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Acórdão 480/2014, de 17 de Setembro

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Sumário

Decide não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 5.º da Lei n.º 2078, de 11 de julho de 1955, que estabelece que «[a]s servidões militares e as outras restrições de interesse militar ao direito de propriedade não dão direito a indemnização». (Processo n.º 113/2012)

Texto do documento

Acórdão 480/2014

Processo 113/2012

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Os presentes autos reportam-se a uma servidão militar, denominada Bateria do Pico da Cruz, a qual foi instituída pelo Decreto-Lei 37.475, de 8 de julho de 1949, ao abrigo da Carta de lei de 24 de maio de 1902.

O regime jurídico aplicável à servidão militar é definido no Decreto 47 040, de 4 de junho de 1966, nele determinando-se tratar-se de uma servidão particular, sendo proibida, sem licença prévia da autoridade militar competente, a execução dos trabalhos ou atividades aí definidas, entre as quais se inclui "fazer construções de qualquer natureza».

Tendo os proprietários dos prédios abrangidos pela servidão militar requerido, ao abrigo do disposto na alínea n) do n.º 2 do artigo 44.º da Lei 29/82, de 11 de dezembro, licença militar para lotear os seus prédios com destino à construção de moradias unifamiliares, tal pedido foi indeferido por despacho do Ministro da Defesa Nacional, o qual foi impugnado junto do Supremo Tribunal Administrativo.

Por decisão datada de 4 de julho de 2002 decidiu o STA negar provimento ao recurso contencioso, por considerar que o ato recorrido e os pareceres que lhe serviram de suporte observavam os critérios legais a que deve obedecer a apreciação de pedidos de licenciamento em áreas sujeitas a servidões militares e que constam do artigo 10.º do Decreto-Lei 45 986, de 22 de outubro de 1964.

Não é, no entanto, no âmbito desse processo que o presente recurso de constitucionalidade tem origem. Aliás, ao impugnar judicialmente o despacho do Ministro da Defesa Nacional que indeferiu o pedido de emissão de licença para a construção de moradias unifamiliares na área de servidão militar da Bateria do Pico da Cruz, os aí recorrentes não suscitaram qualquer questão de constitucionalidade que tivesse como objeto a violação do seu direito de propriedade decorrente da constituição de uma servidão militar, designadamente no que se refere à proibição de construir.

Os autos que estão na origem do presente recurso de constitucionalidade referem-se antes à ação administrativa comum intentada posteriormente - isto é, após o insucesso do recurso contencioso de anulação do despacho proferido pelo Ministro da Defesa Nacional - contra o Estado português, pedindo que este fosse condenado a pagar aos autores a justa indemnização pelos danos decorrentes da servidão militar, nos termos do artigo 8.º do Código das Expropriações de 1999.

Na primeira instância, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, por sentença datada de 19.01.2007, julgou procedente a ação e condenou o Estado Português a pagar aos autores a justa indemnização pelos danos referidos decorrentes da servidão militar, a fixar em execução da sentença. Entendeu o Tribunal que pelo facto de os danos decorrentes da servidão militar serem semelhantes aos de uma expropriação, tornar-se-ia exigível uma justa indemnização, nos termos do disposto no artigo 8.º do Código das Expropriações e do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa. Ao fazê-lo, concluiu o TAF do Funchal que, por força do disposto no artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte do Código Civil, seria de aplicar, portanto, à situação dos autos o disposto no artigo 8.º do Código das Expropriações de 1999.

Entendimento diferente teve o Tribunal Central Administrativo Sul que, por acórdão proferido em 24.06.2010, concedendo provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público da decisão do tribunal de primeira instância, revogou a sentença recorrida e absolveu o Estado Português do pedido. Contrariamente ao decidido pelo tribunal de primeira instância, entendeu o Tribunal Central Administrativo Sul que, por força das regras de aplicação da lei no tempo, não seria ao caso dos autos aplicável a lei nova (o artigo 8.º, n.º 2 do Código das Expropriações de 1999), pelo que, inexistindo nos diplomas vigentes à data da instituição da servidão militar qualquer obrigação de indemnizar, careceria de base legal a condenação do Estado Português no pagamento de uma indemnização pela constituição da referida servidão.

Esse acórdão veio a ser anulado pelo Supremo Tribunal Administrativo, com fundamento em omissão de pronúncia, por acórdão de 28.06.2011. Sustentou o Supremo que, ainda que tendo decidido com acerto a questão relativa à aplicação da lei no tempo, o acórdão recorrido sempre teria que apreciar a questão da eventual inconstitucionalidade superveniente do regime constante da lei antiga, ou seja a questão de saber se, e em que medida, subsistiriam, após a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976, as normas legais a ela anteriores, que não previam qualquer indemnização para as servidões administrativas constituídas diretamente por lei.

Tendo-se, assim, ordenado a baixa dos autos, a fim de apreciar a questão de saber se os autores teriam ou não direito à indemnização por força dos artigos 62.º, 13.º e 290.º da Constituição, o Tribunal Central Administrativo Sul proferiu novo acórdão, desta feita datado de 23.11.2011.

Nesta sua decisão, o TCA Sul negou provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e confirmou a sentença a proferida pelo tribunal de primeira instância, que julgara procedente a ação e condenara o Estado Português a pagar aos autores a justa indemnização pelos danos referidos decorrentes da servidão militar, a fixar em execução da sentença.

Na sua fundamentação, o Tribunal Central Administrativo Sul manteve o entendimento do seu acórdão anterior, validado pelo Supremo, no que respeita à questão da aplicação da lei no tempo.

Com efeito, o acórdão começa por observar que, não só de acordo com a lei vigente no momento da instituição da servidão militar não estava prevista a atribuição de qualquer indemnização, como também a Lei 2078, de 11 de julho de 1955, no seu artigo 5.º, expressamente excluía o direito a indemnização por qualquer restrição ao direito de propriedade imposta por interesse militar.

Além disso, observou ainda a decisão recorrida que a obrigação de indemnizar, quando estão em causa servidões decorrentes diretamente da lei, só passou a existir depois da entrada em vigor do atual Código das Expropriações, em 18 de novembro de 1999, por força do disposto na Lei 168/99, de 18 de setembro.

Considera ainda a decisão recorrida que, face às regras de aplicação da lei no tempo, ao caso dos autos não é de aplicar a norma contida no n.º 2 do artigo 8.º do Código das Expropriações, devendo os efeitos futuros das servidões constituídas antes da entrada em vigor da nova lei continuar a reger-se pela lei vigente à data em que foram constituídas, em que não era devida qualquer indemnização.

Simplesmente, ao apreciar a questão de constitucionalidade tal como havia sido determinado pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, por entender que o regime vigente à data da constituição da servidão militar que onerou os prédios a que se referem os autos, ao excluir expressamente o direito a indemnização, afronta os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justa indemnização, violando os artigos 62.º, 13.º e 290.º da Constituição, a decisão recorrida recusou a aplicação da lei velha e aplicou a lei nova, ou seja, o disposto no artigo 8.º, n.º 2 do Código das Expropriações, aprovado pela Lei 168/99, de 18 de setembro, atualizado pela Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, que expressamente prevê que as servidões, resultantes ou não de expropriações, dão lugar a indemnização quando (i) inviabilizem a utilização que vinha sendo dada ao bem, considerado globalmente; (ii) inviabilizem qualquer utilização do bem, nos casos em que estes não estejam a ser utilizados; ou (iii) anulem completamente o seu valor económico.

2 - Veio então o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo Sul desse acórdão interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea a) da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 3 e 75.º, n.º 1 da lei de Organização Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de novembro, com as alterações que lhe foram dadas pela Lei 13-A/98, de 25 de fevereiro, do acórdão daquele Tribunal, proferido em 23.11.2011, por nele ter sido recusada, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos artigos 62.º, 13.º e 290.º da Constituição, a norma do artigo 5.º da Lei 2078, de 11 de julho de 1955, que estabelece que "[a]s servidões militares e as outras restrições de interesse militar ao direito de propriedade não dão direito a indemnização».

3 - Notificado para o efeito, o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio apresentar alegações, tendo concluído do seguinte modo:

1.º

A servidão militar em pareço foi constituída diretamente por lei, à margem de qualquer processo expropriativo, em zonas confinantes com organizações ou instalações militares ou de interesse para a defesa nacional, com a finalidade de garantir a segurança dessas organizações e instalações militares, bem como das pessoas e bens nessas zonas, e de permitir às forças armadas a execução das missões que lhe competem, nos termos dos artigos 1.º e 2.º da Lei 2078.

2.º

A servidão não implicou, verdadeiramente, perda da aptidão para construir, mas sim a proibição, sem licença da autoridade militar competente, de executar os trabalhos e atividade enumeradas no artigo 9.º da mesma Lei 2078, onde se inclui, designadamente, a de construção.

3.º

De todo o modo, aquando da constituição da servidão militar os prédios onerados com a servidão, não tinham capacidade edificativa, que só surge, anos mais tarde, após alteração do Plano Diretor Municipal do Funchal, sendo certo, por outro lado, que a capacidade edificativa dos mesmos prédios está, tão só, dependente de autorização das autoridades militares.

4.º

Consequentemente, a capacidade edificativa de tais prédios fica na dependência da avaliação, em concreto, da compatibilidade dos projetos que forem apresentados às autoridades militares, com fins que presidiram à constituição da servidão.

5.º

Assim, o facto de não ter sido autorizada a licença para a construção de um determinado projeto não significa, necessariamente, que todo e qualquer projeto seja inviabilizado, nem é suficiente para sustentar a decorrência de uma situação indemnizável, tendo, sobretudo, em consideração a vinculação social do direito de propriedade, e o entendimento de que só uma diminuição acentuadamente gravosa da utilitas rei, implica o reconhecimento aos proprietários onerados com a servidão, o direito à indemnização.

6.º

De qualquer forma, nas circunstâncias que se verificam nos presentes autos, a servidão militar, ou o facto de, posteriormente, não ter sido autorizada a licença para a construção de um projeto, não anulou completamente o valor económico dos bens onerados, nem inviabilizou qualquer utilização desses bens, que, aliás, não vinham a ser utilizados.

7.º

Assim, e uma vez que essas circunstâncias modelam, necessariamente, a dimensão normativa em apreciação, do artigo 5.º da Lei 2078, de11 de julho de 1955, a nosso ver, essa mesma dimensão normativa não afronta a Constituição, nomeadamente, os seus artigos 62.º, 13.º e 290.º

8.º

Pelo que, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se, em conformidade, o acórdão recorrido.

4 - Nas contra-alegações apresentadas, os recorridos concluíram no sentido de dever negar-se provimento ao recurso mantendo-se a decisão recorrida.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

5 - Está em juízo, no presente recurso de constitucionalidade, norma constante do artigo 5.º da Lei 2078, de 11 de julho de 1955, segundo a qual:

As servidões militares e as outras restrições de interesse militar ao direito de propriedade não dão direito a indemnização.

Entende a decisão recorrida, conforme se depreende do relato atrás feito, que, com a entrada em vigor da Constituição da República esta norma, constante do direito ordinário a ela anterior, se terá tornado (supervenientemente) inválida, por ser contrária ao disposto nos artigos 13.º e 62.º, n.º 2 da CRP.

Subjacente a este entendimento está a assunção do princípio segundo o qual a exclusão legal da indemnização será hoje, neste caso, constitucionalmente proibida, por implicar a servidão militar, no património dos particulares por ela afetados, uma ablação de efeito equivalente ao de uma expropriação, o que, nos termos constitucionais - e por imposição do princípio da igualdade de todos perante os encargos públicos-, só pode ser realizado mediante a concessão ao particular sacrificado da "justa indemnização". Assim se compreende que o tribunal a quo tenha recusado aplicar ao caso dos autos o referido artigo 5.º da Lei 2078, por a entender contrária ao princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) e da justa indemnização [em caso de expropriação por utilidade pública] (artigo 62.º, n.º 2).

A servidão militar é uma forma de servidão administrativa. E o que caracteriza a servidão administrativa (segundo Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 9.ª ed., 1983, p. 1053) é o "facto" de ser sempre imposta por lei: "[a]s servidões administrativas não se constituem por ato jurídico, resultam imediatamente da lei e do facto da existência de uma coisa pública, ou particular mas com utilidade pública, que a lei considere dominante dos prédios vizinhos. Não há, pois, servidões administrativas constituídas por ato jurídico concreto (artigo 1547.º, n.º 1, do Código Civil) [...] O que há é casos (servidões militares, por ex.) em que se torna necessário um ato de definição da área abrangida: mas não há aí servidão constituída por ato administrativo, porque o decreto ou o despacho, neste caso, não constituem a servidão, apenas se limitam a fixar os respetivos limites, pressupondo-a existente segundo a lei." (ob. e loc. cits.)

De acordo ainda com o mesmo autor, a servidão administrativa, para além de ser sempre constituída por lei, caracterizar-se-ia ainda por "só dar lugar a indemnização por disposição expressa da mesma lei".

É precisamente esta a "característica" cuja inconstitucionalidade agora se sustenta, de acordo com o princípio segundo o qual o direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário ao disposto na Constituição ou aos princípios nela consignados (artigo 290.º da CRP). Com efeito, a norma em juízo no caso concreto, ao excluir expressamente a concessão de indemnização em situações de constituição de servidão militar, não está senão a aplicar, a este tipos particular de servidões administrativas, a ideia geral atrás expressa, segundo a qual a imposição destas últimas só é acompanhada de compensação indemnizatória se o legislador assim o determinar.

Em causa está portanto a questão de saber se face à ordem constitucional hoje vigente - que, como já se viu, exige o igual tratamento de todos perante os encargos públicos - continua o legislador ordinário a ser livre para prever ou excluir a indemnização, quanto aos atos por ele próprio praticados e dos quais decorra, como efeito imediato, a constituição de servidões administrativas.

6 - Assim equacionada, a questão está longe de ser nova para a jurisprudência do Tribunal. E compreende-se bem por que motivo tal sucede.

Durante a vigência da Constituição de 1933, a exclusão, por lei, de indemnização em caso de servidão administrativa pela própria lei instituída não conformava em si mesmo um problema jurídico-constitucional. Numa ordem assente, praticamente, sobre o primado da lei e não sobre o primado da constituição, cabia naturalmente ao legislador ordinário a última palavra quanto à questão de saber em que circunstâncias deveriam ser indemnizados os sacrifícios patrimoniais impostos a privados em nome da prossecução do interesse público.

Já não assim, porém, numa ordem assente no primado da Constituição (desde logo, artigo 3.º, n.º 3, da CRP).

Uma vez que desse primado decorre a vinculação do legislador ao princípio da igualdade de todos perante os encargos públicos (artigos 13.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2, da CRP), o juízo que a própria lei fizer quanto à justeza da exclusão de indemnização - nos casos de servidões administrativas que, como a dos presentes autos, impõem limitações ao direito de edificar em solos de que se é proprietário - só não merecerá censura se se concluir que tal exclusão não ofende qualquer princípio constitucional. A simples afirmação legal de que a servidão instituída não dá lugar a qualquer indemnização não é portanto, à luz do ordenamento constitucional vigente, nem "insindicável" nem "soberana". Por isso mesmo, bem se compreende que a questão central que os presentes autos colocam esteja longe de ser nova para a jurisprudência do Tribunal.

Dito isto, há porém que sublinhar um traço essencial que acompanha toda esta jurisprudência.

Através dela nunca foi dito que seria sempre inconstitucional a norma legal que não previsse qualquer indemnização para a imposição de sacrifícios patrimoniais privados de natureza análoga aos que ocorrem no caso concreto.

Na verdade, se o juízo de inconstitucionalidade ocorreu numa série de decisões (acórdãos n.os 262/93, 594/93, 329/94, 405/94, 72/95, 112/95, 142/95, 154/95, 230/95, 588/95, 665/95, 147/96), noutra (acórdãos n.os 329/99, 544/01 e 347/03), o juízo foi o da não inconstitucionalidade, por se entender que a imposição de limites ao direito de edificar em solo de que se é proprietário não consubstanciava uma lesão da propriedade que, à luz do princípio da igualdade perante os encargos públicos, impusesse, como condição da sua licitude, a previsão legal da indemnização.

Nesta última série de decisões estava em causa a prossecução de fins de interesse público como o do ordenamento do território, a constituição de reservas ecológicas e agrícolas, e outros "vínculos situacionais" da propriedade que o Tribunal entendeu poderem ser constituídos pelo legislador ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 62.º da CRP.

Pelo contrário, na primeira série de decisões, em que o juízo de inconstitucionalidade incidiu sobre a norma legal que excluía a indemnização, o Tribunal entendeu que a aplicação aos casos do disposto no n.º 2 do artigo 62.º da CRP impunha a concessão contemporânea da justa indemnização.

É, pois, à luz deste lastro jurisprudencial que deve resolver-se a questão sob juízo.

7 - Numa longa série de acórdãos proferidos em controlo concreto de normas (cf. os já citados acórdãos n.os 262/93, 594/93, 329/94, 405/94, 72/95, 112/95, 142/95, 154/95, 192/95, 230/95, 588/95, 665/95 e 147/96) o Tribunal julgou inconstitucional o disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei 845/76, de 11 de dezembro, "na medida em que não consente a indemnização do prejuízo resultante da imposição de uma servidão non aedificandi sobre parcela sobrante de terreno expropriado, por violação dos artigos 13.º e 62.º, n.º 2, da Constituição" [fórmula decisória do Acórdão 262/93].

Em alguns destes arestos, a dimensão normativa julgada inconstitucional foi recortada de forma mais "fina". Assim, e por exemplo nos Acórdãos n.os 329/94,72/95, 665/95, 142/95, 192/95, 154/95, e 250/95, o Tribunal decidiu "[j]ulgar inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2, da Constituição, a norma constante do n.º 2 do artigo 3.º do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei 845/76, de 11 de dezembro, enquanto não permite que haja indemnização pelas servidões derivadas diretamente da lei, desde que a servidão resulte para a totalidade da parte sobrante de um prédio na sequência de um processo de expropriação incidente sobre tal prédio, e quando este, antecedentemente àquele processo, tivesse já aptidão edificativa".

O n.º 2 do artigo 3.º do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei 845/76, de 11 de dezembro, dispunha do seguinte modo:

As servidões derivadas diretamente da lei não dão direito a indemnização, salvo quando a própria lei determinar o contrário

Na sequência dos continuados juízos de inconstitucionalidade proferidos sobre esta norma em fiscalização concreta (e que, no entanto, nunca chegaram a confluir em declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nos termos das disposições combinadas dos artigos 281.º, n.º 3 da CRP e da 82.º da LTC), o legislador, aquando da redação da Lei 168/99, de 18 de setembro, decidiu resolver de maneira bem diversa a questão da indemnização devida em caso de constituição de servidão administrativa.

Foi assim que o Código das Expropriações de 1999 (aprovado pela lei acabada de referir), dedicando o seu artigo 8.º às "servidões administrativas", veio estatuir, no n.º 2 do mesmo preceito:

2 - As servidões, resultantes ou não de expropriações, dão lugar a indemnização quando:

a) Inviabilizem a utilização que vinha sendo dada ao bem, considerado globalmente;

b) Inviabilizem qualquer utilização do bem, nos casos em que este não esteja a ser utilizado;

c) Anulem completamente o seu valor económico.

Como vimos, foi precisamente esta a disposição que o tribunal a quo aplicou ao caso concreto - condenando, com fundamento nela, o Estado português ao pagamento de uma indemnização ao particular afetado - por entender inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 13.º, n.º 1 e 62.º, n.º 2, da CRP, a norma da lei de 1955, que determinava que [a]s servidões militares e as outras restrições militares ao direito de propriedade não dão direito a indemnização.

8 - Independentemente das diferenças existentes entre as respetivas fórmulas decisórias, os acórdãos do Tribunal que julgaram inconstitucional o n.º 2 do artigo 3.º do Código das Expropriações de 1976 - conduzindo, como acabámos de ver, à nova solução legislativa adotada em 1999 - fundaram-se todos nos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da "justa indemnização", para aplicar às servidões non aedificandi o instituto do n.º 2 do artigo 62.º da CRP. Como se disse no Acórdão 262/93: "[à] imposição de um vínculo de inedificabilidade imposto no interesse público a um particular, em consequência de um processo de expropriação parcial, sobre a parcela sobrante do terreno expropriado, não pode a lei ligar a exclusão necessária e automática de uma indemnização. [...] Do mesmo modo que na expropriação clássica, configura-se aí um "ato de império» (Oliveira Ascensão), incidente sobre uma posição de valor económico juridicamente relevante. [...] A justa indemnização vem precisamente realizar a "descompressão» da esfera jurídico-patrimonial do particular onerado, transmudando o resultado do ato lesivo numa situação equivalente à que corresponderia a uma ausência de interferência estadual. Isso traduz uma exigência dos princípios constitucionais do Estado de direito (responsabilidade por atos lesivos dos direitos dos particulares) e da igualdade (o dano não pode implicar um acréscimo desigual e injustificado da contribuição dos cidadãos para os encargos públicos)."

Porém, e apenas com este lastro jurisprudencial, não pode dar-se por resolvida a questão colocada no caso, no sentido de, também em relação a ela, se concluir já pelo juízo de inconstitucionalidade.

A razão por que tal sucede não reside tanto na particularidade distintiva dos casos concretos em que foram proferidos os juízos de inconstitucionalidade acima mencionados, e em que ocorrera sempre um processo de expropriação em "sentido clássico", sendo a servidão non aedificandi, incidente sobre a parcela restante do território não expropriado, constituída em consequência da expropriação. É certo que esse traço distintivo não está presente na questão sub judicio. Mas não é por esse facto que a doutrina constante da jurisprudência acima mencionada se mostra incapaz de, por si só, fornecer uma solução imediata para a questão que agora é colocada ao Tribunal. Como se disse, ainda que interrogativamente, em declaração de voto aposta ao Acórdão 262/93, não se compreende por que razão haveria que restringir-se o juízo de inconstitucionalidade nele feito, e atentos os fundamentos para tanto invocados, apenas às hipóteses em que a constituição da servidão se conjugasse com um processo expropriativo hoc sensu. Aliás, que assim é demonstra-o a forma como o legislador ordinário, ao elaborar o Código das Expropriações de 1999, interpretou os continuados juízos de inconstitucionalidade que o Tribunal proferiu sobre o artigo 3.º, n.º 2, do Código de 1976. Como vimos, o artigo 8.º, n.º 2, do Código de 1999 prevê as situações típicas em que a constituição da servidão administrativa deve dar lugar ao pagamento de uma indemnização, quer tal servidão resulte, ou não, de expropriação. Não é pois o facto de, no caso, a servidão militar ter sido constituída à margem de qualquer processo expropriatório que, só por si, impede que se estenda para ele, sem ulteriores indagações, o juízo de inconstitucionalidade. O que se mostra verdadeiramente impeditivo desta extensão é antes o facto de o Tribunal nunca ter dito que toda e qualquer servidão administrativa, diretamente imposta por lei, deveria ser acompanhada da devida indemnização, a conceder, nos termos dos artigos 13.º e 62.º, n.º 2, da CRP, ao proprietário por aquela afectado (cf. supra, ponto 6).

9 - Com efeito, à questão de saber se é indemnizável a servidão administrativa diretamente decorrente da lei só pode ser dada resposta afirmativa se, antes dela, se tiver respondido também afirmativamente a uma outra questão que, logicamente, lhe é prévia. Consiste esta última em saber se à lei que impõe a servidão deve ser "aplicado" o n.º 2 do artigo 62.º da CRP ou se, diferentemente, essa lei se inclui antes na previsão genérica do n.º 1 do mesmo artigo.

Dizendo de outro modo: a afirmação da indemnizabilidade da servidão diretamente imposta por lei depende da qualificação que se fizer do ato legislativo que impõe a servidão, atendendo aos seus efeitos. Se se entender que, por força desse ato, ao particular afetado é imposto um sacrifício grave e especial que merece reparação, de acordo com as exigências decorrentes do princípio da igualdade de todos perante os encargos públicos, a aplicação ao caso do disposto no n.º 2 do artigo 62.º da CRP encontra-se valorativamente justificada. Contudo, e uma vez que a afetação legal do direito de propriedade pode traduzir-se em outra coisa que não a imposição ao particular de um sacrifício grave e especial - pode traduzir-se antes na mera conformação legal da propriedade, através da delimitação genérica do seu conteúdo e limites - importa antes do mais qualificar a lei que impõe a servidão, de modo a que se saiba se dos seus efeitos decorre a ablação indemnizável do direito ou apenas a estrita conformação legal do mesmo.

Se se concluir por esta última hipótese, ao caso será aplicável o n.º 1 do artigo 62.º da CRP, e não o disposto no seu n.º 2.

Com efeito - e como se disse, entre outros, no Acórdão 421/2009 - no n.º 1 do artigo 62.º a Constituição endereça ao legislador ordinário uma "ordem de regulação». Para que se cumpra a imposição constitucional de garantia da propriedade, é necessário que a lei ordinária defina os limites e o conteúdo que o direito [de propriedade] assume na ordem jurídica. Porém, uma coisa é o definir, por lei, o conteúdo e limites do direito de propriedade; e outra coisa bem distinta é o impor, por lei, um sacrifício grave e especial ao proprietário cujo direito foi previamente definido por lei conformadora. Enquanto a lei que conforma a propriedade se "subsume" ao disposto no n.º 1 do artigo 62.º da CRP, a lei que sacrifica a propriedade contém-se valorativamente na previsão do instituto a que se refere o n.º 2 do mesmo artigo.

Daqui decorre uma importante consequência, a qual pode ser resumida do seguinte modo.

A lei que conforma a propriedade, ou seja, que define o conteúdo e limites que o correspondente direito assume na ordem jurídica, pode vir a ser inconstitucional por eventual violação dos princípios constitucionais pertinentes - v-g., da igualdade e da proporcionalidade. Contudo, e uma vez que através dela se não opera um sacrifício grave e especial que faça recair a ablação legislativa na fattispecie do n.º 2 do artigo 62.º, a sua inconstitucionalidade não pode decorrer do simples facto de a lei "ablativa" ter expressamente excluído a previsão de indemnização. Diversamente: se a lei que impõe a servidão se mostrar, pelos seus efeitos agressivos, geradora de um sacrifício grave e especial para o particular e, portanto, valorativamente idêntica ao ato dos poderes públicos que, nos termos do n.º 2 do artigo 62.º da CRP impõe, por razões de utilidade pública, a expropriação, então, a simples exclusão por parte dessa lei da indemnização devida (indemnização essa que, nos termos constitucionais, é condição de licitude do ato expropriatório) será fundamento do juízo de inconstitucionalidade.

Como, no presente caso, o pedido que é endereçado ao Tribunal se cifra na questão estrita da indemnizabilidade da servidão (e não em questão diversa, que é a de saber se as leis que impuseram a servidão militar conformaram inconstitucionalmente o limite e o conteúdo do direito de propriedade: recorde-se que está em juízo apenas a norma legal de 1955 que expressamente exclui a concessão de indemnização em caso de constituição de servidão militar, e não as normas legais nos termos das quais a servidão foi constituída) para a sua resolução importa, antes do mais, determinar o tipo de efeitos que a constituição da servidão provocou.

Tal exige que atentemos em todo o regime jurídico que disciplina a servidão militar a que se refere o caso dos autos, e não apenas naquela parte desse regime que vem agora impugnada - e que consta da norma que expressamente exclui a concessão da indemnização.

10 - A norma sub judicio consta da Lei 2078, de 11 de julho de 1955, diploma que regula o regime jurídico relativo à constituição de uma servidão militar ou a outras restrições de interesse militar ao direito de propriedade.

Nos termos do disposto no artigo 1.º desse diploma, "[a]s zonas confinantes com organizações ou instalações militares ou de interesse para a defesa nacional, de caráter permanente ou temporário, ficam sujeitas a servidão militar nos termos da presente lei», prevendo-se ainda o estabelecimento de outras restrições ao direito de propriedade em zonas não confinantes com organizações ou instalações militares ou de interesse para a defesa nacional.

As finalidades que, nos termos do artigo 2.º desse diploma, justificam a constituição de servidões militares e de outras restrições de interesse militar ao direito de propriedade são a de garantir a segurança das organizações ou instalações militares ou de interesse para a defesa nacional; garantir a segurança das pessoas e dos bens nas zonas confiantes com certas organizações ou instalações militares ou de interesse para a defesa nacional; permitir às forças armadas a execução das missões que lhes competem, no exercício da sua atividade normal ou dentro dos planos de operações militares e manter o aspeto geral de determinadas zonas com particular interesse para a defesa do território nacional, procurando evitar o mais possível a denúncia de quaisquer organizações ou equipamentos militares nelas existentes.

Do regime legal importa ainda destacar que as servidões militares se classificam em "servidões gerais» e "servidões particulares».

Enquanto as servidões gerais compreendem a proibição de executar, sem licença da autoridade militar competente, todos os trabalhos e atividades previstas nas diferentes alíneas do artigo 9.º desse diploma, as servidões particulares compreendem a proibição de executar, sem licença da autoridade militar competente, aqueles dos trabalhos e atividades previstos no artigo 9.º que forem especificados no decreto respetivo, em harmonia com as exigências próprias da organização ou instalação considerada.

O regime da servidão militar a que se refere o caso dos autos consta do Decreto 47 040, de 4 de junho de 1966, aí se determinando, no seu artigo 2.º, que a área em questão fica sujeita a uma servidão particular, nos termos dos artigos 12.º e 13.º da Lei 2078 - preceitos que se referem a servidões respeitantes a zonas de segurança.

Em observância da imposição legal de especificação do âmbito de uma servidão particular, o artigo 2.º do Decreto 47 040, determina que é proibida, sem licença prévia da autoridade militar competente, entre outros trabalhos e atividades, "fazer construções de qualquer natureza».

Os critérios legais a que deve obedecer a apreciação de pedidos de licenciamento em áreas sujeitas a servidões militares constam do artigo 10.º do Decreto-Lei 45 986, de 22 de outubro de 1964, coincidindo tais critérios com as finalidades que, nos termos do artigo 2.º da Lei 2078, justificam a constituição de servidões militares e de outras restrições de interesse militar ao direito de propriedade.

11 - Considerando, de modo integrado, todo este quadro normativo verifica-se que, ao disciplinar a constituição da servidão militar a que se refere o caso dos autos, o legislador está ainda a dar cumprimento à imposição que para ele da Constituição decorre de determinação do conteúdo e limites da propriedade.

Com efeito, a limitação que desse regime decorre para a utilização privada do imóvel é feita em termos gerais e abstratos dos direitos e deveres dos proprietários. Atendendo às obrigações que são constitucionalmente impostas ao Estado em matéria de defesa nacional (artigo 273.º da CRP), o legislador vem delimitar, através de uma medida dirigida por igual a todos os proprietários nas mesmas condições, o conteúdo da propriedade, dele excluindo certas faculdades de utilização privada do imóvel pela necessidade de prosseguir os valores protegidos no Título X da Parte III da Constituição.

Além do mais, a servidão em questão não implica, verdadeiramente, perda da aptidão para construir, mas apenas a sujeição de trabalhos e atividades, entre os quais se inclui "fazer construções de qualquer natureza», a licença da autoridade militar competente, sendo que tal ato administrativo está vinculado a critérios estabelecidos por lei, constantes do artigo 10.º do Decreto-Lei 45 986, de 22 de outubro de 1964, ficando a capacidade edificativa dos prédios onerados com uma servidão militar dependentes da avaliação, em concreto, da compatibilidade dos projetos que forem apresentados às autoridades militares com os fins que presidiram à constituição da servidão.

Assim, não se está, de todo em todo, perante a subtração de uma concreta posição jurídica, garantida pela Constituição, para a realização de um fim de interesse público determinado.

Estar-se-á antes perante normas jurídico-públicas que, por razões constitucionais bem identificadas (tal como acontece, por exemplo, com as normas de direito do urbanismo e de ordenamento do território: cf. supra, ponto 6 e os acórdãos n.os 329/99, 544/01 e 347/03, aí citados) impõem limitações gerais ao jus aedificandi, limitações essas cuja definição ainda se enquadra na "ordem de regulação» que a Constituição endereça ao legislador ordinário, nos termos do n.º 1 do artigo 62.º, para que "conforme a propriedade» de acordo com os seus próprios valores. Neste caso, os valores - que, tal como aqueles que presidem ao direito do urbanismo e ao ordenamento do território, decorrem de outros lugares do sistema constitucional que não o relativo à garantia da propriedade - justificam em abstrato que se comprima a faculdade, que detém o particular, de construir no terreno de que é proprietário. São eles as exigências decorrentes da defesa nacional (Título X da Parte III), que explicam a necessidade de, por razões de segurança das pessoas e bens, impedir a construção de edifícios em determinados perímetros territoriais confinantes com instalações militares.

É certo que, enquanto lei [ou melhor dito: regime jurídico: aqui o termo "lei" é empregue por antonomásia] conformadora da propriedade, todo o regime jurídico que acabámos de analisar, e que disciplina, no caso dos autos, a servidão militar, pode ser - como qualquer outra lei - jurídico-constitucionalmente questionada. Pode, como já se disse, indagar-se se a seu respeito se cumprem princípios constitucionais pertinentes, como os princípios da igualdade e da proporcionalidade. O que não pode contudo é entender-se que a concessão da indemnização é condição da sua licitude constitucional. Tal só se sucederia, como se afirmou acima (cf. supra, ponto 5) se a lei em causa pudesse vir a ser tida, não como lei conformadora da propriedade mas como lei ablativa da mesma, porque geradora para o particular de um sacrifício grave e especial valorativamente idêntico ao previsto pelo instituto que o n.º 2 do artigo 62.º da CRP consagra. Nesse caso e só nesse, seria a concessão de uma indemnização a conditio sine qua non da licitude constitucional da medida legislativa.

Dirigindo-se o presente recurso a essa pretensão e não a outra - uma vez que apenas se impugna a inconstitucionalidade da não concessão da indemnização -, e não podendo a norma legal "subsumir-se" ao disposto no n.º 2 do artigo 62.º da CRP, nada mais resta do que, proferindo um juízo de não inconstitucionalidade, negar provimento ao recurso interposto.

III - Decisão

Nestes termos, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 5.º da Lei 2078, de 11 de julho de 1955, que estabelece que "[a]s servidões militares e as outras restrições de interesse militar ao direito de propriedade não dão direito a indemnização»;

b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o ora decidido quanto à questão de constitucionalidade.

Sem custas.

Lisboa, 25 de junho de 2014. - Maria Lúcia Amaral - José Cunha Barbosa - Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida nos termos da declaração que junto) - Joaquim de Sousa Ribeiro - tem voto de conformidade a Senhora Conselheira Maria João Antunes, que não assina por entretanto ter cessado funções no Tribunal - Maria Lúcia Amaral.

Declaração de Voto

Vencida pelos seguintes fundamentos:

1 - Considero que a norma constante do artigo 5.º da Lei 2078, de 11 de julho de 1955 é inconstitucional, por violação do direito de propriedade, uma vez que afasta, de uma forma absoluta, o dever de indemnização em caso de imposição de servidões militares ou de outras restrições de interesse militar. Esse dever de indemnizar é afastado mesmo quando se dá uma ablação do direito de propriedade de efeito equivalente ao de uma expropriação.

De facto, a inconstitucionalidade de norma legal que não prevê qualquer indemnização para a imposição de sacrifícios patrimoniais privados de natureza análoga ao da expropriação decorre, pacificamente, da jurisprudência do Tribunal Constitucional (citada aliás, no presente acórdão). Numa expressiva linha de decisões, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional o disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Código das Expropriações, então em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei 845/76, de 11 de dezembro, (CE76) na medida em que não previa a indemnização do prejuízo resultante da imposição de uma servidão non aedificandi sobre certos terrenos, por violação dos artigos 13.º e 62.º, n.º 2, da Constituição. Ora, a redação desse preceito do CE76 - "As servidões derivadas diretamente da lei não dão direito a indemnização, salvo quando a própria lei determinar o contrário»- é literalmente muito próxima da norma que é objeto da presente decisão - "As servidões militares e as outras restrições de interesse militar ao direito de propriedade não dão direito a indemnização».

A servidão militar aqui em causa é uma servidão administrativa equivalente à que se encontrava prevista no Código das Expropriações e que foi reiteradamente julgada inconstitucional.

2 - É certo que o Tribunal Constitucional nunca afirmou que toda e qualquer servidão administrativa, diretamente imposta por lei, deveria ser acompanhada da devida indemnização, a conceder, nos termos dos artigos 13.º e 62.º, n.º 2, da CRP, ao proprietário por aquela afetado, mas isso não esgota a questão de constitucionalidade colocada no caso em presença. No caso do presente recurso, o que é pedido ao Tribunal é que avalie a desconformidade constitucional de uma norma (cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo) que afasta sempre o dever de indemnizar pelos sacrifícios patrimoniais decorrentes de servidão militar, ainda que estes se apresentem como equivalentes aos sacrifícios decorrentes de uma expropriação.

3 - O acórdão parece alhear-se da eventualidade de uma imposição de uma servidão militar poder originar, em certos casos, um nível de sacrifício que justificaria o direito a indemnização, aceitando a conformidade constitucional de uma norma segundo a qual a servidão militar nunca dá origem a indemnização.

Ora, uma tal norma, só por si, demonstra ser desproporcionada por excessiva, e, em consequência, violadora do direito de propriedade - porque exclui sempre, independentemente do caso, o dever de indeminização.

4 - É também verdade que o regime em análise se apresenta como geral e abstrato, aplicando-se, tendencialmente, a todos os proprietários nas mesmas condições, com o objetivo de assegurar a prossecução de fins de interesse público. Tal como é correto afirmar que não existe uma ablação total da propriedade - ela não muda de mãos.

Mas, mais uma vez, essa não é a questão. A questão objeto do presente processo prende-se com o facto de o regime de instituição de uma servidão militar poder levar a um sacrifício do direito de propriedade - dele excluindo certas faculdades de utilização privada do imóvel -, que seja equivalente ao sacrifício expropriatório, sem que exista o correspondente dever de indemnização decorrente do artigo 62.º, n.º 2, da Constituição. Com efeito, no regime aplicável aos terrenos que ficam onerados pelas servidões em presença, os prédios em causa ficam sujeitos ao disposto no artigo 2.º do Decreto 47 040, que proíbe, sem licença prévia da autoridade militar competente, entre outros trabalhos e atividades, "fazer construções de qualquer natureza». Os critérios legais a que deve obedecer a apreciação de pedidos de licenciamento em áreas sujeitas a servidões militares constam do artigo 10.º do Decreto-Lei 45 986, de 22 de outubro de 1964. Acontece que esses critérios se encontram definidos de uma forma tão geral, utilizando cláusulas de tal forma indeterminadas (como "permitir às Forças Armadas a execução das missões que lhes competem» ou a garantia "do funcionamento das instituições militares»), que concedem um enorme grau de discricionariedade às autoridades militares, à margem da possibilidade de controlo judicial - como se pode ver no presente processo.

5 - De acordo com o acórdão, não se está aqui perante uma restrição do direito de propriedade, mas apenas a sua conformação ou limitação. No entanto, tendo em conta o espaço de livre decisão administrativa concedido às autoridades militares, a verdade é que o proprietário se encontra numa posição de sujeição que pode ter efeitos próximos dos expropriativos. Como refere José de Melo Alexandrino, "A distinção entre "restrição" e "limitação" é, no entanto, relativa, uma vez que uma limitação pode transformar-se facilmente numa restrição. É isso que acontece, por exemplo, se for exigida uma autorização prévia discricionária [...]» (cf. José de Melo Alexandrino, Direitos Fundamentais Introdução Geral, Princípia, 2011, pp. 124-125). Assim, apesar de formalmente ser correto afirmar que a servidão em questão não implica, verdadeiramente, perda da aptidão para construir, a verdade é que coloca o seu proprietário numa posição em que essa aptidão se encontra inteiramente nas mãos de uma autoridade administrativa, que sobre ela decidirá casuisticamente.

Sem pôr em causa o pressuposto de que parte o acórdão de que a concessão da indemnização não é condição da licitude constitucional de norma "conformadora" do direito de propriedade, entendo no entanto, que a proibição absoluta de concessão de indemnização - sem qualquer exceção - pode afastar essa licitude, nos casos em que - como no presente - surja como uma solução excessivamente gravosa para o direito de propriedade.

6 - Para além disso, numa perspetiva mais genérica, não concordo com certos aspetos da fundamentação do presente acórdão. De acordo com o que se retira do acórdão a lei, na medida em que possa ser vista como reguladora ou conformadora do direito de propriedade, de uma forma geral e abstrata, nunca poderia ser considerada violadora deste direito, apenas podendo ser julgada inconstitucional à luz de princípios genéricos como a igualdade ou a proporcionalidade. Uma lei violaria o direito de propriedade privada na medida em que, ela própria corporizasse uma concreta ablação do direito de propriedade de uma pessoa ou conjunto de pessoas. Todavia, aceitar esta visão é aceitar o esvaziamento do âmbito de proteção de um direito fundamental absolutamente central, como é o direito de propriedade. Na medida em que se aceite que o direito de propriedade privada é um direito fundamental ao qual é aplicável o regime constante no artigo 18.º da Constituição, não pode deixar de se aceitar também que as restrições ao direito de propriedade terão de ser controláveis pela jurisdição constitucional, a essa luz, mesmo que não imponham um sacrifício grave e especial para um particular.

A norma objeto do presente recurso configura uma restrição de um direito fundamental - o direito de propriedade. O jus aedificandi não deve ser visto como uma mera concessão do poder público - antes está intrinsecamente relacionado com o direito de propriedade e assim deve ser analisado. O que não significa que não possa ser afetado, comprimido ou até suprimido. Na "perspetiva jusfundamental [...], o problema das servidões administrativas non aedificandi e de quaisquer restrições por utilidade pública ao direito de propriedade privada do solo deve ser sempre considerado como problema de restrições a direitos fundamentais, seja quando se apresentam com a gravidade equivalente a uma expropriação, e, nessa altura, devendo ser correspondentemente tratadas e indemnizadas - independentemente das formulações mais ou menos restritivas da lei - seja, quando, mesmo não apresentando tal gravidade e sendo constitucionalmente legítimas, devam ser eventualmente indemnizáveis em função dos interesses em ponderação, dos prejuízos em causa e das circunstâncias objetivas do caso concreto" (J. Reis Novais, "Ainda sobre o jus aedificandi", in Direitos Fundamentais: trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, 2006, p. 150).

Maria de Fátima Mata-Mouros.

208084962

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/319244.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1955-07-11 - Lei 2078 - Presidência da República

    Promulga o regime a que ficam sujeitas as zonas confinantes com organizações ou instalações militares ou de interesse para a defesa nacional, de carácter permanente ou temporário.

  • Tem documento Em vigor 1964-10-22 - Decreto-Lei 45986 - Presidência do Conselho - Secretariado-Geral da Defesa Nacional

    Define as entidades a quem compete o estudo da constituição, modificação ou extinção das servidões militares a que se refere a Lei nº 2078, de 11 de Julho de 1955, bem como a preparação dos projectos dos respectivos decretos. Dispõe sobre: constituição das servidões licenciamento e participação de trabalhos e actividades nas zonas sujeitas a servidão, fiscalização e infracções.

  • Tem documento Em vigor 1966-06-04 - Decreto 47040 - Ministério do Exército - Gabinete do Ministro

    Define a área dos terrenos confinantes com o quartel da Nazaré e carreira de tiro do Funchal que ficam sujeitos a servidão militar.

  • Tem documento Em vigor 1976-12-11 - Decreto-Lei 845/76 - Ministérios da Justiça e da Habitação, Urbanismo e Construção

    Aprova o Código das Expropriações.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1982-12-11 - Lei 29/82 - Assembleia da República

    Aprova a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1999-09-18 - Lei 168/99 - Assembleia da República

    Aprova, e publica em anexo, o Código das Expropriações.

  • Tem documento Em vigor 2002-02-19 - Lei 13/2002 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, altera o regime jurídico das empreitadas de obras públicas, o Código de Processo Civil, o Código das Expropriações e a Lei de Bases do Ambiente.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2023-06-09 - Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo 2/2023 - Supremo Tribunal Administrativo

    Acórdão do STA de 9 de Março de 2023, no Proc.º n.º 2586/14.3BELSB - 1.ª Secção Uniformiza a Jurisprudência nos seguintes termos: «A deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal de 03.08.2014 que, fazendo aplicação do DL n.º 298/92, de 31.12 [vulgo RGICSF - considerando o teor da Lei n.º 58/2011 e as redações introduzidas àquele DL, nomeadamente, pelo DL n.º 31-A/2012 e pelo DL n.º 114-A/2014], procedeu à aplicação ao BES de medida de resolução não infringiu os comandos constitucionais cons (...)

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