdão se faz uma referência extremamente vaga, para pretender explicar que a matéria em causa é «de relevo imediato para a generalidade dos cidadãos», à «definição das condições de acesso destes aos cuidados da medicina», para tanto se aludindo globalmente ao artigo 64.º do diploma básico.
Simplesmente, penso, a referência a tal artigo que, em si, contém várias normas - umas consagradoras do direito social de protecção, defesa e promoção da saúde, outras definidoras das condições em que esse direito é realizado e outras meramente definidoras das incumbências que a esse propósito recaem sobre o Estado -, não basta para do mesmo se extrair que ali se abarca uma expressa reserva constitucional aos órgãos de soberania da produção legislativa tocante à matéria de que esse artigo trata.
Fazer uma alusão tal como a que, neste particular, é feita no acórdão aponta, a meu ver sem grandes dúvidas, para que se possa extrapolar que, para a maioria do Tribunal, as matérias concernentes aos direitos sociais devem ser perspectivadas como unicamente podendo sofrer tratamento legislativo pelos órgãos de soberania, assim se vedando aí qualquer intervenção aos órgãos de governo próprio das Regiões. Ora isto, para mim, é, no mínimo, impensável, pois, seguramente, nunca teria sido essa a intenção do legislador constituinte.
Vale isto por dizer que a maioria do Tribunal, pela postura jurisprudencial que tem assumido e que, neste ponto, até pretende ir mais além, vai, uma vez mais e com maior acentuação, restringindo a intervenção dos órgãos de governo próprio das Regiões, postura da qual, novamente o sublinho, frontalmente dissento.
2 - Face à conclusão acima alcançada, torna-se evidente que, porque entendo que a norma constante do artigo 2.º do decreto em questão não padece de incosntitucionalidade por ferimento da alínea a) do n.º 1 do artigo 229.º da lei fundamental, não teria um tal vício (inexistente na minha óptica), que acarretar, «consequencialmente» ou «por arrastamento», a inconstitucionalidade das normas ínsitas no n.º 2 do artigo 3.º e do artigo 4.º do mesmo decreto.
De todo o modo, afastando essa consequência ou esse arrastamento, ainda assim poder-se-ia pôr a questão de saber se aquelas normas, ou sejam, as normas do n.º 2 do artigo 3.º e do artigo 4.º, eram, por si, portadoras de vícios a que se refere o requerente.
A resposta a uma tal questão deve, para mim, sofrer resposta negativa, convindo fazer, neste ponto, uma abordagem muito perfunctória de cada norma de per si.
3 - O n.º 2 do artigo 3.º do decreto, segundo o meu modo de ver, não viola o artigo 115.º, n.º 5, da Constituição.
Na realidade, tenho para mim que aquela norma consagra uma regra segundo a qual a «remuneração complementar» a abonar aos médicos de clínica geral que, mercê das circunstâncias concretas das situações deparadas, tenham a seu cargo uma população de mais de 2000 utentes («remuneração» essa a acrescer àquela a que se refere o quadro II anexo ao Decreto-Lei 310/82) é fixada por despacho conjunto dos Secretários Regionais das Finanças, Planeamento e Administração Pública e da Saúde e Segurança Social, não podendo, porém, ser inferior a 200$00 por utente.
Lida assim, como o faço, a norma do n.º 2 do artigo 3.º do decreto em apreço, claramente, na minha opinião, não poderá violar o artigo 115.º, n.º 5, do diploma básico, já que, segundo uma tal leitura, ela não deixa de ser entendida como contendo um reenvio normativo não proibido para um acto que, desta arte, funciona como um «regulamento integrativo».
Logo, também não seria por esta via que a norma do n.º 2 do artigo 3.º do decreto padeceria de vício de inconstitucionalidade.
4 - Resta a norma ínsita no artigo 4.º do decreto aprovado em 26 de Março último.
Na minha maneira de encarar a questão, e uma vez que admito a plena conformidade constitucional da norma do artigo 2.º - o que, logo, não consequencia ou arrasta a inconstitucionalidade da norma agora em causa -, o disposto nesta última não pode ser considerado, minimamente que seja, como violador da alínea a) do n.º 1 e da alínea b) do n.º 2 do artigo 59.º da lei básica.
Efectivamente, do disposto no n.º 3 do artigo 9.º e no n.º 5 do artigo 24.º, um e outro do Decreto-Lei 73/90, resulta, inquestionavelmente a meu ver, que o horário de trabalho dos médicos da carreira de clínica geral é de trinta e cinco horas (ou de quarenta e duas horas, se assim o solicitarem), a que acresce um máximo de seis horas (ou doze horas, quanto a estes últimos) a prestar em serviço de urgência ou de atendimento permanente (convertíveis, por conveniência de serviço e de acordo com o médico, no dobro de horas em prevenção). Essas seis horas (ou doze) fazem, porém, parte do horário normal e, tanto quanto se sabe, não são consideradas como correspondendo a trabalho extraordinário e como tal remunerado.
Vale isto por dizer que o horário normal destes médicos (e deixando agora de parte a opção, feita pelos médicos em regime de dedicação exclusiva, no sentido de solicitarem um horário de quarenta e duas horas) é de trinta e cinco horas semanais, mais seis em serviço de urgência ou de atendimento permanente (convertíveis em doze horas de prevenção).
Sendo assim, como entendo que é, então a presunção de que o acréscimo de trabalho pelos 500 utentes além dos 2000 corresponde a seis horas de trabalho (e isto para aquelas situações a que acima fiz referência) não vai desencadear um acréscimo do horário normal de trabalho dos médicos em questão.
A isto é de aditar que, de todo o modo, mesmo que fosse entendível constituírem aquelas seis horas trabalho extraordinário, o que é facto é que o n.º 2 do artigo 4.º do decreto em causa não vai estatuir uma não remuneração por esse trabalho extraordinário. De facto, há que atentar que não são essas hipotéticas (utilizada esta expressão no sentido de que, por vezes, pode o estado de saúde dos 500 utentes a mais de 2000 não demandar um acréscimo de trabalho do médico e, logo, de horas de labor desenvolvido por este) horas de trabalho que são objecto de remuneração, mas sim o número de utentes - cuja mera existência, independentemente de acarretarem ou não concretamente um maior desenvolvimento de trabalho do médico - que dá lugar a uma «remuneração complementar».
Pretender ainda, para além da atribuição desta «remuneração», o pagamento de trabalho extraordinário concretamente realizado e referente às seis horas (se assim ele fosse considerado, e para mim não deve ser) seria, ao fim e ao resto, pretender uma dupla remuneração que, afinal, não tem consagração nos preceitos constitucionais apelados pelo requerente (cuja tese, reconheço, não se apresenta desprovida de lógica para quem, como ele, defende ser ilegítima a regulação constante da norma do artigo 2.º do decreto, o que, nessa tese, levaria a que o «acréscimo» de «cerca de 1500» utentes para 2000 não seria passível de compensação remuneratória). - Bravo Serra.