Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 242/2018
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de novembro ("LTC"), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 7.º, n.º 3, da Lei 34/2004, de 29 de julho, na redação dada pela Lei 47/2007, de 28 de agosto (adiante referida como "Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais" ou "LADT"), «na parte em que recusa proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela concreta situação económica das mesmas».
Para o efeito, o requerente alega que o Acórdão 591/2016 (acessível, assim como os demais adiante referidos, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) julgou inconstitucional a citada norma, juízo esse posteriormente reafirmado pelos Acórdãos n.os 86/2017 e 266/2017. Todas estas decisões transitaram em julgado.
2 - Notificado para, querendo, se pronunciar sobre o pedido, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Presidente da Assembleia da República nada disse até ao termo do prazo legal de resposta.
3 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II. Fundamentação
A) Verificação dos pressupostos e delimitação do objeto do processo
4 - De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional em três casos concretos. Este preceito é reproduzido, no essencial, pelo artigo 82.º da LTC, o qual, em todo o caso, tem um conteúdo mais denso, dispondo que a iniciativa pertence a qualquer dos juízes do Tribunal Constitucional ou ao Ministério Público, devendo promover-se a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, previsto nesta mesma Lei.
Cumpre, em primeiro lugar, verificar o preenchimento dos pressupostos previstos nas normas citadas.
Não havendo dúvidas quanto à legitimidade ativa do representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional para formular o pedido sob apreciação, verifica-se também que a norma em apreço foi julgada inconstitucional, em sede de fiscalização concreta, em três casos, sobre que incidiram os citados Acórdãos. Acresce não existir divergência quanto ao fundamento invocado pelos arestos em causa, decidindo-se em todos julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 7.º, n.º 3, da LADT «na parte em que recusa proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela concreta situação económica das mesmas». A mesma norma foi igualmente julgada inconstitucional pelas Decisões Sumárias n.os 398/2017, 298/2017, 477/2017 e 479/2017, posteriormente confirmadas pelos Acórdãos n.os 645/2017, 695/2017, 698/2017 e 699/2017, ainda não transitados.
Encontram-se, deste modo, preenchidos os pressupostos de que a Constituição e a lei fazem depender a apreciação do pedido de generalização do juízo positivo de inconstitucionalidade formulado em sede de fiscalização concreta.
Note-se que o Ministério Público junto deste Tribunal interpôs recurso obrigatório para o Plenário ao abrigo do disposto no artigo 79.º-D da LTC do Acórdão 645/2017 com fundamento na oposição desse aresto outros em que o Tribunal Constitucional se pronunciara pela não inconstitucionalidade da referida dimensão normativa (referindo, concretamente os Acórdão n.os 216/2010 e 671/2014). Na sua alegação de recurso, o Ministério Público concluiu nos termos seguintes:
«1.º - O artigo 7.º, n.º 3, da Lei 34/2004, de 29 de julho, na redação conferida pela Lei 47/2007, de 28 de agosto, estabelece que as pessoas coletivas com fins lucrativos não têm direito a proteção jurídica.
2.º - Tal norma, enquanto de forma "liminar e absoluta - ou seja, sempre e em qualquer circunstância" exclui a possibilidade da concessão de apoio judiciário - em qualquer das modalidades - a pessoas coletivas com fins lucrativos, é inconstitucional por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
3.º - Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.»
5 - Saliente-se, em todo o caso, que a norma objeto de tal juízo se aloja em preceito que, além das pessoas coletivas com fins lucrativos, também refere os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada. É o seguinte o teor do artigo 7.º, n.º 3, da LADT, ora em apreciação:
«As pessoas coletivas com fins lucrativos e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada não têm direito a proteção jurídica.»
Como referido, nos diversos julgamentos de inconstitucionalidade esteve apenas em causa a exclusão das pessoas coletivas com fins lucrativos do direito à proteção jurídica e o pedido reporta-se apenas à generalização do juízo positivo de inconstitucionalidade correspondente. Em consequência, o presente processo pode apenas incidir sobre a norma em causa na parte em que recusa proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela sua concreta situação económica, não podendo o Tribunal Constitucional apreciar, nesta sede, a estatuição idêntica referente aos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada contida naquele preceito.
B) As questões suscitadas pelo regime constitucional e infraconstitucional de proteção jurídica em matéria de acesso ao direito e aos tribunais
6 - O artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa garante a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesse legalmente protegidos», estabelecendo que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios económicos.
Esta garantia é imprescindível à proteção dos direitos fundamentais e, como tal, inerente à ideia de Estado de direito: sem prejuízo da sua natureza de direito prestacionalmente dependente e de direito legalmente conformado, a Constituição assegura a todos que não se pode ser privado de levar a respetiva causa à apreciação de um tribunal (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. I ao art. 20.º, p. 408). Além disso, o conteúdo deste direito não pode ser esvaziado ou praticamente inutilizado por insuficiência de meios económicos. Se os serviços de justiça não têm de ser necessariamente gratuitos, também não podem ser «tão onerosos que dificultem, de forma considerável, o acesso aos tribunais», pelo que «os encargos [com tal acesso terão] de levar em linha de conta a incapacidade judiciária dos economicamente carecidos e observar, em cada caso, os princípios básicos do Estado de direito, como o princípio da proporcionalidade e da adequação» (v. idem, ibidem, anot. VI ao art. 20.º, p. 411). Nesta perspetiva, a concessão de proteção jurídica garantidora do direito de acesso aos tribunais corresponde a uma dimensão prestacional de um direito, liberdade e garantia (v. idem, ibidem); não a uma simples refração do direito à segurança social (cf. idem, ibidem, p. 412).
7 - O sistema de acesso ao direito e aos tribunais consagrado na LADT destina-se, justamente, «a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o exercício ou a defesa dos seus direitos» (cf. o respetivo artigo 1.º, n.º 1). Em vista disso, o Estado desenvolve ações e mecanismos sistematizados de informação jurídica e de proteção jurídica (v. ibidem, artigo 1.º, n.º 2). A informação jurídica traduz-se em «ações [- realizadas de modo permanente e planeado -] tendentes a tornar conhecido o direito e o ordenamento legal, através de publicação e de outras formas de comunicação, com vista a proporcionar um melhor exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres legalmente estabelecidos» (artigo 4.º, n.º 1). Já a proteção jurídica «é concedida para questões ou causas judiciais concretas ou suscetíveis de concretização em que o utente tenha um interesse próprio e que versem sobre direitos diretamente lesados ou ameaçados de lesão» (artigo 6.º, n.º 2) e reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário. A primeira consiste no esclarecimento técnico sobre o direito aplicável a questões ou casos concretos nos quais avultem interesses pessoais legítimos ou direitos próprios lesados ou ameaçados de lesão, compreendendo ainda as diligências extrajudiciais que decorram diretamente do conselho jurídico prestado ou que se mostrem essenciais para o esclarecimento da questão colocada (artigo 14.º, n.os 1 e 2). O segundo compreende diversos tipos de apoio (artigo 16.º, n.º 1):
a) Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo;
b) Nomeação e pagamento da compensação de patrono;
c) Pagamento da compensação de defensor oficioso;
d) Pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo;
e) Nomeação e pagamento faseado da compensação de patrono;
f) Pagamento faseado da compensação de defensor oficioso;
g) Atribuição de agente de execução.
Saliente-se que, no tocante ao âmbito pessoal da proteção jurídica, a LADT estabeleceu, desde a sua redação originária, uma distinção entre pessoas singulares e pessoas coletivas: as primeiras têm direito a proteção jurídica, desde que demonstrem estar em situação de insuficiência económica; as segundas, fazendo prova de se encontrarem em tal situação, apenas tinham direito a proteção jurídica na modalidade de apoio judiciário (cf., respetivamente, os n.os 1 e 2 e o n.º 3 do artigo 7.º daquele diploma). E, tratando-se de causa relativa ao exercício do comércio, nem sequer a todas as modalidades de apoio judiciário (estavam excluídos o pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo e o pagamento de honorários de patrono nomeado e da remuneração do solicitador de execução designado) - ainda que, neste caso, em paralelo com o previsto para os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada e para os comerciantes em nome individual (cf. os artigos 7.º, n.º 3, e 16.º, n.º 3, da LADT, na sua redação originária).
De resto, a relevância do fim lucrativo da atividade projetava-se igualmente no critério aferidor da insuficiência económica. Assim, segundo o artigo 8.º, n.º 1, da versão originária da LADT, encontrava-se em situação de insuficiência económica «aquele [- pessoa singular ou coletiva -] que, tendo em conta fatores de natureza económica e a respetiva capacidade contributiva, não tem condições objetivas para suportar pontualmente os custos de um processo». Mas a insuficiência económica das sociedades, dos comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada devia ser aferida tendo em conta, designadamente, o volume de negócios, o valor do capital e do património e o número de trabalhadores ao seu serviço e os lucros distribuídos nos três últimos exercícios findos (cf. o n.º 3 do mesmo preceito).
Uma das alterações mais importantes introduzidas na LADT pela Lei 47/2007 respeitou justamente à exclusão do âmbito pessoal do sistema de acesso ao direito e aos tribunais das pessoas coletivas com fins lucrativos e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada. Com efeito, o anterior n.º 3 do artigo 7.º da LADT foi desdobrado, passando a lei a determinar o seguinte no citado artigo:
«3 - As pessoas coletivas com fins lucrativos e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada não têm direito a proteção jurídica.
4 - As pessoas coletivas sem fins lucrativos têm apenas direito à proteção jurídica na modalidade de apoio judiciário, devendo para tal fazer a prova a que alude o n.º 1 [- prova da insuficiência económica]». (itálicos aditados).
Em conformidade, o artigo 8.º, com a epígrafe «Insuficiência económica», passou a dispor apenas:
«1 - Encontra-se em situação de insuficiência económica aquele que, tendo em conta o rendimento, o património e a despesa permanente do seu agregado familiar, não tem condições objetivas para suportar pontualmente os custos de um processo.
2 - O disposto no número anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, às pessoas coletivas sem fins lucrativos.»
O legislador ordinário redefiniu, deste modo, o âmbito pessoal do sistema de acesso ao direito e aos tribunais. Às pessoas singulares, assegurou o acesso integral ao instituto da proteção jurídica em qualquer das suas modalidades (apoio judiciário e consulta jurídica); quanto às pessoas coletivas, o legislador separou as que prosseguem fins lucrativos daquelas que não têm fins lucrativos: estas últimas podem aceder à proteção jurídica, embora apenas na modalidade de apoio judiciário, conquanto façam prova da situação de insuficiência económica nos mesmos termos que as pessoas singulares (n.º 4 do artigo 7.º da LADT); já as pessoas coletivas com fins lucrativos (e bem assim os aludidos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada) não gozam do direito à proteção jurídica, independentemente da sua concreta situação económica (n.º 3 do artigo 7.º da LADT).
Ou seja, esta última norma, cuja inconstitucionalidade ora se aprecia, veda, de forma liminar e absoluta (isto é, sempre e em qualquer circunstância) o acesso daquele segundo grupo de sujeitos ao instituto da proteção jurídica, sem consideração pela sua concreta situação económica. Consequentemente, em relação a esses sujeitos, não há que indagar se têm ou não condições objetivas para suportar pontualmente os custos de um processo, já que, ainda que o resultado de tal indagação seja negativo - as pessoas coletivas em causa não têm condições objetivas para suportar os custos de um dado processo -, as mesmas pessoas não podem beneficiar de apoio judiciário. Por outras palavras, o citado n.º 3 do artigo 7.º da LADT, na redação vigente, exclui do sistema de acesso ao direito e aos tribunais - que se destina a concretizar no plano infraconstitucional a garantia constitucional de que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios económicos - todo um universo de sujeitos apenas com base na sua natureza de pessoas coletivas com fins lucrativos (e, bem assim, de estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada).
8 - O procedimento legislativo que culminou na aprovação da Lei 47/2007 não permite esclarecer inteira e cabalmente esta opção do legislador.
Com efeito, da exposição de motivos constante da Proposta de Lei 121/X (que esteve na origem da Lei 47/2007, de 28 de agosto), a única referência à exclusão das pessoas coletivas com fins lucrativos e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada do sistema de proteção jurídica é a afirmação da eliminação da possibilidade de concessão de apoio judiciário a tais entidades. No Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias respeitante a esta iniciativa legislativa não é feita qualquer referência à questão. Finalmente, na discussão na generalidade da citada Proposta de Lei, foi sublinhado pela Deputada Helena Terra que a citada eliminação se insere «numa lógica de moralização do atual sistema» (cf. Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 79, de 4 de maio de 2007, p. 68).
Na doutrina, Salvador da Costa destacou-se na justificação da solução encontrada, salientando que, além de o direito de acesso à justiça e aos tribunais ser essencialmente um direito individual da pessoa singular, existe uma significativa diferença entre quem tem de aceder a juízo no exercício de uma atividade organizada em termos de obtenção de lucro, em que os custos são repercutidos no preço do produto final, e aqueles que o fazem a outro título, ou seja, a generalidade dos cidadãos, circunstâncias essas que justificam um tratamento diferenciado (cf. Autor cit., O Apoio Judiciário, 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, p. 44). Acresce que «[a] ideia que está ínsita nesta diferenciação é a de que, no limite, ou seja, quando as referidas entidades não tiverem fundos para constituir advogado ou pagar a taxa de justiça e os encargos dos processos respetivos, inexiste motivo válido para sustentar a sua viabilidade porque, na verdade, estão a prejudicar a economia global» (v. idem, ibidem, p. 45).
9 - A verdade é que o direito infraconstitucional conheceu diferentes opções político-legislativas no respeitante à concessão de proteção jurídica (maxime, ao apoio judiciário) a pessoas coletivas com fins lucrativos. Dito de outro modo: o legislador foi oscilando entre a exclusão e a não exclusão das pessoas coletivas com fins lucrativos do acesso ao apoio judiciário.
Numa primeira fase, a assistência judiciária (antecessora da proteção jurídica) era atribuída aos «litigantes pobres» e às «pessoas coletivas de utilidade pública administrativa» (cf. o artigo 2.º do Decreto-Lei 33 548, de 23 de fevereiro de 1944), definindo-se os primeiros como «as pessoas cujos bens ou rendimentos, deduzidos os indispensáveis para a sua mantença e da família a seu cargo, sejam insuficientes para ocorrer às despesas normais do pleito». Nestes termos, o legislador começou por não estender às pessoas coletivas com fins lucrativos o direito a beneficiar da promoção pública no acesso aos tribunais.
Um segundo momento inicia-se em 1970, quando a assistência judiciária (compreendendo a dispensa, total ou parcial, de preparos e do prévio pagamento de custas, e bem assim o patrocínio oficioso) passou a ser concedida de modo igual a pessoas singulares e coletivas, com ou sem fins lucrativos (cf. o n.º 1 da Base I e o n.º 2 da Base II, ambas da Lei 7/70, de 9 de junho e o Regulamento da Assistência Judiciária nos Tribunais Ordinários, aprovado pelo Decreto 562/70, de 18 de novembro). Esta orientação foi seguida na reforma de 1987, já que a norma do n.º 4 do artigo 7.º do Decreto-Lei 387-B/87, de 29 de dezembro, na sua redação originária, atribuía às «pessoas coletivas e sociedades» (itálicos aditados) o direito a apoio judiciário (compreendendo, nos termos do artigo 15.º, n.º 1, «a dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas, ou o seu diferimento, assim como do pagamento dos serviços do advogado ou solicitador»), permitindo-lhes a demonstração da situação de insuficiência económica.
Num terceiro período, iniciado em 1996, o legislador modificou esta posição, tendo a Lei 46/96, de 3 de setembro, alterado a citada disposição do n.º 4 do artigo 7.º do Decreto-Lei 387-B/87 e aditado um n.º 5:
«4 - As pessoas coletivas de fins não lucrativos têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1.
5 - As sociedades, os comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada têm direito à dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas ou ao seu diferimento, quando o respetivo montante seja consideravelmente superior às possibilidades económicas daqueles, aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço.» (itálicos aditados)
Nesta intervenção legislativa, além de se suprimir o acesso ao pagamento dos serviços de advogado ou solicitador, restringiu-se significativamente - sem todavia o eliminar - o direito das pessoas coletivas com escopo lucrativo à dispensa de preparos e do pagamento de custas (ou seu diferimento). Esta solução foi mantida no âmbito da revisão do regime de acesso ao direito e aos tribunais operada pela Lei 30-E/2000, de 20 de dezembro (cf. o n.º 5 do respetivo artigo 7.º, de teor idêntico ao n.º 5 do artigo 7.º do Decreto-Lei 387-B/87, na redação dada pela Lei 46/96).
A alteração legislativa de 1996 foi justificada nos seguintes termos (cf. a exposição de motivos da Proposta de Lei 52/VII, que esteve na origem da Lei 46/96):
«2 - Nem a Constituição da República Portuguesa nem qualquer dos instrumentos internacionais a que Portugal está vinculado garante às sociedades civis e comerciais a concessão de apoio judiciário.
A esmagadora maioria das soluções de direito comparado, incluindo aquelas que revelam maior afinidade com a portuguesa, também não consagra para as sociedades o aludido benefício.
O regime português de recuperação das empresas estabelece para as sociedades referidas o pertinente e necessário em matéria de custas.
A natureza e o escopo finalístico das organizações económicas em causa não justificam que lhes seja concedido apoio judiciário.
Este facto e a necessidade de equilíbrio entre os recursos financeiros disponíveis e a garantia de acesso ao direito e aos tribunais dos cidadãos em geral justificam que às sociedades civis e comerciais não seja concedido o benefício de apoio judiciário.
Excecionam-se, porém, deste princípio os casos em que as possibilidades económicas das sociedades sejam consideravelmente inferiores ao valor dos preparos e das custas - mas nunca, note-se, para efeitos de concessão de patrocínio judiciário - por se afigurar que, nestes casos residuais, não se torna chocante a concessão daquele benefício.
Em nome do princípio da igualdade, porém, tal regime deve ser estendido aos comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e aos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada.
A alteração do n.º 4 e o aditamento do n.º 5 ao artigo 7.º do Decreto-Lei 387-B/87 traduzem, em conformidade, a consagração destes princípios.»
No âmbito da discussão na generalidade, esta opção legislativa foi justificada pelo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Justiça com base na inexistência, em termos de direito comparado, da figura do apoio judiciário para as sociedades com fins lucrativos, bem como na circunstância de se perceber mal e ser injusto «o facilitismo, o laxismo da concessão de apoio judiciário a entidades que se movem com intuitos lucrativos, o que acaba por gerar uma grave situação de desigualdade em relação ao comum dos cidadãos», e ainda no entendimento de que «o direito de acesso à justiça e aos tribunais é eminentemente um direito individual, da pessoa singular, do cidadão, e é nessa perspetiva que tem sido encarado, na vertente de que ninguém pode ser prejudicado com base na sua insuficiência económica» (cf. Diário da Assembleia da República, 1.ª série A, n.º 94, de 11 de julho de 1996, p. 3216). Mais adiante, em resposta a uma interpelação, aquele membro do Governo teve a oportunidade de clarificar:
«[A]té hoje ninguém pôs em dúvida que os comerciantes em nome individual, os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada [...], e, necessariamente, as sociedades comerciais gozam, como qualquer outra entidade, de apoio judiciário. O que o n.º 4 do artigo 7.º da proposta de lei vem dizer é que as sociedades - entenda-se, com fins lucrativos -, o estabelecimento individual de responsabilidade limitada e, por analogia, os comerciantes em nome individual, nas causas relativas ao exercício do comércio, não têm apoio judiciário, em princípio.
No entanto, no número seguinte da mesma norma, mitiga-se essa não concessão de apoio, prevendo que, em determinadas circunstâncias, aferidas por critérios mais ou menos objetivos, essas entidades que, por regra, deixarão de ter direito a apoio judiciário, mas que têm beneficiado dele até agora, poderão vir a obtê-lo se se constatar que entre a sua situação patrimonial e os custos da lide que propõem ou em que se têm de defender há, efetivamente, uma desproporção gravante que é necessário corrigir» (cf. ibidem, p. 3218; no mesmo sentido, v. as intervenções do Deputado Martinho Gonçalves, relator do parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, que salientou ainda que esta alteração legislativa teria a virtude de constituir um forte travão aos fortes abusos que vinham sendo cometidos nesta matéria: «[e]sta alteração terá, por certo, a virtude de, doravante, constituir um forte travão aos manifestos abusos que, em nome de uma crise económica de "chapéu largo", eram cometidos e limita aquele tipo de ação simulada para justificar pretensos créditos, com vista a uma evasão fiscal nociva e que urge combater» - v. ibidem, p. 3223).
Esta opção legislativa, estabelecida na vigência da atual Constituição, suscitou dúvidas de constitucionalidade, tendo tal critério sido apreciado diversas vezes pelo Tribunal Constitucional (quer quando inserido no Decreto-Lei 387-B/87, na redação dada pela a Lei 46/96, quer quando constante da Lei 30-E/2000) no tocante à sua compatibilidade com o disposto no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição. A jurisprudência constitucional, sempre em sede de fiscalização concreta, não foi uniforme. Na maioria dos casos, decidiu pela não desconformidade constitucional daquela solução (v. os Acórdãos n.os 97/99; 98/99; 167/99, 368/99, 428/99, 90/2000, 399/2004, 191/2005); todavia, em dois arestos, este Tribunal considerou-a inconstitucional (cf. os Acórdãos n.os 106/2004 e 560/2004).
10 - Como referido supra no n.º 7, tal regra acabou por ser revogada pela atual LADT, que, na redação originária do n.º 3 do artigo 7.º, restabeleceu o acesso universal ao apoio judiciário. Assim, neste quarto momento, o legislador determinou que as pessoas coletivas (com ou sem fins lucrativos) não beneficiariam de proteção jurídica na modalidade de consulta jurídica, mas gozariam do acesso ao apoio judiciário sempre que fizessem prova da sua situação de insuficiência económica. Neste período, desapareceram, pois, as dúvidas de constitucionalidade que haviam impendido sobre a norma anterior.
Este statu quo, como igualmente mencionado, foi alterado pela Lei 47/2007, que, por via da nova redação dada ao n.º 3 do artigo 7.º da LADT, recuperou solução normativa similar àquela que no período de 1996 a 2000 vigorara, em princípio, em relação às pessoas coletivas com fins lucrativos, mas sem salvaguardar a possibilidade de consideração das respetivas circunstâncias concretas. Isto é, a partir de uma abordagem puramente categorial, excluiu-as, de plano, do sistema de acesso ao direito e aos tribunais consagrado naquele diploma.
11 - O Tribunal Constitucional já apreciou, por diversas vezes, a conformidade constitucional desta norma em sede de fiscalização concreta, tendo proferido juízos divergentes.
Por um lado, há uma linha jurisprudencial que sufraga a não desconformidade constitucional da exclusão do acesso à proteção jurídica das pessoas coletivas com fins lucrativos. Tal posição - originariamente desenvolvida a propósito da norma similar que vigorou entre 1996 e 2004 (o n.º 5 do artigo 7.º do Decreto-Lei 387-B/87, na redação da Lei 46/96) -, foi assumida em relação à norma agora em crise pelos Acórdãos n.os 307/2009, 308/2009e 657/2009, e confirmado pelo Plenário no Acórdão 216/2010, proferido na sequência de recurso interposto com base no artigo 79.º-D da LTC (oposição de julgados). O entendimento que prevaleceu neste aresto foi posteriormente reiterado, por exemplo, nos Acórdãos n.os 230/2010, 236/2010, 237/2010, 258/2010, 259/2010, 300/2010, 406/2010, 447/2010, 193/2011, 454/2011, 468/2011, 541/2011, 548/2011, 41/2012, 58/2012, 671/2014.
No citado Acórdão 216/2010, reconhece-se a necessidade de, a propósito da apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 7.º, n.º 3, da LADT, na redação da Lei 47/2007, «efetuar uma visão sistémica da questão [tendo presente que aquela disposição] é mais restritiva que a lei anterior, no ponto em que exclui, sem qualquer ressalva, a possibilidade de concessão de apoio judiciário a pessoas coletivas com fins lucrativos» (cf. o n.º 13; itálico adicionado). Nesse sentido, são alinhadas diversas ordens de razões tendentes a reforçar a fundamentação do juízo negativo de inconstitucionalidade alcançado na jurisprudência anterior.
Desde logo, a inexistência de comparabilidade entre as pessoas singulares e as pessoas coletivas com fins lucrativos no que tange ao acesso à proteção jurídica - a que acresce a sustentação do direito de acesso aos tribunais no princípio da dignidade da pessoa humana -, inferindo-se assim a ausência de imposição constitucional de o atribuir a estas últimas.
Depois, a incompatibilidade da concessão do apoio judiciário a pessoas coletivas com fins lucrativos com a injunção constitucional de assegurar o regular e concorrencial funcionamento do mercado, porquanto o Estado estaria a financiar pessoas coletivas inviáveis ou insolventes - justamente aquelas que não têm condições para custear as despesas próprias do acesso à justiça.
Argumenta-se, ainda, que a eventual restrição ao direito de acesso à justiça e aos tribunais pela norma em crise não é injustificada nem arbitrária, cabendo ao legislador democrático a concretização prática do conceito de insuficiência económica e admitindo, por isso, a consideração da situação de disponibilidade económica que a ordem jurídica impõe tipicamente às pessoas coletivas com fins lucrativos. Nesse sentido, refere-se, por exemplo, que, em conjugação com o novo regime das custas processuais - que isenta de custas as sociedades, civis ou comerciais (e os estabelecimentos de responsabilidade limitada) que estejam em situação de insolvência ou em processo de recuperação de empresa, salvo no que respeita às ações que tenham por objeto litígios relativos ao direito do trabalho (cf. o artigo 4.º, n.º 1, alínea u), do Regulamento das Custas Processuais ("RCP"), aprovado pelo 75/2000, de 9 de Maio, 35 781, de 5 de Agosto de 1946 e 108/2006, de 8 de Junho.">Decreto-Lei 34/2008, de 26 de fevereiro) -, a solução em apreciação não inviabiliza totalmente o direito de acesso à justiça, já que as pessoas coletivas que se encontram em situação verdadeiramente deficitária beneficiam de isenção de custas em todos os processos (exceto os do foro laboral, como assinalado), não carecendo, por isso, de qualquer apoio.
Invoca-se, por fim, que os custos derivados de contencioso conexo com a atividade económica da empresa podem ser deduzidos aos seus rendimentos, pelo que, apesar de serem suportados inicialmente, acabam por ser abatidos para efeitos de determinação da matéria coletável. Mas, mesmo nos casos em que a ação é alheia à atividade económica da empresa, deverão ser efetuados seguros para prevenir situações de responsabilidade civil, sendo certo que são também considerados custos, dedutíveis à matéria coletável.
A outra linha jurisprudencial - desenvolvida também no seguimento das decisões proferidas com referência à norma de 1996 - consta dos Acórdãos n.os 279/2009, 591/2016, 86/2017 e 266/2017. Tais arestos julgaram inconstitucional o critério normativo em crise, com fundamento na violação do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, na parte em que recusa proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela sua concreta situação económica. Ademais, o Tribunal vem, em conferência, revogando as decisões sumárias que ajuizaram pela conformidade constitucional da norma (cf. Acórdãos n.os 594/2016 e 350/2017) e confirmando aquelas que julgaram a inconstitucionalidade da norma (Acórdãos n.os 695/2017, 698/2017, e 699/2017), sinalizando uma reponderação da sua jurisprudência no sentido da inconstitucionalidade da regra contida no artigo 7.º, n.º 3, da LADT.
Esta jurisprudência assenta em dois argumentos principais.
Em primeiro lugar, não obstante reconhecer que a Constituição não impõe ao legislador um tratamento que abstraia de todas as diferenças existentes entre os diversos tipos de sujeitos jurídicos nem da relevância que para os mesmos tem a concessão de proteção jurídica enquanto dimensão do direito de acesso aos tribunais, entendeu o Tribunal não poder fazer-se a consideração dessas diferenças para concessão da proteção jurídica de modo tal que a impeça em absoluto ou de modo desproporcionado. Ora, é justamente isso que sucede na norma posta em crise, já que o legislador, de forma absoluta e liminar, proíbe o acesso à proteção jurídica de toda uma categoria de pessoas jurídicas, sem admitir em caso algum a demonstração da sua situação de insuficiência económica, seja qual for o circunstancialismo envolvente de tais sujeitos.
Em segundo lugar, a jurisprudência mais recente (Acórdãos n.os 591/2016, 86/2017, 266/2017) convoca a interpretação que o Tribunal de Justiça fez do artigo 47.º, terceiro parágrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ("CDFUE") no seu Acórdão de 22 de dezembro de 2010, DEB Deutsche Energiehandels-und Beratungsgesellschaft mbH c. República Federal da Alemanha, Processo C-279/09 (acessível a partir de http://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?language=en&num=C-279/09) - no sentido de que tal norma se opõe à exclusão em termos gerais e abstratos do acesso de uma dada categoria de sujeitos de direito, como as pessoas coletivas com fins lucrativos, ao apoio judiciário - para determinar, no quadro da visão sistémica referida pelo Acórdão 216/2010, a necessidade de estender tal proteção também às áreas não cobertas pelo direito da União Europeia, sob pena de se gerar uma desigualdade arbitrária entre a posição jurídica das pessoas coletivas que litiguem em áreas cobertas ou não cobertas por normas de direito da União Europeia.
12 - Uma primeira questão a resolver é a de saber se o direito à proteção jurídica em caso de insuficiência económica é atribuído pela Constituição às pessoas coletivas com fins lucrativos ou se, abinitio, se trata de um direito fundamental de que aquele círculo de sujeitos não pode ser titular.
Como se percebe, a resposta que se dê a este problema é determinante: se as pessoas coletivas com fins lucrativos não forem titulares do direito à proteção jurídica - enquanto vertente do direito à tutela jurisdicional efetiva -, a opção consagrada no artigo 7.º, n.º 3, da LADT de as excluir, em termos gerais e abstratos, do sistema de acesso ao direito e aos tribunais consagrado nesse diploma não viola o disposto no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição; se a resposta for afirmativa, importará, então, definir o conteúdo essencial e mínimo do direito fundamental à proteção jurídica para efeitos de garantia do acesso aos tribunais de acesso aos tribunais e analisar se, no quadro legal vigente, o mesmo se encontra salvaguardado no que respeita às pessoas coletivas que prosseguem fins lucrativos.
Neste segundo momento, e sem prejuízo de o parâmetro de um eventual juízo de inconstitucionalidade a emitir pelo Tribunal Constitucional no presente caso ser necessariamente a Constituição (cf. o seu artigo 277.º, n.º 1), deverá considerar-se, em atenção a uma visão sistémica do ordenamento jurídico aplicável em Portugal e à respetiva importância para a interpretação de preceitos relativos a direitos fundamentais, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ("TEDH") quanto ao artigo 6.º, § 1, primeira frase da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ("CEDH") e, bem assim, à jurisprudência do Tribunal de Justiça no caso DEB, a propósito do artigo 47.º da CDFUE.
Na consideração da Convenção, importará não esquecer o disposto no seu artigo 53.º (Salvaguarda dos direitos do homem reconhecidos por outra via):
«Nenhuma das disposições da presente Convenção será interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos do homem e as liberdades fundamentais que tiverem sido reconhecidos de acordo com as leis de qualquer Alta Parte Contratante ou de qualquer outra Convenção em que aquela seja parte.»
E o mesmo deverá suceder relativamente aos artigos 52.º, n.º 3, e 53.º (Nível de proteção) da Carta:
«[52.º-3] Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela [CEDH], o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla»
«[53.º] Nenhuma disposição da presente Carta deve ser interpretada no sentido de restringir ou lesar os direitos do Homem e as liberdades fundamentais reconhecidos, nos respetivos âmbitos de aplicação, pelo direito da União, o direito internacional e as Convenções internacionais em que são Partes a União ou todos os Estados-Membros, nomeadamente a [CEDH], bem como pelas Constituições dos Estados-Membros»
Acresce que, à semelhança - ou até por maioria de razão - do que este Tribunal já afirmou em relação à Declaração Universal dos Direitos do Homem enquanto cânone interpretativo em matéria de direitos fundamentais previsto no artigo 16.º, n.º 2, da Constituição, a abertura constitucional em matéria de direitos fundamentais tem o sentido «de alargar a cobertura constitucional dos direitos fundamentais e não o de a restringir ou limitar, extensiva ou intensivamente. Vale por dizer que o n.º 2 do artigo 16.º da Constituição funciona apenas do "lado" jurídico-individual dos direitos fundamentais e quando não conduza a uma solução menos favorável aos direitos fundamentais do que a interpretação "endógena" da Constituição. Deve intervir aqui o princípio da preferência de aplicação das normas consagradoras de um nível de proteção mais elevado, à semelhança do que prescrevem os artigos 52.º, n.º 3, e 53.º da [CDFUE] (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 368)» (assim, v. o Acórdão 121/2010, n.º 21; itálico adicionado).
C) A titularidade do direito fundamental à proteção jurídica em caso de insuficiência de meios económicos por pessoas coletivas com fins lucrativos e a inadmissibilidade da sua eliminação em termos gerais e abstratos por opção do legislador ordinário
13 - Segundo o artigo 12.º, n.º 2, da Constituição, «as pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza». E não cabe qualquer dúvida que também as pessoas coletivas têm o direito de aceder aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. O mesmo é dizer que o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição é compatível com a sua natureza. Nesse sentido, afirmou este Tribunal no seu Acórdão 279/2009:
«O legislador constitucional português consagrou as pessoas coletivas de direito privado como sujeitos titulares de direitos (e deveres) fundamentais.
Efetivamente, o direito fundamental dos cidadãos constituírem associações e sociedades seria desprovido de eficácia se as novas entidades jurídicas assim criadas não fossem também constitucionalmente tuteladas no plano dos direitos fundamentais.
Por isso, nos termos do n.º 2, do artigo 12.º da Constituição, "as pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza".
De acordo com esta norma constitucional, as pessoas coletivas não são equiparadas às pessoas singulares.
Na verdade, «as pessoas coletivas só têm os direitos compatíveis com a sua natureza, ao passo que as pessoas singulares têm todos os direitos, salvo os especificamente concedidos apenas a pessoas coletivas (v.g., o direito de antena). E tem de reconhecer-se que, ainda quando certo direito fundamental seja compatível com essa natureza e, portanto, suscetível de titularidade "coletiva" (hoc sensu), daí não se segue que a sua aplicabilidade nesse domínio vá operar exatamente nos mesmos termos e com a mesma amplitude com que decorre relativamente às pessoas singulares (Cfr. JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, pág. 113, da edição de 2005, da Coimbra Editora).
No que respeita à capacidade jurídica, as pessoas coletivas em geral são titulares dos direitos conducentes à prossecução dos fins para que existam.
A Constituição atribui às pessoas coletivas alguns dos direitos fundamentais reconhecidos às pessoas físicas que sejam necessários ao exercício daqueles direitos desde que compatíveis com a sua natureza.
Entre esses direitos encontra-se a possibilidade de fazer valer os seus direitos e interesses legítimos perante os tribunais em iguais condições e com os mesmos meios de defesa que as pessoas físicas (vide ÁNGEL GÓMEZ MONTORO, em "La titularidad de derechos fundamentales por personas jurídica: un intento de fundamentácion", in Revista Espanola de Derecho Constitucional, Ano 22, n.º 65, 2002, pp. 100-101).
Na verdade, como a suscetibilidade de demandar e ser demandado judicialmente não exige um suporte puramente humano, impõe-se entender que o direito fundamental de acesso ao Direito e aos tribunais é perfeitamente compatível com a natureza das pessoas coletivas.
Numa sociedade caracterizada pela proibição de autodefesa e pela garantia de acesso aos tribunais, as pessoas coletivas, tal como sucede com as pessoas singulares, têm necessidade de demandar judicialmente outras entidades para efetivação dos seus direitos (v.g., direitos de crédito), assim como têm necessidade de deduzir a sua defesa nas ações em que sejam demandadas por terceiros (v.g., ações de responsabilidade civil contratual ou extracontratual, incluindo os pertinentes procedimentos cautelares).»
No Acórdão 216/2010, acrescentou-se:
«Não há dúvida de que a garantia de acesso ao direito e aos tribunais é um direito compatível com a natureza das pessoas coletivas; aliás, é bem certo que as entidades jurídicas que se dedicam a uma determinada atividade económica em busca de lucro suportam um elevado risco de se verem demandadas, ou de ter que demandar, aquelas com quem celebram os negócios que representam verdadeiramente o cerne da vida empresarial».
Deste modo, se quanto aos direitos fundamentais compatíveis, há que ter em conta o princípio da especialidade (segundo o qual pessoas coletivas só têm capacidade de gozo dos direitos necessários ou convenientes aos seus fins - cf. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012, p. 118), surge claro que a litigância judicial constitui uma competência necessária para o exercício da atividade daquele leque de sujeitos.
14 - Sucede que, como mencionado, o artigo 7.º, n.º 3, da LADT, na redação dada pela Lei 47/2007, retira a tal categoria de sujeitos uma das dimensões essenciais do direito de acesso aos tribunais para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos: o direito à proteção jurídica em caso de insuficiência económica. Com base numa consideração puramente estatutária ou categorial - as pessoas coletivas com fins lucrativos (e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada) não podem ter uma insuficiência económica que os impeça de aceder à justiça, uma vez que, pela sua própria natureza, devem encontrar-se dotadas de uma estrutura organizativa e financeira capaz de fazer face aos custos previsíveis da sua atividade, incluindo os que resultem da litigiosidade -, o legislador impede qualquer avaliação casuística, excluindo, desse modo, à partida, e de plano, a proteção jurídica necessária para que um sujeito integrado em tal categoria e realmente carecido de apoio aceda ao tribunal. Consequentemente, a referida dimensão da garantia fundamental de acesso ao direito e aos tribunais que proscreve a denegação de justiça por insuficiência de meios económicos não é aplicável a todos os sujeitos de direito, deixando, portanto, de ser universal (cf. o artigo 12.º da Constituição).
Na verdade, a norma em apreço nega a toda uma categoria de sujeitos o direito fundamental à proteção jurídica para efeitos de garantia do acesso aos tribunais, tornando possível que a justiça lhes seja denegada por insuficiência de meios económicos. Para que a mesma norma seja aplicada, releva exclusivamente a natureza jurídica de tais sujeitos, e não a sua eventual e concreta situação de insuficiência económica aferida por critérios adequados para o efeito e comparáveis com os que são aplicados às demais pessoas, singulares ou coletivas.
Apesar de a Constituição afirmar que a todos deve ser garantido o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos, o artigo 7.º, n.º 3, da LADT determina que tal garantia não se aplica certas categorias de sujeitos, nomeadamente às pessoas coletivas com fins lucrativos, independentemente de qualquer ponderação da situação concreta de cada um desses sujeitos. Apenas com base na respetiva natureza jurídica, o legislador ordinário exclui certas categorias de sujeitos de uma garantia que a Constituição pretende universal. A contradição valorativa é flagrante. E, nesse mesmo sentido, concluem Jorge Miranda e Rui Medeiros:
«O direito à proteção jurídica é compatível com a natureza das pessoas coletivas e, nessa medida, também lhes é aplicável. [D]eve entender-se que uma normação que vede, em termos genéricos e absolutos, a concessão de patrocínio judiciário gratuito às sociedades (e aos próprios comerciantes em nome individual e estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada) que provem que o valor das custas é consideravelmente superior às suas possibilidades económicas contraria a universalidade do direito de acesso aos tribunais [...].» (v. Autores cits.,Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. IX ao art. 20.º, p. 433)
Decerto que não é exigível neste domínio um tratamento que pura e simplesmente abstraia de todas as diferenças existentes entre os diversos tipos de sujeitos jurídicos nem da relevância que para os mesmos tem a concessão de proteção jurídica enquanto dimensão do direito de acesso aos tribunais e, portanto, como garantia da efetividade da tutela jurisdicional. Impõe-se, todavia, que a projeção de tais diferenças sobre os critérios de concessão da proteção em apreço não se faça de tal modo que a impeça em absoluto ou de modo desproporcionado.
Ou seja, para salvaguardar a universalidade do direito à proteção jurídica, é necessário que os critérios em causa sejam adequados e não inviabilizem a possibilidade de uma apreciação concreta da situação de insuficiência económica invocada por cada sujeito. Na verdade, gozando a categoria de sujeitos correspondente às pessoas coletivas com fins lucrativos do direito fundamental a litigar em juízo, esse direito não pode ser denegado de plano e abstraindo da eventual situação de insuficiência de meios económicos. Esse é um limite inultrapassável imposto ao legislador na modelação do apoio judiciário.
Como se referiu no Acórdão 279/2009, se tais pessoas coletivas com fins lucrativos «podem encontrar-se numa situação de insuficiência económica que não lhes permita suportar pontualmente os custos de um processo, incluindo o pagamento da compensação devida ao patrono», a sua exclusão do direito conferido pela parte final do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição tem como consequência que as mesmas fiquem em posição de «não conseguir defender os seus direitos e interesses legalmente protegidos em virtude de não poderem beneficiar da concessão do direito a proteção jurídica» (v. ibidem). Acresce não ser exato que uma pessoa coletiva com fins lucrativos cuja situação económica não permite custear as despesas de justiça esteja necessariamente insolvente. Diferentemente, pode uma pessoa coletiva estar «em situação económica difícil, sem apresentar propriamente um passivo muito relevante ou mesmo sequer algum passivo conducente à declaração de insolvência, mas, contudo, necessitar da concessão de apoio judiciário para efetivar e executar os seus créditos sobre os seus devedores» (Acórdão 279/2009). E, de todo o modo, caso estejam mesmo insolventes, nada justifica o seu afastamento da proteção jurídica, porquanto «todas as pessoas singulares, quer sejam ou não titulares de empresas, estão sob a incidência do regime da insolvência e não se mostram, por isso, genericamente excluídas da proteção jurídica» (v. ibidem).
Ora, a norma do artigo 7.º, n.º 3, da LADT, conforme mencionado, limita-se a proibir a concessão de proteção jurídica a toda a uma categoria de sujeitos, abstraindo, portanto, da sua situação concreta. Na ótica do legislador, o direito à proteção jurídica em causa não é compatível com a natureza das pessoas coletivas com fins lucrativos. Como afirmou o Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro na declaração de voto aposta ao Acórdão 279/2009, «comportando o apoio judiciário várias componentes, o que merece censura constitucional é a denegação de todas elas às sociedades comerciais, a absoluta postergação do direito à proteção jurídica, de plano, em todas as suas modalidades e seja qual for o circunstancialismo, atinente, designadamente, ao objeto do processo». Tais sujeitos são, deste modo, e por razões exclusivamente atinentes à sua própria natureza jurídica, excluídos do âmbito de proteção do segmento final do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
15 - No Acórdão 216/2010, sustentou-se, precisamente, que as pessoas coletivas com fins lucrativos não são titulares do direito à proteção jurídica consagrado no artigo 20.º, n.º 1, in fine, da Constituição, uma vez que as mesmas são estruturalmente distintas dos demais sujeitos de direito.
Este entendimento baseou-se, em primeiro lugar, na ideia de que tal direito irradia «do valor que é conferido à dignidade da pessoa humana. O acesso ao direito e à justiça é, aliás, um direito consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem» (Acórdão 216/2010). No fundo, como especialmente decorre dos Acórdãos n.os 548/2011, 41/2012 e 58/2012, defendeu-se não resultar das normas da CEDH - mormente do respetivo artigo 6.º (nem, tão-pouco, do artigo 10.º da citada Declaração) - uma imposição de apoio judiciário a pessoas coletivas com fins lucrativos (maxime às sociedades comerciais): no primeiro aresto, entendeu o Tribunal Constitucional que da jurisprudência do TEDH «não resulta consagrado qualquer entendimento com atinência específica à questão de inconstitucionalidade [então em causa] que impusesse diferente conclusão decisória»; nos outros dois, defendeu-se que «a afirmação de princípio de que toda a pessoa tem direito a um tribunal, independente e imparcial, "estabelecido pela lei", constante do invocado artigo 6.º da CEDH, assenta e projeta o seu âmbito primordial de ação tutelar na dignidade da pessoa humana, sendo legítimo que a lei, na margem de conformação normativa que lhe é expressamente reconhecida pela Convenção, regule a essa luz os termos e pressupostos de que depende a concessão de proteção jurídica às pessoas coletivas». Nessa medida, baseando-se aquele cânone apenas na tutela de pessoas singulares, entendeu-se não se retirar de tal padrão uma proteção das pessoas coletivas, admitindo-se por isso a conclusão da incompatibilidade de tal proteção com a natureza da personalidade coletiva (cf. declaração de voto do Conselheiro Benjamim Rodrigues aposta ao Acórdão 279/2009). No fundo, associa-se o direito à assistência e apoio judiciários à personalidade humana, inferindo-se daí a inexistência de imposição constitucional de o conceder a pessoas coletivas que prossigam o lucro.
Em segundo lugar, entendeu-se que a norma em causa, por força do regime das custas processuais que isenta de custas as sociedades, civis ou comerciais, e os estabelecimentos de responsabilidade limitada que estejam em situação de insolvência ou em processo de recuperação de empresa, salvo no que respeita às ações que tenham por objeto litígios relativos ao direito do trabalho (cf. o artigo 4.º, n.º 1, alínea u), do Regulamento das Custas Judiciais, aprovado pelo 75/2000, de 9 de Maio, 35 781, de 5 de Agosto de 1946 e 108/2006, de 8 de Junho.">Decreto-Lei 34/2008, de 26 de fevereiro), não inviabiliza totalmente o direito de acesso à justiça, já que as pessoas coletivas que se encontram em situação verdadeiramente deficitária, beneficiam de isenção de custas em qualquer processo (exceto de foro laboral, como assinalado), não carecendo, por isso, de qualquer apoio.
Em terceiro lugar, e principalmente, defendeu-se constituírem as pessoas coletivas com fins lucrativos um leque de sujeitos estruturalmente distintos das pessoas individuais. Sustentou-se que aquelas têm necessariamente de fazer provisões financeiras na planificação da sua atividade normal, tendo assim condições para aí integrar os custos próprios da litigância e repercuti-los no custo final dos bens e serviços fornecidos: «devem, por imposição legal, integrar na sua atividade económica os custos com a litigância judiciária que desenvolvem, assim assegurando a proteção dos interesses patrimoniais da universalidade dos credores e do próprio interesse geral no desenvolvimento saudável da economia. Já quanto ao cidadão comum, bem se deve reconhecer que tais custos representam, em regra, uma despesa excecional e episódica». Acresce o facto de as despesas suportadas pelas pessoas coletivas acabarem por ser abatidas para efeitos de matéria coletável (coisa que não sucede com o regime tributário das pessoas singulares). No fundo, o Tribunal entendeu não serem equiparáveis, para efeitos de promoção do acesso à justiça e aos tribunais, as pessoas coletivas com fins lucrativos com as demais, porquanto nelas se não verifica a específica situação de insuficiência de meios económicos pressuposta pela Constituição para a consagração daquele direito.
Para esta conclusão, concorre, sobretudo, o facto de a integração daqueles custos empresariais ser até um pressuposto normativo para a sua existência jurídica, daí se inferindo não ser o direito ao apoio judiciário compatível com a natureza daquelas pessoas coletivas: ao existirem, fazendo por isso provisões para a litigância própria da atividade que desenvolvem, não se encontram na situação de insuficiência a que alude a parte final do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição. Já no respeitante aos custos dos litígios que se coloquem fora da sua atividade económica normal, entendeu-se que aquelas pessoas coletivas estão em condições de utilizar mecanismos de seguro e de prevenção que são igualmente integrados nos custos da atividade, colocando-as em posição distinta da que enfrentam as pessoas singulares e as pessoas coletivas sem escopo lucrativo. Assim, a sua situação não seria equiparável à das pessoas singulares nem à das pessoas coletivas de fim não lucrativo para efeitos de promoção pelo Estado de acesso à justiça, razão pela qual a Constituição não obrigaria a estender o direito à assistência jurídica àquele leque de sujeitos.
A isto se acrescentou que o facto de uma pessoa coletiva com escopo lucrativo não estar em condições de suportar os custos inerentes a um processo judicial no quadro da sua normal atividade «evidencia a inviabilidade económica da empresa e, no limite, poderá determinar a respetiva falência, favorecendo o desenvolvimento saudável da livre economia, uma vez que o Estado deve promover prioritariamente o acesso à justiça das pessoas singulares e entidades sem fins lucrativos, em detrimento da opção de financiamento público dos custos inerentes à atividade normal e lucrativa das empresas» (Acórdão 216/2010). Entendeu-se, em suma, que quando tais entidades não tiverem recursos financeiros para custear as despesas judiciárias, não existe «motivo para sustentar a sua viabilidade porque, na verdade, estão a prejudicar a economia global» (Salvador da Costa, ob. cit., p. 45), sendo por isso legítima a conclusão de que não quis o legislador constitucional abrangê-las. Aliás, apoiá-las financeiramente em tais circunstâncias até redundaria na criação de distorções e de ineficiências no funcionamento dos mercados.
16 - Como decorre do anteriormente exposto, esta linha de argumentação, partindo embora da inequívoca universalidade da garantia do acesso à justiça, procura autonomizar uma das suas vertentes, nomeadamente o direito à proteção jurídica entendido como direito a não ver impedido o acesso aos tribunais por razões de insuficiência de meios económicos, considerando a mesma como incompatível com a natureza das pessoas coletivas com fins lucrativos. Consequentemente, tais pessoas coletivas não seriam titulares do direito fundamental em causa, não estando o legislador ordinário por isso vinculado a salvaguardar minimamente tal direito.
Ora, tal entendimento não se afigura admissível devido, por um lado, à indissociabilidade entre o direito de acesso aos tribunais e a garantia de a eles aceder em caso de insuficiência de meios económicos; e, por outro lado, em virtude de não estar demonstrada a impossibilidade de, por natureza, aquele tipo de sujeitos se ver inibido ou impedido de recorrer à justiça por razões económicas.
Mas, para além disso, e acrescendo às razões literais e teleológicas inerentes ao próprio artigo 20.º, n.º 1, da Constituição já indicadas supra no n.º 14, que contrariam uma opção legislativa como a consagrada no artigo 7.º, n.º 3, da LADT, a verdade é que o citado entendimento se baseia em pressupostos que não são exatos e não considera os desenvolvimentos mais recentes quanto à interpretação dos direitos fundamentais consagrados na CDFUE, nomeadamente no seu artigo 47.º (Direito à ação e a um tribunal imparcial).
Assim, e desde logo, a isenção de custas legalmente prevista não visa salvaguardar - nem salvaguarda - a proteção jurídica constitucionalmente garantida (cf. infra a Secção D). Depois, nada na jurisprudência do TEDH se opõe à concessão de apoio judiciário a pessoas coletivas com fins lucrativos; aliás, bem pelo contrário, como resulta da evolução jurisprudencial sobre a matéria em diálogo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, (cf. infra a Secção E). Finalmente, o direito a uma proteção jurisdicional efetiva garantido pelo artigo 47.º da CDFUE pode exigir, dependendo das circunstâncias do caso concreto, justamente, a concessão de apoio judiciário a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem que tal possa ser considerado como disfuncional relativamente às regras da concorrência num mercado eficiente (cf. infra a Secção F).
17 - Em primeiro lugar, o Tribunal Constitucional já declarou que o direito de acesso aos tribunais tem como dimensão inerente a garantia de não ser denegada a justiça por falta de meios económicos (Acórdão 316/95). Ora, tratando-se de uma simples vertente do direito de acesso aos tribunais, a unidade de conteúdo do mesmo direito postula prima facie que os respetivos titulares possam beneficiar de todas as suas faculdades. Na sua unidade, o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição assegura a todos o acesso aos tribunais independentemente da condição económica. Isto, naturalmente, sem prejuízo de diferenciações justificadas pela diferença típica de necessidades de apoio, a apreciar caso a caso.
Como se disse no Acórdão 962/96, a Constituição impõe a garantia de acesso ao apoio judiciário «em todos os casos de insuficiência económica, em ordem à concretização do direito ao tribunal. Para mais, este direito é garantido a "todos" pela Constituição». Na verdade, o direito de acesso aos tribunais seria meramente formal ou teórico se, ao ser conferido a pessoas coletivas com fins lucrativos, não cobrisse a eventualidade de estas se não encontrarem em condições de fazer face às respetivas despesas. Ora, sendo a universalidade especialmente sublinhada pela Constituição no próprio texto do artigo 20.º (ao sublinhar que "a todos" é garantido o acesso ao direito e aos tribunais), a garantia constitucional de acesso ao tribunal abrange, necessariamente, o direito a não ser privado da tutela jurisdicional por força da insuficiência de meios económicos.
No fundo, a dimensão garantística (segundo a qual ninguém pode ser impedido de recorrer a tribunal por força da sua condição económica) é incindível do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva: sendo atribuído a pessoas coletivas com fins lucrativos o direito de acesso aos tribunais, este direito não pode ser postergado por não existirem os mecanismos para a sua tutela económica (cf. Ángel Gómez Montoro, "La titularidad de derechos fundamentales por personas jurídicas: un intento de fundamentación", cit. no Acórdão 279/2009).
18 - Em segundo lugar, também não procedem os argumentos da incompatibilidade estrutural daquele direito com o escopo lucrativo do leque de sujeitos em causa, raciocínio que assenta, por um lado, na convicção de que a condição de insuficiência económica pressuposta pela Constituição na parte final do n.º 1 do artigo 20.º se não verifica, por natureza, nestes sujeitos; e, por outro lado, na consideração de que aquela garantia irradia do princípio da dignidade da pessoa humana e, por isso, apenas é imposto para as pessoas singulares.
Este segundo aspeto será objeto de análise detalhada mais adiante (v. infra a Secção E). De todo o modo, certo é que o TEDH tem declarado por diversas vezes que as pessoas coletivas com fins lucrativos são titulares de muitos dos direitos previstos na CEDH (assim, por exemplo, no que respeita à liberdade de expressão consagrada no artigo 10.º - Acórdãos de 26 de abril de 1979, Sunday Times c. Reino Unido (Queixa n.º 6538/74); de 28 de março de 1990, Groppera c. Suíça (Queixa n.º 10890/84); de 20 de novembro de 1989, MarktIntern c. Alemanha (Queixa n.º 10672/83); Acórdão do TEDH de 25 de janeiro de 2007, Vereinigung Bildender Kunstler c Áustria (Queixa n.º 68354/01) - à inviolabilidade do domicílio consagrada no artigo 8.º, referido às respetivas instalações empresariais - Acórdão de 16 de julho de 2002, Colas Est. C. França (Queixa n.º 37971/97) - e, justamente, ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva - Acórdãos de 9 de fevereiro de 2001, F. SPA c. Itália (n.º 39164/98) e de 24 de novembro de 2005, Capital Bank c. Bulgária (Queixa n.º 49429/99); v. também, Marius Emberland, The Human Rights of Companies - Exploring the structure of ECHR Protection, Oxford University Press, 2006, pp. 129 e ss.; Peter Oliver, "The protection of privacy in the economic sphere before the European Court of Justice", Common Market Law Review, vol. 46. 2009, p. 1445; Olivier de Schutter, "L'accès des personnes morales à la Cour européenne des droits de l'homme", Mélanges offerts à Silvio Marcus Helmons, Bruylant, Bruxelas, p. 91; e Nicholas Bratza,"The implications of the Human Rights Act 1998 for Commercial Practice", European Human Rights Law Review, 2000, n.º 1, p. 7).
No que se refere à invocada incompatibilidade estrutural da garantia do acesso à justiça com a prossecução de fins lucrativos, a verdade é que é possível que pessoas coletivas com tais fins se vejam efetivamente colocadas em situação de insuficiência económica para suportar os custos de uma ação judicial, estejam ou não em situação de insolvência, e possam ou não repercutir tais despesas na sua atividade financeira.
O argumento segundo o qual se verificaria, nesse caso, a inviabilidade económica do sujeito em causa - obrigando à abertura de um processo de insolvência (sob pena de se prejudicar a economia, segundo defende Salvador da Costa, ob. cit., p. 45) - é frágil, desde logo porque não contempla situações pontuais e não previstas nem previsíveis em que a sociedade seja colocada numa situação em que se tenha de defender judicialmente de imputações que lhe sejam feitas. Recorde-se que as multas, coimas e demais encargos, incluindo juros compensatórios ou moratórios, assim como indemnizações pela verificação de riscos não seguráveis nem sequer são dedutíveis fiscalmente (cf. o artigo 23.º-A, n.º 1, alíneas e) e g), do Código do Imposto sobre as Pessoas Coletivas, aditado a este Código pela Lei 2/2014, de 16 de janeiro).
É igualmente possível que certa pessoa coletiva (uma sociedade por quotas, por exemplo) não tenha um passivo superior ao seu ativo (e, por isso, não seja insolvente) mas que, em dada altura - especialmente em face de créditos que não foram cobrados - não esteja em condições de assegurar o pagamento das despesas inerentes a um litígio judicial, vendo-se impedida (ou pelo menos inibida) de recorrer aos tribunais. Na verdade, a «insuficiência de meios económicos» a que alude a Constituição não se sobrepõe à situação de insolvência - entendida enquanto impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas ou como superioridade manifesta do passivo relativamente ao ativo (cf. o artigo 3.º, n.os 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ("CIRE"), aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março), sendo conjeturável a impossibilidade (ou pelo menos a inibição) do recurso à justiça por motivos económicos relativamente a pessoas que não se encontram numa situação de insolvência e que, rigorosamente, não são inviáveis nem devam extinguir-se.
Ademais, o regime da insolvência abrange igualmente, de forma genérica, pessoas coletivas sem fins lucrativos e pessoas singulares (cf. o artigo 2.º, n.º 1, do CIRE, sem que tal determine uma perda generalizada do acesso ao apoio judiciário em virtude da incapacidade de cumprir pontualmente as suas obrigações (v., neste sentido, já o Acórdão 279/2009). Nestes termos, a situação de insolvência - entendida tanto como impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, como enquanto superioridade manifesta do passivo relativamente ao ativo (cf. o artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIRE) -, só por si, não pode implicar como efeito automático a ablação da titularidade do direito fundamental a que se refere o n.º 1 do artigo 20.º da Constituição.
D) A garantia constitucional de proteção jurídica para acesso aos tribunais e o regime das custas processuais
19 - Um dos argumentos invocados no Acórdão 216/2010 é a de que, apesar do disposto no artigo 7.º, n.º 3, da LADT, as pessoas coletivas com fins lucrativos que verdadeiramente carecem de apoio judiciário já beneficiam de isenção de custas judiciais, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea u), do RCP (cf. supra os n.os 11 e 15).
Com efeito, a disposição em apreço consagra uma isenção de custas de que beneficiam as «sociedades civis ou comerciais, as cooperativas e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada que estejam em situação de insolvência ou em processo de recuperação de empresa, nos termos da lei, salvo no que respeita às ações que tenham por objeto litígios relativos ao direito do trabalho». Por força deste normativo, aquelas entidades não estão obrigadas a efetuar o pagamento da taxa de justiça devida nos processos em que intervenham, sendo que tal isenção se aplica não só ao próprio processo de insolvência ou ao processo especial de revitalização (o "PER", que substituiu, nos termos dos artigos 17.º-A a 17.º-J do CIRE, o citado processo de recuperação de empresa), mas também às restantes ações em que tais entidades sejam parte (com exceção das ações que tenham por objeto litígios relativos ao direito do trabalho).
Recorde-se que o «processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores» e que o PER se destina «a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização» (cf., respetivamente, os artigos 1.º, n.º 1, e 17.º-A, n.º 1, ambos do CIRE). A filosofia subjacente ao CIRE encontra-se sintetizada no n.º 3 do preâmbulo do Decreto-Lei 53/2004 que aprovou esse Código:
«O objetivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores.
Quem intervém no tráfego jurídico, e especialmente quando aí exerce uma atividade comercial, assume por esse motivo indeclináveis deveres, à cabeça deles o de honrar os compromissos assumidos. A vida económica e empresarial é vida de interdependência, pelo que o incumprimento por parte de certos agentes repercute-se necessariamente na situação económica e financeira dos demais. Urge, portanto, dotar estes dos meios idóneos para fazer face à insolvência dos seus devedores, enquanto impossibilidade de pontualmente cumprir obrigações vencidas.
Sendo a garantia comum dos créditos o património do devedor, é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efetivação dessa garantia, e é por essa via que, seguramente, melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado.
Quando na massa insolvente esteja compreendida uma empresa que não gerou os rendimentos necessários ao cumprimento das suas obrigações, a melhor satisfação dos credores pode passar tanto pelo encerramento da empresa, como pela sua manutenção em atividade. Mas é sempre da estimativa dos credores que deve depender, em última análise, a decisão de recuperar a empresa, e em que termos, nomeadamente quanto à sua manutenção na titularidade do devedor insolvente ou na de outrem. E, repise-se, essa estimativa será sempre a melhor forma de realização do interesse público de regulação do mercado, mantendo em funcionamento as empresas viáveis e expurgando dele as que o não sejam (ainda que, nesta última hipótese, a inviabilidade possa resultar apenas do facto de os credores não verem interesse na continuação).
Entende-se que a situação não corresponde necessariamente a uma falha do mercado e que os mecanismos próprios deste conduzem a melhores resultados do que intervenções autoritárias. Ao direito da insolvência compete a tarefa de regular juridicamente a eliminação ou a reorganização financeira de uma empresa segundo uma lógica de mercado, devolvendo o papel central aos credores, convertidos, por força da insolvência, em proprietários económicos da empresa.»
A aludida isenção de custas só vale enquanto se mantiverem pendentes os processos em causa. Assim, tal isenção deixa de existir quando haja desistência do pedido de insolvência ou quando este seja liminarmente indeferido ou julgado improcedente, por sentença. Por outro lado, proferida a sentença que declara a insolvência, tal determinará a constituição de uma massa insolvente, à qual já não é aplicável a referida isenção subjetiva.
20 - Na linha de argumentação do citado Acórdão, o legislador teria considerado que, no caso das pessoas coletivas com fins lucrativos, mesmo que estas se encontrem em situação de insuficiência económica, não existe fundamento para que tenham direito a proteção jurídica, salvo no quadro específico de um PER, em que se encontra prevista a respetiva isenção de custas. Deste modo, a eventual situação de insuficiência económica assumiria relevância naquela situação, hipótese em que o legislador considera verificados os pressupostos para a isenção subjetiva de custas, que, na prática, corresponde a uma das modalidades de apoio judiciário previstas no artigo 16.º, n.º 1 da LADT (cf. supra o n.º 7).
Subjacente ao regime do PER está uma perspetiva de proteção dos agentes económicos que, embora revelem dificuldades no cumprimento das suas obrigações, ainda se mostrem viáveis. Pretende-se facilitar a sua recuperação, propiciando as condições favoráveis para que sejam encetadas negociações com os credores (prevendo-se, por isso, a suspensão das ações instauradas para cobrança das suas dívidas e de eventuais processos de insolvência que entretanto tenham sido instaurados), de modo a que se possa alcançar um acordo que permita a revitalização da empresa (seguindo uma lógica similar, mas sem intervenção do juiz, veja-se o acordo de reestruturação previsto no âmbito do Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas, aprovado pela Lei 8/2018, de 2 de março).
O recurso ao PER pressupõe que uma empresa - entendida como «organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer atividade económica» (cf. o artigo 5.º do CIRE) - «esteja, comprovadamente, numa situação económica difícil ou de insolvência iminente (mas não atual - cf. o artigo 17.º-A, n.os 1 e 2, do mesmo Código). A situação de insolvência iminente ocorre nas situações em que a empresa está perante um conjunto de circunstâncias que, embora não tenha ainda levado a que esta se encontre numa situação de insolvência, poderão conduzi-la, num curto período de tempo, a tal situação. Trata-se de casos em que, embora o devedor não esteja impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (caso o estivesse, verificar-se-ia uma situação de insolvência atual - cf. ibidem, o artigo 3.º, n.º 1), se verifica, no entanto, essa impossibilidade em relação às obrigações ainda não vencidas, mas previsíveis a curto prazo. Já a situação económica difícil pressupõe que a empresa esteja a «enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito» (cf. o artigo 17.º-B do CIRE).
O PER inicia-se pela apresentação, em tribunal, pela empresa e, pelo menos, um dos seus credores, por meio de declaração escrita, da manifestação de vontade de encetarem negociações conducentes à revitalização daquela, por meio da aprovação de plano de recuperação (cf. o artigo 17.º-C, n.º 1, do CIRE). Ou seja, contrariamente ao processo de insolvência, que poderá ter início por impulso de outros interessados, o PER implica necessariamente a iniciativa da empresa em conjunto com, pelo menos, um dos seus credores. Esta deve apresentar, para o efeito, no tribunal competente para declarar a sua insolvência, requerimento em que comunique aquela manifestação de vontade, bem como uma série de informações, cumprindo salientar a relação de todos os credores, a relação de todas as ações e execuções que contra si estejam pendentes, a identificação da atividade ou atividades a que nos últimos três anos se dedicou e os estabelecimentos de que seja titular (cf. ibidem, o artigo 24.º, n.º 1), juntando uma proposta de plano de recuperação acompanhada da descrição da situação patrimonial, económica e financeira da empresa (cf. o artigo 17.º-C, n.º 3, do CIRE).
Apresentado tal requerimento, e havendo o processo de prosseguir, deverá ser proferido despacho de nomeação de administrador provisório (aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 32.º a 34.º do CIRE) - cf. o artigo 17.º-C, n.º 4, do citado Código. Seguidamente, a interessada deverá comunicar a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração escrita referida no n.º 1 do artigo 17.º-C do CIRE, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso e informando que a documentação a que se refere o n.º 1 do artigo 24.º e a proposta de plano se encontram patentes na secretaria do tribunal, para consulta (cf. artigo 17.º-D, n.º 1, do CIRE).
Com a prolação do despacho de nomeação de administrador provisório, produzem-se efeitos quer de natureza substantiva, quer de natureza processual.
Desde logo, um efeito de natureza substantiva, com repercussões importantes na esfera jurídica da empresa, é o impedimento de o devedor praticar atos de especial relevo, tal como definidos do artigo 161.º do CIRE, sem que previamente obtenha autorização para a operação pretendida por parte do referido administrador (cf. artigo 17.º-E, n.º 2, do CIRE).
Entre os efeitos processuais, cumpre destacar o impedimento à instauração de quaisquer ações de cobrança de dívidas contra o devedor durante o período das negociações e, durante todo o tempo em que estas perdurarem, a suspensão, quanto ao devedor, das ações em curso com idêntica finalidade (cf. o artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE). Por outo lado, uma vez publicado o referido despacho de nomeação do administrador judicial provisório, inicia-se um prazo para reclamação de créditos, após o qual é elaborada, pelo administrador judicial provisório, uma lista provisória de créditos, a qual, não sendo impugnada, se converterá em lista definitiva (cf. o artigo 17.º-D, n.os 2 a 4, do CIRE).
Após o decurso do prazo para impugnação dos créditos, a empresa requerente do PER e os credores dispõem do prazo de dois meses para concluir as negociações encetadas, e durante tal período a empresa está obrigada a prestar toda a informação pertinente aos seus credores e ao administrador judicial provisório que haja sido nomeado para que as mesmas se possam realizar de forma transparente e equitativa, devendo manter atualizada a informação facultada ao administrador judicial provisório e aos credores (cf. o artigo 17.º-D, n.º 6).
O procedimento negocial pode chegar ao fim com a aprovação de um plano de recuperação, em ordem à revitalização da empresa, ou pode terminar, antecipadamente ou no fim do prazo, sem que se tenha alcançado um acordo. No caso de o plano ser aprovado, o mesmo é sujeito a homologação judicial, após o que vincula os credores, mesmo os que não tenham intervindo nas negociações (cf. o artigo 17.º-H, n.º 10, do CIRE). Caso não se alcance o acordo necessário à aprovação de um plano de recuperação, o processo é encerrado e se, nessa data, o devedor ainda não se encontrar em situação de insolvência, o encerramento do PER acarreta a extinção de todos os seus efeitos (cf. o artigo 17.º-G, n.os 1 e 2). No caso de o devedor se encontrar já em situação de insolvência, o encerramento do PER determina a insolvência da empresa, a qual é declarada pelo juiz (cf. artigo 17.º-G, n.os 3 e 4 do CIRE).
21 - Assim, e como referido, na lógica do argumento em análise, as pessoas coletivas com fins lucrativos que se encontrem em situação de insuficiência económica para suportar os custos de uma ação judicial, mas não estejam em situação de insolvência atual, teriam necessariamente de dar início a um PER, que constituiria, desse modo, a única solução para poderem beneficiar de proteção jurídica, mais concretamente, de isenção de custas, nos termos acima expostos. O pressuposto é o de que só se justifica a proteção jurídica na modalidade considerada relativamente àquelas pessoas coletivas com fins lucrativos que se devam considerar em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente e que iniciem um PER.
Todavia, pode configurar-se a possibilidade de uma sociedade se encontrar numa situação em que não tem capacidade para, de imediato, assegurar o pagamento das despesas inerentes a um litígio judicial determinado, sem que, necessariamente, seja exigível que inicie um PER. É o caso, por exemplo, das situações em que a insuficiência tenha sobretudo como causa a existência de créditos vencidos e não pagos, hipótese em que aquela poderá ficar inibida de recorrer aos tribunais para cobrança dos mesmos. Deste modo, a insuficiência de meios económicos constitucionalmente relevante para efeito de salvaguarda do acesso à justiça pode, pelo menos em alguns casos, não ser sobreponível à situação económica difícil ou à situação de insolvência iminente justificativas do recurso a um PER.
Por outro lado, conforme decorre do regime deste processo, o mesmo pressupõe, não só, a iniciativa da empresa em situação económica difícil, mas também o acordo de, pelo menos, um dos seus credores, no sentido de encetarem negociações conducentes à revitalização daquela, por meio da aprovação de plano de recuperação (cf. artigo 17.º-C, n.º 1, do CIRE). Acresce que, tendo em vista os seus objetivos, este é um processo que implica, ou poderá implicar, a participação dos demais credores da empresa, determinando ainda, por parte desta, a disponibilização a terceiros (concretamente, aos seus credores) de um conjunto de informações e documentos respeitantes à sua vida interna (cf., por exemplo, os artigos 17.º-C, n.º 3, e 17.º-D, n.º 6, do mesmo diploma).
Saliente-se, por fim, que, uma vez proferido o despacho de nomeação de administrador judicial provisório, ocorre uma limitação importante no que respeita à autonomia e aos poderes de administração da empresa, uma vez que esta fica impedida de praticar atos de especial relevo, sem que previamente obtenha autorização daquele administrador (cf. o artigo 17.º-E, n.º 2, do CIRE).
22 - Em suma, a isenção de custas prevista no artigo 4.º, n.º 1, alínea u), do RCP relativamente às sociedades civis ou comerciais em situação de insolvência ou em processo especial de revitalização, devido aos pressupostos de cada uma dessas situações e, bem assim, às limitações à liberdade de empresa a elas associadas, não salvaguarda a proteção jurídica constitucionalmente devida àquele tipo de entidades, em ordem a assegurar-lhes que o acesso à justiça não lhes seja denegado por insuficiência de meios económicos. Aliás, nem é essa a sua função, mas antes - e somente - a de criar condições para que os processos de insolvência e os processos especiais de recuperação possam atingir os respetivos fins, ou seja, a satisfação dos direitos dos credores, seja por via da liquidação do património do devedor insolvente, seja por via da recuperação da empresa. Por outras palavras, a isenção de custas em análise, apesar de coincidir com uma das modalidades que pode revestir o apoio judiciário, não está funcionalizada ao direito fundamental à proteção jurídica para efeitos de garantia do acesso aos tribunais previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição. O exercício deste último por parte de sociedades civis ou comerciais pode justificar-se independentemente de as mesmas se encontrarem em qualquer uma das referidas situações de dificuldade económico-financeira, e tal exercício não pode ficar dependente de limitações da autonomia do titular do direito e, muito menos, ser colocado na dependência do acordo de outros particulares, nomeadamente dos credores.
E) A concessão de apoio judiciário a pessoas coletivas com fins lucrativos na jurisprudência do TEDH relativa ao artigo 6.º, § 1, da CEDH
23 - Apesar de todas as diferenças existentes entre o artigo 20.º, n.º 1, in fine, da Constituição e o artigo 6.º, § 1, primeira frase, da CEDH («[q]ualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente [...] por um tribunal [...]»), a verdade é que a jurisprudência do TEDH tem vindo a reconhecer um direito à proteção jurídica ancorado naquele preceito, direito esse cuja titularidade não é negada às sociedades comerciais. Bem pelo contrário.
Com efeito, e sem prejuízo de distinguir entre litígios civis e litígios penais, já que somente em relação a estes últimos se encontra expressamente previsto o apoio judiciário (cf. o artigo 6.º, § 3, alínea c), da CEDH), o TEDH salienta que a Convenção tem como fim proteger direitos concretos e efetivos, tais como o do acesso à justiça devido à importância do direito a um processo equitativo numa sociedade democrática. Ora, «é essencial à noção de processo equitativo, tanto no âmbito civil como no criminal, que uma parte tenha a possibilidade de defender eficazmente a sua causa junto de um tribunal e que beneficie das mesmas armas de que goza o seu adversário», deixando o citado artigo 6.º, § 1, ao Estado a escolha dos meios a utilizar para garantir tais direitos; a instituição de um sistema de apoio judiciário constitui um deles, mas há outros, como por exemplo, uma simplificação do processo (cf. entre muitos, o Acórdão de 15 de fevereiro de 2005, Steel e Morris c. Reino Unido (Queixa n.º 68416/01), §§ 59 e 60, e o Acórdão de 8 de novembro de 2016, (ver documento original) e (ver documento original) c. Lituânia (Queixa n.º 16580/09), § 43).
De todo o modo, o direito de acesso à justiça não é absoluto, podendo ser sujeito a limitações de facto ou de direito, as quais não serão incompatíveis com o artigo 6.º, desde que, sem prejudicarem a própria essência do direito, prossigam um fim legítimo e desde que exista uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregues e o fim prosseguido através da sua utilização (cf. (ver documento original) e (ver documento original), cit., § 44). A questão de saber se a atribuição de apoio judiciário é necessária para assegurar que o processo seja equitativo deve ser decidida em função dos factos e das circunstâncias particulares de cada caso (the specific facts and circumstances of each case) e depende, designadamente, da importância da causa para o requerente, da complexidade do direito e do procedimento aplicáveis, assim como da efetiva capacidade do requerente de defender a sua causa (cfr Steel e Morris, cit., § 61, e (ver documento original) e (ver documento original), cit., § 45). Assim, por exemplo, no caso (ver documento original) e (ver documento original), estando em causa o apoio judiciário requerido pela proprietária de uma empresa unipessoal de responsabilidade ilimitada (private unlimited liability company) e pelo seu marido destinado a causas conexas com a atividade profissional de cariz comercial da primeira, o TEDH considerou que os requerentes foram privados da oportunidade de apresentarem devidamente o seu caso aos tribunais nacionais, pelo que houve uma violação do artigo 6.º, § 1, da Convenção em virtude da recusa de prestação de apoio judiciário (cf. o respetivo § 54).
24 - O TEDH reconhece igualmente a inexistência de um consenso ou mesmo de uma tendência consolidada entre os Estados Parte na Convenção quanto à atribuição de apoio judiciário a pessoas coletivas (com ou sem fins lucrativos) para litígios civis (v. as Decisões de 26 de agosto de 2008, VP Diffusion Sarl c. França (Queixa n.º 14565/04) e de 24 de novembro de 2009, C.M.V.M.C. O'LIMO c. Espanha (Queixa n.º 33732/05), §§ 11-14; cf. também (ver documento original) e (ver documento original), cit., § 46). Não obstante, também em relação a tais entidades, deve o sistema de proteção jurídica instituído funcionar de forma não arbitrária, não desproporcionada e sem pôr em causa a substância «do direito de acesso a um tribunal» (cf. VP Diffusion Sarl, cit., e C.M.V.M.C. O'LIMO, cit., § 23). E, por isso, naquelas decisões, estando em causa a legislação nacional que vedava o acesso de sociedades comerciais ao apoio judiciário, o TEDH analisou a compatibilidade com o artigo 6.º da CEDH apenas por referência aos critérios de restrição daquele direito, apreciando se, apesar da medida normativa, se manteve a efetividade da tutela jurisdicional das pessoas coletivas em causa. Ou seja, confirmando a respetiva titularidade por esse tipo de sujeitos, e deslocando a análise para os requisitos da sua restrição (v. C.M.V.M.C. O'LIMO, cit., §§ 25 a 27). Em especial, no caso VP Diffusion Sarl, o TEDH considerou que a «distinção jurídica estabelecida no regime francês de apoio judiciário entre pessoas físicas e pessoas morais, com ou sem fins lucrativos, fundada no regime fiscal do apoio judiciário, não é arbitrária. As explicações dadas pelo Governo francês a este respeito demonstram que no direito francês existe uma base objetiva - as regras relativas ao imposto sobre as sociedades - que permite às sociedades comerciais, mesmo que tenham dificuldades financeiras, fazer face às despesas de um processo judicial».
Estes mesmos princípios foram reafirmados no Acórdão de 22 de março de 2012, Granos Organicos Nacionales S. A. c. República Federal da Alemanha (Queixa n.º 19508/07), nomeadamente nos seus §§ 45-47. Porém, nesta decisão, o TEDH foi mais longe e, seguindo neste particular análise similar à do Tribunal de Justiça no caso DEB (cf., em especial, o § 42 do Acórdão proferido neste caso; v. infra a Secção F), examinou os próprios critérios de restrição invocados pela instância nacional no caso concreto, não se satisfazendo com mera invocação dos dados normativos aplicáveis (§ 48): o argumento da reciprocidade - já que a requerente era uma sociedade comercial peruana - e o teste da não contrariedade da iniciativa processual (uma ação de indemnização) aos "interesses gerais" previsto no § 116, frase 1, n.º 2, da Zivilprozessordnung, assente na consideração de que uma pessoa coletiva só deve subsistir enquanto for capaz de prosseguir os seus fins com as suas próprias forças e pelos seus meios. Para o juízo de não desconformidade com a Convenção da posição assumida pelos tribunais alemães, revelaram-se decisivas, além da questão da reciprocidade (§ 49), as seguintes considerações (v. ibidem):
«51 - Para determinar se a restrição do direito de acesso a um tribunal pode ser considerada proporcional aos objetivos prosseguidos, considera o Tribunal necessário atribuir um peso específico às garantias processuais previstas na legislação interna. O Tribunal verifica que a ordem jurídica alemã prevê no artigo 14.º, § 3 (a) da Lei de Custas Judiciais [Gerichtskostengesetz] a possibilidade de pedir a dispensa da obrigação de antecipar o pagamento das custas judiciais, desde que o caso tenha alguma perspetiva de êxito e não se afigure abusivo (wanton), e, bem assim, desde que se mostre de forma substanciada que o pagamento imediato do valor de tais custas causaria dificuldades à empresa requerente. O Tribunal salienta que tal pedido pode ser apresentado tanto por pessoas físicas como por pessoas morais, não se distinguindo entre entidades nacionais e estrangeiras. Afigura-se, pois, que a requerente teria estado em posição de apresentar um pedido desses, mas não o fez. O Tribunal verifica ainda que parece resultar do teor literal do artigo 14 § 3 (a), que esta disposição, ao contrário da possibilidade de recorrer ao abrigo do artigo 67 da referida Lei de Custas Judiciais, o qual foi considerado na decisão deste Tribunal sobre a admissibilidade do presente caso, não concede qualquer poder discricionário ao tribunal de julgamento, caso o processo a intentar não careça de perspetivas de êxito nem se afigure abusivo e desde que se tenha substanciado de forma credível que o pagamento imediato das custas causaria dificuldades à empresa requerente.
52 - O Tribunal reconhece que a eventual dispensa de pagar antecipadamente as custas não libertaria a queixosa da necessidade de satisfazer os adiantamentos solicitados pelo seu próprio advogado. Além disso, subsiste a possibilidade de o réu exigir à queixosa uma garantia respeitante ao pagamento das custas do processo ao abrigo do § 110 do Código de Processo Civil. Contudo, o Tribunal verifica que o pagamento adiantado dos honorários de advogado não é obrigatório segundo o direito alemão. O Tribunal verifica ainda que não foi provado pela empresa requerente que lhe tenha sido exigida uma garantia no presente caso» (itálicos aditados).
Atendendo a todas estas circunstâncias, a conclusão retirada no processo em análise foi a de que, «na ausência de um consenso entre os Estados Parte na Convenção quanto à atribuição de apoio judiciário a pessoas jurídicas, o Tribunal considera que as restrições impostas ao direito de acesso ao tribunal da empresa requerente foram proporcionais aos fins prosseguidos [, pelo que] não foi violado o direito de acesso a um tribunal da empresa requerente previsto no artigo 6.º, § 1, da Convenção» (v. ibidem, o § 53; itálicos aditados).
A análise desta jurisprudência torna claro que, na interpretação do TEDH, o direito a um processo equitativo consignado no artigo 6.º da CEDH pode exigir, em determinadas situações, a concessão de apoio judiciário não só a pessoas singulares, mas, ainda que em circunstâncias mais exigentes, também a pessoas coletivas, incluindo aquelas que prosseguem fins lucrativos. Tudo depende das normas processuais aplicáveis e das circunstâncias particulares dos interessados, incluindo a importância da causa para os mesmos. Ou seja, a recusa de apoio judiciário não pode ser feita de plano, em abstrato, mas exige em todos os casos e relativamente a todo o tipo de sujeitos processuais uma apreciação sobre se o direito de acesso a um tribunal do interessado está, ou não, em causa. Ora, este entendimento não é compatível com uma concretização legislativa do direito fundamental à proteção jurídica para efeitos de garantia do acesso aos tribunais que pura e simplesmente recuse tal proteção a toda uma categoria de sujeitos apenas com base na sua natureza jurídica, inviabilizando qualquer apreciação das circunstâncias em que o sujeito carenciado se encontra e do processo concretamente em causa, como sucede com a norma do artigo 7.º, n.º 3, da LADT.
F) A questão do funcionamento eficiente dos mercados e o direito da União Europeia
25 - Por fim, importa analisar o argumento segundo o qual a proteção jurídica de entidades com fins lucrativos - sociedades ou estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada - seria contrária à injunção constitucional prevista no artigo 81.º, alínea f), da Constituição de assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, e a sua competitividade, e que obrigaria a aceitar que aquelas que se mostram incapazes de suportar os custos normais da sua atividade económica, tornando-se inviáveis, não a devem prosseguir. Nesta ordem de ideias, o apoio judiciário a pessoas coletivas com fins lucrativos surge como disfuncional e potencialmente criador de desigualdades entre as empresas concorrentes num mesmo mercado e, por essa via, como potencial fator de desequilíbrio desse mercado.
Foi a este propósito que no Acórdão 591/2016 se chamou à colação o direito da União Europeia e a sua interpretação pelo Tribunal de Justiça à luz da CDFUE, atenta a centralidade da concorrência no ordenamento da União (cf. os artigos 101.º e seguintes do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, em especial, as regras em matéria de auxílios concedidos pelos Estados-Membros - artigo 107.º; em Portugal, cf. o artigo 65.º do Regime Jurídico da Concorrência, constante da Lei 19/2012, de 8 de maio).
Justifica-se reiterar o que então se afirmou.
26 - Com efeito, o artigo 47.º da CDFUE, sob a epígrafe «Direito à ação e a um tribunal imparcial», dispõe no seu terceiro parágrafo: «[é] concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça». No Acórdão de 22 de dezembro de 2010, DEB Deutsche Energiehandels-und Beratungsgesellschaft mbH c. República Federal da Alemanha, Processo C-279/09, já mencionado, o Tribunal de Justiça foi confrontado com a seguinte questão prejudicial (já reformulada pelo próprio Tribunal):
«[Saber se a] interpretação do princípio da proteção jurisdicional efetiva, como consagrado no artigo 47.º da Carta, com vista a verificar se, no contexto de uma ação de indemnização intentada contra o Estado ao abrigo do direito da União, essa disposição se opõe a que uma legislação nacional sujeite o exercício da ação judicial ao pagamento de um preparo e preveja que não deve ser concedido apoio judiciário a uma pessoa coletiva, numa situação em que esta última não tem a possibilidade de pagar esse preparo» (§ 33; itálico aditado).
Na sua análise, o Tribunal de Justiça sublinha, além do mais: (i) que «o facto de o direito de beneficiar de apoio judiciário não estar consagrado no Título IV da Carta, relativo à solidariedade, revela que esse direito não foi principalmente concebido como um apoio social [...]» (§ 41); (ii) que, «[d]o mesmo modo, a integração da disposição relativa à concessão de apoio judiciário no artigo da Carta relativo ao direito a uma ação efetiva indica que a apreciação da necessidade da concessão desse apoio deve ser feita tomando como ponto de partida o direito da própria pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União foram violados e não o interesse geral da sociedade, embora este possa ser um dos elementos de apreciação da necessidade do apoio» (§ 42; itálicos aditados); e (iii) que existe no direito dos Estados-Membros e na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao processo equitativo (artigo 6.º, n.º 1) uma diferença de tratamento assente em razões objetivas e razoáveis entre as sociedades comerciais, por um lado, e pessoas singulares e as pessoas coletivas sem fins lucrativos, por outro (§§ 44-52). De todo o modo, a sua conclusão relativamente ao artigo 47.º da CDFUE é a seguinte (§ 59):
«[O] princípio da proteção jurisdicional efetiva, como consagrado no artigo 47.º da Carta, deve ser interpretado no sentido de que não está excluído que possa ser invocado por pessoas coletivas e que o apoio concedido em aplicação deste princípio pode abranger, designadamente, a dispensa de pagamento antecipado dos encargos judiciais e/ou a assistência de um advogado.» (itálico aditado)
Isto, naturalmente, sem prejuízo de a resposta a um concreto pedido de proteção jurídica dever tomar em consideração diversos aspetos, desde o objeto do litígio à capacidade financeira do requerente. Em especial, tratando-se de uma pessoa coletiva, considera o Tribunal de Justiça poder «atender-se, nomeadamente, à forma da sociedade - sociedade de capitais ou de pessoas, sociedade de responsabilidade limitada ou não - à capacidade financeira dos respetivos sócios, ao objeto social da sociedade, às modalidades da sua constituição e, em especial, à relação entre os meios que lhe foram atribuídos e a atividade a que pretende dedicar-se» (§ 54). Ponto é que haja uma avaliação concreta da situação do requerente: «cabe [aos órgãos jurisdicionais nacionais] procurar um justo equilíbrio a fim de garantir o acesso aos tribunais dos requerentes que invoquem o direito da União, sem, no entanto, os favorecer relativamente a outros requerentes» (§ 56). Tal implica a definição prévia de requisitos, os quais, podendo ser diferenciados, não podem pôr em causa uma avaliação casuística. Daí o sentido da declaração do Tribunal dada em resposta à questão prejudicial:
«O princípio da proteção jurisdicional efetiva, como consagrado no artigo 47.º da Carta, deve ser interpretado no sentido de que não está excluído que possa ser invocado por pessoas coletivas e que o apoio concedido em aplicação deste princípio pode abranger, designadamente, a dispensa de pagamento antecipado dos encargos judiciais e/ou a assistência de um advogado.
Incumbe ao órgão jurisdicional nacional verificar se os requisitos de concessão do apoio judiciário constituem uma limitação do direito de acesso aos tribunais suscetível de prejudicar a essência desse direito, se têm um objetivo legítimo e se existe uma relação razoável de proporcionalidade entre os meios utilizados e o objetivo prosseguido.
No âmbito dessa apreciação, o órgão jurisdicional nacional pode tomar em consideração o objeto do litígio, as hipóteses razoáveis de sucesso do requerente, a gravidade do que está em causa para este, a complexidade do direito e do processo aplicáveis bem como a capacidade de o requerente defender efetivamente a sua causa. Para apreciar a proporcionalidade, o órgão jurisdicional nacional pode também ter em conta a importância dos encargos judiciais que deve ser paga antecipadamente e o carácter insuperável, ou não, do obstáculo que estes eventualmente representam para efeitos do acesso à justiça.
No que respeita mais concretamente às pessoas coletivas, o órgão jurisdicional nacional pode tomar em consideração a situação destas. Assim, pode tomar em conta, designadamente, a forma e o fim lucrativo ou não da pessoa coletiva em causa bem como a capacidade financeira dos seus sócios ou acionistas e a possibilidade de estes obterem as quantias necessárias para a propositura da ação.»
27 - Este entendimento do princípio da proteção jurisdicional efetiva consagrado no artigo 47.º da CDFUE afasta, desde logo, a ideia de uma necessária incompatibilidade entre o apoio judiciário prestado a pessoas coletivas com fins lucrativos e o bom funcionamento de mercados concorrenciais, como é o caso do mercado interno. Deste modo, o apoio judiciário não constitui forçosamente um fator de distorção da concorrência ou de favorecimento da litigância de sociedades comerciais; em especial, o mesmo não pode ser equiparado ou qualificado como um auxílio concedido pelo Estado ou proveniente de recursos financeiros públicos que falseia ou ameaça falsear a concorrência, favorecendo certas empresas. Diferentemente, e em função das circunstâncias em que a questão se coloque em concreto, aquele apoio pode constituir uma condição necessária da efetividade da tutela jurisdicional. Tudo depende, assim, do caso concreto: o direito aplicável, a situação do interessado, a sua situação de insuficiência económica e as circunstâncias do litígio.
28 - Por outro lado, o mesmo entendimento - que, como mencionado, foi, no essencial, adotado pelo TEDH no caso Granos Organicos Nacionales S. A. (cf. supra o n.º 24) - afirma que o apoio judiciário não pode ser recusado de plano (pauschal) e que a referência aos "interesses gerais" constante do § 116, frase 1, n.º 2, da Zivilprozessordnung, pode ser interpretada como síntese de todos os interesses carecidos de tutela que relevem no caso concreto (cf. a decisão do Oberlandesgericht Köln, de 14 de julho de 2016, Processo 28 Wx 6/16, Rn. 33). Como já se sublinhou, tal é incompatível com uma disposição como a do artigo 7.º, n.º 3, da LADT, que exclui em termos gerais e abstratos qualquer possibilidade de concessão de apoio judiciário às pessoas coletivas com fins lucrativos e, por conseguinte, independentemente de uma avaliação da situação concreta, seja no que se refere ao objeto do litígio, seja no respeitante à insuficiência económica invocada.
Ou seja, a impossibilidade absoluta de uma pessoa coletiva com fins lucrativos discutir com as autoridades portuguesas competentes a sua insuficiência económica para efeitos de obtenção do apoio judiciário necessário à sua proteção jurisdicional efetiva - é esse o sentido da rejeição do pedido de proteção jurídica imposta pela norma do artigo 7.º, n.º 3, da LADT -, além de contrariar o artigo 6.º, n.º 1, da CEDH, contraria também o artigo 47.º, terceiro parágrafo, da CDFUE - aspeto relevante sempre que esteja em causa o direito da União.
Como referiu o Advogado-Geral Michal Bobek nas suas Conclusões apresentadas em 7 de setembro de 2017, no Processo C-298/16, a propósito da aplicabilidade dos direitos fundamentais da União, «não podem existir situações que estejam abrangidas pelo direito da União em que os referidos direitos fundamentais não sejam aplicáveis. Os direitos fundamentais são, de facto, a "sombra" do direito da União» (cf. o n.º 29). Mas «isso significa também que tem de existir uma disposição de direito da União que seja aplicável, independente e diferente do próprio direito fundamental [já que] uma sombra não pode lançar a sua própria sombra. [Assim sendo, suscita-se a questão de saber] quando é que uma situação submetida às autoridades nacionais está abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União» (v. ibidem, n.os 30 e 31). São concebíveis diversas hipóteses, mas apesar da importância relativa da finalidade das medidas nacionais destinadas a aplicar o direito da União, «nem sempre é necessário que os objetivos prosseguidos pela disposição nacional em questão coincidam com os das disposições específicas de direito da União que estabelecem a ligação com a ordem jurídica da União» (v. ibidem, n.º 49; itálico aditado). Um exemplo disso mesmo é o caso dos direitos processuais:
«No processo DEB, as disposições de aplicação geral do direito nacional que regulavam o acesso das pessoas coletivas ao apoio judiciário não visavam especificamente a aplicação do direito da União nem tinham exatamente o mesmo objetivo. No entanto, estavam abrangidas pelo âmbito de aplicação do direito da União para efeitos do direito a uma proteção jurisdicional efetiva garantido pelo artigo 47.º da Carta no contexto das vias de recurso previstas no direito da União - em especial, as ações de indemnização intentadas contra o Estado ao abrigo do direito da União. Essas disposições eram necessárias para garantir que toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido infringidos tenha direito a uma ação perante um tribunal» (v. ibidem, n.º 50).
29 - É neste quadro, e tendo em conta que o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva reveste a mesma natureza no quadro do direito da União Europeia e no quadro constitucional português, que se justifica perspetivar as soluções do legislador nacional em termos sistémicos - de resto, como se invocou tanto no Acórdão 216/2010, como no Acórdão 591/2016. E, numa tal perspetiva, a norma do artigo 7.º, n.º 3, da LADT pode conduzir a soluções claramente contrárias à unidade axiológica no domínio dos direitos fundamentais aplicáveis pelos tribunais portugueses.
Basta pensar na hipótese de uma sociedade comercial, portuguesa ou nacional de um outro Estado-Membro da União Europeia, em dificuldades económicas devido à violação de normas de direito da União Europeia pelo Estado Português e que pretende efetivar a responsabilidade civil deste último: a impossibilidade absoluta de discutir com as autoridades portuguesas competentes a sua insuficiência económica para efeitos de obtenção de proteção jurídica necessária a assegurar proteção jurisdicional efetiva é contrária ao artigo 47.º, terceiro parágrafo, da CDFUE e coloca-a numa situação de desigualdade face às sociedades em situação paralela noutros Estados-Membros igualmente sujeitos àquele normativo. Por outro lado, a solução do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição afigura-se consentânea com a ideia de acesso à justiça, tal como entendido no âmbito do direito da União Europeia, permitindo-o igualmente mesmo que não estejam em causa situações de aplicação de tal direito, assim estabelecendo coerência no sistema.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 7.º, n.º 3, Lei 34/2004, de 29 de julho, na redação dada pela Lei 47/2007, de 28 de agosto, na parte em que recusa proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela concreta situação económica das mesmas, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Sem custas.
Lisboa, 8 de maio de 2018. - Pedro Machete - Gonçalo Almeida Ribeiro (com declaração) - Maria José Rangel de Mesquita - Fernando Vaz Ventura - José Teles Pereira - Catarina Sarmento e Castro - Lino Rodrigues Ribeiro - Claudio Monteiro - Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida, nos termos da declaração que junto) - João Pedro Caupers (vencido nos termos da declaração em anexo) - Têm voto de conformidade as Senhoras Conselheiras Joana Fernandes Costa e Maria Clara Sottomayor que não assinam por não estarem presentes - Manuel da Costa Andrade.
Declaração de voto
1 - Embora subscreva a decisão, não acompanho toda a fundamentação que fez vencimento.
Adiro a duas premissas importantes do juízo de inconstitucionalidade.
- A premissa da incindibilidade. O direito à proteção jurídica é uma das dimensões em que se analisa o direito de acesso à justiça. Não é um direito fundamental autónomo, na medida em que o interesse protegido é o interesse geral de aceder aos tribunais. A sua especificidade prende-se com o facto de a proteção desse mesmo interesse, nas circunstâncias que integram a previsão da norma que consagra o direito («insuficiência de meios económicos»), ditar consequências específicas: um direito a uma prestação estadual.
- A premissa da compatibilidade. Nada na natureza das pessoas coletivas com fins lucrativos obsta a que a estas seja concedida proteção jurídica, em qualquer das suas modalidades. Quando a Constituição condiciona o reconhecimento de direitos fundamentais a pessoas coletivas a uma cláusula de «compatibilidade», tem em vista um pressuposto de ordem ontológica. As pessoas coletivas não têm, por natureza, direito à vida, à integridade física, à saúde ou à habitação. Porém, é claro que têm interesse em aceder à justiça, e em que tal acesso lhes não seja negado por insuficiência de meios económicos.
A minha divergência com a fundamentação prende-se com a ideia, que nela perpassa, de que a solução legal consagrada no artigo 7.º, n.º 3, da Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais não exprime qualquer juízo de ponderação. Supõe-se que o legislador exclui as pessoas coletivas com fins lucrativos do âmbito da proteção jurídica por rejeitar a premissa da compatibilidade - ou seja, por entender que, por natureza, os sujeitos em causa não podem ser titulares de tal direito. Não julgo que seja essa a razão de ser do regime, nem penso que seja esse o entendimento subjacente ao juízo de não inconstitucionalidade alcançado no Acórdão 216/2010.
2 - No meu entender, a lei exprime uma ponderação de interesses, que pode ser caracterizada nos seguintes termos.
Há três razões de interesse público, com ressonância constitucional, para excluir as pessoas coletivas com fins lucrativos do âmbito da proteção jurídica. Em primeiro lugar, dada a tendencial coincidência de pressupostos entre o direito à proteção jurídica e o regime da insolvência e recuperação de empresas, verifica-se o interesse público em atrair as empresas em dificuldades económicas para o âmbito deste. Em segundo lugar, a proteção jurídica de empresas em dificuldades económicas constitui, do ponto de vista funcional, um subsídio público, pelo que é inequívoco que distorce a livre concorrência que o Estado está constitucionalmente vinculado a proteger. Em terceiro lugar, a exclusão da proteção jurídica destina-se a incentivar as sociedades comerciais a fazerem provisões e adquirirem seguros que acautelem os encargos de acesso à justiça compreendidos no seu objeto - e que, nessa medida, constituem um custo da sua atividade -, de forma a evitar a externalização desses encargos. São estes os fins prosseguidos pela medida legislativa de denegação de proteção jurídica às pessoas coletivas com fins lucrativos.
Tal medida implica, é certo, a ablação de uma vertente do direito de acesso à justiça. Mas esta ablação é mitigada por dois fatores. Por um lado, o acesso à justiça pelas pessoas coletivas não tem o mesmo peso axiológico do que o acesso à justiça pelas pessoas físicas ou singulares, em virtude da natureza instrumental daquelas pessoas, ou seja, do facto de a relevância constitucional dos seus interesses ser mediada pelos interesses das pessoas físicas em cuja dignidade se baseia exclusivamente a ordem constitucional da República. Por outro lado, a restrição do acesso à justiça é mitigada pelo facto de as pessoas coletivas com fins lucrativos em situação de insuficiência de meios económicos poderem, em princípio, beneficiar da isenção subjetiva de custas prevista no regime do PER e da insolvência, no caso - que o legislador procura incentivar - de se colocarem sob a incidência desses regimes. Acresce a possibilidade, mais ou menos larga, de dedução à matéria coletável do IRC dos custos de acesso à justiça.
Visto o problema a esta luz, a lei exprime uma ponderação de interesses, ainda que o resultado dessa ponderação seja uma solução categórica - embora, bem se entenda, limitada a uma classe de sujeitos e apenas no que respeita a uma dimensão do direito de acesso à justiça. Claro que o legislador poderia ter estabelecido um regime em que a proteção jurídica das pessoas coletivas, sobretudo na modalidade de apoio judiciário, depende essencialmente de uma «avaliação casuística», em que a natureza do sujeito é uma das variáveis relevantes na tomada da decisão. Sucede que há um argumento importante que depõe a favor de uma solução de natureza categórica: a «avaliação casuística» da insuficiência de meios - que é conduzida, no nosso sistema, não por um órgão jurisdicional, mas pela Segurança Social - comporta risco de erro. Ora, o legislador terá entendido que os «falsos negativos» gerados por uma solução categórica são menos perniciosos, do ponto de vista da tutela dos valores relevantes, do que os «falsos positivos» de uma avaliação casuística. Também aqui a lei não deixa de exprimir uma ponderação de interesses.
Apesar de tudo, creio que a solução legal é excessivamente restritiva do direito de acesso à justiça, porque se revela desnecessária a inexistência de uma exceção para os casos - seguramente raros - em que uma pessoa coletiva com fins lucrativos é demandada num litígio totalmente estranho ao seu objeto social. Esses custos podem ter-se por imprevisíveis, não sendo, por isso, exigível que a sociedade se tivesse precavido quanto a eles, nem sendo possível inferir da sua incapacidade de os suportar uma situação de dificuldade económica relevante do ponto de vista dos regimes de recuperação da empresa e da insolvência. De facto, nessas circunstâncias, cessam os interesses que justificam a solução legal restritiva, pelo que a lei deveria consagrar uma exceção ao regime-regra.
3 - Daqui decorre que, no meu entender, melhor teria andado o Tribunal se tivesse enquadrado o problema na dogmática das restrições aos direitos fundamentais, concluindo pela violação do princípio da proibição do excesso na restrição de direitos, liberdades e garantias.
Mas a minha divergência, para além destes aspetos essencialmente técnicos, projeta-se no alcance prático do juízo de inconstitucionalidade - o mesmo é dizer, no grau de vinculação constitucional do legislador neste domínio. Com efeito, não me parece que, no exemplo dado no ponto 18 do Acórdão, de uma sociedade comercial que tem uma carteira de crédito malparado e que, apesar de ter um ativo superior ao passivo, não tem meios financeiros de acesso aos tribunais, a proteção jurídica seja constitucionalmente exigível. O risco de não cumprimento é da natureza das operações de crédito, pelo que, do ponto de vista dos interesses que o legislador pretende salvaguardar, é perfeitamente legítimo que a sociedade tenha de contabilizar as despesas com a cobrança judicial como custo normal da sua atividade e que, no que respeita a esses ou quaisquer outros litígios, tenha de ceder créditos em carteira ou contrair um empréstimo bancário para obter a liquidez de que carece para fazer face aos encargos de acesso aos tribunais.
4 - Finalmente, não estou persuadido do acerto e da pertinência do argumento baseado no direito europeu.
Por um lado, não creio que do acórdão DEB, prolatado pelo Tribunal de Justiça, se possa retirar que a exclusão categórica da proteção jurídica às pessoas coletivas com fins lucrativos viole o artigo 47.º da CDFUE. O que nesse aresto se afirma é que as pessoas coletivas não estão excluídas do âmbito de proteção dessa disposição, de tal modo que a recusa de concessão de apoio tem de ponderar, inter alia, a lesão desse interesse. O facto de no acórdão se referir a ponderação ao «órgão jurisdicional nacional», prende-se com a contingência de na Alemanha, a ordem jurídica nacional de que proveio o pedido de pronúncia prejudicial, a concessão de apoio judiciário ser uma competência reservada aos tribunais. Nada obsta a que essa ponderação seja feita pelo legislador, fazendo relevar, entre várias considerações abstratamente relevantes, a «forma e o fim lucrativo» da pessoa coletiva. Parece-me ser esse - e apenas esse - o alcance da decisão.
Por outro lado, mesmo que se dê de barato que o direito europeu impõe o reconhecimento, mais ou menos alargado, do direito das pessoas coletivas com fins lucrativos a proteção jurídica em caso de insuficiência de meios económicos, em termos tais que a denegação de tal benefício pela ordem jurídica interna gerará uma desigualdade de tratamento entre agentes económicos que operam em domínios cobertos e não cobertos pelo direito europeu, não vislumbro aqui qualquer violação do princípio da igualdade. Em qualquer ordem jurídica compósita, há desigualdades de tratamento que decorrem da pluralidade de centros de decisão legislativa. Assim, por exemplo, numa ordem jurídica federal, os agentes económicos que operem em domínios cobertos pelo direito federal não estão sujeitos a regras idênticas àqueles que se aplicam aos agentes que operam em domínios cobertos apenas pelo direito estadual. Trata-se de uma imposição da natureza das coisas, cujo repúdio levaria, em última análise, à conclusão absurda de que o princípio da igualdade proscreve todas as formas de separação vertical do poder legislativo. - Gonçalo de Almeida Ribeiro.
Declaração de voto
1 - Vencida.
Entendo que o Tribunal deveria ter mantido, no essencial, a jurisprudência estabelecida no Acórdão de Plenário n.º 216/2010, que decidiu não julgar inconstitucional, por violação dos artigos 12.º, n.º 2, 13.º, 20.º, 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 7.º, n.º 3, da Lei 34/2004 de 29 de julho, com a redação dada pela Lei 47/2007 de 28 de agosto (a Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais, LADT).
Invertendo aquela jurisprudência, no presente acórdão o Tribunal decidiu, porém, declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 7.º, n.º 3, da LADT, na parte em que recusa a proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela concreta situação económica das mesmas, por violação do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Não acompanho um tal juízo de inconstitucionalidade.
2 - Diferentemente da maioria, entendo que a solução legal que não garante o apoio judiciário, em regra, às pessoas coletivas com escopo lucrativo não ofende, por si só, o artigo 20.º da Constituição, não configurando uma ablação do direito fundamental de acesso ao direito e à justiça, antes uma compressão que sobrevive ao teste de proporcionalidade numa ponderação baseada nos regimes legais aplicáveis.
Como ponto de partida, note-se que mesmo as pessoas coletivas sem fins lucrativos não dispõem de acesso total à proteção jurídica, já que, em caso de insuficiência económica, apenas têm direito à proteção jurídica na modalidade de apoio judiciário (artigo 7.º, n.º 4, da LADT). Por outro lado, é recusada a proteção a toda e qualquer pessoa coletiva que alienou ou onerou todos os seus bens para se colocar em condições de obter proteção jurídica (artigo 7.º, n.º 5, da LADT).
Não é, portanto, apenas um critério económico aquele que está na base da opção tomada pelo legislador de concessão, ou não, de proteção jurídica (nas suas diversas modalidades) às pessoas coletivas. Há que conjugá-lo com um critério de interesse público ou geral na concessão de um apoio de valor económico que onera toda a comunidade. Importa, assim, ponderar todos os interesses em presença o que não dispensa a análise de todo o regime legal instituído, designadamente em sede de recuperação de empresas em situação de insuficiência económica.
Na ponderação dos interesses em presença feita pelo legislador, no âmbito da sua liberdade de conformação na concretização prática do conceito de insuficiência económica para efeito do apoio judiciário, não se ignorou que, diferentemente das pessoas coletivas com escopo lucrativo, as pessoas coletivas sem fins lucrativos têm subjacente a prossecução de um interesse geral ou mesmo altruístico. Essa será a razão pela qual apenas estas deverão poder beneficiar de apoio judiciário, justificando que se onere toda a comunidade com as despesas inerentes à defesa dos seus direitos em tribunal, desde que se prove a sua insuficiência económica. Em conformidade, exclui-se da proteção jurídica apenas as sociedades comerciais ou constituídas em forma comercial (para além dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada os quais, de todo o modo, não foram abrangidos pela decisão do acórdão de generalização) que tenham por função caracterizadora a obtenção de lucros económicos a distribuir pelos seus sócios. Uma tal solução assenta, portanto, na distinção entre pessoas coletivas com fins lucrativos e pessoas coletivas sem fins lucrativos, o que significa que o critério legal de concessão do referido benefício se centra na finalidade estatutária da pessoa coletiva.
3 - Não me parece que uma tal opção, por si só, possa merecer censura constitucional.
Existe um fundamento material bastante para que o legislador limite o apoio que concede às pessoas coletivas com fins lucrativos em matéria de acesso ao direito e aos tribunais. Desde logo, aquela limitação encontra justificação na circunstância de os custos com a litigância decorrente da própria vida comercial normal das empresas e o seu escopo lucrativo serem integrados na planificação da atividade empresarial normal e ulteriormente repercutidos no preço final dos bens e serviços fornecidos ao consumidor. Acresce que os custos derivados de contencioso podem ser deduzidos aos rendimentos das pessoas coletivas para efeitos tributários.
Assim, a impossibilidade de suportar os custos com litígios, designadamente os decorrentes da própria vida comercial da pessoa coletiva evidencia o perigo da inviabilidade económica da empresa e, no limite, a própria inviabilidade (falência) da pessoa jurídica cuja constituição - é conveniente não esquecer - se justifica apenas para o exercício dessa atividade empresarial.
É, portanto, a própria natureza das coisas que impõe que as pessoas coletivas instituídas para a realização de uma atividade económica destinada à obtenção de lucros devam encontrar-se dotadas de uma estrutura organizativa e financeira capaz de fazer face aos custos previsíveis da sua atividade, incluindo os que resultem da litigiosidade normal que a gestão comercial frequentemente implica.
4 - Para além disso, é também preciso tomar em devida conta que o legislador não deixou as pessoas coletivas com fins lucrativos totalmente desprotegidas no que respeita a despesas com a defesa dos seus direitos e o acesso aos tribunais. A alínea u) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais isenta de custas «As sociedades civis ou comerciais, as cooperativas e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada que estejam em situação de insolvência ou em processo de recuperação de empresa, nos termos da lei, salvo no que respeita às ações que tenham por objeto litígios relativos ao direito do trabalho». As dificuldades económicas das pessoas coletivas com fim lucrativo relevam, por conseguinte, no seio do Processo Especial de Revitalização (PER) instituído pela Lei 16/2012, de 20 de abril, que alterou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE). E é razoável que assim seja dada a convergência de sentido útil da proteção jurídica (isenção ou redução, total ou parcial, de custas) e o fim do processo especial da revitalização da empresa o qual se destina a facultar aos devedores em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente um mecanismo ágil e célere de encontrarem, com os respetivos credores, um plano que permita a sua recuperação (artigos 17.º-A e ss. do CIRE).
Note-se que se encontra em «situação económica difícil a empresa que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito» (artigo 17.º-B do CIRE). A dificuldade em fazer face a custas judiciais representa uma situação de dificuldade da empresa em cumprir as suas obrigações. Dificuldade esta que num contexto de atividade económica se repercute nos demais credores. Neste quadro, a concessão de apoio judiciário pode mesmo constituir um pernicioso antídoto à pronta recuperação da empresa.
Não se trata de eleger como critério da insuficiência económica das pessoas coletivas com fins lucrativos a situação de falência ou insolvência para poderem beneficiar da isenção de custas processuais, como o acórdão parece recear. Pelo contrário, procura-se obviar a que entidades viáveis do ponto de vista financeiro sejam obrigadas a colocar-se nas referidas condições com prejuízo não só para os próprios envolvidos como para os demais credores e, por conseguinte, também para a economia em geral. Este objetivo do PER permite que a isenção de custas prevista na alínea u) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento das Custas Judiciais seja aplicável a um vasto âmbito de empresas, servindo de alternativa constitucionalmente admissível à previsão da possibilidade de concessão de proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, designadamente para litígios relacionados com a sua atividade económica. Consumindo as virtudes inerentes a um tal benefício, vai, aliás, muito para além dele ao não deixar esquecidos também os interesses de outros agentes económicos, designadamente os credores.
5 - É importante referir igualmente que, contrariamente ao que parece inferir-se do acórdão, não decorre do Direito da União Europeia qualquer imposição de acesso pelas pessoas coletivas com fins lucrativos aos mecanismos de apoio judiciário em condições iguais às das pessoas singulares. No citado Acórdão do Tribunal de Justiça da UE (TJUE), DEB Deutsche Energiehandels-und Beratungsgesellschaft, Processo C-279/09, de 22 de dezembro de 2010, é referido expressamente que «a análise do direito dos Estados-Membros evidencia a inexistência de um princípio verdadeiramente comum partilhado pelo conjunto desses Estados em matéria de concessão de apoio judiciário às pessoas coletivas» e que «na prática dos Estados-Membros que admitem a concessão de apoio judiciário às pessoas coletivas, existe uma distinção relativamente difundida entre pessoas coletivas com fins lucrativos e pessoas coletivas sem fins lucrativos» (n.º 44).
Também não decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem qualquer imposição genérica de acesso das pessoas coletivas ao apoio judiciário igualitário face às pessoas singulares.
6 - A recusa de apoio judiciário a pessoas coletivas com fins lucrativos corresponde, pois, a uma opção legítima e justificada do legislador em não querer onerar toda a comunidade com custos da justiça que aproveita apenas aos interesses económicos da pessoa coletiva com fins lucrativos que a ela recorre. Num panorama de litigiosidade crescente caracterizada em especial por instauração em massa de ações de baixo valor, que envolve particularmente as pessoas coletivas na cobrança de créditos, uma tal opção previne também a captura do apoio judiciário como instrumento de realização de interesses económicos de pessoas coletivas com fins lucrativos à custa do interesse geral.
Num contexto de limitação de meios inevitável - note-se que, em termos estritamente económicos, a administração da justiça constitui um bem que comporta custos extremamente elevados para a comunidade - é razoável que o legislador apoie prioritariamente o acesso à justiça das pessoas singulares e entidades sem fins lucrativos, em detrimento da opção de financiamento público dos custos inerentes à atividade normal e lucrativa das pessoas coletivas, as quais, sem prejuízo da relevância que têm na sociedade, não deixam de ser instrumentais em relação aos interesses das pessoas humanas. O acesso à justiça das pessoas coletivas através do apoio do Estado não representa um interesse axiológico equivalente ao da garantia de acesso à justiça das pessoas singulares. Em matéria atinente à respetiva atividade económica, a negação de proteção jurídica (apoio e patrocínio judiciário) a pessoas coletivas com fins lucrativos, a par da disponibilização de instrumentos de recuperação da empresa como os que se encontram previstos no CIRE, não implica um qualquer desvalor tendo em vista o acesso ao direito e os tribunais.
Isto não significa que a solução seja constitucionalmente imposta. Apenas que não é proibida. De resto, a questão da inclusão ou não das pessoas coletivas no âmbito pessoal de aplicação do regime jurídico da proteção jurídica em geral, foi tratada de forma diferenciada pelo legislador ao longo dos anos na concretização legal que foi fazendo do direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, oscilando ao longo do tempo entre soluções legais, ora mais abrangentes, ora mais restritivas, no apoio, compreensivamente em função da diversidade das condições financeiras existentes, mas tomando sempre como ponto assente a prioridade do financiamento público do acesso ao direito e aos tribunais por parte das pessoas singulares.
7 - Ignorando a legitimidade da opção resultante da ponderação de interesses feita pelo legislador, o presente acórdão, centra o juízo de desconformidade com a Constituição decisivamente na falta de consideração pela concreta situação económica da pessoa visada. Desta forma, acaba por impor uma lógica de equiparação absoluta dos direitos das pessoas singulares aos das pessoas coletivas com fins lucrativos não contemplada pela Constituição. Por outro lado, e diferentemente do que fez em outras ocasiões (v. por exemplo, o Acórdão 106/2004), neste acórdão o Tribunal não limita o juízo de inconstitucionalidade à recusa de proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos para litígios que exorbitem da respetiva atividade económica normal. Esta solução sempre permitiria conjugar, numa opção legal alternativa à atualmente em vigor, os vários interesses em presença de uma forma que responderia a muitas - eu diria, a todas - as situações zelosamente identificadas no acórdão como exemplos marginais de casos em que a insuficiência de meios económicos pode dificultar o acesso à justiça da empresa para defender os seus direitos relativamente a matérias que, por serem estranhas ao seu objeto social, não podia prever ou antecipar. Todavia, o acórdão não distingue estes litígios dos concernentes à normal atividade económica da empresa, invalidando a norma que recusa a proteção jurídica a pessoas coletivas com fins lucrativos, sem consideração pela concreta situação económica das mesmas, independentemente da natureza do litígio. Ora, o apoio judiciário, representando um custo para a comunidade em geral, não tem, nem deve ter, como escopo o financiamento da cobrança de dívidas de (ou entre) pessoas coletivas com fins lucrativos, no exercício normal da sua atividade. - Maria de Fátima Mata-Mouros.
Declaração de voto
Fiquei vencido na declaração de inconstitucionalidade, não acompanhando as razões que a ditaram.
Entendo que as razões constantes de diversa jurisprudência do Tribunal, com destaque para o Acórdão 216/2010, (a) acentuando a vinculação do direito à proteção jurídica à dignidade da pessoa humana, (b) enfatizando as óbvias diferenças entre as pessoas singulares e as pessoas coletivas e, no âmbito das que têm fins lucrativos, chamando a atenção para as peculiaridades do tratamento jurídico da insuficiência económica destas, e (c) recordando que as pessoas coletivas com fins lucrativos em situação de insuficiência de recursos beneficiam de isenção de custas judiciais (com exceção dos processos relativos a litígios laborais), continuam a fazer sentido.
Impressiona-me que entes constituídos com o (legítimo) propósito de ganhar dinheiro, por não o conseguirem fazer, sejam auxiliados com o dinheiro dos contribuintes naquilo que para uma pessoa singular resultará normalmente de uma infelicidade, mas que para elas decorrerá, muito provavelmente, de falta de capacidade empresarial, de deficiente avaliação de riscos ou de ignorância do mercado, nos litígios judiciais em que se vejam envolvidos no exercício da sua atividade. Afinal, os seus concorrentes mais eficientes e competentes não disfrutam de tal benesse, o que coloca mesmo problemas de igualdade. - João Caupers.
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