Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2015
Processo 398/09.5talgs.e1-A.S1
Uniformização de Jurisprudência
ACORDAM NO PLENO DAS SECÇÕES CRIMINAIS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. Relatório
1.
O Ministério Público, representado pelo Senhor Procurador-Geral-Adjunto no Tribunal da Relação de Évora, interpôs, em 19.12.2013, ao abrigo do disposto no artigo 437º, número 2 do Código de Processo Penal, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, com fundamento em oposição de julgados - o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05.11.2013, proferido no Processo 398/09.5TALGS.E1 e o acórdão do mesmo Tribunal, de 16.04.2013, prolatado no Processo 538/11.4TABJA.E1, ambos transitados em julgado.
Em síntese, alegou o recorrente:
- Que o acórdão recorrido, proferido no Processo 398/09. 5TALGS.E1, chamado a decidir o recurso que os arguidos Hélio Alexandre Antunes Neves e "Nunes e Paiva - Construção Civil e Jardinagem, Lda" interpuseram da sentença prolatada pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Lagos [que os condenou, pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na consideração, em suma, de que a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, nos termos da previsão dos artigos 105º, números 1 e 2, e 107º do Regime Geral das Infracções Tributárias, doravante designado apenas de RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 05.06, começa a correr a partir do termo do prazo de 90 dias estabelecido na alínea a) do número 4 do citado artigo 105º, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29.12], corroborando este entendimento (embora com fundamentação e enquadramento normativo diferente dos invocados na decisão do tribunal de 1ª instância), concluiu no sentido de que o crime em causa não deve considerar-se consumado antes de decorrido o referido prazo de 90 dias estabelecido naquela alínea a) do número 4 do artigo 105 do RGIT;
- Que, por sua vez, o acórdão fundamento, proferido no Processo 538/11.4TABJA.E1, chamado a resolver a mesma questão, colocada no recurso que o Ministério Público interpôs da sentença proferida pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Beja [que declarou extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra os arguidos, no entendimento, em suma, de que o prazo de 90 dias previsto na mencionada alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, constituindo uma condição objectiva de punibilidade - não impeditiva da possibilidade de ser exercida a acção penal, mas apenas obstativa da possibilidade de ter lugar a punição - em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal que, nos crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social, se inicia na data em que, nos termos do número 2 do artigo 5º do RGIT, terminou o prazo para o cumprimento da entrega das contribuições à Segurança Social], confirmando este entendimento, manteve a decisão impugnada, na consideração, em suma, de que, situando-se a condição objectiva de punibilidade estabelecida na alínea a) do número 4 do artigo 105º, fora do tipo legal, o crime consuma-se no momento em que, de acordo com o número 2 do artigo 5º do RGIT, findou o prazo para a entrega das contribuições à Segurança Social, começando, a partir do dia seguinte a contar-se o prazo de prescrição do procedimento criminal.
2.
Foram juntas ao processo as certidões do acórdão recorrido e fundamento, com nota do respectivo trânsito (o recorrido, em 12.12.2013, e o fundamento em 24.05.2013).
3.
Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 439º do Código de Processo Penal, os autos subiram a este Supremo Tribunal, onde o Senhor Procurador-Geral-Adjunto, na vista a que se refere o artigo 440º, número 1 do mesmo diploma, emitiu parecer no sentido de se verificarem os pressupostos legais para o prosseguimento dos autos como recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
4.
Proferido despacho liminar e colhidos os respectivos "vistos", teve lugar a conferência a que se refere o artigo 441º do Código de Processo Penal, onde se decidiu, por acórdão, que, ocorrendo oposição de julgados relativamente à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, o recurso é admissível, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
5.
Notificados os sujeitos processuais interessados, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 442º, número 1, do Código de Processo Penal, veio o Ministério Público apresentar as suas alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:
«1 - O crime de abuso de confiança contra a segurança social, da previsão dos arts. 107.º, n.º 1 e 105.º do RGIT, é um crime de dano, cuja conduta típica pressupõe a lesão do património fiscal do Estado, consubstanciado na tutela do erário da segurança social, assente na satisfação dos créditos contributivos de que esta é titular.
2 - Ao contrário do que sucedia na vigência do RJIFNA [redacção do DL n.º 394/93, de 24 de Novembro], o elemento "apropriação" não integra, actualmente, o tipo de ilícito, tendo portanto deixado de ser um crime de resultado, sob a forma de comissão por acção, e passado a ser um crime de mera actividade - ou, no caso, de mera inactividade.
3 - A conduta típica respectiva traduz-se, pois, numa omissão pura, cujo comportamento lesivo se esgota com a não entrega, total ou parcial, pelas entidades empregadoras, às instituições de segurança social, dentro de determinado prazo, do montante das contribuições deduzidas às remunerações devidas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, por estes legalmente devidas.
4 - Tal como decorre desde logo da fundamentação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 6/2008, publicado no DR, I Série, de 15-05-2008, o prazo de 90 dias a que se refere a alínea a) do n.º 4 do art.º 105º do RGIT configura mera condição objectiva de punibilidade que, situada totalmente fora do perímetro de delimitação da infracção penal enquanto categoria autónoma de tipo de ilícito e de culpa, não pode por conseguinte ter qualquer interferência ou repercussão no momento consumativo daquele ilícito típico, que continua a ocorrer no termo do prazo legal de entrega da prestação devida.
5 - Não é por isso convocável ao caso a figura da desistência da tentativa nos crimes formais, figura essa que parte, por seu turno, da distinção entre a denominada "consumação formal ou típica" - que se verifica logo que o comportamento doloso preenche a totalidade do tipo objectivo -, e a "consumação material" - que ocorre apenas com a "realização completa do conteúdo do ilícito em vista do qual foi erigida a incriminação", ou seja, "com a verificação do resultado que interessa ainda à valoração do ilícito por directamente atinente aos bens jurídicos tutelados e à função de protecção da norma".
6 - De resto, para além de relevar no contexto da desistência da tentativa, como o comprova a circunstância de uma tal distinção ser pressuposto do art. 24.º, n.º 1 do Código Penal, a referida distinção (entre consumação formal e material) tem também campo de aplicação quando «a produção de um resultado releva (se bem que não ao nível do tipo de ilícito) para a definição da espécie de crime».
7 - Só que, e perante a explicitada estrutura típica do crime fiscal de abuso de confiança contra a segurança social em apreço, não é aqui convocável qualquer dos aludidos contextos em que a distinção entre consumação formal e consumação material possa assumir ainda qualquer significado "prático-normativo". Bem pelo contrário, a consumação formal e material ocorre aqui com a simples omissão de entrega da prestação devida até ao limite do respectivo prazo legal.
8 - Isto desde logo porque o resultado que, com a sua previsão típica, se pretende evitar é apenas e tão só que o agente não deixe de entregar a prestação contributiva devida, até à data em que o Estado a espera arrecadar. A incriminação foi erigida, pois, apenas para punir a conduta omissiva do respectivo agente, conduta essa desligada até de qualquer resultado lesivo. Ou seja, independentemente da subsequente entrega ou não entrega das quantias descontadas e devidas, a conduta típica já está perfectibilizada.
9 - Neste quadro, e por se não vislumbrar assim a verificação de qualquer evento que, para além da conduta em si mesma, possa ainda interessar à valoração do ilícito que o tipo tutela, a distinção entre "consumação formal" versus "consumação material" não assume a menor relevância típica no contexto do crime fiscal de abuso de confiança contra a segurança social
10 - Por isso, o eventual pagamento voluntário da prestação tributária devida no decurso da condição objectiva de punibilidade prevista na citada alínea a) do art. 105.º do RGIT nada acrescenta à definição da espécie ou do tipo legal de crime, configurando apenas uma causa de extinção da responsabilidade penal, que não uma hipotética desistência da tentativa, porquanto aquele se consumou com o vencimento do prazo de entrega previsto na lei.
11 - Ademais, e para quem, como o aresto recorrido, parta do pressuposto de que configura mera condição objectiva de punibilidade o pagamento voluntário da prestação tributária à segurança social no decurso daquele prazo de 90 dias previsto na alínea a) do n.º 4 daquele art. 105.º do RGIT, e ainda assim adopte a tese de que o respectivo crime se consuma, apenas formalmente com o vencimento do prazo de entrega previsto na lei, e materialmente só depois do decurso da condição objectiva de punibilidade daquela alínea a), deixa por explicar por que motivo é que essa consumação material não há-de então ser alargada para o momento da verificação da condição de punibilidade também prevista na alínea b).
12 - Prevendo com efeito a lei, indistintamente, a não punibilidade das respectivas condutas típicas tanto num caso como no outro, a contradição valorativa é tanto mais clara quanto é certo que na situação contemplada na alínea b) sempre está em causa a conduta de um agente apesar de tudo mais diligente uma vez que, incumprindo embora a obrigação de entrega das quantias deduzidas, não deixou no entanto de observar o dever de declaração dessa obrigação.
13 - Mas por outro lado, e paradoxalmente - o que em definitivo só pode relevar em desfavor da tese em causa - uma tal solução nunca poderia ser de acolher quanto mais não fosse porque dela decorreria um efeito perverso e, nessa medida, de todo inadmissível: deixar-se-ia nas mãos da Administração fiscal e da segurança social a possibilidade de escolha do momento da notificação prevista naquela alínea b) e, por essa via e nesses casos, da fixação quer da data da consumação, material, do crime, quer do termo inicial (o dies a quo) da contagem do prazo de prescrição do correspondente procedimento criminal».
A final, propôs o Ministério Público que o Conflito de Jurisprudência existente entre os acórdãos da Relação de Évora, de 5 de Novembro de 2013, proferido no Processo 398/09.5TALGS.E1, e de 16 de Abril de 2013, prolatado no Processo 538/11.4TABJA.E1, fosse resolvido nos seguintes termos:
«A data relevante a atender, para efeitos do início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança contra a segurança social, da previsão dos artigos 105.º, n.os 1 e 5 e 107.º, n.º 1, ambos do RGIT, é a que corresponde ao dia seguinte ao termo do prazo legal para entrega da prestação contributiva devida, nos termos do disposto no art. 5.º, n.º 2 do mesmo diploma».
II. Fundamentação
II.1. Da oposição de julgados
Considerando que, como tem sido uniformemente entendido neste Supremo Tribunal (1), o acórdão proferido na Secção Criminal sobre a oposição de julgados não vincula o Pleno das Secções Criminais, importa reapreciar tal questão.
E, reapreciando...
1.
Como se entendeu no acórdão interlocutório, proferido nos termos do artigo 441º do Código de Processo Penal, é bem verdade que, perante situações de facto idênticas e no domínio da mesma legislação - fundamentalmente as normas dos artigos 5º, número 2, 105º, números 1, 2 e 4, alínea a), e 107º, números 1 e 2, do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 05.06, na redacção introduzida pelo artigo 95º da Lei 53-A/2006, de 29.12, que aprovou o Orçamento do Estado para 2007 - os arestos recorrido e fundamento, ambos do Tribunal da Relação de Évora, adoptaram, de forma expressa, soluções jurídicas opostas relativamente à mesma questão jurídica que neles foi suscitada, e que consiste em saber qual a data a atender, para efeitos de contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, números 1 e 2, com referência ao artigo 105º do mesmo RGIT (o dia seguinte ao termo do prazo legal para a entrega da prestação tributária devida, nos termos do artigo 5º, número 2, ou o dia imediato ao termo do prazo de 90 dias, estabelecido na alínea a) do número 4 do artigo 105º do mesmo diploma legal).
2.
Efectivamente, aos acórdãos recorrido e fundamento encontram-se subjacentes idênticas situações de facto.
2.1.
Assim, no Processo 398/09.5TALGS.E1 (no âmbito do qual foi prolatado o acórdão recorrido), o arguido Hélio Alexandre Antunes Neves e a arguida "Nunes e Paiva - Construção Civil e Jardinagem, Lda", condenados, pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Lagos, como autores do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Évora, insurgindo-se por a instância recorrida não ter declarado prescrito o procedimento criminal e, invocando, em síntese, que o crime por que foram condenados consumou-se com a omissão de entrega no prazo legal estabelecido para a entrega das prestações tributárias à Segurança Social, nos termos do artigo 5º, número 2, do RGIT, e não no termo do prazo de 90 dias previsto na alínea a) do número 4 do artigo 105º do mesmo diploma que, constituindo mera condição objectiva de punibilidade, não releva para efeitos do início da contagem do prazo prescricional.
2.2.
Por seu turno, no Processo 538/11.4TABJA.E1 (âmbito em que foi proferido o acórdão-fundamento), da sentença do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Beja, que declarou extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra os arguidos, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, sustentando que, ao invés do considerado pelo tribunal de 1ª instância, para efeitos de contagem do prazo prescricional deverá ter-se em conta o prazo de 90 dias a que alude a alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, visto que, constituindo embora uma condição objectiva de punibilidade, verdade é que apenas depois do decurso desse prazo se está perante um crime na sua perfeição, de sorte que se o agente pagar a contribuição devida no prazo de 90 dias comete uma contra-ordenação, e não um crime, de onde que a prescrição do procedimento só se inicia após o decurso do mesmo prazo de 90 dias.
2.3.
Ora, apreciando esta problemática, enquanto o acórdão recorrido decidiu, expressamente, que o referido prazo prescricional conta-se a partir do dia seguinte ao termo do mencionado prazo de 90 dias a que alude a alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, o acórdão-fundamento decidiu, de forma explícita que, nos termos do artigo 5º, número 2, do RGIT, o dito prazo prescricional conta-se a partir do dia imediato ao termo do prazo estabelecido para a entrega da prestação devida.
2.4
Por via do acabado de referir, deve, então, reconhecer-se que, como considerou a conferência que decidiu a questão preliminar, as decisões em causa (o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento) consagraram, no domínio da mesma legislação, soluções opostas sobre a mesma questão de direito.
Razão por que, concluindo-se no sentido da verificação de oposição entre os julgados, nada obsta ao prosseguimento do recurso com vista à solução do conflito de jurisprudência que se suscita.
II.2. Questão a decidir
2.1. Objecto
Como visto, a questão objecto do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência consiste em saber qual a data que releva para efeitos de contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, fixado no artigo 21º do RGIT, tratando-se de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107º, números 1 e 2, com referência ao artigo 105º do mesmo diploma legal: o dia seguinte ao termo do prazo legal para entrega da prestação contributiva devida, nos termos do artigo 5º, número 2, ou o dia imediato ao termo do prazo de 90 dias estabelecido no artigo 105º, número 4, alínea a), do mesmo RGIT.
2.2. Posições em confronto e argumentação em que se fundam
2.2.1.
Quanto ao acórdão recorrido, ancora-se o entendimento nele sufragado na seguinte ordem de razões:
- O crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelas disposições combinadas dos artigos 107º e 105º do RGIT, não é de considerar consumado, para efeitos de prescrição, antes de ter decorrido o prazo de 90 dias a que alude a alínea a) do número 4 do citado artigo 105º;
- Só o decurso do referido prazo sem que o agente proceda ao pagamento da prestação contributiva deduzida é que o faz incorrer em responsabilidade criminal, que inexiste enquanto tal circunstância não se verificar;
- A constância do agente nessa omissão de entrega das quantias retidas integra o tipo legal do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social;
- A circunstância a que se refere a alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, não se tratando apenas de uma conduta exterior ao agente que tem de verificar-se para que a acção penal possa iniciar-se, não constitui uma condição objectiva de procedibilidade;
- Inexistindo a responsabilidade criminal do agente enquanto não se verificar a circunstância prevista na alínea a) do número 4 e integrando ainda o crime a constância do agente na omissão de entrega da prestação contributiva, o prazo prescricional nunca poderá iniciar-se antes de o agente incorrer em responsabilidade criminal;
2.2.2.
Relativamente ao acórdão-fundamento, estriba-se a posição nele assumida nas razões que se passam a indicar:
- Na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT consagra-se uma condição objectiva de punibilidade, situada fora do tipo de ilícito e da culpa, que surge ditada por razões de política criminal, designadamente com o objectivo de aliviar os tribunais de situações de atraso nas entregas de impostos nos casos em que, tendo havido uma declaração do montante devido, não se procedeu ao envio do respectivo meio de pagamento e bem assim com a finalidade de estimular o cumprimento voluntário das obrigações tributárias, com consequente aumento, em prazo curto, da receita daí resultante;
- Na medida em que, constituindo uma condição objectiva de punibilidade, apenas impede que tenha lugar a punição, o referido prazo de 90 dias em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal que, nos crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social, se inicia na data em que o crime se consuma, isto é quando termina o prazo para o cumprimento da entrega das contribuições à Segurança Social;
- À semelhança do que sucede com os crimes de natureza particular e semi-pública, em que (não podendo embora sem a apresentação de queixa iniciar-se o procedimento criminal por falta de legitimidade do Ministério Público) não se discute ser essa ocasião relevante para efeitos de contagem do começo do prazo prescricional, inexiste igualmente razão para considerar-se que, no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, o prazo de prescrição não pode iniciar-se antes de ter decorrido aquele prazo de 90 dias a que alude a alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT;
- Visando o legislador, com a referida condição objectiva de procedibilidade, proporcionar ao eventual agente do crime uma última oportunidade/possibilidade de evitar a punição da sua conduta penalmente típica, ela configura uma situação mais favorável para este;
- Não existe, pois, motivo para proceder à contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal de forma que não respeite o disposto no número 1 do artigo 119º do Código Penal, em que o seu início coincide com o momento da consumação do crime.
2.3
2.3.1.
No sentido da solução acolhida no acórdão recorrido pronunciaram-se, entre outros, os seguintes arestos:
A - Do Supremo Tribunal de Justiça
Acórdão de 20.06.2001, Processo 15556/01, 3ª Secção;
B - Do Tribunal da Relação do Porto
- Acórdão de 06.06.2007, Processo 41.311/07, publicado e disponível em www.dgsi.pt;
- Acórdão de 24.09.2008, Processo 11683/08, publicado e disponível também em www.dgsi.pt;
- Acórdão de 11.11.2009, Processo 485/02.0TAVLG.P1, publicado e disponível igualmente em www.dgsi.pt;
- Acórdão de 28.09.2011, Processo 392/08.3TALSB.P1, publicado e disponível ainda em www.dgsi.pt;
2.3.2.
Com interesse para a solução perfilhada no acórdão-fundamento, pronunciaram-se, entre outros, os arestos que se seguem:
A - Do Supremo Tribunal de Justiça
- Acórdão de Fixação de Jurisprudência 6/2008, de 09.04.2008, publicado no Diário da República, Iª Série, nº 94, de 15.05.2008;
- Acórdão de 07.02.2007, Processo 4086/06.3, publicado e disponível em www.dgsi.pt;
- Acórdão de 20.12.2007, Processo 3220/07, publicado e disponível também em www.dgsi.pt;
- Acórdão de 04.12.2008, Processo 4079/06, publicado e disponível igualmente em www.dgsi.pt.
2.4
Ao nível da doutrina, pronunciaram-se no sentido da solução defendida:
2.4.1.
No acórdão recorrido
- Susana Aires de Sousa, "Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e Reflexão Sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador", Coimbra Editora, 2006, pág. 137;
- Isabel Marques da Silva, "Regime Geral das Infracções Tributárias", Editora Almedina, Coimbra, 2006, páginas 167 e 168.
[De reparar, porém, que, conquanto defenda que a alínea a) do número 4 do artigo 105.º do RGIT configura mera condição de punibilidade que não interfere com a consumação do crime, a autora invoca, para efeitos de prescrição, a causa suspensiva prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal];
- Américo Taipas de Carvalho, In "O Crime de Abuso de Confiança Fiscal", Coimbra Editora, 2007, páginas 13 e seguintes.
[De atentar que, segundo este autor, tendo a nova redacção do número 4 do artigo 105º do RGIT, introduzida pela Lei 53-A/2006, de 29.12, implicado uma alteração do tipo de crime, o prazo de 90 dias, previsto na alínea a) do aludido preceito não configura uma mera condição objectiva de punibilidade];
2.4.2.
No acórdão-fundamento
- Manuel José Miranda Pedro, "Justificação do Facto e Exclusão da Culpa nos Crimes de Abuso de Confiança Fiscal e Contra a Segurança Social: o estado da questão na doutrina e na jurisprudência", "Colectânea de Textos de Parte Especial do Direito Penal", AAFCDL- 2008, páginas 209 e seguintes;
- Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, "Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado, Áreas Editora, 4.ª edição, 2010, páginas 715 e seguintes;
- Nuno B. M. Lumbrales, "O Abuso de Confiança Fiscal no Regime Geral das Infracções Tributárias", Revista de Direito e Gestão Fiscal, Janeiro/Abril 2003, páginas 85 e seguintes;
Tolda Pinto e Reis Bravo, "Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais", Coimbra Editora, 2002, páginas 332 e seguintes.
Posto isto, cumpre então tomar posição sobre o conflito jurisprudencial que se suscita no presente recurso.
Assim...
II.3.
3.1. Legislação pertinente
3.1.1. Quanto ao tipo legal em referência, o crime de abuso de confiança contra a segurança social, estabelecem:
A - O artigo 107º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001, de 15.06,
«1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido no valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos números 1 e 5 do artº 105º;
2- É aplicável o disposto nos números 4 e 7 do artigo 105º»;
B - O artigo 105º, número 4, com interesse para o caso vertente,
«4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito».
3.1.2 - Por seu turno, em matéria de prescrição do procedimento criminal, e com interesse para o caso, prescrevem:
A - O Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT):
A1 - No artigo 21º, número 1, sob a epígrafe «Prescrição, interrupção e suspensão do procedimento criminal»:
«O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a sua prática tiverem decorrido cinco anos»;
A2 - No artigo 5º, que tem por título «Lugar e Momento da prática da infracção tributária»:
«1- As infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no nº 3.
2- As infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários.
3- Em caso de deveres tributários que possam ser cumpridos em qualquer serviço da administração tributária ou junto de outros organismos, a respectiva infracção considera-se praticada no serviço ou organismo do domicílio ou sede do agente»;
B - O Código Penal:
B1 - No artigo 119º, número 1, que tem por epígrafe «Início do prazo»,
«O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado»;
B2 - No artigo 3º, sob o título «Momento da prática do facto»,
«O facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido».
3.2 - Acórdão de Fixação de Jurisprudência 6/2008, de 09.04
Feito que fica este breve excurso pelas disposições legais do RGIT e do Código Penal [subsidiariamente aplicável nos termos da alínea a) do artigo 3º do primeiro dos referidos diplomas legais] que, para efeitos de dirimição da questão que nos ocupa, revestem-se de interesse directo e imediato, importa ainda não perder de vista o acórdão uniformizador de jurisprudência 6/2008, de 09.04, publicado no Diário da República, Iª Série, nº 94, de 15.05.2008 que, tendo-se debruçado sobre a problemática atinente à determinação da categoria dogmática que configurava a "nova" (à data) exigência que, introduzida pelo artigo 95º da Lei 53-A/2006 (comumente designada de Lei do Orçamento do Estado para 2007), passou a constituir a alínea b) do número 4 do artigo 105º do RGIT, revela-se da maior importância para o caso em apreciação. É o que bem resulta do teor da parte inicial do primeiro parágrafo do segmento uniformizador.
Efectivamente, no referido recurso extraordinário, o pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência:
«A exigência prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2 nº 4 do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo [alínea b) do nº 4 do artigo 105 do RGIT]».
E se é certo, pelo que se vê, que o mesmo acórdão de fixação de jurisprudência não se pronunciou, nem tinha de pronunciar-se aliás, sobre a questão que, estando aqui em apreciação, se encontra a jusante da que nele se suscitava, não é menos verdade que a sua fundamentação, embora não condicione a decisão que ora cabe tomar, dispõe, qualquer que seja a opção que se acolha, de indiscutível valia para efeitos, designadamente, de caracterização da estrutura do tipo objectivo de ilícito - o crime de abuso de confiança - (ali, Fiscal e aqui, contra a Segurança Social), de qualificação da categoria dogmática inscrita na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT e seu eventual impacto ao nível do tipo de ilícito e da culpa, de definição do momento da consumação do crime em causa e, bem assim de determinação das consequências a retirar em termos de contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Posto isto, cumpre, então, tomar posição quanto à problemática que, no presente recurso extraordinário, se coloca.
Assim...
3.3 - Posição que se perfilha
3.3.1
Como bem se viu, tal problemática - que se prende, em suma, com o início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, o que, por sua vez, tem directamente a ver com a determinação do tempus delecti commissi, face à previsão da alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT - deriva do facto de, enquanto certa corrente jurisprudencial e bem assim doutrinal considera que o mencionado prazo deve começar a contar-se a partir do dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega, às instituições de Segurança Social, das prestações contributivas deduzidas por retenção na fonte, outra corrente entende que a contagem de tal prazo prescricional só se inicia depois de decorridos 90 dias sobre o termo daquele prazo estabelecido para a entrega das prestações contributivas.
Questão para cuja resolução importa, nesta primeira fase do raciocínio que expendemos, caracterizar o tipo de ilícito em causa: o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, objecto de previsão nos artigos 107º e 105º do RGIT.
Assim, constituindo, como se sabe, o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora a base reconhecida para a boa compreensão do tipo e da estrutura do crime, cabe, para tanto, ponderar que, tratando-se do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, o bem jurídico protegido pela norma do artigo 107º do RGIT mais não é que o erário das instituições de Segurança Social e o interesse directo desta, enquanto titular do direito de crédito das quotizações e bem assim enquanto garante do regular funcionamento do respectivo sistema, de arrecadar as prestações contributivas que, deduzidas, por retenção na fonte, pelas entidades empregadoras, no valor das remunerações pagas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, devem ser entregues até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que dizem respeito, conforme prescreve o artigo 10º, número 2, do Decreto-Lei 199/99, de 08.06.
Definindo-se, então, pela sua estrutura, o crime em referência pela conduta ilícita do agente que, perante a Segurança Social, agindo esta no interesse público, omite um dos deveres fundamentais que lhe incumbem na sua relação com o Estado, tal seja o de proceder à entrega das quotizações deduzidas no prazo estipulado pela lei para o efeito (como visto, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que dizem respeito), e já não pela mora, constituem elementos objectivos do aludido tipo legal: i) a não entrega, dolosa e no tempo devido, às instituições de Segurança Social das ditas contribuições deduzidas, pela entidade empregadora, nos salários dos trabalhadores e remunerações dos membros dos órgãos sociais; ii) terem as mesmas prestações contributivas sido deduzidas nas remunerações dos trabalhadores e dos membros dos órgãos sociais.
Sendo que, com respeito ao tipo subjectivo do normativo em causa, exigindo-se, como se sabe, o dolo genérico, em qualquer das suas modalidades, traduz-se ele no conhecimento dos elementos do tipo objectivo de ilícito (elemento intelectual) por parte do agente, que actua com vontade de realização do facto típico (elemento volitivo).
Quer isto dizer que, para efeitos de preenchimento do tipo, exige-se que o agente tenha previsto e querido não entregar as prestações a que sabia estar obrigado, não obstante estar ciente que tal conduta é punida pela lei penal.
E conquanto o crime de abuso de confiança fiscal (quer fiscal em sentido estrito - artigo 105º do RGIT - quer contra a Segurança Social - artigo 107º do mesmo diploma) consista, como o próprio nomen juris indica, num crime de abuso de abuso de confiança, tem a distingui-lo [para além do regime mais favorável (número 4 do artigo 105º do RGIT) que possui, relativamente ao tipo homónimo do artigo 205º do Código Penal, no que diz respeito aos efeitos da reparação (artigo 206º do último dos diplomas)] a circunstância de, ao invés do que sucedia no domínio do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), a "apropriação" ter deixado de constituir elemento do tipo legal com a entrada em vigor do RGIT, de sorte que para a prática do crime deixou de ser necessária a efectiva integração da receita tributária ou contributiva no património do agente.
Trata-se, pois, por via da estrutura que o caracteriza, de um crime, além de doloso (na medida em que, como visto, pressupõe o conhecimento e a vontade do agente em cometê-lo), de omissão pura ou própria, de mera inactividade que, como é apanágio dos crimes dessa natureza, se consuma e esgota com o incumprimento, por parte do agente, de um "dever de acção", sem ulterior obrigação de evitar o resultado (2).
Incumprimento do dever de actuação que, tratando-se do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, se consuma com a não entrega dolosa, nos moldes e no prazo legalmente fixados, das prestações contributivas deduzidas pelo agente (3), nisso se traduzindo o desvalor da acção que, como se anotou, ao invés do que acontecia no Regime Jurídico das Infracções Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei 394/93, de 24.11, já não é a intenção de enriquecimento, e muito menos de apropriação dos montantes das contribuições não entregues, pela entidade empregadora, de jeito que o crime, ora, esgota-se na mera omissão de entrega dos mesmos valores (4).
3.2.2
Chegados a este ponto, importa, agora, reflectir, ainda que brevemente, sobre o sentido da norma da alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, aplicável ex vi do disposto no artigo 107º, número 2, do mesmo diploma, ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, a propósito da qual se suscitou, afinal, a querela jurisprudencial atinente à determinação do momento em que deve ter-se por consumado o crime e, na sequência disso, apurar quando tal se verifica para, finalmente, concluir quando deve iniciar-se a contagem do respectivo prazo prescricional.
Tarefa que, tal como a que vem de cumprir-se, encontra-se facilitada face às considerações tecidas e solução alcançada no já várias vezes citado acórdão de fixação jurisprudência 6/2008, de 15.05.2008, a respeito da natureza, em termos dogmáticos, da norma da alínea b) do número 4 do artigo 105º, de sentido similar à prevista na alínea a) da mencionada disposição legal.
Vejamos então...
1.
Ao artigo 105º, número 4, do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 05.06 - que dispunha "Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação" - foi, como já se reparou, introduzida, pela Lei 53-A/2006, de 29.12, uma alteração.
Consistiu esta alteração na inclusão, no citado número 4, cuja redacção primitiva passou a constituir a actual alínea a), de uma outra norma, a actual alínea b), que veio estabelecer que "Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se a prestação comunicada à administração tributária, através da correspondente declaração, não for paga, acrescida de juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito".
Assim, enquanto na alínea a) se prevê a situação dos contribuintes que não cumpriram a obrigação declarativa atinente às prestações tributárias ou contributivas deduzidas, e consequentemente que não procederam à sua entrega, na nova alínea b) prevê-se a situação dos contribuintes que, de uma forma algo mais diligente, cumpriram a referida obrigação declarativa, mas já não a entrega respectiva.
Ora, como também já se deu conta, pronunciando-se a respeito da natureza desta (nova) norma, que constitui a actual alínea b) do número 4 do artigo 105º do RGIT, o pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, naquele falado aresto nº 6/2008, de 09.04, considerou que a exigência ali prevista configura uma nova condição objectiva de punibilidade.
Uma "nova" condição objectiva de punibilidade, compreensivelmente, a acrescer à que, configurando também a norma prevista no anterior número 1, passou, com a introdução daqueloutra a constituir a actual alínea a) do mencionado preceito legal.
E porque a qualificação desta nova categoria dogmática e a controvérsia que à sua volta se gerou interessam, por razões óbvias, ao raciocínio que há-de enformar a decisão que cumpre tomar sobre a questão que nos ocupa, revisitemo-las.
2.
Debruçando-se sobre esta vertente do problema, Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos (5) pronunciaram-se no sentido de que o número 4 do artigo 105º do RGIT, designadamente a sua alínea a), não aportando uma qualquer alteração do recorte do tipo legal de crime, estabelece uma condição de punibilidade.
E em sentido conforme com este entendimento, pronunciou-se também Nuno B.M.Lumbrales (6) que, referenciando, aliás, os autores antes citados, diz que a norma da alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT deverá ser entendida como condição de punibilidade, e nunca como elemento negativo do tipo.
Em moldes semelhantes discorreram ainda António Augusto Tolda Pinto e Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo (7), que referem que a norma da alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT consubstancia uma condição objectiva de punibilidade.
E embora de jeito não coincidente com o dos anteriores no que concerne às consequências a retirar em termos de determinação do momento da consumação do crime, Isabel Marques da Silva (8) também considera que o mencionado normativo configura uma condição objectiva de punibilidade que, em sua opinião, releva para a contagem do início do prazo de prescrição e para a sua suspensão.
Entendimento não distante deste foi, efectivamente, também defendido por Susana Aires de Sousa (9), que opina no sentido de que o número 4 do artigo 105º do RGIT prevê um pressuposto de punibilidade, que corresponde a uma causa de exclusão da punição.
Em moldes análogos, consideram, por seu turno, Tiago Caiado Milheiro e Frederico Soares Vieira (10) que a citada norma da alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT [tal como a da alínea b), que é cumulativa com aquela] integra um pressuposto de punibilidade.
Por seu turno, num registo completamente diferente, embora por referência à alínea b) do número 4 do artigo 105º do RGIT, Américo Taipa de Carvalho (11) defende que a persistência do devedor na omissão de entrega da prestação tributária integra um elemento constitutivo do ilícito típico do crime de abuso de confiança fiscal (em sentido estrito e também contra a Segurança Social).
Da breve digressão que se acabou de fazer pela doutrina decorre, pois, que ela orienta-se, predominantemente, no sentido de considerar que a exigência contida na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT configura uma condição objectiva de punibilidade.
Posição sufragada, como já se viu, no acórdão uniformizador de jurisprudência 6/2008, de 09.04, pelo pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça que, em termos dogmáticos, assim caracterizou a nova exigência contida na alínea b) do número 4 do artigo 105º do RGIT, na consideração de que, conquanto ela constituísse uma circunstância directamente relacionada com o facto ilícito, não pertencia nem ao tipo de ilícito nem à culpa.
Entendimento que, por razões em tudo idênticas às invocadas no aludido aresto de fixação de jurisprudência 6/2008, aqui se acolhe, ora para qualificar a exigência prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, ponderando, por um lado, os seus traços específicos e, por outra via, os aspectos que, de acordo com a doutrina, se costumam apontar como definidores das condições objectivas de punibilidade.
3.3.3
Posto isto e com proveito para o passo seguinte do raciocínio que vimos tecendo e que, tendo a ver com a determinação do tempus delecti, enformará inevitavelmente a solução que se afigura merecer a questão controvertida, caberá, agora, resenhar aqueles aspectos que a doutrina nacional e estrangeira entendem, no essencial, caracterizar a referida categoria dogmática.
A.
Assim, na doutrina estrangeira, considerando Reinhart Maurach (12) que as condições objectivas ou externas de punibilidade são características do delito, existentes fora do tipo e necessárias para que da acção tipicamente antijurídica possam retirar-se efeitos penais, de sorte que, embora constituindo partes integrantes do evento ou da situação global, nas quais surge a acção, não pertencem à acção em si mesma, querendo com isto dizer-se que trata-se de características, não do tipo, da ilicitude ou da culpa, pertencentes ao direito material e, faltando, o resultado deverá ser a absolvição do agente; Jescheck (13) entende que as condições objectivas de punibilidade são circunstâncias que se situam fora do tipo de ilícito e da culpa, mas de cuja presença dependem a punibilidade do facto e a possibilidade da participação, de onde que a aparição das condições objectivas de punibilidade é indiferente para o lugar e tempo do facto.
Para Roxin (14), as condições objectivas de punibilidade, que constituem uma quarta categoria, que vai mais além do sistema tripartido do crime, embora não sejam em absoluto alheias à ilicitude, de sorte que «as finalidades extrapenais (que são características das condições objectivas de punibilidade) têm prioridade relativamente à necessidade da pena», não pertencem ao tipo de injusto (15) ou à culpabilidade;
Enquanto Jakobs (16), partilhando do entendimento sufragado pela doutrina alemã dominante, defende que "as condições objectivas de punibilidade não pertencem ao tipo de injusto do mesmo modo que a descrição da acção".
Por sua vez, para Carlos Martinez Perez (17) [dando nota que a opinião dominante na doutrina alemã vai no sentido de considerar que, naqueles preceitos construídos pelo legislador mediante a técnica das condições objectivas de punibilidade, a consumação da figura delitiva respectiva produz-se independentemente da verificação da condição, ainda que, como é lógico, o facto não possa ser punido até que esta tenha ocorrido] entende que as referidas condições objectivas de punibilidade (que, enquanto categoria autónoma, mantêm a sua independência em relação à ilicitude) constituem verdadeiras causas de restrição da pena, queridas pelo legislador que entende que há casos em que, conquanto se verifiquem o ilícito e a culpa, a necessidade da pena deixou de justificar-se, por via de uma circunstância que assim o determina, de onde que, para o mesmo autor, o delito comete-se quando o agente executa o comportamento proibido por lei e, como assim, não há que esperar pela verificação da condição de punibilidade para que o prazo de prescrição comece a correr.
Circunstância fundada, na opinião da maioria dos autores (18), em razões de política criminal.
E, no entendimento de Érika Mendes de Carvalho (19), "as condições objectivas de punibilidade não são elementos estruturais mas circunstâncias de carácter meramente acidental, isto é, pressupõem um delito completo em todos os seus elementos constitutivos, funcionando, portanto, apenas como condicionantes da aplicação concreta da pena. Tais condições são, na realidade, causas suspensivas da punibilidade de um delito prévio, actuando como restrições ao injusto culpável punível".
B.
Ao nível da doutrina nacional, enquanto Cavaleiro Ferreira (20), pronunciando-se no sentido de que as condições objectivas de punibilidade são, não elementos constitutivos do crime mas, factos diversos, extrínsecos ao facto constitutivo da responsabilidade penal, que é o facto criminoso de que ficará dependente a aplicabilidade da pena, considera que elas não são objecto de culpabilidade, na medida em que o objecto de culpabilidade é o facto penalmente ilícito, Eduardo Correia (21) entende que as condições objectivas de punibilidade constituem elementos adicionais requeridos para a punibilidade da conduta, que não prejudicam (porque absolutamente independentes) a qualidade ilícita e culposa da mesma conduta, o que quer dizer que constituem meras condições de aplicação da pena, sendo que para Figueiredo Dias (22), "com a verificação das condições dos pressupostos de punibilidade (categoria que, na construção do sistema tradicional, fechando a abóboda do mesmo sistema, deve ser tomada como o elemento de ligação por excelência entre a dogmática do facto e a política criminal) perfecciona-se o Tatbestand (no sentido da Teoria Geral do Direito) que faz entrar em jogo a consequência jurídica (Rechtsfolg) e a sua doutrina autónoma".
Significa isto que os pressupostos de punibilidade (que integram realidades tão diversas como as condições objectivas de punibilidade e as causas de exclusão da pena) tratam-se, enfim, de elementos que, embora situados fora do ilícito e da culpa, constituem condição para que a acção antijurídica tenha consequências penais.
C.
Do que vem de ver-se, parece poder concluir-se que o entendimento da doutrina nacional e estrangeira orienta-se maioritariamente - sensibilidade de que também se partilha - no sentido de que as condições objectivas de punibilidade, ainda que relacionadas com o tipo, situam-se fora do tipo, de ilícito e da culpa, e mais não são que pressupostos ou condições para que a acção antijurídica importe consequências penais.
3.3.4
Retendo tudo quanto se acabou de anotar e avançando um pouco mais, detenhamo-nos, ora, sobre a problemática atinente ao tempo da consumação do delito, quer sob a perspectiva mais ampla e reportada aos tipos legais de crime em que se exige a concorrência de condições objectivas de punibilidade quer na vertente mais restrita e especificamente dirigida ao crime de abuso de confiança fiscal ou contra a Segurança Social.
Abordagem que, por razões evidentes, não nos isentará de, por recurso ao que tem elaborado a respeito a doutrina nacional e estrangeira, intentar recolher aí contributos indispensáveis para, em derradeiro termo, enfrentar a questão que se prende com o início da contagem do prazo prescricional.
A.
Ora, quanto a esta problemática, informa Carlos Martinez Perez (23) que a opinião dominante, na ciência penal alemã (que se orienta no sentido de que a noção jurídico-penal de consumação refere-se ao comportamento proibido pela lei ao autor e satisfaz-se com a realização de todos os elementos do tipo de injusto, com a qual se materializa a violação do bem jurídico protegido), vai no sentido de considerar que as condições objectivas de punibilidade não incidem na violação do objecto jurídico tutelado pela norma em que se encontram incluídas, antes fundamentam-se em considerações político-criminais que, se bem que revelem uma perturbação mais grave da ordem jurídica, não afectam a gravidade intrínseca do facto injusto.
Quer isto dizer que a consumação e o cumprimento da condição objectiva de punibilidade são dois fenómenos que não têm de coincidir.
Por sua vez, na doutrina italiana (em que também se discute se as condições objectivas de punibilidade integram ou não os requisitos do delito), a par de uma corrente que entende que a consumação ocorre com a verificação da condição objectiva de punibilidade, na medida em que a perfeição do crime exige o preenchimento de todos os seus elementos, uma outra corrente considera que as condições objectivas de punibilidade não relevam para efeitos da consumação do delito.
E isto não obstante o Código Penal Italiano, ao invés do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, preveja, no artigo 158º (2º parágrafo, primeiro segmento), que, quando a lei fizer depender a punibilidade do delito da verificação de uma condição, o prazo de prescrição inicia-se no dia em que a mesma condição se verificar.
De outro modo, na doutrina espanhola (onde a questão não é igualmente pacífica), contra a opinião de alguns autores, designadamente Caffarena (24), entendem Carlos Martinez Perez (25) e Antón Oneca (26), em suma, que as condições objectivas de punibilidade, se não relevam para a consumação do crime, uma vez que se situam à margem do tipo de injusto, também não relevam para efeitos de determinação do tempus y locus delecti.
Entendimento que, como de resto, reparam Tiago Caiado Milheiro e Frederico Soares Vieira (27), é, entre muitos outros, partilhada por Gunther Jakobs (28), e também por Érika Mendes de Carvalho (29) que considera que as condições objectivas de punibilidade, que não pertencem ao tipo, não intervêm na consumação do delito, que ocorre quando o agente preenche, com a sua conduta, os elementos do tipo, de sorte que nos tipos de crime em que se exige a concorrência de uma condição objectiva de punibilidade ou a ausência de uma escusa absolutória, o crime consuma-se independentemente da verificação de tais elementos condicionantes, o que, como concretiza a autora, não obsta a que a imposição da sanção penal respectiva sempre fique dependente da verificação efectiva do elemento condicionante, nos delitos sujeitos a condição objectiva de punibilidade.
Daí que, dentro deste registo, conclua aquela autora que o facto de, na legislação italiana, o artigo 158º (2º parágrafo, primeiro segmento) do Código Penal fazer depender a contagem do início do prazo de prescrição da verificação da condição objectiva de punibilidade trata-se de uma decisão legislativa que nada tem a ver com a real natureza jurídica destes elementos, e tanto assim é, prossegue a referida autora, que o próprio artigo 158º (ora, segundo segmento do dito 2º parágrafo) exceptua que, nos delitos submetidos a condições de procedibilidade, o prazo de prescrição começa a correr a partir do dia em que o delito foi cometido.
Assim, não existindo, na generalidade dos ordenamentos jurídicos, uma norma de conteúdo equivalente à do citado artigo 158º (parágrafo 2º) do Código Penal Italiano, a solução mais acertada será entender que, com a realização de todos os elementos do tipo, começa a correr o prazo de prescrição, ainda que não se tenha cumprido a condição que, não pertencendo aos elementos do tipo objectivo, não intervêm na determinação da consumação do delito.
Do que vem de expor-se resulta então que, maioritariamente, a doutrina estrangeira que se debruçou sobre tal temática, considera que as condições objectivas de punibilidade, embora relacionadas com o tipo, situando-se fora da tipicidade, da ilicitude e da culpa, não possuem qualquer relevância para a determinação do momento da consumação do delito que, para tal efeito, bastando-se com o preenchimento dos elementos do respectivo tipo legal, não exige a verificação da condição objectiva de punibilidade em causa, que não interfere, pois, na prescrição do procedimento criminal, cuja contagem se inicia no momento em que o agente executa o comportamento proibido por lei.
B.
Entendimento que, como mais para trás se observou e já a seguir melhor se verá, recolhendo o apoio de parte bem significativa da doutrina nacional, afeiçoa-se à jurisprudência, de sentido praticamente unívoco, do Supremo Tribunal de Justiça, e recolhe ainda a adesão de largo sector das Relações que se debruçou sobre a temática aqui em apreciação.
1.
Assim, pronunciando-se sobre o assunto: Manuel Cavaleiro Ferreira (30) entende que as condições objectivas de punibilidade apenas condicionam a punição do crime, logo não interferem na sua consumação; Figueiredo Dias (31) [embora considerando, como se viu, que com a punibilidade (categoria que designa de "última pedra do edifício do conceito de crime e da respectiva doutrina geral") e com o preenchimento dos respectivos pressupostos, perfecciona-se o Tatbestand, que faz entrar em jogo a consequência jurídica - obra abaixo mencionada, 8º capítulo, §14, páginas 626], a propósito do momento da prática do facto (idem, 8º capítulo, §32, páginas 182 e 183), objecto de previsão no artigo 3º do Código Penal, diz, porém, que "Da referida disposição legal logo resulta que decisivo para a definição do momento da prática do facto é a conduta, não o resultado. O que bem se justifica à luz da função e do sentido do princípio da legalidade, por isso que é no momento em que o agente actua (ou, no caso de omissão, devia ter actuado) que releva a função tutelar dos direitos, liberdades e garantias da pessoa que constitui a razão de ser daquele princípio. Fosse decisivo a propósito só o momento em que o resultado, a ser ele jurídico-penalmente relevante (o que nem sempre sucede...), tem lugar e estaria aberta a porta ao arbítrio e ao possível excesso de intervenção do Estado".
E, com referência específica ao crime de abuso de confiança fiscal (em sentido estrito e contra a Segurança Social), defendem Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos (32) que o momento da consumação do crime deverá situar-se, por força do número 2 do artigo 5º do RGIT, na data em que terminar o prazo para o cumprimento dos deveres tributários por parte do agente; no mesmo sentido destes consideram Nuno B.M.Lumbrales e ainda António Augusto Tolda Pinto e Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo (33) que, para efeitos do momento da consumação do crime, deverá atender-se, não ao termo do prazo de 90 dias mas, sim ao termo do prazo legalmente estabelecido para o cumprimento dos deveres tributários; entende Manuel José Miranda Pedro (34) que o crime consuma-se com o vencimento do prazo previsto na lei (artigo 105º, número 1, e artigo 5º, números 1 e 2, do RGIT) para a entrega da prestação tributária.
2.
Ao nível da jurisprudência, com particular enfoque para a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, importa realçar, desde logo, o acórdão de fixação de jurisprudência 6/2008, de 09.04.2008 que, considerando que as condições objectivas de punibilidade são indiferentes para o lugar e o tempo do facto, conclui no sentido de que a condição objectiva de punibilidade adicional prevista na alínea b) do número 4 do artigo 105º do RGIT [e, por igual ordem de razões, dizemos nós, a constante da alínea a) do mesmo preceito legal] deixou intocado o tipo de ilícito num crime que previamente se consumou e cujos elementos constitutivos permaneceram imodificados na sua tipicidade.
Depois, cumpre ainda destacar, entre outros, os acórdãos deste mesmo Supremo Tribunal: de 07.02.2007, Processo 4086/06, 3ª Secção, de que foi relator o Conselheiro Santos Cabral, que, no que releva para a questão que nos ocupa, se pronunciou no sentido de que o crime de abuso de confiança fiscal (tal qual sucede com o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social), como crime omissivo puro que é, consuma-se no momento em que o agente não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito, de que resulta que reconduzir ao núcleo da ilicitude e da tipicidade o que são condições de exercício da acção penal não está de acordo com o espírito da lei; de 21.03.2007 e de 04.12.2008, ambos proferidos no Processo 4079/06, 3ª Secção e de que foi seu relator o Conselheiro Henriques Gaspar, que, partilhando de entendimento semelhante, enfatiza que a conduta ilícita típica traduz-se numa omissão pura, consistente na não entrega nos termos e no prazo estabelecidos, e esgota-se no não cumprimento de um dever, previsto na lei, de entrega das prestações deduzidas, de jeito que, tratando-se de uma infracção omissiva pura, consuma-se com a não entrega dolosa, nos termos e no prazo de entrega fixados para cada prestação - artigo 5º, número 2, do RGIT; e de 20.12.2007, Processo 3.220/07, 5ª Secção, de foi relator o Conselheiro Simas Santos, que considera que o crime de abuso de confiança fiscal (em sentido estrito ou contra a Segurança Social), como crime omissivo puro que é, consuma-se no momento em que o agente não entrega a prestação tributária que devia, isto é, consuma-se no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito.
E em igual sentido pronunciaram-se ainda, ao nível das Relações, para além do acórdão fundamento (o acórdão de 16.04.2013 do Tribunal da Relação de Évora, proferido no Processo 538/11.4TABJA.E1) e, entre outros, os acórdãos de 24.02.2010, Processo 2191/08.3TDLSB-A.L1.3 ou de 20.03.2012, Processo 5.209/04.5TDLSB-L1.5 da Relação de Lisboa; de 30.05.2012, Processo 4/02.9IDMGR.C2 da Relação de Coimbra; de 10.10.2012, Processo 163/10.7TAMCD.P1 da Relação do Porto. Aresto este de cuja fundamentação respigamos o segmento em que, estribado no decidido naqueles acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, conclui que o prazo de 90 dias, previsto no artigo 105º, número 4, alínea a) do RGIT, configurando uma condição objectiva de punibilidade que apenas impede que tenha lugar a punição, em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal que, no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, consuma-se na data em que, nos termos do artigo 5º, número 2 do RGIT, terminar o prazo para a entrega das contribuições deduzidas pelos empregadores, enquanto substitutos tributários, no valor das remunerações pagas aos trabalhadores e ou membros dos órgão sociais.
Por via das reflexões que até aqui se fizeram [primeiro, acerca da natureza e estrutura do referenciado crime de abuso de confiança, depois sobre a espécie de categoria dogmática que integra a exigência contida na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT e seus traços mais característicos, e, por fim, quanto às consequências decorrentes para o tipo de delito, para a ilicitude e para a culpa e bem assim para a punibilidade], facilmente se intui que, na posição que se perfilha, o crime em causa, como crime de omissão pura que é, consuma-se no momento em que o agente não entrega à Segurança Social, nos moldes e no prazo estabelecidos (isto é, na data em que, de harmonia com o disposto no artigo 5º, número 2, do RGIT, terminar o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários) as prestações deduzidas no valor das remunerações dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais.
O que vale por dizer, no prazo estabelecido no artigo 10º, número 2, do Decreto-Lei 199/99, de 08.06, que prescreve que as mencionadas contribuições devem ser pagas até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que disserem respeito.
E isto, em suma, na consideração de que, como se disse no acórdão de fixação de jurisprudência 6/2008, de 09.04.2008, o que releva para o caso é, de facto, a conduta do agente que, perante a Administração Fiscal (aqui, a Segurança Social), agindo esta no interesse público, omite um dos seus deveres fundamentais na relação que tem com o Estado, e já não a mora [aqui representada pela situação prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT], que constitui uma mera condição objectiva de punibilidade, caracterizada pela circunstância de, embora relacionada com o facto, não pertencer, efectivamente, ao tipo de ilícito nem à culpa, antes restringindo-se a um pressuposto material de punibilidade.
Pressuposto material de punibilidade, como já visto, ditado por razões de política criminal, como sejam as que, respeitantes ao relacionamento jurídico-tributário, o legislador prevê como forma de, por um lado, permitir que, mesmo fora do prazo legalmente estabelecido, a entrega, por parte do substituto tributário (o empregador), das prestações deduzidas e das correspondentes declarações dos montantes devidos, ponha termo ao prejuízo patrimonial ocasionado à Segurança Social pela conduta do agente, e, por outra via, constituir mais um incentivo ao cumprimento dos referidos deveres tributários, assim se evitando os custos que o procedimento sempre acarreta para a administração (35).
C.
1.
Entendimento que, embora partilhado com outros, por Susana Aires de Sousa, não a impede de considerar que o pressuposto de punibilidade previsto na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT corresponde, na acepção tradicional, a uma causa de exclusão da punição, determinada por razões de política criminal e que, sendo em tudo semelhantes à desistência da prossecução do facto ilícito pelo agente, retiram dignidade penal ao mesmo facto.
E porque o assim concluído pela mesma autora [que, como a própria refere (36), convoca as considerações tecidas por Figueiredo Dias (37) quando, acerca da desistência da tentativa nos crimes formais, fala da necessidade de atender-se ao momento da consumação material, e não ao da consumação formal, nos crimes que se consumam independentemente da verificação do evento] encontra-se, de algum modo, subjacente à posição afirmada no acórdão recorrido, detenhamos, ainda que com brevidade, a nossa atenção sobre tal argumento.
E, fazendo-o, também julgamos que, no caso em apreciação, não será de recorrer à distinção entre a consumação material, terminação ou conclusão para determinar o momento em que se consuma o delito de omissão pura ou própria, com as especificidades do crime de abuso de confiança fiscal (em sentido estrito ou contra a Segurança Social).
É que [ao invés do que acontece naquelas situações em que as condições objectivas de punibilidade assumem relevância típica (38), na medida em que, intervindo no tipo de injusto e afectando o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora, como que fazem sobrestar a realização completa do delito até que o elemento condicionante se verifique e, com ele se produza o resultado que ainda interessa à valoração do ilícito], no caso vertente, o conteúdo do ilícito em função do qual foi erigida a respectiva incriminação completa-se, enfim conclui-se quando o agente omite o comportamento exigido por lei, o que, como se viu, acontece quando preenche, com a respectiva conduta, todos os elementos objectivos e subjectivos do crime. Quer isto dizer quando, nos moldes e no prazo estabelecidos, com conhecimento do dever a que se encontra adstrito e vontade de cometer o crime, com dolo não procede à entrega das prestações contributivas deduzidas nas remunerações dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, assim impedindo que o Estado (Administração Fiscal ou instituições da Segurança Social) as arrecade, com vista à sua ulterior redistribuição.
E se é assim, independentemente da verificação da condição objectiva de punibilidade prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, a consumação do crime (para a qual a mesma não tem qualquer interferência, já que nada acrescenta à respectiva definição) dá-se quando, com absoluta independência da ocorrência ou não do aludido elemento condicionante, o agente preenche, com a sua conduta omissiva e contrária à lei, os elementos do respectivo tipo legal. Momento a partir do qual, verificando-se o fim da realização ilícita, típica e culposa, se inicia a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal.
De onde que, tendo o agente, com aquela sua concreta conduta ilícita, típica e culposa, percorrido todas as etapas tendentes à realização do delito, não haja que falar em desistência da tentativa de um crime que, afinal, já se tendo perfectibilizado, enfim consumado, só não será punido se, no referenciado prazo de 90 dias, o mesmo proceder à entrega das prestações contributivas deduzidas.
Para além de, como bem anota o Ministério Público neste Tribunal, citando Manuel José Miranda Pedro (39), a desistência da tentativa ser de duvidosa verificação, pelo menos no que concerne a determinados crimes omissivos puros, como sucede com o aqui em apreciação.
2.
De outro modo - e pese embora a natureza algo excrescente que, para o caso, aporta o argumento que, avançado pelo Ministério Público, se prende com a falta de explicação para, quem defenda que a consumação material do crime só se verifica com o decurso do aludido prazo de 90 dias, não considerar que tal consumação material há-de então ser dilatada para a ocasião em que ocorrer a condição que, adicional aqueloutra, se encontra prevista na alínea b) do mesmo normativo -, também se entende que, para lá da aparente contradição que um tal raciocínio encerra (face à conduta, apesar de tudo mais diligente, do agente que, conquanto não haja procedido à entrega das prestações deduzidas, ainda assim apresentou as correspondentes declarações), o mesmo dispõe, ao menos, da virtualidade de acentuar o demérito da posição que, contrária à defendida no acórdão fundamento, colhe o apoio do acórdão recorrido.
E isto na medida em que, a ser assim, para além de, como já referido, permitir prorrogar, injustificadamente, o prazo de prescrição do procedimento criminal, deixar, de facto, ao critério da Administração Fiscal ou às instituições da Segurança Social decidir quanto ao momento julgado mais indicado para proceder à notificação prevista na citada alínea b) do número 4 do artigo 105º do RGIT e, como assim, dilatar ainda mais a data a atender para efeitos de determinação do momento da consumação (material) do crime e, na decorrência disso, do início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Acresce, ainda, que o prazo adicional, previsto na alínea a) [e bem assim na alínea b)] do número 4 do artigo 105.º do RGIT, ditado por razões de política criminal, tem por justificação, não apenas proporcionar mais uma oportunidade ao contribuinte para cumprir a sua obrigação, mas também, e sobretudo, a necessidade de menorizar os prejuízos advindos para o Estado-Administração, em consequência, por um lado, da sua dificuldade em criar e desenvolver os mecanismos adequados a permitir-lhe, em tempo, arrecadar as receitas, e, por outro lado, os custos, em termos monetários e de morosidade, que haja de suportar para obter a cobrança coerciva das mencionadas prestações.
E se assim é, nada justifica que, sob o pretexto de lhe ser concedido um prazo adicional para solver a sua obrigação, tenha o contribuinte de suportar um alargamento do prazo que a lei, quando concebeu o respectivo tipo legal, considerou suficiente para o Estado exercer o jus puniendi.
3.
Do mesmo passo que não resulta igualmente aceitável que quem entende (como acontece com Isabel Marques da Silva (40), e com certo sector da jurisprudência das Relações) que a exigência prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT configura uma condição objectiva de punibilidade, considere ainda assim que ela possa funcionar como uma causa de suspensão do procedimento criminal.
E isto porque, encontrando-se, por força do princípio da legalidade, as causas de suspensão da prescrição previstas expressamente no Código Penal (artigo 120º), no âmbito de qualquer uma delas [mais exactamente e com relevância para o caso, na alínea a) do número 1 da mesma disposição legal] não é susceptível de enquadrar-se a referida alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT.
Para além de que uma tal construção jurídica, não parecendo ajustar-se às faladas razões de política criminal que estiveram na génese do dito normativo [como visto, mais de índole pedagógica e economicista do que de cariz sancionatório acrescido (em que, na prática, se traduziria a prorrogação do prazo de prescrição do procedimento, por via do diferimento do mesmo prazo para o termo dos referidos 90 dias)], também não se afeiçoaria à letra do preceito da alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT.
Elemento literal de interpretação a que, na falta de outros que levem a aceitar um sentido menos directo e imediato do que aquele que decorre do texto legal, o intérprete deve, como diz João Baptista Machado (41), atender, preferindo o sentido que mais e melhor corresponda ao significado normal das expressões verbais nele utilizadas, designadamente sob o ponto de vista técnico-jurídico, partindo do pressuposto que o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento.
Ponderando, então, todo o aduzido, entende-se que o momento a considerar, para efeitos de consumação do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 107º, número 1, e 105º, números 1 e 5, do RGIT e, na decorrência disso, do início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, é, nos termos do artigo 5º, número 2 do mesmo diploma, o dia seguinte ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega da prestação contributiva deduzida, pelo empregador, no valor das remunerações dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais.
Ocasião em que, com a conduta omissiva em causa, o empregador incorre em responsabilidade pela prática da infracção que o legislador quis que configurasse o crime de abuso de confiança, e não a contra-ordenação que, prevista no artigo 119º do RGIT, assume, relativamente aqueloutra, que é a predominante, natureza residual, de sorte que a conduta ilícita, que começa por integrar o crime de abuso de confiança e como tal deverá ser sancionada, só deixa de sê-lo se e quando se verificar a condição objectiva de punibilidade da alínea a) do número 4 do artigo 105º do mesmo RGIT.
O que significa que a problemática respeitante à contra-ordenação só se colocará num momento ulterior, mais exactamente quando, ainda que para lá do prazo estabelecido para a comunicação e entrega da prestação contributiva deduzida, o empregador cumpre aquela obrigação.
De onde que, consumando-se com a conduta omissiva do agente o crime de abuso de confiança, este existe a partir de então, e não apenas depois de ter decorrido o prazo a que se refere a mencionada alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, que, por razões de política criminal, a lei concede para, ainda que que para além do prazo estabelecido para o efeito, cumprir a obrigação que deixou de realizar na oportunidade devida.
E se é assim, não há, pois, razão para dizer que, com a previsão do tipo legal em causa, o legislador quis tão-só antecipar a criminalização da conduta do agente que, no prazo legalmente estabelecido para o efeito, não tenha procedido à comunicação e entrega da prestação contributiva deduzida nas remunerações dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais.
Como pela mesma ou semelhante ordem de motivos, não existe fundamento para, subsidiariamente [artigo 3º, alínea a) do RGIT], convocar a norma do número 4 do artigo 119º do Código Penal, com a qual se teve em vista os crimes formais em que a produção de certo resultado releva ainda para a punibilidade do facto, mas não ao nível da verificação do crime.
E isto pela simples razão de que o crime de abuso de confiança fiscal (em sentido estrito ou contra a Segurança Social), como crime de omissão pura ou própria que é, considera-se praticado, de acordo com o disposto no segundo segmento do artigo 3º do Código Penal, no momento em que o agente deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido, o que quer dizer, no caso em apreciação, com a não entrega pelo agente, no prazo estabelecido, da prestação contributiva deduzida.
III. Decisão
Pelo exposto, acorda-se no pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça em, na procedência do presente recurso extraordinário, revogar o acórdão recorrido e fixar jurisprudência nos seguintes termos:
«No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107º, número 1, e 105º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5º, número 2, do mesmo diploma».
Em consequência, ordena-se que, oportunamente, o processo seja remetido ao Tribunal da Relação de Évora para que se profira nova decisão em conformidade com a jurisprudência fixada - artigo 445º do Código de Processo Penal.
Não é devida taxa de justiça (artigo 513º do Código de Processo Penal).
Cumpra-se, oportunamente, o disposto no artigo 444º, número 1, do Código de Processo Penal.
(1) Assim, por todos, o acórdão de fixação de jurisprudência, nº 15/2013, de 13.11.2013, publicado no Diário da República, nº 243, Iª Série, de 16.12.2013.
(2) De conferir Reinhart Maurach, "Tratado de Derecho Penal", Ariel, Tomo II, páginas 276 e seguintes; Figueiredo Dias, "Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, página 692.
(3) Assim Susana Aires de Sousa, "Os crimes Fiscais", Análise Dogmática e Reflexão sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador, Coimbra Editora, 2006, páginas 123 e 124; Nuno B. M. Lumbrales, "O Abuso de Confiança Fiscal no Regime Geral das Infracções Tributárias", Revista de Direito e Gestão Fiscal, Janeiro/Abril 2003, página 86.
(4) Assim, Costa Andrade, Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 3931 e 3932, página 311.
(5) "Regime Geral das Infracções Tributárias", anotado, 4ª edição, 2010, páginas 716 e seguintes.
(6) "O Abuso de Confiança Fiscal no Regime Geral das Infracções Tributárias", Fiscalidade, Janeiro/Abril 2003, página 93.
(7) "Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais", anotados, Coimbra Editora, 2002, páginas 332 e seguintes.
(8) "Regime Geral das Infracções Tributárias", Almedina, 2007, página 187.
(9) "Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e Reflexão sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador", Coimbra Editora, 2006, página 137, nota de rodapé 269.
(10) "Do Erro Sobre A Punibilidade, Quid Juris", Sociedade Editora, páginas 79 e seguintes.
(11) "O Crime de Abuso de Confiança Fiscal, As Consequências Jurídico-Criminais Da Alteração Introduzida Pela Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro", Coimbra Editora, 2007, páginas 55 e seguintes.
(12) "Tratado de Derecho Penal, Tomo 1, Parte Geral", Ariel, página 296.
(13) "Tratado de Derecho Penal, Parte Geral", página 508.
(14) "Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Fundamentos. La Estructura De La Teoria Del Delito", Civitas, páginas 969 e seguintes.
(15) Núcleo restrito onde, de acordo com a moderna Ciência do Direito Penal, cabem exclusivamente os elementos que fundamentam o injusto específico de uma figura ou tipo delitivo.
(16) "Derecho Penal, Parte General, Fundamentos y Teoria de la Imputacion", Marcial Pons, Ediciones Juridicas, SA, Madrid 1997, página 408.
(17) "Las Condiciones Objectivas De Punibilidad", Edersa, Editoriales De Derecho Reunidas, páginas 125 a 130.
(18) Assim Susana Aires de Sousa, "Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e Reflexão Sobre A Legitimidade Do Discurso Criminalizador", Coimbra Editora, 2006, páginas 136 e 137.
(19) "Punibilidade e Delito", Série Ciência do Direito Penal Contemporâneo, Editora Revista dos Tribunais, páginas 115 e 116.
(20) "Lições de Direito Penal, Parte I", Reimpressão da 4ª Edição, de Setembro de 1992, Almedina 2010, páginas 7 e seguintes.
(21) "Direito Criminal", I, Reimpressão, Livraria Almedina, 1971, página 370.
(22) "Direito Penal, Parte Geral, Tomo I", páginas 622 e seguintes.
(23) "Las Condiciones Objectivas de Punibilidad", Publicaciones Del Instituto de Criminologia De La Universidad Complutense de Madrid, Edersa, Editoriales De Derecho Reunidas, páginas 125 a 130.
(24) "Estúdio Jurídico-Dogmático Sobre Las Llamadas Condiciones Objectivas De Punibilidad", Ministério da Justiça, Secretaria General Tecnica, Centro de Publicaciónes, Madrid, 1990, páginas 133 a 142.
(25) Obra e local citados.
(26) "Derecho Penal", página 452.
(27) Obra e local atrás citados.
(28) Derecho Penal, Parte General, Fundamentos y Teoria de Imputacion, tradução de Joáquim Contreras/Jose Gonzalez de Murillo, 2ª edição corrigida, Marcial Pons, Ediciones Jurídicas, SA Madrid, 1997, páginas 405 a 410.
(29) Punibilidade e Direito, Série Ciência do Direito Penal Contemporânea - V. 11, Editora Revista dos Tribunais, páginas 283 e seguintes.
(30) Obra e local já referidos.
(31) "Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina do Crime", capítulo 26, 8º parágrafo, página 618, Coimbra Editora.
(32) Obra e local antes mencionados.
(33) Obra e local antes citados.
(34) "Justificação do Facto e Exclusão da Culpa nos Crimes de Abuso de Confiança Fiscal e Contra a Segurança Social: O Estado da Questão na Doutrina e na Jurisprudência", Colectânea de Textos da Parte Especial do Direito Penal, Lisboa, 2008, AAFDL, páginas 228 e seguintes.
(35) Assim, Tiago Caiado Milheiro e Frederico Soares Vieira, obra citada, página 78;
(36) Obra citada, página 137.
(37) "Direito Penal", Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, páginas 686 e 687.
(38) Espécie de condições objectivas de punibilidade que a doutrina italiana denomina de intrínsecas e a doutrina alemã e espanhola de impróprias, por oposição às extrínsecas e próprias de efeito contrário, como refere Érika Mendes de Carvalho, obra citada, páginas 117 e seguintes.
(39) Obra antes referida, página 231.
(40) Obra e local antes mencionados.
(41) "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", Almedina, 19ª Reimpressão, página 182.
Lisboa, 8 de Janeiro de 2015. - Isabel Francisca Repsina Aleluia São Marcos (Relatora) - Nuno de Melo Gomes da Silva - João Manuel da Silva Miguel - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - Armindo dos Santos Monteiro - José António Henriques dos Santos Cabral - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - José Adriano Machado Souto de Moura - Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira (Vencida com declaração que junta) - Eduardo Maia Figueira da Costa (Vencido, nos termos do Voto do Cons. Manuel Braz) - António Pires Henriques da Graça (Vencido - junto declaração) - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges (Vencido - junto declaração) - Isabel Celeste Alves Pais Martins (Vencida, nos termos da declaração de voto da Exma. Conselheira Helena Moniz) - Manuel Joaquim Braz (Vencido, de acordo com a declaração de voto que junto) - António Silva Henriques Gaspar (Presidente).
Voto de Vencida
Voto vencida por entender que, ainda que o crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto nos arts. 107.º e 105.º, n.os 4 a 7, da Lei 15/2001, de 5 de junho (adiante designado RGIT; diploma sucessivamente alterado pela Lei 15/2001, de 05/06, Lei 109-B/2001, de 27/12, DL n.º 229/2002, de 31/10, Lei 32-B/2002, de 30/12, Lei 107-B/2003, de 31/12, Lei 55-B/2004, de 30/12, Lei 39-A/2005, de 29/07, Lei 60-A/2005, de 30/12, Lei 53-A/2006, de 29/12, Lei 22-A/2007, de 29/06, DL n.º 307-A/2007, de 31/08, Lei 67-A/2007, de 31/12, Lei 64-A/2008, de 31/12, Lei 3-B/2010, de 28/04, DL n.º 73/2010, de 21/06, Lei 55-A/2010, de 31/12, Lei 64-B/2011, de 30/12, Lei 20/2012, de 14/05, Lei 66-B/2012, de 31/12, DL n.º 6/2013, de 17/01, Lei 83-C/2013, de 31/12, 133/2013, de 3 de outubro, 26-A/2014, de 17 de fevereiro e 165-A/2013, de 23 de dezembro, alterando ainda o Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, o Código dos Impostos Especiais de Consumo, o Estatuto (...)">Lei 75-A/2014, de 30/09), seja considerado como praticado "na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respetivos deveres tributários" (art. 5.º, n.º 2, do RGIT), a conduta só é punível "se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (art. 105.º, n.º 4, al. a) ex vi art. 107.º, n.º 2, do RGIT), pelo que ainda que em momento anterior o tipo de ilícito e o tipo de culpa estejam preenchidos, o legislador, por razões de política criminal, e em sintonia com as exigências de prevenção geral positiva e prevenção especial positiva, entendeu que a punibilidade da conduta deveria ser remetida para momento posterior. Assim, só após o cumprimento integral de todos os pressupostos de punibilidade pode ser iniciado o procedimento criminal e, portanto, pode dar-se início à contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal. Explicitando:
1. O crime de abuso de confiança contra a segurança social constitui um crime em que a ilicitude está restringida ao incumprimento de um dever - o dever de entregar as prestações contributivas deduzidas pelas entidades empregadoras ao valor das remunerações pagas aos trabalhadores; é um crime omissão pura (entre outros, Susana Aires de Sousa, Os crimes fiscais, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 123 e 132). E porque se pretende proteger o património da segurança social (Frederico de Lacerda da Costa Pinto, A categoria da punibilidade na teoria do crime, vol. II, Coimbra: Almedina, 2013, p. 690) é um crime de dano (entre outros, Susana Aires de Sousa, ob. cit., p. 122).
2. Tal como se afirma no acórdão, o crime encontra-se consumado uma vez deduzido o valor das remunerações devidas aos trabalhadores sem a correspondente entrega (total ou parcial), dolosa, às instituições de segurança social, cujo momento corresponde ao termo do prazo legal para cumprimento (nos termos do art. 5.º, n.º 2, do RGIT) (também neste sentido, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, ob. cit., p. 695).
3. Porém, o legislador que optou por "antecipar a criminalização das condutas a momentos formais de simples omissão de cumprimento de um dever", ao mesmo tempo adicionou "elementos que retardam a punição para facilitar a efectiva percepção, ainda que tardia, das prestações devidas", assim construindo uma clara "cisão entre o facto ilícito e as condições necessárias para a sua punibilidade", pelo que "a punibilidade do facto [está] condicionada por elementos adicionais ao ilícito" (Frederico de Lacerda da Costa Pinto, ob. cit., p. 691-2, itálico do autor).
Assim, o disposto no art. 105.º, n.º 4, al. a), do RGIT (aplicável por força do n.º 2 do art. 107, do RGIT) constitui uma condição objetiva de punibilidade que acresce ao facto ilícito (idem, p. 694), um pressuposto adicional de punibilidade (Susana Aires de Sousa, ob. cit., p. 136) (diferentemente do que ocorria no regime anterior em que o legislador apenas tinha estabelecido um prazo, de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, antes do qual não era possível instaurar o procedimento criminal, embora a conduta fosse já uma conduta punível). Ora o facto não punível não é crime; a conduta só é crime, porque só é punível, uma vez passado aquele prazo, e antes não pode ser iniciado qualquer procedimento criminal, uma vez que a conduta ainda não é considerada crime, mas sim contra-ordenação. Na verdade, só este entendimento permite articular o crime com a contra-ordenação, pois nos termos do art. 114.º, do RGIT - "A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido." (considerando-se que se inclui o conceito de prestação tributária as prestações para a segurança social, por força do art. 11.º, al. a), do RGIT - "Para efeitos do disposto nesta lei consideram-se: a) Prestação tributária: os impostos, incluindo os direitos aduaneiros e direitos niveladores agrícolas, as taxas e demais tributos fiscais ou parafiscais cuja cobrança caiba à administração tributária ou à administração da segurança social"), o não pagamento pelo período de 90 dias constitui contra-ordenação (também assim, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, ob. cit., 699-700; Lopes de Sousa/Simas Santos, Regime geral das infrações tributárias anotado, 2010 (4), p. 812-3).
Considera-se, pois, que o facto ilícito-típico de não entrega das prestações à segurança social (previsto no art. 107.º, n.º 1, do RGIT) ocorre no termo do prazo legal; porém a sua relevância penal está limitada por exigências exteriores àquele facto ilícito, assim se criando "espaços de oportunidade para a resolução do conflito antes de se poder desencadear a pretensão punitiva do Estado" (Frederico de Lacerda da Costa Pinto, ob. cit., p. 1075).
4. Constituindo a condição objetiva de punibilidade um facto relevante para que se possa punir a conduta, dado que antes da sua verificação o facto não é punível e portanto não é crime, então há necessidade de contar o prazo de prescrição do procedimento criminal após a verificação da condição objetiva de punibilidade (também assim, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, ob. cit., p. 1238 e 1239 - "Todas as condições objetivas de punibilidade estão associadas a um efeito obstrutor no plano material e processual e, por isso, qualquer modalidade de condição é relevante para o início da contagem do prazo de prescrição, de forma a evitar o decurso do prazo sem que seja possível exercer de forma consequente a acção penal"). Na verdade, ainda que possamos dizer que o crime está consumado em momento anterior, apenas com a verificação integral da condição objetiva de punibilidade pode iniciar-se o prazo de prescrição (também assim, entre outros, Maurach/Zipf, Derecho Penal, Buenos Aires, 1994, § 22, nm. 22 - "Se não chegam a coincidir temporalmente a realização do tipo e a das condições objetivas de punibilidade, a prescrição corre a partir da data do último de ambos os factos" - e 75, nm. 24 - "Com independência das regras gerais, a prescrição não pode começar a correr anteriormente à produção das condições objetivas da punibilidade previstas no tipo"; Schönke/Schröder/Bosch/Sternberg-Lieben, StGB Kommentar, Beck, 2014 (29), § 78a, nm. 13; Mitsch, Münchener Kommentar zum StGB, 2012 (2), § 78a, nm. 10).
Ou seja, não pode começar-se a contar um prazo de prescrição do procedimento criminal quando ainda nem sequer é possível instaurar aquele. Ainda que o prazo de prescrição, regra geral, se inicie logo que o crime esteja consumado (art. 119.º, n.º 1, do Código Penal), excecionalmente aquele prazo apenas corre a partir do dia em que a condição objetiva de punibilidade esteja preenchida (por força do art. 119.º, n.º 4, do Código Penal - também no sentido da aplicabilidade deste dispositivo a estas situações, Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do crime, Lisboa, 1993, § 1137: uma interpretação restritiva deste dispositivo "não deve ir tão longe que ponha fora do âmbito da norma aqueles casos em que a produção de um resultado releve ainda, se bem que não ao nível do tipo-de-ilícito, para a espécie de crime, nomeadamente, como pressuposto da punibilidade; também em todas estas hipóteses (...) a doutrina contida no art. [119.º-4] assume plena justificação"; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, art. 119.º, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, ob. cit., p. 1237).
Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Janeiro de 2015. - Helena Moniz.
Voto de Vencido
Vencido, nos termos dos artigos 105º, nº 4, al. a), do RGIT, 119º nº 4, do Código Penal, em conformidade com o disposto nos artigos 9º e 306º nº 1, do Código Civil, por entender que só a partir do momento em que legalmente é possível exercer/iniciar o procedimento criminal - após o decurso do prazo de noventa dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação - é que começa a decorrer o prazo da sua prescrição. - António Pires Henriques da Graça.
Voto de Vencido
A disposição do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção da Lei 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2007, sendo que a alínea a) já estava presente no corpo do preceito na redacção originária da Lei 15/2001, de 5 de Junho, insere-se na finalidade de obtenção de receitas, presente em outros institutos do novo regime geral para as infracções tributárias, através dos quais é tentada a regularização tributária pós - delitiva.
Assim, para além da causa de extinção da responsabilidade criminal, prevista no primitivo n.º 6 do artigo 105.º, que dispunha "Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 1000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária", tendo o preceito sido revogado pelo artigo 115.º da Lei 64-A/2008, in Suplemento do Diário da República de 31-12-2008, que aprovou o Orçamento de Estado para 2009, está prevista a possibilidade no artigo 22.º de dispensa ou atenuação especial da pena, "se o agente repuser a verdade sobre a situação tributária", e ainda a possibilidade de outras soluções que passam pela reparação do mal do crime, como o artigo 43.º, com a remissão que faz para os artigos 277.º a 283.º do Código de Processo Penal, com a admissão da possibilidade de suspensão provisória do processo e ainda de arquivamento, em caso de dispensa de pena, prevista no artigo 44.º.
Ou seja, o legislador propicia ao devedor tributário directo ou substituto inadimplente o pagamento voluntário tardio, já em mora, sem olvidar a correspectiva reparação/compensação da mora debitoris.
Os crimes tributários assumem natureza «artificial». Assim, Mário Ferreira Monte, Da reparação penal como consequência jurídica autónoma do crime, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, págs. 129 a 155.
Como refere Augusto Silva Dias, em O novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro (Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro), in Fisco, n.º 22, Julho de 1990 e Direito Penal Económico e Europeu, Textos Doutrinários, volume II, pág. 263, em trecho citado e transcrito por Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, em O crime de fraude fiscal no novo Direito Penal Tributário Português, no mesmo volume desta colectânea, a págs. 418, reportando-se aos crimes fiscais, mas sendo aplicável aos crimes contra a segurança social:
"A respeito do fundamento concreto da intervenção penal no âmbito do ilícito fiscal e diferentemente do que sucede nos chamados «crimes clássicos», não se apresenta à partida um (ou vários) bem jurídico de contornos definidos, concretamente apreensível, que funcione como constituens da estrutura do ilícito e vincule a uma certa direcção de tutela. Ao invés, o objecto da protecção penal é um «constituto», uma resultante de objectivos e estratégias de política criminal previamente traçados. O legislador não parte aqui das representações de valor pré-existentes na consciência jurídica da comunidade, mas intervém modeladoramente no sentido de uma ordenação da convivência. Por outras palavras, o interesse protegido pelas normas penais fiscais não é um prius, que sirva ao legislador de instrumento crítico da matéria a regular e do modo de regulação, mas um posterius, com uma função meramente interpretativa e classificatória dos tipos, construído a partir da opção por um dos vários figurinos dogmáticos e político-criminais que o legislador tem à sua disposição. Com este sentido pode dizer-se que os crimes tributários têm natureza «artificial»".
Como se referiu no acórdão de 4-02-2010, processo 106/01.9IDPRT.S1-3.ª Secção "No fundo o que estes crimes visam é a optimização de arrecadação de receitas, visando impedir, obstar a evasão fiscal e a fraude, pois a pretensão primeira é a recepção completa e oportuna de impostos e contribuições, traduzindo-se a não arrecadação de receitas por falta de entrega num efectivo dano patrimonial e punindo-se a forfait a entrega em mora [artigo 105.º n.º 4, alínea b)]; o crime surge a partir do momento em que falha o estímulo e o convite ao contribuinte para que regularize a sua situação fiscal.
Tenha-se em vista que numa primeira fase, no plano fiscal, há que aguardar pelo pagamento dentro de 90 dias e só depois é que surge o crime; após notificação, aguarda-se por 30 dias; se o faltoso pagar, incorre em contra-ordenação, mas se o não fizer, a situação que configuraria uma simples contra-ordenação converte-se, pelo não acatamento do convite, em figura criminal".
Como decorre da conjugação dos artigos 105.º, n.º 4 e 114.º do RGIT, a falta de entrega da prestação tributária, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ao credor tributário é punível com coima.
Durante esse período não estamos perante um crime em sentido técnico, que supõe um facto ilícito típico, culposo e punível. Não sendo punível, estar-se-á perante um facto ilícito típico, categoria introduzida no Código Penal de 1995 no domínio das medidas de segurança (artigo 91.º), dos pós delitos (artigos 231.º e 232.º) e da perda de instrumentos, produtos e vantagens (artigos 109.º e 111.º) e posteriormente, em 2004, no crime de branqueamento (artigo 368.º-A).
Não podendo ser exercido o jus puniendi em relação ao crime antes de decorrido o aludido prazo, não poderá correr prazo prescricional.
Lisboa, 8 de Janeiro de 2015. - Raul Borges.
Declaração de voto
1. O nº 2 do artigo 5º do RGIT, dispondo que as infracções tributárias omissivas se consideram «praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários», é uma norma geral, que abrange tanto crimes como contra-ordenações praticados por omissão.
Apesar dela, podem existir normas especiais referentes a uma ou mais dessas infracções. Parece ser isso o que acontece em relação ao crime de abuso de confiança fiscal do artigo 105º e, por força do disposto no artº 107º, nºs 1 e 2, ambos do mesmo diploma, ao crime de abuso de confiança contra a segurança social.
O artigo 105º, com referência ao artigo 107º, prevê nos nºs 1 e 5 a punição, com penas fixadas em função do valor, da não entrega por parte das entidades empregadoras às instituições de segurança social das contribuições deduzidas do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais. Mas no nº 4, alínea a), estabelece que a não entrega só é punível se «tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação».
Por sua vez, o artigo 114º, nºs 1 e 2, do mesmo diploma dispõe que a não entrega da prestação tributária deduzida por período não superior a 90 dias, ou por período superior se o facto não constituir crime, designadamente por ser negligente, é punível como contra-ordenação.
Da conjugação dessas disposições resulta que a não entrega da prestação tributária deduzida por período não superior a 90 dias, havendo pelo menos negligência, é punida como contra-ordenação, enquanto a não entrega dolosa por período superior a 90 dias é punida como crime, sendo, pois, a extensão da mora um elemento de distinção entre o crime de abuso de confiança fiscal e a contra-ordenação prevista no artigo 114º.
Mas se é assim, parece não poder afirmar-se que o crime de abuso de confiança fiscal se considera praticado no momento indicado no nº 2 do artº 5º do RGIT, ou seja, logo no primeiro momento de mora. Nessa altura, existe uma infracção tributária, mas que não será crime se a prestação deduzida for entregue no período de 90 dias seguintes, caso em que se estará perante uma simples contra-ordenação. Não me parece que se possa considerar praticado o crime de abuso de confiança fiscal com a não entrega da prestação até ao termo do prazo previsto para cumprimento do dever tributário se, havendo entrega da prestação nos 90 dias seguintes, aquela omissão constitui uma contra-ordenação.
Mesmo que seja de entender que o artigo 114º não é aplicável à não entrega às instituições de segurança social das contribuições deduzidas, o raciocínio acabado de se fazer a partir desse preceito relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal valerá igualmente para o crime de abuso de confiança contra a segurança social, construído à imagem daquele, em função da remissão do artigo 107º.
Deste modo, apesar do uso do termo punível, parece poder concluir-se que na norma do nº 4, alínea a), do artigo 105º se afirma, não uma condição objectiva de punibilidade, mas um elemento da factualidade típica.
As condições objectivas de punibilidade, como parece pacífico, de acordo com a doutrina indicada no texto do acórdão, são elementos que estão fora do tipo de ilícito e do tipo de culpa. Ora, no que se refere aos crimes de abuso de confiança fiscal e contra a segurança social será na não entrega dolosa por período superior a 90 dias da prestação tributária e das contribuições deduzidas que se funda o juízo de ilicitude e de culpa, vendo-se na mora por período não superior apenas fundamento para um juízo de ilicitude e de culpa de âmbito contra-ordenacional.
Pode mesmo pensar-se que a não entrega por mais de 90 dias, no domínio do RGIT, visa substituir na estrutura dos crimes de abuso de confiança fiscal e contra a segurança social o elemento apropriação, exigido no regime anterior. E até que essa mora qualificada é tida pela lei como sinal concludente de que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se como proprietário dos valores deduzidos a título de prestação tributária ou de contribuições devidas à segurança social, sabendo-se que é na inversão do título de posse da "coisa" que a apropriação se manifesta.
Deve ainda notar-se que da consideração da não entrega por período superior a 90 dias, não como elemento típico, mas como mera condição objectiva de punibilidade e portanto não abarcada pelo dolo do tipo, resultariam consequências que me parecem inaceitáveis. Desde logo, nos casos em que, antes do termo do prazo legal de entrega da prestação tributária ou das contribuições deduzidas, o agente decidisse não fazer a entrega nesse prazo, mas apenas dentro dos 90 dias seguintes, sem representar outra possibilidade, e antes de decorrerem esses 90 dias mudasse de ideias e resolvesse não fazer a entrega, não haveria crime, por falta de dolo. E um erro do agente relativo à contagem do período de 90 dias referido na alínea a) do nº 4 do artº 105º seria irrelevante em sede de tipicidade.
Em conclusão: o tipo de crime de abuso de confiança contra a segurança social só se preencherá se a não entrega da prestação tributária persistir para além desse período de 90 dias. Será essa a não entrega prevista no nº 1 do artigo 107º, a não entrega típica. Ainda que com fundamentação não exactamente idêntica, foi essa também a conclusão a que chegou Taipa de Carvalho, em O Crime de Abuso de Confiança Fiscal, Coimbra Editora, 2007, páginas 48-52: "Os crimes - no caso de prestações deduzidas e não comunicadas - são praticados (consideram-se praticados) no momento em que termina o prazo de 90 dias contado a partir do termo do prazo legal de entrega da prestação tributária (...)".
E por isso, à luz do artigo 119º, nº 1, do Código Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal não poderá iniciar-se antes do decurso desse período de 90 dias.
2. Ainda que se entenda que a não entrega por período superior a 90 dias não é elemento típico, mas mera condição objectiva de punibilidade, haverá que concluir não ser outro o momento a partir do qual corre o prazo de prescrição do procedimento criminal, valendo então as razões apontadas pela Conselheira Helena Moniz no ponto 4 da sua declaração de voto.
Seria, na verdade, de muito difícil compreensão que o prazo de extinção da responsabilidade criminal, de que a prescrição do procedimento é uma espécie, começasse a correr antes do surgimento dessa responsabilidade, a qual, mesmo nesta perspectiva, não se verifica enquanto a mora não exceder 90 dias. Não pode estar a caminhar para a extinção o que ainda não existe.
Nem teria sentido que, tendo a prescrição do procedimento criminal sempre implicada uma ideia de inércia ou incapacidade do Estado no exercício do seu poder punitivo, o respectivo prazo corresse num período em que o não desencadeamento dos mecanismos de perseguição criminal não pode ser imputado a qualquer ineficiência do Estado, antes sendo legalmente impossível. Neste sentido, Figueiredo Dias, depois de afirmar que o decurso do tempo, constituindo a essência do instituto da prescrição, não deve favorecer o agente quando a pretensão punitiva do Estado e as suas exigências de punição são confirmadas através de certos actos de perseguição penal, acrescenta que isso é também assim "quando a situação é uma tal que exclui a possibilidade daquela perseguição" (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, página 708). - Manuel Joaquim Braz.