Acordam, em Plenário no Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - O Procurador-Geral da República, nos termos do disposto nos artigos 277.º, n.º 1, 281.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea e), e 282.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), 51.º a 56.º e 62.º a 66.º da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional), e 12.º, n.º 1, alínea c) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei 47/86, de 15 de outubro, vem requerer a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade orgânica da norma constante do artigo 3.º, alínea a), do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, na parte respeitante à expressão "Para efeitos de aplicação da LCPA, entende-se por: a) 'Dirigentes', aqueles que se encontram investidos em cargos políticos».
2 - Para sustentar o seu pedido, alega o requerente, em síntese, que a extensão do conceito "Dirigentes», tal como vertida na norma sub judicio, na medida em que integra "aqueles que se encontram investidos em cargos políticos», tem caráter inovatório, pois institui conceitos legais e efeitos jurídicos que até então não constavam, nem se podiam deduzir, da lei vigente. Ora, atendendo aos efeitos decorrentes dessa inovação, designadamente ao facto de aquele universo de pessoas (titulares de cargos políticos) passar a ser qualificado como "dirigentes» no sentido do artigo 5.º, n.º 1 da LCPA (tendo como consequência que os atos por essas pessoas praticados passam a cair na alçada da responsabilidade cominada na LCPA, de tipo pessoal e solidário, e de natureza civil, criminal, disciplinar e financeira, sancionatória ou reintegratória), a norma impugnada veio dispor inovatoriamente sobre matéria integrada na reserva absoluta de competência da Assembleia da República (artigo 117.º, n.º 1, e ainda, arts. 110.º, n.º 1, 118.º, n.º 2, e 164.º, alínea m) da CRP) sendo, por isso, organicamente inconstitucional.
Assim, e em conclusão, sustenta o requerente:
"25.º
[...]
a) o artigo 5.º, n.º 1, da LCPA contém uma lacuna de previsão, pois não abrange os 'titulares de cargos políticos', incompletude essa 'contrária ao plano da lei';
b) tal lacuna de previsão foi integrada por força da definição legal, inovatória, do artigo 3.º a), do Decreto-Lei 127/2012, cit., que inclui na categoria dos 'dirigentes' todos 'aqueles que se encontram investidos em cargos políticos';
c) consequentemente, todos 'aqueles que se encontram investidos em cargos políticos' ficam adstritos a uma nova obrigação pública, cuja violação os fará incorrer em responsabilidade, a diversos títulos;
d) portanto, a definição e classificação em causa, fica, assim, integrada na previsão do artigo 5.º, n.º 1, e poderá desencadear a aplicação aos titulares de cargos políticos da estatuição dos artigos 9.º, n.º 2 e 11.º, n.º 1, da LCPA, com a decorrente imputação de responsabilidades, formando uma norma completa, de tipo sancionatório.
26.º
Por outras palavras, a definição legal de 'dirigentes' constante do artigo 3.º, al. a), na dimensão que respeita a todos 'aqueles que se encontram investidos em cargos políticos', tem, ipso jure, por efeito jurídico inscrever, no estatuto jurídico dos titulares de cargos políticos, um novo 'dever público', cuja violação os faz incorrer em 'responsabilidade', a diversos títulos.
27.º
Porém, nos termos da Constituição, só a lei (formal) pode dispor 'sobre os deveres, responsabilidade e incompatibilidades dos titulares de cargos políticos' e sobre 'as consequências do respetivo incumprimento' (CRP, artigo 117.º, n.º 1 e, ainda, sobre os limites à renovação sucessiva de mandatos, artigo 118.º, n.º 2).
28.º
Acresce, finalmente, concorrendo no sentido desta ser matéria de reserva de lei formal, que é, também, da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre o 'estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local' [(artigo 164.º, al. m)].
29.º
Sendo certo, por uma parte, que, não raro frequentemente, os titulares de 'cargos políticos' o são igualmente de 'órgãos de soberania' e, por outra parte, que os titulares dos 'órgãos do poder local' são, invariavelmente, 'titulares de cargos políticos'.
30.º
Aliás, em anotação ao artigo 164.º ('Reserva absoluta de competência legislativa'), alínea m), da lei constitucional, nota a melhor doutrina que 'o âmbito da matéria da al. m - estatuto dos titulares de órgãos de soberania e do poder local bem como os restantes órgãos constitucionais ou eleitos por sufrágio direto ou universal - surge claramente delimitado por referência aos arts. 110.º e 117.º Trata-se, entre outras coisas, de definir o regime de responsabilidade de cargos aí mencionados [...]' [Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição de República Portuguesa, Anotada, vol. II, 4.ª ed., revista, 314 (n.º XVIII) (Coimbra: Coimbra Editora, 2010)], sufragando assim a tese segundo a qual a reserva de lei do artigo 164.º, al. m), está referida e abrange a matéria atinente ao estatuto dos titulares de cargos políticos, no sentido do artigo 117.º, n.º 1, da Constituição.
31.º
Por conseguinte, e em conclusão, o Governo, através de definição legal de 'dirigentes' contida no artigo 3.º, al. a), na dimensão que respeita a todos 'aqueles que se encontram investidos em cargos políticos', que é um preceito legal integrado no Decreto-Lei 127/2012, cit., veio dispor inovatoriamente sobre a matéria atinente e integrada na reserva (absoluta) de competência da Assembleia da República [CRP, artigo 117.º, n.º 1, e ainda, arts. 110.º, n.º 1, 118.º, n.º 2 e 164.º, al. m)].
32.º
Termos em que, a norma jurídica constante do artigo 3.º, al. a), do Decreto-Lei 127/2012, cit., na parte respeitante à expressão "Para efeitos de aplicação da LCPA, entende-se por: a) 'Dirigentes', aqueles que se encontram investidos em cargos políticos», infringe as citadas disposições constitucionais em matéria de reserva de lei (formal) e, por conseguinte, é organicamente inconstitucional (CRP, artigo 277.º, n.º 1), a qual deve ser declarada para valer, com força obrigatória geral, nos termos constitucionais (artigo 282.º, n.º 1).»
3 - Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3 da lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro veio oferecer o merecimento dos autos, adiantando, porém, que, no âmbito da discussão na especialidade da Proposta de Lei 102/XII (que procede à segunda alteração à lei do Orçamento do Estado para 2012, aprovada pela Lei 64.º-B/2011, de 30 de dezembro), haviam já sido apresentadas alterações aos artigos 5.º da Lei 8/2012, de 21 de fevereiro, e 3.º do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, que modificariam a norma objeto de fiscalização. O autor da norma juntou ainda aos autos documentos relativos aos trabalhos parlamentares.
4 - Apresentado o memorando a que se refere o n.º 1 do artigo 63.º da lei do Tribunal Constitucional - Lei 28/82, de 15 de novembro - e fixada a orientação do Tribunal, cumpre elaborar o acórdão nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
II - Fundamentação
5 - Questão prévia.
A norma que integra o objeto do pedido insere-se no Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, diploma que contempla as normas legais disciplinadoras dos procedimentos necessários à aplicação da lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso (LCPA), aprovada pela Lei 8/2012, de 21 de fevereiro, e à operacionalização da prestação de informação nela prevista, para o efeito tendo sito emitido nos termos das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição.
Tal norma veio a ser, entretanto, alterada.
Com efeito, pouco tempo depois de ter sido apresentado o pedido ao Tribunal, a 112/97, de 16 de setembro e 8/2012, de 21 de fevereiro, a Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Leis 229/95, de 11 de setembro, 287/2003, de 12 de novembro, 32/2012, de 13 de fevereiro, 127/2012, de 21 de junho, 298/92, de 31 de dezembro e 164/99, de 13 de maio, de 9 de fevereir (...)">Lei 64/2012, de 20 de dezembro, ao proceder à segunda alteração à Lei 64-B/2011, de 30 de dezembro (Orçamento do Estado para 2012), "no âmbito da iniciativa para o reforço da estabilidade financeira", veio modificar quer a Lei 8/2012, de 21 de fevereiro, quer o Decreto-Lei 32/2012, de 13 de fevereiro.
No que à modificação da Lei 8/2012 (LCPA) diz respeito, importa salientar o artigo 8.º da 112/97, de 16 de setembro e 8/2012, de 21 de fevereiro, a Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Leis 229/95, de 11 de setembro, 287/2003, de 12 de novembro, 32/2012, de 13 de fevereiro, 127/2012, de 21 de junho, 298/92, de 31 de dezembro e 164/99, de 13 de maio, de 9 de fevereir (...)">Lei 64/2012, de 20 de dezembro, que passou a dispor do seguinte modo:
"Artigo 8.º
Alteração à Lei 8/2012, de 21 de fevereiro
O artigo 5.º da Lei 8/2012, de 21 de fevereiro (aprova as regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso das entidades públicas) passa a ter a seguinte redação:
'Artigo 5.º
[...]
1 - Os titulares de cargos políticos, dirigentes, gestores e responsáveis pela contabilidade não podem assumir compromissos que excedam os fundos disponíveis, referidos na alínea f) do artigo 3.º
2 - ...
3 - ...
4 - ...
5 - ...'»
Por seu turno, e quanto à alteração do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, determinou o artigo 15.º da 112/97, de 16 de setembro e 8/2012, de 21 de fevereiro, a Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Leis 229/95, de 11 de setembro, 287/2003, de 12 de novembro, 32/2012, de 13 de fevereiro, 127/2012, de 21 de junho, 298/92, de 31 de dezembro e 164/99, de 13 de maio, de 9 de fevereir (...)">Lei 64/2012:
"Artigo 15.º
Alteração ao Decreto-Lei 127/2012, de 21 junho
O artigo 3.º do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho (contempla as normas legais disciplinadoras dos procedimentos necessários à aplicação da lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, e à operacionalização da prestação de informação nela prevista), passa a ter a seguinte redação:
'Artigo 3.º
[...]
...
a) 'Titulares de cargos políticos', aqueles que se encontram investidos em cargos políticos com competências para assunção de compromissos ou autorização de despesas e pagamentos;
b) 'Dirigentes', aqueles que se encontram investidos em cargos de direção superior de 1.º e 2.º graus, ou equiparados a estes para quaisquer efeitos, bem como os membros do órgão de direção dos institutos públicos;
c) [Anterior alínea b)]
d) [Anterior alínea c)]'»
6 - O pedido apresentado pelo requerente ao Tribunal incide sobre a norma constante da alínea a) do artigo 3.º do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, no segmento segundo o qual se entende por "dirigentes», "aqueles que se encontram investidos em cargos políticos».
Não subsistindo esta norma na ordem jurídica após a modificação levada a cabo pela 112/97, de 16 de setembro e 8/2012, de 21 de fevereiro, a Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Leis 229/95, de 11 de setembro, 287/2003, de 12 de novembro, 32/2012, de 13 de fevereiro, 127/2012, de 21 de junho, 298/92, de 31 de dezembro e 164/99, de 13 de maio, de 9 de fevereir (...)">Lei 64/2012, de 20 de dezembro, e estando vedada ao Tribunal a "convolação" do objeto do pedido (artigo 51.º, n.º 5 da LTC), coloca-se antes do mais a questão de saber se se mantém a utilidade do seu conhecimento.
Segundo jurisprudência firme, o facto de terem sido entretanto revogadas normas que constituam objeto de pedido que seja dirigido ao Tribunal nos termos do disposto pelo artigo 281.º da CRP não obsta, por si só, ao conhecimento do mesmo. Uma vez que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral - diferentemente da revogação, que só opera para o futuro - produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional (artigo 282.º, n.º 1, da CRP), pode bem suceder que a resolução do mérito da questão se venha a mostrar útil, designadamente para a eliminação de efeitos que se tenham verificado medio tempore, em resultado da aplicação da norma durante o período que mediou entre a sua entrada em vigor e a [eventual] declaração de inconstitucionalidade (por último, cf. o Acórdão 539/2012).
Simplesmente, e como se disse no Acórdão 238/88, nestas circunstâncias, o interesse em conhecer da questão de constitucionalidade "há de [...] tratar-se de um interesse com conteúdo prático apreciável, pois, sendo razoável que se observe aqui um princípio de adequação e proporcionalidade, seria inadequado e desproporcionado acionar um mecanismo de índole genérica e abstrata, como é a declaração de inconstitucionalidade [...] para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes ou que possam facilmente ser removidos de outro modo». "Por conseguinte, estando em causa normas revogadas, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, só deverá ter lugar - ao menos em princípio - quando for evidente a sua indispensabilidade.»
De acordo com esta doutrina - retomada, por exemplo, nos acórdãos n.os 671/99, 673/99, 45/2000, 413/2000, 531/2000, 140/2002, 19/2007, 497/2007, 31/2009 e no já referido 539/2012 - "não haverá interesse jurídico relevante» ("interesse de conteúdo prático apreciável») em conhecer, em processos de fiscalização abstrata, da eventual inconstitucionalidade de normas revogadas sempre que, perante o caso, se conclua serem suficientes os meios concretos de defesa postos à disposição dos interessados, uma vez que através desses meios se pode vir a impedir, assim acautelando os direitos daqueles últimos, a aplicação da norma inconstitucional.
É o que ocorre no presente processo. Por um lado, o período de vigência da norma impugnada resume-se a um espaço de meses, pelo que não parece que seja evidente que a sua aplicação tenha produzido efeitos tais que tornem indispensável a resolução da questão de constitucionalidade em processo de fiscalização abstrata. Por outro lado, e caso tenham sido, durante o curto período de vigência da norma, produzidos efeitos que devem ser eliminados, sempre estará à disposição dos interessados a via da fiscalização concreta da constitucionalidade, como meio idóneo e suficiente para obviar à aplicação da norma questionada.
Não se afigurando adequado (ou "proporcionado») acionar os meios próprios da fiscalização abstrata da constitucionalidade para corrigir ou eliminar efeitos entretanto produzidos por tal norma, durante o breve período da sua vigência, deverá concluir-se que, por inutilidade superveniente, se não deve conhecer do mérito do pedido formulado.
III - Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 3.º, alínea a), do Decreto-Lei 127/2012, de 21 de junho, na parte respeitante à expressão "Para efeitos de aplicação da LCPA, entende-se por: a) 'Dirigentes', aqueles que se encontram investidos em cargos políticos».
Lisboa, 17 de junho de 2014. - Lino Rodrigues Ribeiro - Catarina Sarmento e Castro - João Cura Mariano - Maria José Rangel de Mesquita - Pedro Machete - Ana Guerra Martins - João Caupers - Fernando Vaz Ventura - Maria Lúcia Amaral - José da Cunha Barbosa - Carlos Fernandes Cadilha - Maria de Fátima Mata-Mouros - Joaquim de Sousa Ribeiro.
207951328