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Acórdão 859/2014, de 6 de Fevereiro

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Sumário

Julga inconstitucional a norma do artigo 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 31/94, de 5 de fevereiro, que atribui ao foro cível da comarca de Lisboa a competência para as execuções instauradas pelo IFADAP

Texto do documento

Acórdão 859/2014

Processo 380/2014

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - A Sociedade Agrária As Troviscas, Lda., veio deduzir, perante o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, oposição à execução instaurada com base em certidão de dívida emitida pelo Instituto do Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas (IFADAP).

A certidão de dívida foi emitida para cobrança coerciva de importâncias que a oponente teria auferido indevidamente no âmbito de um projeto de arborização de prédios rústicos realizado nos termos de um contrato celebrado com o IFADAP ao abrigo do Regulamento CEE n.º 2080/92 do Conselho de 30 de junho, e da Portaria 199/94, de 6 de abril.

No referido contrato consta uma cláusula referente ao foro competente, pela qual «para todas as questões emergentes deste contrato, ou da sua execução, é sempre competente o foro cível da comarca de Lisboa», sendo que essa cláusula dá cumprimento ao disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei 31/94, de 5 de fevereiro, que atribui ao foro cível da comarca de Lisboa a competência para «as execuções instauradas pelo IFADAP» ao abrigo desse diploma.

Por sentença de 23 de setembro de 2013, o TAF de Mirandela recusou a aplicação da citada norma do n.º 3 do artigo 8.º do Decreto-Lei 31/94, por entender que a mesma está ferida de inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea q) da Constituição, a que atualmente corresponde o artigo 165.º, n.º 1, alínea p).

Dessa decisão o magistrado do Ministério Público interpôs recurso obrigatório, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, com base em recusa de aplicação de norma.

Tendo o processo prosseguido para apreciação do mérito, o Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal Constitucional apresentou alegações em que formula as seguintes conclusões:

1.ª) Vem interposto recurso, pelo Ministério Público, para si obrigatório, nos termos do disposto nos arts. 70.º, n.º 1, al. a), 72.º, n.os 1, al. a), e n.º 3 e 75.º, da LOFPTC, da sentença de 23/09/2013, ditada a fls. 230 a 244 dos autos de proc. n.º 62/04.1BEMDL, do TAF de Mirandela ("Oposição"), em que é A. Sociedade Agrária Troviscas, Lda. e R. o IFAP, I. P., pois ali "rejeita-se a aplicação da norma contida no artigo 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei 31/94, de 5 de fevereiro, por se entender que a mesma está ferida de inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 168.º, n.º 1, q), da Constituição (atual artigo 165, n.º 1, al. p), da CR). É que tal como acontece na situação analisada pelo Tribunal Constitucional (ac. n.º 218/07), o Decreto-Lei 31/94 contém uma norma relativa à competência dos tribunais (artigo 8, n.º 3), não tendo a sua emissão sido autorizada pela Assembleia da República [...]".

2.ª) O artigo 134.º da Lei Constitucional 1/89, de 8 de julho [que aditou ao texto constitucional um novo artigo 214.º (Tribunais administrativos e fiscais), que corresponde ao atual artigo 212.º, n.º 3, da Constituição] veio estabelecer uma "reserva constitucional de jurisdição comum", a favor dos tribunais administrativos e fiscais, para conhecerem dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais e, na decorrência e em consonância com essa "reserva constitucional de jurisdição comum" a favor dos tribunais administrativos e fiscais, a lei ordinária veio precisamente estabelecer que seguirá o processo de execução fiscal, na falta de pagamento voluntário, o pagamento de prestações pecuniárias fixadas por ato administrativo (CPA, artigo 155.º, n.º 1, na versão originária e, depois, na versão decorrente do artigo 1.º do Decreto-Lei 6/96, de 31 de janeiro, e ainda artigo 149.º, n.º 3, do mesmo diploma legal).

3.ª) Por conseguinte, o Governo, ao ter emitido a norma jurídica constante do artigo 8.º, n.º 3, constante do Decreto-Lei 31/94, de 5 de fevereiro, editado "nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º [atual 198.º (Competência legislativa)] da Constituição", nos termos do qual apenas está habilitado a fazer Decretos-Leis em matérias não reservadas à Assembleia da República, estabeleceu uma norma de competência judiciária que dispõe inovatoriamente (em sentido divergente) da "reserva de jurisdição comum", constitucional e legal, em favor dos tribunais administrativos e fiscais, em particular para dirimir os litígios em matéria da garantia executiva das prestações pecuniárias decorrentes de ato administrativo (autotutela executiva), nomeadamente a título de "oposição à execução fiscal", sem para tanto ter obtido prévia autorização da Assembleia da República, pelo que a mesma é organicamente inconstitucional (Constituição, arts. 168.º [atual 165.º], n.º 1, al. q), e 277.º, n.º 1).

Não houve contra-alegações.

Cabe apreciar e decidir.

II - Fundamentação

2 - A decisão recorrida recusou a aplicação da norma do artigo 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei 31/94, de 5 de fevereiro, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República referente a matéria de organização e competência dos tribunais, que constava do artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição (a que atualmente corresponde o artigo 165.º, n.º 1, alínea p)), baseando-se no entendimento expresso no acórdão 218/2007 do Tribunal Constitucional, que se pronunciou pela inconstitucionalidade da norma similar do artigo 53.º, n.º 2, do Decreto-Lei 81/91, de 19 de fevereiro.

O Decreto-Lei 31/94 estabelece regras relativas à aplicação em Portugal dos Regulamentos (CEE) n.os 2078/92, 2079/92 e 2080/92, do Conselho, de 30 de junho, que instituem, respetivamente, regimes de ajudas aos métodos de produção agrícola compatíveis com as exigências da proteção do ambiente e da preservação do espaço natural, à reforma antecipada na agricultura e às medidas florestais na agricultura.

E no seu artigo 8.º estipulava o seguinte:

1 - Constituem títulos executivos as certidões de dívida emitidas pelo IFADAP.

2 - As certidões referidas no número anterior devem indicar a entidade que as tiver extraído, a data de emissão, a identificação e o domicílio do devedor, a proveniência da dívida, a indicação por extenso do montante e a data a partir da qual são devidos juros e a importância sobre que incidem.

3 - Para as execuções instauradas pelo IFADAP ao abrigo do presente diploma é sempre competente o foro cível da comarca de Lisboa.

Ainda nos termos do artigo 5.º, a atribuição das ajudas a que se refere o diploma é feita ao abrigo de contratos celebrados entre os beneficiários e o IFADAP, prevendo-se ainda, em caso de incumprimento, a obrigação de restituição das importâncias que tenham sido recebidas a título de ajudas (artigos 6.º e 7.º).

Partindo do pressuposto de que os contratos de atribuição de ajudas são qualificáveis como contratos administrativos - para o que aponta decisivamente a atribuição da natureza de títulos executivos às certidões de dívida emitidas pelo organismo pagador das ajudas -, com a consequente possibilidade da prática de atos administrativos no âmbito da execução do contrato, o citado acórdão 218/2007 considerou ser organicamente inconstitucional, por violação da reserva legislativa parlamentar, a norma do artigo 53.º, n.º 2, do Decreto Lei 81/91, de 19 de fevereiro, que, também em matéria de ajudas comunitárias, igualmente atribui ao foro cível da comarca de Lisboa a competência para as execuções instauradas pelo organismo pagador das ajudas.

Para assim concluir, o Tribunal aduziu, no essencial, as seguintes ordens de considerações:

[...] a par da possibilidade de o legislador ordinário atribuir pontualmente a tribunais não administrativos o conhecimento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, desde que tais "desvios" se mostrem providos de fundamento material razoável e desde que, pelo seu número ou importância, não esvaziem do seu âmago essencial a competência dos tribunais administrativos [...], resulta da revisão constitucional de 1989 que a jurisdição administrativa passou a ser a jurisdição "comum" para o conhecimento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas: assim, enquanto anteriormente, nos casos em que não resultava expressamente da lei qual a jurisdição competente para decidir determinada causa, se entendia que eram competentes os "tribunais judiciais", depois da revisão constitucional de 1989, não existindo norma legal a definir concretamente qual a jurisdição competente, há que indagar qual a natureza da relação jurídica de que emerge o litígio e, se se concluir que possui natureza administrativa, então impõe-se o reconhecimento de que competente é a jurisdição administrativa, como jurisdição "comum" para a apreciação dos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas.

[...] Revertendo ao caso dos autos, pode, desde logo, entender se que a competência da jurisdição administrativa e fiscal para a cobrança coerciva de dívidas a pessoas coletivas públicas encontra suporte nos artigos 62.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Decreto Lei 129/84, de 27 de abril) [correspondente à alínea o) do mesmo preceito, na redação dada pelo Decreto Lei 229/96, de 29 de Novembro], e no artigo 144.º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, aprovado pelo Decreto Lei 45 005, de 27 de abril de 1963 [correspondente ao artigo 233.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto Lei 154/91, de 23 de abril].

Mas mesmo que se entenda, como se entendeu no Acórdão 90/2004, que a atribuição dessa competência dependeria da existência de uma lei especial que tal previsse, o certo é que, de acordo com a posição exposta no ponto precedente, com a entrada em vigor da revisão constitucional de 1989, passaram os tribunais administrativos a ser competentes, como tribunais "comuns" para o conhecimento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, para o tipo de execuções como a ora em causa.

Contrariamente, no mencionado acórdão 90/2004, em que se analisou uma norma semelhante aplicável às execuções instauradas por dívidas resultantes de programas de ajudas comunitárias (artigo 18.º, n.º 5, do Decreto-Lei 96/87, de 4 de março), o Tribunal decidiu, com base no caráter não inovatório da norma atributiva de competência aos tribunais comuns, no sentido da não inconstitucionalidade, argumentando do seguinte modo:

Ora, do regime constante do então (ou seja, à data da prolação do despacho recorrido) vigente Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pelo Decreto-Lei 129/84, de 27 de abril), não se pode concluir que a totalidade das ações executivas destinadas à obtenção de dívidas devidas ao Estado ou a outras pessoas coletivas públicas, fundadas em título executivo extrajudicial - certidão de dívida emitida pelo Estado ou outras pessoas coletivas públicas -, seja da competência dos tribunais administrativos ou fiscais.

Na verdade, e talqualmente assinala a entidade recorrente na sua alegação, da conjugação das normas vertidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 62.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [na redação anterior à conferida pelo Decreto-Lei 229/96, de 29 de novembro, que é a que releva, atenta a data da edição do diploma que se incorpora a norma em apreço, sendo que, de todo o modo, mesmo depois daquela redação é o mesmo o sentido da alínea o) do n.º 1 do citado artigo 62.º] e no artigo 144.º do Código de Processo das Contribuições e Impostos [que era o vigente à data anteriormente referida, mantendo-se regra de conteúdo idêntico na alínea b) do n.º 2 do artigo 233.º do Código de Processo Tributário], resulta que a competência atribuída aos tribunais tributários de 1.ª instância para a cobrança coerciva de dívidas a pessoas de direito público está dependente da existência de uma lei que tal preveja, salvo quanto à cobrança das custas e multas aplicadas pelos tribunais administrativos e fiscais.

Sendo assim, e se não houver ato legislativo específico que preveja que a cobrança coerciva de determinados créditos detidos pelo Estado ou outras pessoas coletivas públicas é da competência dos tribunais fiscais (e isso independentemente da natureza material de onde emerge a obrigação que, por incumprida, deu origem ao crédito), resulta claro que essa competência incumbe aos tribunais judiciais, por força do artigo 14.º da então vigente Lei 38/87, de 23 de dezembro - Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (e o mesmo se passa hoje com o n.º 1 do artigo 18.º da Lei 3/99, de 13 de janeiro; cf., na atual versão da Constituição, a parte final do n.º 1 do artigo 211.º) -, sendo certo que, em 1987 (data da edição do Decreto-Lei 96/87), não estavam os tribunais administrativos dotados, pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que então regia, de competência para a execução dos créditos titulados pelo Estado e outras pessoas coletivas públicas, fundadas no título executivo extrajudicial acima indicado, e ainda que decorrente de negócios jurídicos bilaterais de natureza administrativa.

Neste contexto, no particular da atribuição de competência aos tribunais da ordem dos tribunais judiciais, a norma em apreciação mais não faz do que, tautologicamente, reafirmar uma regra que já se surpreendia no ordenamento jurídico vigente à data da edição do Decreto-Lei 96/87, pelo que nada de inovatório foi por ela trazido [...].

Dentro da mesma linha de entendimento, os votos de vencidos apostos no acórdão 218/2007 manifestaram-se no sentido de que a norma aí em causa não era inovadora porque a atribuição de competência aos tribunais judiciais correspondia ao regime geral que resultava do artigo 14.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, sendo irrelevantes as alterações entretanto introduzidas no parâmetro de constitucionalidade por efeito da competência atribuída, com a revisão constitucional de 1989, aos tribunais administrativos e fiscais do julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 212.º, n.º 3, da Constituição).

3 - A questão que se coloca, e que originou o dissídio entre os acórdãos n.os 90/2004 e 218/2007 relativamente a normas similares, é pois a de saber se a norma do artigo 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei 31/94, que declara competente o foro cível de Lisboa para as execuções instauradas pelo IFADAP por dívidas resultantes da não restituição de importâncias indevidamente recebidas a título de ajudas comunitárias, tem ou não caráter inovatório.

Não subsiste dúvida de que uma norma como aquela que está em apreciação, cujo objeto é a determinação da jurisdição competente relativamente a certo tipo de litígios, incide sobre matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, que ao tempo da edição da norma constava da alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º e atualmente figura na alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.

Por outro lado, de acordo com a jurisprudência reiterada do Tribunal, para que se afirme a inconstitucionalidade orgânica não basta que nos deparemos com produção normativa não autorizada do Governo em determinado domínio onde este órgão só poderia intervir com credencial parlamentar bastante. O facto de o Governo aprovar atos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas por vício de inconstitucionalidade orgânica. Desde que se demonstre que tais normas não criaram um ordenamento diverso do então vigente, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente, o Tribunal vem entendendo não existir invasão relevante da esfera de competência reservada.

Para a posição sufragada no acórdão 90/2004 e nos votos de vencidos apostos no acórdão 218/2007, o argumento decisivo para afirmar o caráter não inovatório da norma atributiva de competência aos tribunais comuns reside no critério geral de competência material dos tribunais judiciais que provém do artigo 14.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 38/87, de 23 de dezembro (que vigorava à data da emissão das normas que foram analisadas em qualquer desses arestos) e que dispunha o seguinte: «As causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais».

Esse preceito foi reproduzido, ainda que com uma outra formulação verbal, no artigo 18.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 3/99, de 13 de janeiro, e no artigo 26.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais que se lhe seguiu, aprovada pela Lei 52/2008, de 28 de agosto, e ainda no artigo 40.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei 62/2013, de 26 de agosto, atualmente em vigor.

Este último diploma, visando estabelecer normas de enquadramento e organização do sistema judiciário, e tendo por isso um âmbito aplicativo mais amplo do que resultava das anteriores leis de orgânicas dos tribunais judiciais, alude também à competência dos tribunais administrativos e fiscais, definindo-os como os tribunais competentes para o «julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais», em consonância com o princípio constitucional resultante do artigo 212.º, n.º 3, da Lei Fundamental e a disposição genérica do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Em qualquer caso, a antiga norma do artigo 14.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, e todas as normas de idêntico teor que lhe sucederam, mesmo quando surjam em contraposição com outras disposições que definem paralelamente a competência de outras categorias de tribunais, não tem outro sentido útil que não seja o de estabelecer um critério supletivo de atribuição de competência, que deverá ser aplicado sempre que não exista disposição específica a cometer a competência a uma outra ordem jurisdicional.

Não resulta daí que o Governo fique dispensado de obter a necessária credencial parlamentar quando, pretendendo legislar sobre matéria de organização e competência dos tribunais, se limite a remeter a competência para conhecer de certo tipo de litígios para os tribunais judiciais.

A norma, como a do artigo 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei 31/94, que atribui competência aos tribunais judiciais para conhecer das execuções instauradas pelo IFADAP para cobrança coerciva de dívidas, é uma norma atributiva de competência específica, implicando que os litígios que passam a ser abrangidos por essa regra de competência, deixam de cair na alçada da norma supletiva, que só funcionaria se não existisse regra própria.

E nesse sentido, o diploma emanado pelo Governo introduziu, de facto, uma alteração no ordenamento jurídico, independentemente de saber - questão discutida nos acórdãos n.os 90/2004 e 218/2007 - se a cobrança coerciva de dívidas a pessoas coletivas públicas estava ou não já atribuída à jurisdição administrativa.

A entender-se, como se entendeu no acórdão 218/2007, que as execuções instauradas com base em certidões de dívida emitidas pelo IFADAP estavam já cobertas pelo artigo 62.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 1984, que remete para os tribunais tributários a competência para conhecer de cobrança coerciva de dívidas a entidades públicas, teria de concluir-se que o legislador operou uma alteração em matéria de competência dos tribunais tendo passado a atribuir a uma outra categoria de tribunais a competência que estava já deferida por lei aos tribunais tributários.

Mas esse mesmo efeito inovatório também ocorre caso se considere que aquela norma do artigo 62.º, n.º 1, alínea c), não tem um efeito prescritivo vinculativo por estar ainda dependente de lei que especialmente contemple essa competência. Isso porque, mesmo nessa eventualidade, o artigo 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei 31/94 veio subtrair à competência supletiva dos tribunais judiciais os litígios que são aí especificados e alterou, nessa medida, o ordenamento jurídico.

É indiferente, para aferir do caráter inovatório da norma, que a solução legal viesse a ser idêntica, caso a norma não tivesse sido emitida, por efeito da aplicação do artigo 14.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais. O ponto é que os processos executivos abrangidos pelo Decreto-Lei 31/94 passaram a ter uma regra de competência específica anteriormente inexistente.

4 - Bem se compreende, neste contexto, que possua um reduzido efeito prático, para a resolução do caso, a alteração resultante da revisão constitucional de 1989 quanto à definição do âmbito material da jurisdição administrativa e fiscal. Como ressalta da jurisprudência constitucional, o n.º 3 do artigo 212.º da Constituição, não visou estabelecer uma reserva absoluta de jurisdição no duplo sentido de os tribunais administrativos e fiscais só poderem julgar questões de direito administrativo e fiscal e só eles poderem julgar essas questões, sendo constitucionalmente admissíveis desvios desde que sejam materialmente fundados e respeitem o núcleo essencial de cada uma das jurisdições (por todos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/2007). O que parece dever concluir-se é que o preceito constitucional visa consagrar os tribunais administrativos e fiscais (que antes eram de caráter facultativo) como tribunais comuns em matéria administrativa e fiscal.

Deste imperativo constitucional não resulta, no entanto, que o Governo deixe de poder emitir, sem autorização parlamentar, atos legislativos que atribuam a competência aos tribunais judiciais para o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, desde que se limite a reproduzir o que consta de anterior texto legal emanado do órgão legislativo competente. Não obstante o relevante alcance da norma do artigo 212.º, n.º 3, da Constituição, nenhum motivo há para abandonar a jurisprudência constitucional que faz assentar o juízo de inconstitucionalidade orgânica, por violação de reserva de competência da Assembleia da República, no conteúdo inovatório do ato legislativo.

É essencialmente a verificação deste requisito, dada a natureza inovadora da norma do artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 31/94 relativamente ao regime vigente, que, no caso, conduz a um julgamento de inconstitucionalidade e à confirmação da decisão recorrida.

III - Decisão

Termos em que se decide:

a) Julgar inconstitucional a norma artigo 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei 31/94, de 5 de fevereiro, que atribui ao foro cível da comarca de Lisboa a competência para as execuções instauradas pelo IFADAP, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição, na redação resultante da revisão de 1989;

b) Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Lisboa, 10 de dezembro de 2014. - Carlos Fernandes Cadilha - Lino Rodrigues Ribeiro - Maria José Rangel de Mesquita - Catarina Sarmento e Castro - Maria Lúcia Amaral.

208388486

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/351065.dre.pdf .

Ligações deste documento

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  • Tem documento Em vigor 1963-04-27 - Decreto-Lei 45005 - Ministério das Finanças - Direcção-Geral das Contribuições e Impostos

    Aprova o Código de Processo das Contribuições e Impostos.

  • Tem documento Em vigor 1984-04-27 - Decreto-Lei 129/84 - Ministérios da Justiça e das Finanças e do Plano

    Aprova o estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (no uso da autorização conferida ao Governo pela Lei n.º 29/83, de 8 de Setembro).

  • Tem documento Em vigor 1987-03-04 - Decreto-Lei 96/87 - Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação

    Aprova a regulamentação do Programa Específico de Desenvolvimento da Agricultura Portuguesa (PEDAP).

  • Tem documento Em vigor 1987-12-23 - Lei 38/87 - Assembleia da República

    Lei orgânica dos tribunais judiciais.

  • Tem documento Em vigor 1989-07-08 - Lei Constitucional 1/89 - Assembleia da República

    Segunda revisão da Constituição.

  • Tem documento Em vigor 1991-02-19 - Decreto-Lei 81/91 - Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação

    Promove a melhoria da eficácia das estruturas agrícolas, de acordo com as regras fixadas no Regulamento (CEE) n.º 797/85 (EUR-Lex), do Conselho, de 12 de Março.

  • Tem documento Em vigor 1991-04-23 - Decreto-Lei 154/91 - Ministério das Finanças

    Aprova o Código de Processo Tributário.

  • Tem documento Em vigor 1994-02-05 - Decreto-Lei 31/94 - Ministério da Agricultura

    ESTABELECE REGRAS RELATIVAS A APLICAÇÃO EM PORTUGAL DOS REGULAMENTOS (CEE) NUMEROS 2078/92 (EUR-Lex), 2079/92 (EUR-Lex) E 2080/92 (EUR-Lex), DO CONSELHO DE 30 DE JUNHO, QUE INSTITUEM, RESPECTIVAMENTE, OS REGIMES DE AJUDAS A MÉTODOS DE PRODUÇÃO AGRÍCOLA COMPATIVEIS COM AS EXIGÊNCIAS DA PROTECÇÃO DO AMBIENTE E DE PRESERVAÇÃO DO ESPAÇO NATURAL, A REFORMA ANTECIPADA NA AGRICULTURA E AS MEDIDAS FLORESTAIS NA AGRICULTURA. A COORDENAÇÃO GLOBAL DAS MEDIDAS PREVISTAS NOS REGULAMENTOS E DA COMPETENCIA DO INSTITUTO DE (...)

  • Tem documento Em vigor 1994-04-06 - Portaria 199/94 - Ministério da Agricultura

    ESTABELECE O REGIME DAS AJUDAS AS MEDIDAS FLORESTAIS NA AGRICULTURA, INSTITUIDAS PELO REGULAMENTO 2080/92, DO CONSELHO, DE 30 DE JUNHO, CUJOS OBJECTIVOS CONSTITUEM NOMEADAMENTE O FOMENTO DA UTILIZAÇÃO ALTERNATIVA DE TERRAS AGRÍCOLAS E O DESENVOLVIMENTO DE ACTIVIDADES FLORESTAIS NAS EXPLORAÇÕES AGRÍCOLAS. DISPÕE SOBRE AS AJUDAS AOS INVESTIMENTOS, SEUS NÍVEIS, PAGAMENTO E CUSTOS MÁXIMOS, BEM COMO SOBRE OS BENEFICIÁRIOS, RESPECTIVOS COMPROMISSOS, CANDIDATURAS, TRAMITAÇÃO PROCESSUAL DAS MESMAS E CELEBRAÇÃO DE C (...)

  • Tem documento Em vigor 1996-01-31 - Decreto-Lei 6/96 - Presidência do Conselho de Ministros

    Revê o Código do Procedimento Administrativo (CPA), aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro.

  • Tem documento Em vigor 1996-11-29 - Decreto-Lei 229/96 - Ministério da Justiça

    Cria o Tribunal Central Administrativo definindo a sua organização, funcionamento e competências. Altera o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pelo Dec Lei 129/84 de 27 de Abril e a Lei de Processo nos Tribunais aprovada pelo Dec Lei 267/85 de 16 de Julho. O Tribunal Central Administrativo é um Tribunal Superior de jurisdição administrativa e fiscal tendo jurisdição em todo o território nacional e compreende duas secções, uma de contencioso administrativo (1ª secção) e outra de contenc (...)

  • Tem documento Em vigor 1999-01-13 - Lei 3/99 - Assembleia da República

    Aprova a lei de organização e funcionamento dos Tribunais Judiciais.

  • Tem documento Em vigor 2008-08-28 - Lei 52/2008 - Assembleia da República

    Aprova a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais. Altera o Código de Processo civil, aprovado pelo Decreto-Lei 44129 de 28 de Dezembro de 1961, bem como o Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, o Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei 21/85 de 30 de Julho, o Estatuto do Ministério Público aprovado pela Lei 47/86 de 15 de Outubro, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 13/2002 de 19 de Fevereiro, o código d (...)

  • Tem documento Em vigor 2013-08-26 - Lei 62/2013 - Assembleia da República

    Estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário - Lei da Organização do Sistema Judiciário.

Ligações para este documento

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Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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