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Acórdão 134/2010, de 8 de Junho

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Sumário

Decide julgar ilegal a norma do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 83/98, de 14 de Dezembro, que criou o município da Trofa. (Proc nº 732/07).

Texto do documento

Acórdão 134/2010

Processo 732/07

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 1706 a 1713, com fundamento na recusa de aplicação das normas dos artigos 4.º, n.º 1, alínea h), 11.º, n.º 1, 15.º e 17.º, da Lei 48/99, de 16 de Junho, e do artigo 4.º n.º 1, da Lei 83/98, de 14 de Dezembro, por violação da Lei 142/85, de 18 de Novembro (Lei Quadro da Criação de Municípios), que qualificou como lei de valor reforçado.

2 - A decisão recorrida manteve a condenação do Estado a pagar ao Município de Santo Tirso a quantia de (euro)4.942.718,00, na acção por este instaurada na sequência da criação do Município da Trofa pela Lei 83/98, de 14 de Dezembro,

com a seguinte fundamentação:

«[...]

Trata-se de acção instaurada nos tribunais comuns por um Município contra o Estado em que se pretende efectivar responsabilidade civil do Estado decorrente da sua

actividade legislativa.

Refira-se, antes de mais, para melhor delimitar o âmbito do recurso, que as instâncias conheceram da totalidade do pedido formulado no montante global de 72.923.268 contos de alegados prejuízos decorrentes da amputação da área que passou a constituir o novo município da Trofa, ou seja, os que respeitam:

a) À perda de receitas relativas à contribuição autárquica, ao imposto sobre veículos, à sisa, derrama e outras taxas de serviços pagos pelo sector produtivo;

b) À perda de transferência de capital (verbas provenientes do orçamento do Estado) e de rendimentos não obtidos pela perda de investimentos e oportunidades;

c) À menor capacidade de endividamento;

d) À perda de escolas, jardins-de-infância, feira de mercado e casa de cultura da Trofa, parte da rede viária municipal e parte da rede de água, saneamento e

equipamento relacionado;

e) A perda de terrenos e diverso mobiliário urbano;

f) À manutenção dos custos da sobredimensão, designadamente, os respeitantes aos funcionários afectos aos serviços municipais que se tornaram excedentários.

Só quanto aos prejuízos correspondentes à sobredimensão do quadro de pessoal resultante da diminuição da área e população com a criação do novo município, é que a acção procedeu e por um valor que representa, sensivelmente, 1/72 do montante reclamado, ou seja, o Município de Santo Tirso logrou obter indemnização que corresponde, apenas, a cerca de setenta vezes menos o valor que reclamou.

Daí que na presente revista se deva ter em conta, somente, a parte em que o recorrido decaiu que corresponde, naturalmente, à medida do vencimento do recorrente.

O acórdão confirmou a muito douta sentença do tribunal da Comarca de Santo Tirso, Trata-se de acção fundada em responsabilidade civil do Estado resultante da prática de acto pretensamente ilícito compreendido nas suas atribuições legislativas através da

Assembleia da República.

Isto é, seria a prática de acto de criação de legislação, ele próprio, violador da ordem

jurídica vigente.

Não se trata aqui de violação do ordenamento constitucional mas antes de violação do ordenamento normativo comum o que só tem sentido se se admitir a existência de uma

certa hierarquia entre leis comuns.

Ou seja, existirão algumas leis com valor reforçado.

Admite-se sem, discrepância, tal categoria de leis desde logo nos casos de autorização parlamentar para que o Governo discipline matérias de competência reservada da

Assembleia da República.

As leis de autorização legislativa estabelecem os parâmetros ou limites da competência do Governo para a regulação da matéria em causa.

Se tais limites forem ultrapassados logo ocorrerá ilicitude do acto legislativo do

Governo.

Porém, neste caso, será mais rigoroso falar-se de inconstitucionalidade orgânica pois se trata de invasão, pelo Governo, de área da competência legislativa reservada da

Assembleia da República

Mas, como bem referem as instâncias, outras situações existem em que um acto legislativo que contrarie ordenamento anterior não deve ser tido, pura e simplesmente, como revogação das normas que regulavam de modo diferente os casos ou situações

visadas.

É o caso dos diplomas legais que estabelecem, genericamente, e em abstracto, critérios de criação de instituições como sucede, precisamente com a Lei 142/85 de 18/11 que é, justamente, a lei-quadro da criação de municípios.

São aquelas leis que Gomes Canotilho nas suas lições de Direito Constitucional refere como apresentando um conteúdo de natureza paramétrica o qual serve de pressuposto

material a posterior disciplina normativa.

No caso - o da lei quadro da criação de municípios relativamente às leis que, em concreto, criam novos municípios, - estamos perante uma relação de auto vinculação

pois uma e outra provêm do mesmo órgão.

É matéria reservada à Assembleia da República tanto no plano do estabelecimento dum regime geral e abstracto - pressuposto normativo necessário - que deve ser observado no acto da criação individual de cada novo município, como no acto legislativo criador, em concreto, de cada nova realidade municipal.

O problema da existência de leis comuns com tal valor tem hoje consagração constitucional no n.º 2 do artigo 115.º da CRP - versão de 1989 - que expressamente prevê a existência de leis com esse valor não apenas as leis orgânicas, mas todas as que, nos termos constitucionais, sejam pressuposto normativo necessário de outra leis

ou que por outra devam ser respeitadas.

É o caso, claramente, da Lei 142/85 sendo indiscutível a sua diferenciação qualitativa relativamente à Lei 83/98 de 14/12 que criou o município da Trofa inteiramente destacado do município de Santo Tirso.

Da extensa matéria de facto provada que aqui se dá por inteiramente reproduzida, há que destacar, com interesse directo para conhecimento do recurso, o seguinte:

«À data da criação do Município da Trota - Dezembro de 1998 - o Município de Santo Tirso tinha um universo funcional ajustado a 103.000 habitantes e a uma área de

207 kms quadrados.

A criação do Município da Trofa fez com que a parte destacada corresponda a cerca de 32 % da população do Município de Santo Tirso tal como antes se configurava e a

35 % da área do mesmo concelho.,

Com custos de pessoal, no ano de 1998, o A despendeu 1.113.337 contos e, no ano de 1999, não obstante a criação do município da Trofa, manteve esse custo.» Admitindo-se a responsabilidade civil do Estado decorrente da sua actividade legislativa no pressuposto de que esta se traduziu numa ilicitude decorrente da violação de normas com valor reforçado não pode deixar de concordar-se com o entendimento das instâncias quanto à necessidade da existência de um nexo de causalidade entre essa actividade legislativa ilícita e os prejuízos causados ao município de origem.

Daí que, não obstante a inobservância de todos os pressupostos previstos na lei quadro da criação de municípios - a referida Lei 142/85 - a quase totalidade dos prejuízos invocados pelo A - perda de receitas provenientes de impostos e taxas municipais, perda de transferência de capitais e de rendimentos não obtidos e de oportunidades, menor capacidade de endividamento, e todo o equipamento social ligado à área do novo município, bem como a perda de terrenos e mobiliário urbano correspondente à mesma área - constituem diminuições patrimoniais que o município de origem não deixaria de ter ainda que fossem rigorosamente observados todos os requisitos que lei

quadro impõe.

Já assim não sucede com os prejuízos que teve de suportar e foi suportando em consequência do sobredimensionamento dos quadros de funcionários e serviços que teve de manter, após a criação e instalação do município da Trofa não obstante a substancial diminuição quer da população quer da área resultante da amputação territorial e populacional que a criação do novo município implicou.

Tal prejuízo liga-se à inobservância, pelo Estado, através da Lei 83/98, dos artigos 9.º e 8.º da Lei 142/85 que omitiu as menções constantes das alíneas e) e f) daquele artigo 8.º que impunham a e) discriminação, em natureza, dos bens, universalidades, direitos e obrigações do município de origem a transferir para o novo município e f) a enunciação de critérios suficientemente precisos para afectação e imputação ao novo

município, de direitos e obrigações.

Como bem assinalam as instâncias, a Lei 83/98 pretendeu remediar tal omissão através do artigo 4.º que atribuiu à comissão instaladora prevista no seu artigo 3.º, a competência para elaborar uma relação discriminada dos bens, universalidades de direitos e obrigações do município de Santo Tirso a transferir para o novo município.

Mas a solução prevista pela Lei 83/98 para além de brigar com a lei-quadro que não prevê a delegação de competência nessa matéria, comporta um desfasamento temporal por diferir soluções que já deveriam estar nesse acto legislativo, ou seja, a lei-quadro impunha que fosse o acto criador do município a estabelecer, desde logo, a discriminação dos bens e direitos a transferir e a enunciação de critérios tanto quanto precisos para sua afectação e imputação ao novo município.

Não o fez e daí resultou um elemento de ilicitude que - não afectando embora o acto de criação do novo município, como de forma brilhante e com notável profundidade conclui o douto julgador da primeira instância, com inteira concordância da Relação - envolve responsabilidade civil do Estado a qual decorre, como geralmente se vem

entendendo, do artigo 22.º do CRP.

No recurso não é posto em causa o montante, apurado nas instâncias, do prejuízo que a sobredimensão funcional causou ao A. Por isso e porque se trata de matéria alheia ao objecto do recurso, nenhuma objecção se pode levantar a propósito.

De tudo decorre a falta de fundamento das conclusões do recurso.

Nestes termos, negam a revista sem custas por delas estar isento o recorrente.» 3 - Remetidos os autos ao Tribunal Constitucional foram as partes notificadas para alegações, tendo o Ministério Público apresentado as que constam de fls. 1720 a 1724, nas quais, além do mais, delimita o objecto do recurso, nos seguintes termos:

«O presente recurso vem interposto pelo Ministério Público do acórdão, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da acção indemnizatória movida ao Estado Português pelo Município de Santo Tirso, com fundamento na "ilicitude" do acto legislativo consubstanciador da criação do Município da Trofa, - a Lei 83/98 - alegadamente violador de preceitos constantes da lei quadro de criação de municípios - a Lei 142/85 - tida como dotada de "valor reforçado" relativamente àquele primeiro

acto normativo.

Fundando-se o recurso na alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, importa começar por verificar se o acórdão recorrido terá recusado aplicar normas constantes de acto legislativo, alegadamente violados de "lei com valor reforçado", delimitando-lhe

o objecto.

O acórdão proferido pelo Supremo - aderindo, no essencial, a precedentes decisões das instâncias - não põe obviamente em causa a "validade" e a "eficácia" do acto legislativo concreto de criação, pela Assembleia da República, do município da Trofa:

pelo contrário, configurando a referida Lei 142/85 como dotada de "valor reforçado" - e entendendo que determinados procedimentos e condições por ela impostos, de forma geral e abstracta, à criação parlamentar de cada município em concreto - conferiu plena validade ao acto de instituição do município da Trofa, entendendo porém, que a "ilegalidade", decorrente da preterição de certas disposições da referida lei-quadro, dotada (na óptica do Supremo) de valor paramétrico relativamente à lei que, em concreto, institui inovatoriamente certo município, envolveria responsabilidade civil com base no exercício ilegítimo da função legislativa - sendo, nessa perspectiva, julgada parcialmente procedente a acção indemnizatória movida pelo

A.

O Supremo não rejeitou, deste modo, a validade e eficácia do acto legislativo de concreta instituição do município da Trofa (decorrente do artigo 1.º da Lei 83/98 - e que, aliás, não integra o objecto do presente recurso).

Tal como, a nosso ver, não recusou aplicar quaisquer disposições legais constantes da Lei 98/99, de 16 de Junho, que alterou parcialmente o regime constante da referida "lei-quadro" de criação de municípios.

Para além de se não vislumbrar no acórdão recorrido, qualquer linha argumentativa que, de forma expressa ou implícita, pudesse envolver a desaplicação de quaisquer preceitos constantes de tal diploma legal - aliás, posterior à edição da Lei 83/98 - verifica-se que, do ponto de vista lógico-jurídico, seria insustentável a qualificação da Lei 142/85 como lei de "valor reforçado" relativamente às sucessivas e posteriores leis da Assembleia da República que vieram alterar pontos do regime originariamente consagrado à criação, em abstracto, de município.» Posteriormente, após notificação para esse efeito, veio o recorrente completar as suas

alegações com as seguintes conclusões:

"1.º Os atributos de "pressuposto normativo necessário" e de "vinculatividade material"

relativamente a outras leis que caracterizam as leis com valor reforçado têm de derivar directamente da Constituição, não bastando que uma das leis se autoproclame como pressuposto ou parâmetro de validade de outra para que tal supremacia normativa deva

ser reconhecida.

2.º Não pode inferir-se tal valor - constitucionalmente - reforçado de um mero princípio de congruência - lógico - jurídica, traduzido na conclusão de que as leis - concretas ou leis-medida têm de respeitar integralmente a disciplina normativa, delineada pelo mesmo legislador parlamentar no exercício da mesma reserva de competência, em precedente "lei-quadro", definidora, em abstracto, da disciplina jurídica, plenamente actuada e

concretizada pelo ulterior acto legislativo.

3.º Não pode inferir-se das normas constitucionais que submetem a criação ou alteração das autarquias à "reserva de lei", inserindo na competência reservada da Assembleia da República, quer a definição do regime-quadro, quer a concretização de tal regime no momento da instituição de uma nova autarquia, qualquer valor paramétrico do primeiro sobre o segundo de tais actos normativos.

4.º As normas constantes dos artigos 9.º e 8.º, alínea e) e f) do Decreto-Lei 142/85 não detêm valor constitucional reforçado sobre os preceitos normativos que constam da Lei 83/98, pelo que o artigo 4.º, n.º 1, desta lei não padece do vício de violação de lei reforçada, devendo, em consequência, proceder o presente recurso.

Nas contra-alegações apresentadas o Município de Santo Tirso sustentou a inadmissibilidade do recurso, invocando que o acórdão recorrido não desaplicou as normas das Leis n.os 48/99 e 83/98, que constituíam o objecto do recurso, e concluiu

do seguinte modo:

A) O presente recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70.º alínea C) da lei do

Tribunal Constitucional.

B) Definido o seu objecto, não pode ser ampliado nas Alegações.

C) Parece seguro que o Acórdão do S.T.J. analisa e critica as Leis 48/98 e 83/98.

D) Sempre tais Leis em si mesmas são ilegais.

E) Por uma razão ou outra, deve ser rejeitado o recurso.

F) A Lei 83/98 estava obrigada a respeitar os princípios enumerados na Lei 142/85, conforme o previsto no artigo 212.º n.º 3 da CR.

G) Não há dúvida que Lei 83/98 foi aprovada com violação dos elementos

essenciais da Lei 142/85.

H) E a Lei 83/99 foi "feita à medida" e visando sanar o erro e o Ilícito da Lei n.º

83/98.

I) Sempre se limitou a definir o processo da criação de novos municípios, sem alterar a

Lei 142/85 - que não foi revogada.

Em resposta veio o recorrente dizer o seguinte:

«b) Relativamente às "questões prévias" doutamente suscitadas pelo município recorrido, notar que se procedeu a uma delimitação do objecto do recurso (e não obviamente à sua ampliação), por se afigurar, face ao teor do acórdão recorrido (cf. p.

1712) que a norma efectivamente desaplicada - e que ditou o juízo de "ilicitude", decisivo para suportar a procedência da causa - foi a constante do artigo 4.º da Lei n.º 83/98, que "delegou" na comissão instaladora prevista no artigo 3.º a competência para elaborar relação discriminada dos bens e relações jurídicas a transferir para o novo

município;

c) Relativamente a tal objecto normativo, a argumentação expendida pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, traduz a nosso ver, uma desaplicação fundada em violação de lei reforçada, integradora da alínea c) do artigo 70.º, n.º 1, da lei do Tribunal Constitucional: como se afirma a p. 1712, "a solução prevista pela Lei 83/98 [no citado artigo 4.º] para além de brigar com a lei quadro que não prevê a delegação de competência nessa matéria, comporta um desfasamento temporal por diferir soluções que já deveriam estar nesse acto legislativo, ou seja, a lei quadro impunha que fosse o acto criador do município a estabelecer desde logo, a discriminação dos bens e direitos a transferir e a enunciação de critérios tanto quanto precisos para sua afectação e imputação ao nosso município" - radicando precisamente nessa omissão o "elemento de ilicitude" que ditou a responsabilidade civil do Estado.»

Cumpre decidir.

II - Fundamentação

4 - Delimitação do objecto do recurso

Nas contra-alegações o Município de Santo Tirso sustenta que o recurso deve ser rejeitado, insurgindo-se contra o que qualifica como uma ampliação não permitida do

seu objecto por parte do recorrente.

A esta questão, o recorrente responde que, ao invés de ampliá-lo, procedeu à redução do objecto do recurso, por se lhe afigurar, face ao teor do acórdão recorrido, que a norma efectivamente desaplicada - e que ditou o juízo de "ilicitude", decisivo para suportar a procedência da causa - foi somente a constante do artigo 4.º da Lei 83/98, que "delegou" na comissão instaladora prevista no artigo 3.º a competência para elaborar a relação discriminada dos bens e relações jurídicas a transferir para o novo município, e não todas as demais indicadas no requerimento de interposição.

Conforme vem sendo afirmado pelo Tribunal, o requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (ou ilegalidade) limita o seu objecto às normas nele indicadas (cf. artigo 684.º n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69.º da lei do Tribunal Constitucional, conjugado com o n.º 1 do artigo 75.º-A desta Lei), sem prejuízo da posterior restrição, expressa ou tácita, do objecto assim delimitado (cf. citado artigo 684.º, n.º 3). O recorrente pode não restringir mas alterar ou ampliar o objecto do recurso antes definido. (Neste sentido, cf., entre muitos outros, os acórdãos n.os 71/92, 323/93, 10/95, 35/96, 379/96 e 20/97, publicados na 2.ª série do Diário da República de, 18/08/92, 22/10/92, 22/03/95, 02/05/96, 15/07/96 e 01/03/97, respectivamente, e os acórdãos n.os 641/99, 205/2002 e 215/2002, inéditos, mas todos disponíveis em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).

Sucede que os autos evidenciam que o Ministério Público não procedeu à alteração ou ampliação do objecto do recurso definido no requerimento inicial. Ao invés, das alegações resulta uma redução desse objecto, ficando o recurso restrito à questão da ilegalidade da norma do artigo 4.º, n.º 1, da Lei 83/98, de 14 de Dezembro - que delegou na comissão instaladora do novo município, prevista no artigo 3.º da mesma lei, a competência para elaborar a relação discriminada de bens e relações jurídicas a transferir -, excluindo do âmbito do recurso as normas da Lei 48/99, de 16 de Junho (artigos 4.º, n.º 1, alínea h), 11.º, n.º 1, 15.º e 17.º).

Tal conclusão retira-se, desde logo, da aceitação pelo recorrente de que o Supremo não recusou aplicar quaisquer disposições constantes da Lei 48/99, de 16 de Junho, quando afirma "não vislumbrar no acórdão recorrido qualquer linha argumentativa que, de forma expressa ou implícita, pudesse envolver a desaplicação de quaisquer preceitos constantes de tal diploma legal". E, se dúvidas houvesse, essa redução é expressamente assumida no requerimento de resposta às questões prévias suscitadas pelo requerido,

em que reafirma aquele seu entendimento.

Deste modo, considera-se o objecto do recurso restrito à referida norma do artigo 4.º, n.º 1, da Lei 83/98, de 14 de Dezembro, cuja aplicação foi recusada, com fundamento em violação da Lei 142/85, de 18 de Novembro, tida como "lei com

valor reforçado"

5 - Admissibilidade do recurso 5.1 - O acórdão recorrido foi proferido no âmbito de uma acção indemnizatória movida ao Estado Português pelo Município de Santo Tirso, fundada na existência de danos imputados ao ilícito legislativo consubstanciado na emissão da Lei 83/98, de 14 de Dezembro de 1998, que criou o Município da Trofa, com violação de preceitos constantes da Lei 142/85 (Lei Quadro de Criação de Municípios), considerada lei de valor reforçado relativamente ao acto legislativo de criação concreta de autarquias

locais.

Neste acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça, aderindo, no essencial, às decisões das instâncias [sentença do Tribunal da Comarca de Santo Tirso e acórdão do Tribunal da Relação do Porto], entendeu que a Lei 83/98, ao não observar o disposto nos artigos 8.º e 9.º da Lei 142/85, omitindo as menções constantes das alíneas e) e f) daquele artigo 8.º, causou prejuízos que o Município de Santo Tirso "teve de suportar e foi suportando em consequência do sobredimensionamento dos quadros de funcionários e serviços que teve de manter, após a criação e instalação do município da Trofa não obstante a substancial diminuição quer da população quer da área resultante da amputação territorial e populacional que a criação do novo município implicou".

Para o acórdão recorrido, a solução prevista no artigo 4.º pela Lei 83/98 de atribuir à comissão instaladora prevista no seu artigo 3.º a competência para elaborar uma relação discriminada dos bens, universalidades de direitos e obrigações do Município de Santo Tirso a transferir para o novo município, além de não ter apoio na "Lei-quadro" que não previa a delegação de competência nessa matéria, comportava um desfasamento temporal de consequências lesivas por deferir soluções que já deveriam constar desse acto legislativo, ou seja, "a lei-quadro impunha que fosse o acto criador do município a estabelecer, desde logo, a discriminação dos bens e direitos a transferir e a enunciação de critérios tanto quanto precisos para sua afectação e imputação ao novo município". Assim, concluiu, que - não afectando embora o acto de criação do novo município - essa desconformidade "envolve responsabilidade civil do Estado a qual decorre, como geralmente se vem entendendo, do artigo 22.º do CRP".

Em síntese, o acórdão recorrido dá como assente a ilegalidade do artigo 4.º, n.º 1 da Lei 83/98, por violação de lei com valor reforçado - a Lei 142/85 -, e é com base na ocorrência dessa desconformidade com a lei de valor paramétrico que tem por verificado um dos pressupostos de que depende a efectivação da responsabilidade civil do Estado no exercício da actividade legislativa.

Em face desta decisão, é pertinente a dúvida quanto ao preenchimento dos pressupostos do tipo de recurso em presença, justificando a questão prévia suscitada pelo recorrido nas suas contra-alegações, designadamente, quanto afirma que nunca o Supremo Tribunal de Justiça deixou de aplicar a Lei 83/98, salientando que as denominadas "falsas recusas" de aplicação de normas jurídicas não são recorríveis. Esta posição do recorrente é desenvolvida em parecer jurídico junto aos autos, onde se suscitam reservas sobre se poderá considerar-se que o acórdão recorrido recusou a aplicação de quaisquer disposições constantes da Lei 83/98, de 14 de Dezembro [refere-se ali também a Lei 48/99, de 16 de Junho, o que já não nos interessa face à delimitação do objecto do recurso acima operada].

No essencial, argumenta-se que o acórdão do Supremo e as decisões que este confirmou não recusaram a plena eficácia do disposto no n.º 1 do artigo 4.º da Lei 83/89 durante todo o tempo em que cumpriu aplicá-lo. A comissão instaladora foi constituída e exerceu funções com as competências que a norma em causa lhe conferiu, não pondo os tribunais judiciais em dúvida, na acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado intentada pelo Município de Santo Tirso, o resultado desse exercício. O que os tribunais judiciais consideraram - e em última instância o que entendeu o Supremo, que é o que no presente recurso imediatamente interessa - foi que o desfasamento temporal ilegítimo na transferência de responsabilidades e encargos para o novo município, que resulta de o legislador ter cometido à comissão instaladora o que deveria ter feito directamente na lei criadora do novo Município, foi causa de prejuízos. Mas as soluções estabelecidas na norma não deixaram de se impor no ordenamento jurídico, não erguendo a decisão recorrida qualquer obstáculo à sua plena operatividade. O juízo de ilegalidade formulado pelos tribunais não foi aqui seguido da consequência típica que consiste em o tribunal, verificado o vício da norma em causa, lhe negar eficácia reguladora e, em vez dela, resolver o caso que lhe é submetido por aplicação das normas anteriores, por ela revogadas ou substituídas.

Nesta perspectiva, a situação em causa não consubstanciaria um caso de desaplicação de acto normativo com fundamento em violação de lei com valor reforçado, integradora do fundamento do recurso previsto no artigo 280.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, e do artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da Lei 28/82, de 15 de Novembro.

Na resposta apresentada, o recorrente reitera o seu entendimento de que, a argumentação expendida pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido, traduz uma desaplicação fundada em violação de lei reforçada, integradora da alínea c) do artigo 70.º, n.º 1, da lei do Tribunal Constitucional, quando ali se afirma que "a solução prevista pela Lei 83/98 [no citado artigo 4.º] para além de brigar com a lei quadro que não prevê a delegação de competência nessa matéria, comporta um desfasamento temporal por diferir soluções que já deveriam estar nesse acto legislativo, ou seja, a lei quadro impunha que fosse o acto criador do município a estabelecer desde logo, a discriminação dos bens e direitos a transferir e a enunciação de critérios tanto quanto precisos para sua afectação e imputação ao nosso município", - radicando precisamente nessa omissão o "elemento de ilicitude" que ditou a responsabilidade civil

do Estado.

5.2 - O recurso de ilegalidade, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, pressupõe a recusa de aplicação pela decisão recorrida de norma constante de acto legislativo, com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado e que essa desaplicação constitua sua ratio decidendi.

Recusa que não tem de ser expressa, podendo ser implícita, desde que possa extrair-se do texto da decisão recorrida - na lógica interna da decisão e no contexto que a suscita - que a não aplicação dessa norma teve por fundamento um juízo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade (cf. entre outros, acórdãos n.os 584/96, 25/2001 e 511/2008, tirados a respeito da recusa de aplicação por inconstitucionalidade, cujos fundamentos são igualmente válidos para o recurso por

ilegalidade).

O problema que se coloca é o de saber se, no plano processual, o juízo de ilegalidade por violação de lei com valor reforçado (mutatis mutandis o juízo de inconstitucionalidade, pelo que na exposição subsequente não haverá preocupações de distinção), que integra necessariamente a decisão de procedência do pedido de indemnização por ilícito legislativo com tal causa de pedir, pode ser considerado, para este efeito, como decisão de "recusa de aplicação".

5.3 - O actual regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, no capítulo respeitante à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função político-legislativa, contém norma que prevê que a decisão do tribunal que se pronuncie sobre a inconstitucionalidade ou ilegalidade de norma jurídica ou sobre a sua desconformidade com convenção internacional - para os efeitos do apuramento da responsabilidade civil do Estado e das regiões autónomas pelos danos decorrentes do exercício da função político-legislativa -, "equivale, para os devidos efeitos legais, a decisão de recusa de aplicação ou a decisão de aplicação de norma cuja inconstitucionalidade, ilegalidade ou desconformidade com convenção internacional haja sido suscitada durante o processo, consoante o caso" (cf. artigo 15.º, n.º 2).

Deste preceito é possível extrair duas ilações. Em primeiro lugar, a instauração da acção de indemnização não depende de um prévio juízo de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por parte do Tribunal Constitucional; é o tribunal competente para conhecer da acção que irá verificar a existência do requisito de ilicitude para efeito de considerar ou não procedente a acção. No entanto, o reconhecimento ou não da existência de uma inconstitucionalidade ou ilegalidade, ainda que represente uma apreciação meramente incidental para efeito de se tomar posição quanto ao direito indemnizatório peticionado, é passível de recurso para o Tribunal Constitucional, de acordo com os critérios gerais do artigo 280.º da CRP e do artigo 70.º, n.º 1, da LTC, uma vez que corresponde, para todos os efeitos legais, a uma decisão positiva ou a uma decisão negativa de inconstitucionalidade ou de ilegalidade ou de desconformidade com o direito internacional. Como acrescenta Carlos Cadilha (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, 2008, p. 275 e

segs., nota 11):

"Isto é: não sendo exigível, como pressuposto processual da acção de indemnização, a prévia declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de norma, por parte do Tribunal Constitucional, a decisão que venha a ser adoptada pelo juiz do processo quanto à existência ou não existência de ilícito legislativo, é susceptível de recurso de constitucionalidade ou de recurso de legalidade, consoante os casos, permitindo-se que o tribunal competente para proferir a decisão definitiva em questões jurídico-constitucionais se pronuncie, confirmando ou revogando o juízo que tenha sido formulado na ordem jurisdicional administrativa.

Naturalmente que tudo o que vem de dizer-se não obsta a que o requisito de ilicitude possa considerar-se pré-definido por via da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral, quando haja lugar à intervenção do Tribunal Constitucional no âmbito do processo de fiscalização abstracta a que se refere o artigo 281.º da CRP. O que sucede é que a iniciativa desse processo pertence apenas às entidades mencionadas nesse dispositivo constitucional; mas desde que tenha sido suscitado o controlo abstracto da norma e o Tribunal Constitucional se tenha pronunciado no sentido da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com força obrigatória geral, essa declaração vincula todos os tribunais e autoridades administrativas e, nessa medida, pode ser invocada pelo interessado numa acção de responsabilidade civil que tenha em vista o ressarcimento de prejuízos que tenham resultado do ilícito legislativo.

[...]"

Ora, não obstante o ordenamento jurídico não conter anteriormente norma expressa de teor idêntico ao que passou a constar do n.º 2 do artigo 15.º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, há boas razões para que se considere que a hipótese em exame, embora não constitua a situação típica de desaplicação normativa com fundamento em ilegalidade, não pode ter-se como excluída do âmbito da previsão do artigo 280.º, n.º 2 alínea a), da Constituição, e do artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da Lei 8/82, de 15 de

Novembro.

Na verdade, interposta a acção de responsabilidade com fundamento em ilícito legislativo sem que tenha ocorrido prévia declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral, a demonstração da ilegalidade da norma produtora de efeitos lesivos é condição necessária da procedência do pedido. Se a ordem jurídica conferir aos interessados acção de indemnização (defesa jurídica secundária por contraposição à defesa jurídica primária que consiste na discussão contenciosa, ainda que a título incidental, da própria validade do acto legislativo) contra lesões provocadas por leis independentemente da prévia declaração de ilegalidade (ou inconstitucionalidade) do acto normativo lesivo, é indispensável que se prove, na acção de condenação, o valor jurídico negativo do acto legislativo gerador do prejuízo decorrente da violação de uma norma dotada de valor paramétrico (no nosso sistema jurídico, a Constituição ou uma lei de valor reforçado). O problema da responsabilidade civil do Estado por prejuízos causados por leis e o problema da invalidade ou validade da lei mesma aparecem como questões inextricavelmente imbricadas: afinal de contas, a existência de responsabilidade depende da ocorrência da invalidade (Maria Lúcia Amaral, "Dever de legislar e dever de indemnizar. A propósito do caso "Aquaparque do Restelo", Themis, n.º 1, Vol. I, T. 2 (2000), pág. 75).

Embora em ordem a diferentes resultados ou como passo necessário de diferentes modos de protecção jurídica através dos tribunais contra actos do legislador que violem a Constituição ou uma lei com valor reforçado, há uma substancial identidade problemática e de significado jurídico-político entre a recusa de aplicação de uma norma a título incidental no uso dos poderes de fiscalização judicial difusa e o reconhecimento da sua inconstitucionalidade ou ilegalidade como integrante de um dos elementos da causa de pedir da acção de indemnização. A tarefa cometida ao tribunal da causa é idêntica, exige a realização das mesmas operações e ponderações valorativas acerca do conteúdo, da forma, ou do procedimento adoptados pelo legislador face às vinculações decorrentes da Constituição, quer esse tribunal seja colocado perante uma questão incidental de inconstitucionalidade ou ilegalidade reforçada no âmbito de um qualquer litígio que devesse resolver por aplicação da norma questionada, quer seja chamado a estabelecer a ilicitude como pressuposto da acção de indemnização e, para tanto, a ajuizar da inconstitucionalidade ou ilegalidade integrante da causa de pedir. O tribunal extrai do juízo instrumental que faz, através desses mesmos passos de actividade judicante incidente sobre a conformidade de uma dada norma, constante de acto legislativo, com os parâmetros constitucionais ou legais a que devia observância, diferentes consequências decisórias - num caso vai à procura da norma que há-de regular o caso sujeito (artigos 204.º e 282.º, n.º 1, da Constituição); no outro, passa à determinação dos efeitos lesivos e aos termos do seu ressarcimento -, mas isso é já actividade que se desenvolve num momento posterior (na lógica do processo decisório) à apreciação da inconstitucionalidade ou ilegalidade a

que anteriormente procedeu.

Em qualquer das hipóteses, o juiz "dos restantes tribunais", quando responde positivamente à questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade (ou a inversa, mas a situação que interessa é a decisão positiva) nega ao acto legislativo a sua idoneidade para produzir validamente os efeitos que o legislador democrático quis que ele produzisse, pelas mesmas razões jurídicas e mediante o mesmo processo ponderativo e de confronto paramétrico de que se serve quando é chamado a resolver o caso sujeito por aplicação da norma (artigo 204.º da Constituição). E tem esse poder pela mesma razão fundamental: a supremacia normativa da Constituição e das leis a que esta atribua proeminência sobre os demais actos do poder normativo público e uma concepção do sistema de garantia da Constituição segundo o qual todos os tribunais são "juízes constitucionais". A questão sujeita a apreciação permanece invariável, com a especificidade conceptual e metodológica própria das questões de inconstitucionalidade ou ilegalidade, quando é fundamento de uma decisão (incidental) de recusa de aplicação ou pressuposto da imputação de responsabilidade. E a decisão que os tribunais sobre ela tomam tem o mesmo tipo de significação jurídico-política nas relações entre o poder legislativo democrático e o poder judicial na arquitectura constitucional do Estado numa e noutra hipótese.

Assim, todas as razões que, num sistema difuso de controlo da constitucionalidade, justificam a existência de um recurso das decisões dos (demais) tribunais para o Tribunal Constitucional - em certos casos, recurso obrigatório para o Ministério Público - estão presentes perante decisões de contencioso de responsabilidade fundado em

ilícito legislativo.

Efectivamente, proferido um juízo de inconstitucionalidade ou ilegalidade sobre determinada norma, como elemento sine qua non do requisito de ilicitude da actuação do legislador geradora de responsabilidade, a não admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional permitiria que decisões dos demais tribunais fundadas no tipo de ponderações que justificam as competências do Tribunal Constitucional como órgão ao qual a Constituição confere a competência para, em última instância, administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional (artigo 221.º da CRP) lhe fossem subtraídas, o que é contrário à teleologia da consagração do Tribunal Constitucional como órgão superior da justiça constitucional, como tribunal especificamente dedicado a ela. Com a consequência de, em matéria tão delicada e polémica no plano constitucional e jurídico-político como é o da responsabilidade por acto da função legislativa, se agravar o risco de subsistirem decisões desencontradas, por falta de intervenção do órgão jurisdicional a que a Constituição reservou a última palavra em tal

domínio.

Assim, as competências traçadas no artigo 280.º da Constituição e no artigo 70.º da LTC não podem deixar de ser interpretadas em conformidade com a posição do Tribunal Constitucional na arquitectura do sistema constitucional e de abrangerem, por equivalerem em todos os aspectos relevantes a aplicação ou recusa de aplicação, as decisões dos demais tribunais que se pronunciem sobre a inconstitucionalidade ou ilegalidade de normas jurídicas para os efeitos do apuramento da responsabilidade civil do Estado por ilícito legislativo. O juízo dos demais tribunais sobre a "relação de desvalor" da norma alegadamente lesiva com a norma paramétrica deve ser sempre susceptível de controlo pelo órgão constitucional de fiscalização concentrada da conformidade de actos normativos à Constituição e a leis de valor reforçado (observadas, obviamente, as regras processuais e de legitimidade).

Aliás, tais razões justificativas das competências do Tribunal Constitucional parecem estar presentes, até de modo mais intenso, neste tipo de decisões. Não se trata, apenas, de afastar uma norma da regulação de um caso sujeito a apreciação jurisprudencial. Trata-se de fazer que o Estado responda civilmente porque o órgão legislativo a adoptou. Essa realidade levou a que se tenha chegado a conceber a intervenção do Tribunal Constitucional neste domínio não apenas segundo o modelo ou os meios comuns de exercício da sua competência de fiscalização concreta (no nosso sistema, intervenção a posteriori por via de recurso), mas pela atribuição da competência primária para esta forma de tutela contra actos violadores da Constituição (ou da lei de valor reforçado). É o que parece ser opinião de Jorge Miranda ("Nos dez anos de funcionamento do Tribunal Constitucional", Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, pág. 102) quando afirma que "[d]e jure condendo seria, no entanto mais adequado cometer o seu conhecimento ao Tribunal Constitucional (conforme chegou a ser preconizado em 1987 no projecto de revisão do Partido Renovador Democrático para o artigo 21.º, n.º 1, alínea e). Seria mais curial tendo em conta o laço estreito entre a apreciação da constitucionalidade e das suas

consequências".

Refira-se, a terminar, que a favor da tese da admissibilidade do recurso, na vigência do Decreto-Lei 48 051, de 21 de Novembro de 1967, se pronunciou Rui Medeiros (Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, 1992, pp.

174/175, e A responsabilidade civil por ilícito legislativo no quadro da reforma do Decreto-Lei 48 051, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 27, pág. 25), adiantando que se justifica a admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais judiciais que concedem indemnizações, no âmbito das acções de responsabilidade civil contra o Estado por danos resultantes de normas legais, porque estas decisões dependem do reconhecimento da inconstitucionalidade ou ilegalidade da lei e invocando, em reforço desta sua conclusão que o Tribunal Constitucional tem julgado, frequentes vezes, no sentido de que cabe recurso das decisões dos tribunais que implicitamente recusem a aplicação da norma inconstitucional ao caso sub judice, e tem decidido, a propósito da responsabilidade do Estado por privação da liberdade com base numa lei inconstitucional, que o recurso de inconstitucionalidade constitui pressuposto indispensável para a procedência de uma acção de indemnização [acórdãos n.os 90/84, 102/84, 237/86 e 339/87].

Em conclusão, neste tipo de decisões, ao apreciarem a inconstitucionalidade ou ilegalidade dos actos legislativos alegadamente geradores de responsabilidade por ilícito legislativo, os tribunais ainda estão a aplicá-los (ou a desaplicá-los) como ratio decidendi da decisão que concede ou nega a indemnização. Apreciam a sua (in)constitucionalidade ou (i)legalidade e é em função disso que decidem. Deste modo, uma vez que determinada norma constante de acto legislativo foi considerada violadora de lei de valor reforçado, fica preenchida a previsão do artigo 280.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, e do artigo 70.º, n.º 1, alínea c), da Lei 28/82, de 15 de Novembro, pelo que se tomará conhecimento do objecto do recurso.

6 - Do mérito do recurso de ilegalidade.

6.1 - O presente recurso tem por objecto a norma do artigo 4.º, n.º 1, da Lei 83/98, de 14 de Dezembro, que se entendeu desconforme com o disposto nos artigos 8.º, alíneas e) e f), e 9.º, da Lei 142/85, de 18 de Novembro (Lei Quadro de Criação de Municípios), qualificada no aresto recorrido como lei com valor reforçado.

Da Lei 83/98, de 14 de Dezembro, importa reter os seguintes preceitos (destacados

os incisos mais directamente pertinentes):

«Artigo 3.º

Comissão instaladora

1 - Com vista à instalação dos órgãos do município da Trofa é criada uma comissão instaladora, que iniciará funções no 15.º dia posterior à data de publicação da presente

lei.

2 - A comissão instaladora prevista no número anterior será composta por cinco membros, designados pelo Governo, os quais serão escolhidos tendo em consideração os resultados eleitorais globais obtidos pelas forças políticas nas últimas eleições autárquicas realizadas para as assembleias de freguesia que integram o novo município.

3 - O Governo indicará, de entre os cinco membros designados, aquele que presidirá à

comissão instaladora.

4 - A comissão instaladora receberá os apoios técnico e financeiro do Governo

necessários à sua actividade.

Artigo 4.º

Competências da comissão instaladora

1 - 'Compete à comissão instaladora elaborar um relatório donde constem, tendo em vista o disposto na lei, a discriminação dos bens, universalidades e quaisquer direitos e obrigações do município de Santo Tirso que se transferem para o município da Trofa.' 2 - A relação discriminada dos bens, universalidades e direitos, elaborada nos termos do número anterior, será homologada pelos membros do Governo competentes e publicada na 2.ª série do Diário da República.

3 - A transmissão dos bens, universalidades, direitos e obrigações referidos nos números anteriores efectua-se por força da lei, dependendo o respectivo registo de

simples requerimento.

4 - Compete assim à comissão instaladora promover as acções necessárias à instalação dos órgãos do novo município e assegurar a gestão corrente da autarquia.» Por sua vez, os artigos 8.º e 9.º da Lei 142/85, de 18 de Novembro, prescrevem o seguinte [em destaque as normas consideradas violadas]:

«Artigo 8.º

(Elementos essenciais do processo)

1 - O relatório referido no n.º 2 do artigo anterior incidirá, nomeadamente, sobre os

seguintes aspectos:

a) Viabilidade do novo município e do município ou municípios de origem;

b) Delimitação territorial do novo município, acompanhada de representação cartográfica com planta à escala de 1:25 000;

c) Alterações a introduzir no território do município ou municípios de origem, acompanhadas de representação cartográfica em escala adequada;

d) Indicação da denominação, sede e categoria administrativa do futuro município, bem

como do distrito em que ficará integrado;

e) 'Discriminação, em natureza, dos bens, universalidades, direitos e obrigações do município ou municípios de origem a transferir para o novo município';

f) 'Enunciação de critérios suficientemente precisos para a afectação e imputação ao novo município de direitos e obrigações, respectivamente.' 2 - O relatório será ainda instruído com cópias autenticadas das actas dos órgãos das autarquias locais envolvidas, ouvidos nos termos do artigo 5.º desta lei.

Artigo 9.º

(Menções legais obrigatórias)

A lei criadora do novo município deverá:

a) Determinar as freguesias que o constituem e conter, em anexo, um mapa à escala de 1:25 000, com a delimitação da área dos municípios de origem;

b) Incluir os elementos referenciados nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo anterior;

c) Consagrar a possibilidade de nos 2 anos seguintes à criação do município poderem os trabalhadores dos demais municípios, com preferência para os dos municípios de origem, requerer a transferência para lugares, não de direcção ou chefia, do quadro do novo município até ao limite de dois terços das respectivas dotações;

d) Definir a composição da comissão instaladora;

e) Estabelecer o processo eleitoral.»

6.2 - Antes de mais, cumpre clarificar o conceito constitucional de "lei com valor reforçado" para determinar se a Lei 142/85 a ele se subsume e apurar se a norma

questionada desrespeita esta lei.

No acórdão 374/2004 (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) o Tribunal sistematizou a jurisprudência e doutrina constitucionais sobre a figura das leis com valor

reforçado, nos seguintes termos:

«6 - Foi a revisão constitucional de 1982 que explicitou a regra da equivalência das leis e dos Decretos-Leis, mas logo excepcionando a posição de subordinação dos Decretos-Leis publicados no uso de autorização legislativa e dos Decretos-Leis de desenvolvimento das bases gerais dos regimes jurídicos às correspondentes leis de autorização e leis de bases (n.º 2 do artigo 115.º), e que cometeu ao Tribunal Constitucional, então instituído, a par da sua competência em sede de fiscalização da constitucionalidade, a fiscalização (concreta e abstracta sucessiva) da legalidade, mas circunscrita ao âmbito regional [ilegalidade de normas constantes de diplomas regionais por violação do estatuto da região ou de lei geral da República e ilegalidade de norma constante de diploma emanado de órgão de soberania por violação do estatuto de uma região autónoma - artigos 280.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), e 281.º, n.º 1, alíneas b) e c)].

No entanto, a doutrina já vinha enunciando outras situações de supra-ordenação de actos legislativos, fazendo apelo a variados critérios para a determinação dessas "leis reforçadas": o da parametricidade (aferido por um processo judicial de fiscalização), o do fundamento material de validade normativa, o da capacidade derrogatória, o da forma e especificidade procedimental, o da diferenciação de funções, o da proeminência não hierárquica (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo V - Actividade Constitucional do Estado, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, págs. 348-349, com extensas referências bibliográficas).

A revisão constitucional de 1989, embora não tivesse acolhido a proposta de consagração das "leis paraconstitucionais", instituiu a figura das "leis orgânicas", a que o n.º 2 do artigo 115.º atribuiu explicitamente "valor reforçado". Nos termos do artigo 169.º, n.º 2, revestiam a forma de Lei Orgânica os actos previstos nas alíneas a) e e) do artigo 167.º, isto é, as leis da Assembleia da República que incidissem sobre as seguintes matérias, todas elas incluídas no âmbito da sua reserva absoluta de competência legislativa: a) eleições dos titulares dos órgãos de soberania; b) regime do referendo; c) organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional; d) organização da defesa nacional, definição dos deveres dela decorrentes e bases gerais da organização, do funcionamento e da disciplina das Forças Armadas; e e) regimes do estado de sítio e do estado de emergência. As leis orgânicas, para além de serem obrigatoriamente votadas na especialidade pelo Plenário da Assembleia da República (característica, que, porém, não era exclusiva delas - cf. artigo 171.º, n.º 4), careciam ainda de aprovação, na votação final global, por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (artigo 171.º, n.º 5).

A mesma revisão constitucional de 1989 alargou a competência do Tribunal Constitucional, na fiscalização concreta e abstracta sucessiva da ilegalidade, até então confinada ao "âmbito regional", a todas as situações de "ilegalidade de quaisquer normas constantes de acto legislativo com fundamento em violação de lei com valor reforçado" (artigos 280.º, n.º 2, alínea a), e 281.º, n.º 1, alínea b). A ausência de uma definição constitucional do conceito de "lei com valor reforçado", que obviamente não se cingia às leis orgânicas, originou assinaláveis divergências doutrinárias, desde a tentativa de reconduzir o critério de atribuição desse qualificativo ao mesmo que operava nas leis orgânicas (integração na reserva legislativa absoluta do Parlamento e sujeição a um procedimento agravado de aprovação parlamentar), passando por uma posição "monista" centrada na proeminência material de certas leis sobre outras, e até à posição "dualista", que considerava reforçadas tanto as leis sujeitas a um procedimento agravado, como as leis paramétricas do conteúdo de outras (cf., relativamente à versão da CRP de 1989, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, págs. 503-508 e 1022-1023; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 1991, págs. 873-876; Carlos Blanco de Morais, As Leis Reforçadas - As Leis Reforçadas pelo Procedimento no Âmbito dos Critérios Estruturantes das Relações entre Actos Legislativos, Coimbra Editora, Coimbra, 1998; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo II - Constituição e Inconstitucionalidade, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, págs. 327-328; Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, págs. 290-301; e "Apreciação da Dissertação de Doutoramento de Carlos Blanco de Morais", Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. xxxviii, n.º 2, 1997, págs. 595-603; J. J. Teixeira Ribeiro, "As últimas alterações à Constituição no domínio das finanças públicas", Boletim de Ciências Económicas, vol. xxxiii, 1990, pág. 201, n.º 8; António Vitorino, "Prefácio" à Constituição da República Portuguesa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1989, págs. lxx-lxxii; José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1989, pág. 71;

José Luís R. Moreira da Silva, Da Lei Orgânica na Constituição da República Portuguesa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1991;

Lino Torgal, "Da Lei-Quadro na Constituição Portuguesa de 1976", em Jorge Miranda (org.), Perspectivas Constitucionais - Nos 20 Anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, págs. 907-962; e Paulo Castro Rangel, "A concretização legislativa da Lei-Quadro das Reprivatizações (a propósito da inconstitucionalidade do Decreto-Lei 380/93, de 15 de Novembro)", Legislação - Cadernos de Ciência de Legislação, n.º 23, Outubro/Dezembro de 1998, págs. 5-38).

Face à redacção de 1989 da Constituição, a jurisprudência constitucional teve oportunidade de se debruçar por diversas vezes sobre a temática das leis de valor reforçado, densificando este conceito. Destacam-se, a este propósito, os Acórdãos n.os 71/90, 358/92 e 365/96, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.

15.º, pág. 7, vol. 23.º, pág. 109, vol. 33.º, pág. 513, respectivamente, e no Diário da República, 2.ª série, n.º 164, de 18 de Julho de 1990, pág. 7989, 1.ª série-A, n.º 21, de 26 de Janeiro de 1993, pág. 297, e 2.ª série, n.º 108, de 9 de Maio de 1996, pág.

6185, também respectivamente).

No primeiro dos arestos citados (Acórdão 71/90), tendo em conta as alterações introduzidas pela 2.ª revisão constitucional, o Tribunal pronunciou-se sobre o valor reforçado da lei quadro das reprivatizações, nos seguintes termos:

"[...] à face do disposto na Constituição, esta lei quadro das reprivatizações é concebida como uma norma sobre a produção normativa (à semelhança do que sucede com as leis de autorização legislativa, com as denominadas «leis de enquadramento» - caso da referente ao Orçamento do Estado - e mesmo com algumas leis de bases), destinada a desempenhar uma função habilitante, na medida em que constitui pressuposto da prática pelo Governo dos actos normativos de reprivatização de cada empresa pública ou nacionalizada [os Decretos-Leis de transformação das empresas em causa em sociedades anónimas (artigo 4.º do Decreto) e as resoluções do Conselho de Ministros que aprovam as condições finais e concretas das operações a realizar em cada processo de reprivatização (artigo 14.º do Decreto)] e dotada de uma primariedade material e hierárquica (porque conformadora daqueles decretos-leis e daquelas resoluções e sobre uns e outros naturalmente prevalecente, não só em função da sua específica função hierárquico-normativa, mas também por força do princípio da repartição de competências entre os órgãos de soberania - já que versando matéria sobre a qual primariamente só o Parlamento detém competência legislativa)."

O segundo acórdão mencionado (Acórdão 358/92), também no âmbito da 2.ª revisão constitucional, analisou a Lei das Finanças Locais, tendo concluído que não se tratava de lei de valor reforçado. Sobre este conceito, importa reter o seguinte trecho

do acórdão:

"[...] na ausência de uma definição expressa, o assinalado valor reforçado há-de decorrer da conjugação de dois critérios essenciais, o da sua proeminência funcional enquanto fundamento material da validade normativa de outros actos e o da sua força formal negativa, enquanto portadora de uma especial protecção face aos efeitos derrogatórios produzidos por lei posterior. Um e outro critério deverão operar sempre em função dos enunciados linguísticos da própria Constituição."

Por seu turno, o mencionado Acórdão 365/96, em que estavam em causa normas contidas no Tratado de Roma, qualificado pelo recorrente como lei de valor reforçado,

pronunciou-se no seguinte sentido:

"[...] quer se assente o traço característico das «leis com valor reforçado» na posição de proeminência de natureza funcional traduzida numa específica força formal ou se parta da ideia de que se está perante leis conformadoras da produção de outras leis ou constitutivas dos seus limites, tais leis, para além de certas exigências procedimentais na sua aprovação, dispõem de uma «superioridade relativa» em face de outros actos legislativos, derivada do seu conteúdo que é condicionante material da normação a estabelecer pelos diplomas a publicar na sua directa dependência."

Finalmente, a revisão constitucional de 1997, na redacção dada ao artigo 112.º (correspondente ao anterior artigo 115.º), repôs, no n.º 2, a versão de 1982 ("As leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos"), e aditou um novo n.º 3, do seguinte teor:

"Têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem da aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou por outras devam ser respeitadas."

Esta definição constitucional de leis com valor reforçado, corresponde, como reconhece Carlos Blanco de Morais (Justiça Constitucional, Tomo I - Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, págs. 410-433, em especial pág. 416, n.º 339), ao acolhimento da posição "dualista"

que, já face à revisão de 1989, considerava que o valor reforçado das leis podia advir quer da sujeição a um procedimento agravado, quer da atribuição de uma função

paramétrica ("leis interpostas").

Resulta, com efeito, da actual redacção do n.º 3 do artigo 112.º da CRP que se prevêem quatro espécies de leis com valor reforçado, as duas primeiras tendo na base critérios "formais ou procedimentais" e as duas últimas assentando em critérios

"materiais":

1) As leis orgânicas, isto é, nos termos do artigo 166.º, n.º 2, as leis da Assembleia da República que versem sobre: eleições dos titulares dos órgãos de soberania; regimes dos referendos; organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional;

organização da defesa nacional, definição dos deveres dela decorrentes e bases gerais da organização, do funcionamento, do reequipamento e da disciplina das Forças Armadas; regimes do estado de sítio e do estado de emergência; aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade portuguesa; associações e partidos políticos; eleições dos deputados às Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da Madeira; eleições dos titulares dos órgãos do poder local; regime do sistema de informações da República e do segredo de Estado; regime de finanças das regiões autónomas; e

criação de regiões administrativas;

2) As leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, isto é, nos termos do artigo 168.º, n.º 6: a lei que regula o exercício do direito de voto para a eleição para Presidente da República dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro; as disposições das leis que regulam a composição da Assembleia da República e os círculos eleitorais; as disposições das leis que regulam as restrições ao exercício de direitos por militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, bem como por agentes dos serviços e forças de segurança; e as leis relativas ao sistema e método de eleição dos órgãos executivos colegiais das autarquias locais;

3) As leis que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de

outras leis; e

4) As leis que, por força da Constituição, devam ser respeitadas por outras leis.

Nestes dois últimos casos, a Constituição prevê uma relação de pressuposição e de parametricidade entre normas, que constitui excepção face à regra geral, instituída no n.º 2 do artigo 112.º, do igual valor entre as leis e os Decretos-Leis.

Também esta nova formulação tem originado entendimentos não inteiramente coincidentes por parte da doutrina (cf. as "Opiniões" de Carlos Blanco de Morais, J. J.

Gomes Canotilho, Jorge Bacelar Gouveia, Jorge Miranda, Manuel Afonso Vaz, Maria Lúcia Amaral e Paulo Otero, em Legislação - Cadernos de Ciência de Legislação, n.º 19/20, Abril/Dezembro de 1997, págs. 9-147, em especial págs. 23-30, 42-43, 59-61, 70-81, 98-100, 111-114 e 129-132, respectivamente; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, págs. 781-785; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo V - Actividade Constitucional do Estado, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, págs. 349-369, e "Sobre os actos legislativos em Portugal após a revisão constitucional de 1997", em Seminário Permanente de Direito Constitucional e Administrativo, vol. I, Associação Jurídica de Braga/Departamento Autónomo de Direito da Universidade do Minho, 1999, págs. 5-33, em especial págs. 21-24; José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional, Editorial Notícias, Lisboa, 1999, pág. 141; Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, Constituição da República Portuguesa Comentada, Lex, Lisboa, 2000, págs. 227-228; Alexandre Sousa Pinheiro e Mário João de Brito Fernandes, Comentário à IV Revisão Constitucional, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1999, págs. 277-300, em especial págs.

292-300; e, por último, Florence Cruz, L'Acte Législatif en Droit Comparé Franco-Portugais, Presses Universitaires d'Aix-Marseille/Economica, 2004, págs.

652-681).

Na citada "Opinião" (Legislação, n.os 19/20, pág. 42), J. J. Gomes Canotilho refere:

"Perante a indeterminação do conceito de leis reforçadas introduzida pela 2.ª revisão da Constituição, a lei Constitucional 1/97 pretendeu eliminar algumas dúvidas através da densificação jurídico-constitucional de tal conceito. [...] No artigo 112.º, n.º 3, recortam-se quatro categorias de leis reforçadas articulando critérios muito heterogéneos para a sua caracterização. Por um lado, recorre-se a critérios funcionais-formais para identificar como leis reforçadas as leis orgânicas e as leis que carecem de aprovação por uma maioria de dois terços. Por outro lado, apela-se a "critérios-represa" para captar as restantes leis reforçadas. São eles critérios da parametricidade específica (leis que são pressupostos normativos necessários de outras leis) e critérios da parametricidade geral (leis que devem ser respeitadas por outras

leis)."

O mesmo autor (em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, citado, págs.

783-785) dá como exemplos de aplicação do critério da parametricidade específica: as leis de bases (que estabelecem parâmetros materiais vinculativos dos decretos-leis ou dos decretos legislativos regionais de desenvolvimento - artigos 112.º, n.º 2, 198.º, n.º 1, alínea c), e 227.º, n.º 1, alínea c), as leis de autorização (que prescrevem critérios materiais obrigatoriamente observados pelos decretos-leis ou pelos decretos legislativos regionais autorizados - artigos 112.º, n.º 2, 165.º, n.º 2, 198.º, n.º 1, alínea b), e 227.º, n.º 1, alínea b), e a lei de enquadramento do orçamento (que estabelece princípios inderrogáveis pela lei anual dos orçamentos do Estado e das Regiões Autónomas - artigos 106.º, n.º 1, 164.º, alínea r), 227.º, n.º 1, alínea r), e 232.º, n.º 1); e como exemplos de aplicação do critério da parametricidade geral: a lei das grandes opções dos planos de desenvolvimento económico e social (artigo 105.º, n.º 2), a lei quadro das privatizações (artigo 296.º), os estatutos das regiões autónomas (artigo 226.º) e a lei das finanças regionais [artigos 229.º, n.º 3, e 164.º, alínea t)].

Por seu turno, Jorge Miranda (Manual..., tomo V, citado, págs. 354-355) aponta como leis reforçadas (das duas últimas espécies): a lei do regime do estado de sítio e do estado de emergência (porque a declaração do estado de sítio, a sua autorização ou a sua ratificação - actos materialmente legislativos ou, pelo menos, actos com força afim da força de lei - devem obediência a esta lei: artigos 19.º, n.os 5 e 7, 164.º, alínea e), e 275.º, n.º 7); o Orçamento do Estado (porque, durante o ano económico, nenhuma lei que não seja de alteração do próprio Orçamento o pode afectar: artigos 105.º, 106.º, 161.º, alínea g), e 165.º, n.º 5); a lei do regime dos planos de desenvolvimento económico e social [porque estes planos são elaborados de acordo com as suas regras enquanto complementares das normas constitucionais: artigos 91.º e 165.º, n.º 1, alínea m)]; a lei relativa às condições de recurso ao crédito público (porque as leis de autorização de empréstimos têm de a respeitar: artigos 105.º, n.º 4, 161.º, alínea h), e 166.º, n.º 3); as leis de enquadramento orçamental (porque o orçamento do Estado e os das Regiões Autónomas são elaborados, organizados e executados de acordo com elas: artigos 106.º, 164.º, alínea r), 227.º, n.º 1, alínea p), e 232.º, n.º 1); as leis de autorização legislativa (porque os decretos-leis e os decretos legislativos regionais autorizados têm de respeitar o sentido fixado nas correspondentes leis de autorização:

artigos 112.º, n.º 2, 161.º, alíneas d) e e), 165.º, n.os 2 e 5, 169.º, n.os 2 e 3, 198.º, n.os 1, alínea b), e 3, e 227.º, n.os 1, alínea b), 2, 3 e 4); as leis de bases (porque os decretos-leis e os decretos legislativos regionais de desenvolvimento têm de se mover no âmbito preceptivo das bases: artigos 112.º, n.º 2, 198.º, n.os 1, alínea c), e 3, e 227.º, n.º 1, alínea c); as leis dos regimes dos referendos (porque a realização dos referendos - do referendo em geral e do referendo sobre as regiões administrativas - e a determinação dos seus efeitos constituem objecto dessas leis: artigos 115.º, 164.º, alínea b), 223.º, n.º 2, alínea f), 232.º, n.º 2, e 256.º, n.º 3); os estatutos político-administrativos das regiões autónomas (porque nenhum diploma pode contrariar as suas disposições específicas: artigos 161.º, alínea b), 226.º, 227.º, n.º 1, alínea e), 231.º, n.º 6, 232.º, n.º 3, 280.º, n.º 2, alíneas b) e c), e 281.º, n.os 1, alíneas c) e d), e 2); a lei do regime de criação, extinção e modificação territorial das autarquias locais (porque a divisão administrativa do território, que é feita por lei, depende desse regime: artigos 164.º, alínea n), 227.º, n.º 1, alínea l), e 236.º, n.º 4); a lei-quadro de adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais [porque o poder das regiões autónomas de proceder a essa adaptação pressupõe tal lei: artigo 227.º, n.º 1, alínea i)]; os orçamentos das regiões autónomas (por razões idênticas às do orçamento do Estado: artigos 227.º, n.º 1, alínea p), e 232.º, n.º 1); a lei de criação das regiões administrativas (porque a criação em concreto de cada região depende desta lei: artigos 255.º e 256.º); e a lei quadro das reprivatizações (porque qualquer acto de reprivatização deve respeitar as suas regras materiais e procedimentais: artigo 296.º da CRP, como todos os anteriormente citados sem menção de diploma).

Para efeito da densificação do conceito constitucional de lei com valor reforçado a que, neste ponto do presente acórdão, se procurou proceder, não é necessário apreciar a correcção das enumerações feitas pelos autores acabados de citar.

O que importa salientar é que - como, aliás, resulta da formulação literal do n.º 3 do artigo 112.º da CRP - os atributos de pressuposto normativo necessário e de vinculatividade material relativamente a outras leis que caracterizam as leis com valor reforçado têm de derivar directamente da Constituição; isto é, não basta que uma lei se autoproclame como pressuposto ou parâmetro de validade de outras leis para, sem mais, se transformar em lei com valor reforçado.

A necessidade de aqueles requisitos resultarem directamente da Constituição tem sido reiteradamente sublinhada pela generalidade da doutrina.

Assim, Jorge Miranda (Manual..., tomo V, citado, pág. 351) afirma:

"Na medida em que a força específica da lei decorre de normas constitucionais, a infracção de lei de valor reforçado envolve inconstitucionalidade. Mas trata-se de inconstitucionalidade indirecta [...]. Quer dizer: a lei contrária a lei de valor reforçado vem a ser inconstitucional, não porque ofenda uma norma constitucional de fundo, mas porque agride uma norma interposta constitucionalmente garantida. E, precisamente, o critério para se reconhecer se uma lei é reforçada ou não está em saber se se verifica ou não tal ocorrência; está em saber se a inconstitucionalidade surge imediatamente ou

se é consequência da ilegalidade."

E mais adiante (pág. 365):

"A qualificação de uma lei como reforçada não depende da designação que o legislador lhe confira. Depende da verificação dos requisitos de qualificação constitucionalmente fixados, os quais têm que ver essencialmente com o objecto da lei, com as matérias sobre que versa, com a função que pretende exercer e, em alguns casos, complementarmente, com o respectivo procedimento."

Manuel Afonso Vaz ("Opinião", em Legislação, n.os 19/20, págs. 99-100) refere:

"O que queremos com isto salientar - e é este o segundo aspecto a nosso ver clarificador - é que não há leis com valor reforçado que dependam da vontade do órgão legislativo, antes é «por força da Constituição» que a lei se afirma com valor reforçado. Terá sempre de se invocar um preceito constitucional específico que faça daquele acto legislativo ou a forma, ou o pressuposto, ou o parâmetro, limitadores de outros actos legislativos. O problema continua assim a ser, como já o era, um problema

de interpretação constitucional.»

Por outro lado, e como é óbvio, não basta incidir sobre matéria colocada sob reserva de lei para que a lei emitida assuma valor reforçado: é necessário - repete-se - que resulte da própria Constituição que a lei em causa é pressuposto normativo necessário de outras leis ou por elas tenha de ser respeitada.» Em resumo, o artigo 112.º, n.º 3, da Constituição prevê quatro espécies de leis com valor reforçado, as duas primeiras tendo na base critérios formais ou procedimentais e as duas últimas assentando em critérios materiais: (i) as leis orgânicas, isto é, as leis da Assembleia da República que versem sobre as matérias mencionadas no artigo 166.º, n.º 2; (ii) as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superiores à maioria absoluta dos deputados em exercício efectivo de funções, nos termos do artigo 168.º, n.º 6; (iii) as leis que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis; e (iiii) as leis que, por força da Constituição, devam ser respeitadas por outras leis.

O processo de "positivação" da qualificação, que começou por ser doutrinária, das leis de valor reforçado a que se assistiu desde a Revisão Constitucional de 1989 "teve a explicá-lo uma evidente preocupação garantística: era preciso deixar claro que, em todas as circunstâncias já identificadas pela doutrina em que leis vinculassem outras leis, o parâmetro da legalidade era para cumprir, cabendo a sindicância do seu incumprimento ao Tribunal Constitucional ou a todos os tribunais nos mesmos termos em que lhes caberia o controlo da constitucionalidade" (Maria Lúcia Amaral, Legislação - Cadernos de Ciência de Legislação, n.º 19/20, p. 111).

Pode estabelecer-se uma relação constitucional de desvalor entre actos normativos sem que isso signifique o estabelecimento de uma hierarquia formal entre eles. Como diz Joaquim Freitas Rocha, Constituição, Ordenamento e Conflitos Normativos, pág. 575, pode acontecer que um acto pré-existente e equi-ordenado (quanto ao título de valência formal na hierarquia dos actos normativos) defina o regime jurídico a que ficam sujeitos actos subsequentes. E é possível identificar leis ordinárias que vinculam outras leis ordinárias em razão de uma habilitação constitucional conferida para o efeito, através de elementos tão diversos como o da competência, da função directiva ou do procedimento específico. O valor reforçado coloca a lei assim qualificável numa relação de proeminência não hierárquica e vincula, nesse domínio específico, o próprio órgão legislativo, de que promana (e não apenas os demais órgãos dotados de poder legislativo, em defesa da competência legislativa reservada do parlamento) que não pode afastar-se dela nos actos legislativos singulares compreendidos no espaço de eficácia reforçada. A lei posterior que singularmente se afaste do regime estabelecido pela lei de valor reforçado não a derroga, infringe o nela estabelecido.

Cumpre, por último, salientar que a Revisão Constitucional de 1997, ao introduzir o preceito do actual artigo 112.º, n.º 3, não teve o propósito de inovar, introduzindo uma nova categoria de actos legislativos a produzir a partir desse momento, mas um propósito de clarificar o sentido de um conceito a que, já desde a revisão de 1989, a Constituição fazia referência expressa e que, mesmo antes disso, já era identificado pela doutrina e jurisprudência, que reconheciam a existência de relações de prevalência funcional entre actos legislativos colocados no mesmo plano hierárquico, com as

consequências daí advenientes.

6.3 - Esclarecidos o sentido e alcance do conceito constitucional de lei com valor reforçado, cumpre agora apurar se nele é subsumível a Lei 142/85, de 18 de Novembro, que teve por objecto o estabelecimento do regime da criação de municípios, na sequência dos princípios constantes da Lei 11/82, de 2 de Junho, sobre o regime de criação e extinção das autarquias locais e de determinação da categoria das povoações (cf. artigo 1.º), enunciando um conjunto de requisitos de que depende a criação dos novos municípios e impõe exigências a observar no procedimento de elaboração das leis que venham a determinar tal criação.

Segundo o disposto no artigo 164.º, alínea n), da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a "criação, extinção e modificação de autarquias locais e respectivo regime, sem prejuízo dos poderes das

regiões autónomas".

A actual redacção deste preceito resultou da Revisão Constitucional de 1997 (operada pela lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro). Na redacção anterior, o preceito correspondente, do artigo 167.º, n.º 1, alínea n), reservava apenas à Assembleia da República a competência para definir o "regime de criação, extinção e modificação territorial de autarquias locais" [norma idêntica já constava do artigo 167.º, alínea j) do preceito aditado pela Revisão Constitucional de 1982].

Como assinalavam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o que [na versão anterior à Revisão de 1997] estava exclusivamente reservado à Assembleia da República, era o regime que havia de disciplinar a criação, a extinção ou a modificação territorial das autarquias locais, e não estes mesmos actos. A criação concreta, bem como a extinção ou modificação poderiam, depois, na base dessa lei, ser efectuadas por outro acto legislativo da própria Assembleia da República, do Governo ou das assembleias legislativas das regiões autónomas, conforme os casos.

Com a Revisão de 1997, o legislador constituinte estendeu a reserva de competência absoluta da Assembleia da República à criação concreta, assim como à extinção ou modificação de autarquias locais, que, desse modo, passou a ficar vedada ao Governo - salvaguardando os poderes das regiões autónomas sobre a matéria, para os efeitos do disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea 1), que confere a estas entidades o poder de "criar e extinguir autarquias locais, bem como modificar a respectiva área, nos termos da lei" -, continuando a Constituição, como resulta, tanto do teor da alínea n) do n.º 1 do artigo 164.º, como do inciso final da alínea l) do n.º 1 do artigo 227.º, a prever a existência de uma lei geral sobre o regime de criação, extinção e modificação das

autarquias locais.

O artigo 164.º, n.º 1, alínea n), da Constituição atribui, pois, dois tipos distintos de competência à Assembleia da República: (i) por um lado, a competência para criar, extinguir e modificar autarquias locais, sem prejuízo dos poderes das regiões autónomas; (ii) por outro lado, e tal como já sucedia antes da Revisão de 1997, a competência para definir "o respectivo regime", isto é, para definir o regime de criação, extinção e modificação de autarquias locais, mediante lei, que já era entendida na doutrina como, "um caso típico de lei-quadro ou lei de enquadramento, que vincula as leis que lhe dão execução" (Cf., Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3.ª ed. revista, Coimbra, 1993, p. 667), tidas como leis com valor reforçado. Há aqui uma dupla reserva: uma para a fixação do regime geral; outra para a lei-medida que, embora correspondendo também a uma volição política primária, institua (modifique ou extinga) cada autarquia.

Na verdade, as leis de enquadramento ou leis-quadro pertencem àquela categoria de leis que, na nossa ordem jurídico-constitucional, têm sido qualificadas como leis com valor reforçado (cf. artigo 112.º, n.º 3, da Constituição), pelo facto de serem actos legislativos com um valor paramétrico em relação a outros actos legislativos, que os devem respeitar e para os quais eles funcionam como um marco de aferição da respectiva validade material. Entre a lei-quadro e as leis que venham a ser emanadas dentro do respectivo âmbito de aplicação, existe uma relação de prevalência funcional, por força da qual serão inválidas as disposições contidas nas leis que, devendo fazê-lo por se reportarem a matéria por ela regulada, não se conformem com os parâmetros de validade decorrentes da lei-quadro. Com explica Jorge Bacelar Gouveia, em situações deste tipo não há uma relação de hierarquia formal entre os actos, que nesse plano, se encontram em posição de igualdade: a prevalência de uns sobre os outros funda-se, antes, numa razão de ordem funcional, decorrente do papel que os primeiros são chamados a desempenhar (Cfr. Manual de Direito Constitucional, Vol. II, Coimbra

2005, p. 1216 e 1222).

Prevendo a Constituição a existência de uma lei destinada a definir, em abstracto, o regime que outras leis deverão observar quando, em concreto, procederem à criação de cada autarquia local, não pode deixar de reconhecer-se que ela tem em vista a existência, neste domínio, de uma lei com valor paramétrico, ou seja, dotada de valor reforçado em relação às leis que concretizem o exercício dessa competência. Neste sentido, de que a lei do regime de criação, extinção e modificação territorial das autarquias locais é uma lei com valor reforçado (porque a divisão administrativa do território, que é feita por lei, depende desse regime: artigos 164.º, alínea n), 227.º, n.º 1, alínea l), e 236.º, n.º 4) pronuncia-se, ainda, ainda Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 3.ª ed., pp. 360-361. Idêntica opinião manifesta Joaquim Freitas Rocha (loc. cit, pág. 578) que, referindo-se às razões da atribuição de valor reforçado, inclui as finalidades relacionadas com o equilíbrio territorial e exemplifica com as leis criadoras, modificativas ou extintivas de autarquias locais ou de regiões

administrativas.

Pretende-se, com a subordinação da matéria a uma lei de enquadramento, que a vontade política manifestada nas leis de criação, modificação ou extinção concreta não resulte em soluções discrepantes entre si. Efectivamente, a existência de um regime de enquadramento, num domínio onde, com frequência, surgem tensões obnubiladoras de uma perspectiva global ou conflitos precipitantes de decisões políticas condicionadas por conjunturas temporais ou locais desgarradas, introduz no processo decisório de criação de autarquias um resguardo do decisor político contra pretensões casuísticas que afectem a racionalidade e equilíbrio da organização administrativa do território.

Note-se, por último, que à qualificação da Lei 142/85, de 18 de Novembro como lei reforçada não obsta o facto de ela ser anterior à emergência constitucional do conceito, seja qual for o entendimento que se tenha sobre o seu valor positivo anteriormente à revisão Constitucional de 1989. A força paramétrica das leis que são pressuposto necessário de outras leis ou que por estas devam ser respeitadas depende de aquelas regularem a matéria em razão da qual a Constituição lhes reconhece proeminência funcional. Se elas traduzem o exercício da competência para preencher esse domínio de regulação, passam a ocupar esse domínio do ordenamento e impõem-se ao exercício posterior do poder legislativo, independentemente do momento

em que foram emitidas.

6.4 - A Lei 142/85 tem, pois, uma função disciplinadora do exercício concreto da competência legislativa de criação de municípios, vinculando o legislador no exercício dessa competência quanto a aspectos como o dos requisitos de que depende tal criação, do procedimento a seguir na elaboração das leis que a venham a determinar e dos aspectos essenciais a disciplinar através do diploma legal de criação ou

modificação da autarquia.

Assim, nos termos da Lei 142/85, a decisão da Assembleia da República de criar um novo município tem de se apoiar num relatório (cf. artigo 7.º) que, entre outros aspectos, deve proceder à "discriminação, em natureza, dos bens, universalidades, direitos e obrigações do município ou municípios de origem a transferir para o novo município" e à "enunciação de critérios suficientemente precisos para a afectação e imputação ao novo município de direitos e obrigações, respectivamente" (cf. alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 8.º). Os critérios materiais orientadores para a partilha de patrimónios e a determinação de direito e responsabilidades, a ter em conta na elaboração do relatório e pela comissão parlamentar na instrução e feitura da lei de criação, são os estabelecidos pelo artigo 12.º da "Lei-Quadro".

E, embora não esteja vinculada pelo relatório, a lei criadora do novo município tem de fazer obrigatória menção a estes aspectos, introduzindo um mínimo de definição a seu respeito, como resulta do artigo 9.º Estão em causa elementos que, pela sua importância, são tidos por essenciais no processo de constituição do novo município e que justificam a exigência legal da sua menção no acto criador do mesmo.

Ora, a Lei 83/98, não procedeu às discriminações e à definição dos critérios que haviam de presidir às transferências patrimoniais e de responsabilidades a realizar entre os municípios envolvidos e à repartição entre eles dos direitos e encargos que deveriam corresponder a cada um. Deferiu essa competência para a comissão instaladora prevista no artigo 3.º, que incumbiu de "elaborar um relatório donde constem, tendo em vista o disposto na lei, a discriminação dos bens, universalidades e quaisquer direitos e obrigações do município de Santo Tirso que se transferem para o município da Trofa", em clara desconformidade com o disposto nos artigos 8.º, n.º 1, alíneas e) e f), e 9.º, alínea b), da Lei 142/85, de 18 de Novembro.

Foi esse evidente desvio da lei instituidora do novo município ao programa da "Lei-Quadro" respectiva que o acórdão recorrido qualificou como ilícito legislativo e a que reconheceu nexo causal com o sobredimensionamento dos custos com pessoal no município de origem em que se fundou a condenação do Estado.

6.5 - Para concluir pela confirmação ou não deste juízo no que respeita à violação do pelo n.º 1 do artigo 4.º da Lei 83/98 da alínea b) do artigo 9.º, com referência às alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 8.º, da Lei 142/85, de 18 de Novembro - a única questão que é da competência deste Tribunal, não lhe cabendo saber se tal basta para estabelecer os demais pressupostos da responsabilidade, designadamente a ilicitude relevante e o nexo de causalidade com os prejuízos cuja indemnização se reclama - há uma última questão a resolver. É ela a de saber se as normas da "Lei-Quadro" com as quais o diploma instituidor se mostra desconforme são aplicáveis ao caso.

Efectivamente, embora não discutida pelo recorrente - porventura por coerência estrita com o entendimento de que a "Lei Quadro" não tem valor reforçado - essa matéria é da competência do Tribunal porque se trata de estabelecer o parâmetro de controlo.

Na fiscalização concreta de constitucionalidade ou ilegalidade a norma (o sentido normativo) objecto de controlo é um dado para o Tribunal. Mas já não assim quanto à lei de valor reforçado alegadamente violada. A determinação e a fixação do conteúdo da norma infraconstitucional paramétrica é sempre tarefa do Tribunal (é a sua função primordial neste tipo de recurso), do mesmo modo que o são a determinação e interpretação das normas e princípios constitucionais pertinentes quando o confronto

que se lhe pede é com a Constituição.

Aliás, a questão foi colocada ao longo do processo perante os tribunais da causa e é desenvolvidamente versada nas contra-alegações do recorrido e no parecer jurídico que as apoia, pelo que, também no plano processual, não há obstáculo a que se passe

à sua consideração.

Ora, posteriormente à publicação da Lei 83/98, que criou o Município da Trofa, foi publicada a Lei 48/99, de 16 de Junho que estabelece o regime de instalação de novos municípios. Lei esta que, segundo o respectivo artigo 20.º produz efeitos a partir de 15 de Setembro de 1998, apesar de entrar em vigor em 17 de Junho de 1999. Tem

portanto efeitos retroactivos.

Sucede que esta lei veio estabelecer (artigo 11.º) que, para efeitos de transmissão de bens, direitos e obrigações do novo município, a câmara municipal de cada um dos municípios de origem e a comissão instaladora do novo município devem elaborar, no prazo de três meses, relatórios discriminando, por categorias, as universalidades, os direitos e as obrigações que, no seu entender, devem ser objecto de transmissão.

Compete a uma comissão constituída por um representante do Ministro do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território que preside, pelo presidente da câmara municipal do município de origem e pelo presidente da comissão instaladora do novo município a elaboração da proposta final, com respeito pelos disposto nos artigos 10.º e 12.º da Lei 142/85, de 18 de Novembro. Essa proposta é submetida a aprovação da câmara municipal do município de origem e da comissão instaladora do novo município. A falta de aprovação por qualquer das partes envolvidas

será suprida por despacho ministerial.

Além disso, a Lei 48/99 comete à comissão instaladora a elaboração e aprovação do mapa com a dotação de pessoal que se prevê necessária para o funcionamento dos serviços do novo município, a ratificar por despacho ministerial (artigo 14.º). E estabelece que a integração nesse mapa de pessoal é feita prioritariamente com recurso aos trabalhadores do município de origem, em termos a acordar entre os municípios envolvidos. Para a falta de acordo, o n.º 2 do artigo 14.º dispõe que é aplicável o critério da proporcionalidade do número de funcionários do município de origem relativamente à população residente em cada um dos municípios.

É manifesto que os conteúdos normativos impostos à lei instituidora e que esta transferiu para a comissão instaladora, com isso dando azo, segundo a decisão recorrida, aos prejuízos que o Estado foi condenado a indemnizar, passaram a integrar-se na competência própria deste órgão no novo figurino legal relativo à instalação dos municípios. Melhor dizendo, passaram a ser regulados por actos administrativos complexos, preferencialmente de concertação entre os municípios

interessados.

Face a tal evolução legislativa e ao facto de a lei se atribuir eficácia retroactiva, coloca-se a questão de saber se o vício, a ilegalidade do n.º 1 do artigo 4.º da Lei 83/98 ao fazer algo que então não podia fazer mas cujos efeitos correspondem, essencialmente, ao que passou a resultar do novo regime legal da instalação de novos municípios, se encontra sanado e em que extensão.

O que implica responder sucessivamente a três perguntas: 1.ª - Se a Lei 48/99 (regime de instalação de novos municípios) tem efeito revogatório ou derrogatório das disposições da Lei 142/85 (Lei Quadro de Criação de Municípios) que a Lei 83/98 (criação do Município da Trofa) não respeitou; 2.ª - Se a Lei 48/99 podia atribuir-se eficácia retroactiva; 3.ª - Qual o alcance sobre a ilegalidade de uma lei da posterior alteração, em sentido concordante ou sanatório, da lei de valor reforçado que

aquela violara.

6.6 - A Lei 48/99 contém disciplina material que à primeira análise parece dificilmente compaginável com a exigência de que o diploma legal que cria o município proceda ele próprio à discriminação, em natureza, dos bens, universalidades, direitos e obrigações do municípios ou municípios de origem a transferir para o novo município, nomeadamente na dimensão que interessa ao presente recurso de fiscalização concreta que é o que respeita à repartição dos recursos humanos e consequente

responsabilidade financeira.

Efectivamente, uma das enunciações que deveriam constar da lei de criação, nos termos das disposições conjugadas do artigo 8.º, n.º 1, alíneas e) e f), artigo 9.º, alínea b) e artigo 12.º, n.º 1, alínea e) e n.º 3, da Lei 142/85, era a respeitante aos critérios de transferência para o novo município do pessoal adstrito a serviços em actividade na sua área e ainda daqueles que passavam a caber-lhe. Ora - e a esta dimensão do n.º 1 do artigo 4.º da Lei 83/98 se confina o objecto do recurso - os critérios de elaboração do quadro de pessoal e de repartição dos recursos humanos entre os municípios de origem e o novo município, nos aspectos material, procedimental e competencial, estão desenvolvidos com minúcia no novo regime de instalação definido pelos artigos 14.º e 15.º da Lei 48/99. É actividade a levar a cabo posteriormente à criação do novo município, privilegiando a concertação entre os municípios interessados. Dir-se-ia que se quer aliviar o diploma de criação de municípios de uma exigência conteudística que é pesada para o legislador e seguramente mais fácil de

cumprir ao correr da fase de instalação.

Vejamos.

A diversidade de objecto fundamental das duas leis, num caso trata-se de estabelecer o regime geral de criação, no outro de definir o regime de instalação de novos municípios, não constitui obstáculo a que se considere parcialmente revogada ou derrogada a "Lei-Quadro". Trata-se de leis igualmente provindas da Assembleia da República, para que a Constituição estabelece o mesmo procedimento especial de votação - obrigatoriamente votadas na especialidade pelo Plenário, por força do n.º 4 do artigo 168.º da Constituição, procedimento que foi respeitado quanto à Lei 48/99 - e sem outra resistência passiva relativamente a outras leis, salvo a que é inerente à natureza reforçada da "Lei-Quadro" relativamente aos actos de criação de novos municípios. De modo que, ao menos no aspecto de competência, procedimento e forma, nada obstaria a que o legislador subtraísse, por essa via, do regime relativo ao momento da criação o que entende caber melhor no momento da instalação. Aliás, criação e instalação das autarquias não são domínios de regulação estanques. São os actos e operações de instalação que dão execução ao acto criador e concretizam a definição do novo centro de poder autárquico e a respectiva esfera de direitos e obrigações, quase necessariamente por subtracção à esfera de um qualquer outro município, porque o território está todo dividido em municípios. Daí que haja aspectos cuja pertença a um ou outro dos domínios normativos seja duvidoso. A relação de complementaridade entre uma e outra fases da emergência do novo ente autárquico torna fluidas as fronteiras entre o que deve ser conteúdo do regime de criação e o que pode estar contido no regime de instalação. Aliás, a Lei 142/85 disciplinava aspectos indiscutivelmente respeitantes à fase de instalação (cf. artigos 10.º e 13.º) Assim, o que poderia discutir-se é se esta específica matéria integra o conteúdo constitucionalmente necessário da lei de enquadramento da criação de autarquias, de modo que a sua remissão para um plano que passa a ser o de decisão administrativa a descaracteriza, equivalendo a uma deslegalização proibida, ou se, pelo contrário, a mesma Assembleia, exclusivamente competente para definir esse regime, pode discricionariamente incluir ou subtrair esta matéria à "Lei-Quadro", sem a

descaracterizar.

Mas não é necessário entrar na análise desse problema porque há argumentos que inclinam a favor do entendimento da não revogação ou derrogação da "Lei-Quadro", neste aspecto, pela lei que estabelece o regime de instalação.

Em primeiro lugar, o intérprete é confrontado com o facto de a Lei 48/99 conter uma norma revogatória, onde figuram expressamente como revogadas outras disposições da Lei 142/85 (os n.os 1, 2 e 3 do artigo 10.º e os n.os 1 e 2 do artigo 13.º) e não aquelas que agora estão em consideração. A afirmação expressa pelo legislador da revogação destes preceitos não pode deixar de significar, suposto que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, que da "Lei-Quadro" só estes quis atingir. Seria difícil entender a razão pela qual o legislador, revogando expressamente vários preceitos de um dado diploma legal, omitiria a referência a outros que igualmente queria revogar do mesmo diploma, versando sobre aspectos autónomos, e que só poderiam ser considerados ao abrigo da forma genérica do mesmo artigo 19.º que considera revogadas "as demais disposições legais que contrariem o disposto no presente diploma".

Ainda no plano do argumento literal e sistemático de interpretação pode invocar-se a circunstância de o n.º 6 do artigo 11.º da Lei 48/99 continuar a estabelecer, como estabelecia o n.º 3 do artigo 10.º da Lei 142/85, que a transmissão dos bens, universalidades, direitos e obrigações se efectua por força da lei, não se vendo que outra lei possa essa ser se não a que cria o município, porque esse efeito legal supõe uma suficiente individualização dos bens e direitos transmitidos, que só essa, e não outra que se limite a estabelecer critérios gerais e abstractos, pode conter.

De modo que se impõe uma compatibilização entre o que o novo regime de instalação dispõe sobre a transferência de responsabilidades e encargos, que parece dispensar uma opção primária do legislador expressa no acto de criação do município, e as exigências da "Lei-Quadro" quanto a que esse acto especifique os critérios de transferência de direitos obrigações e responsabilidades.

A criação de um município é um acto de opção política (de volição política primária) expressa mediante acto legislativo. Como pessoa colectiva de população e território, há elementos que não podem deixar de estar contidos na lei de criação de cada município, como é o caso da delimitação da área que abrange e a indicação da respectiva denominação e sede, bem como da circunscrição supramunicipal em que se integre, pelo que não é concebível a sua relegação para outra entidade ou outro momento.

Estes são elementos mínimos de identificação do novo ente autárquico ou da nova circunscrição administrativa sem os quais o acto de instituição dificilmente teria objecto

inteligível

Mas, embora não se impondo com a mesma evidência como conteúdo necessário do acto de instituição de nova autarquia, os elementos agora em consideração são também essenciais para que a finalidade da lei de enquadramento se cumpra. Obrigando a lei de enquadramento, por um lado, a que a instituição de cada nova autarquia satisfaça parâmetros mínimos de racionalidade organizatória, de viabilidade administrativa e financeira e de dotação de equipamentos públicos ou de uso público - o que reflexamente implica que o município de origem não seja privado dos mesmos atributos - e sabendo-se, por outro lado, que todo o território está "municipalizado", com infra-estruturas, edifícios, equipamentos, serviços e pessoal em função da divisão administrativa existente, seria pouco compreensível que o acto de criação do novo município não estivesse sujeito ao imperativo de traçar os critérios a observar na concreta repartição entre os municípios interessados, do património, direitos e encargos, em ordem a assegurar a continuidade da prestação do serviço público a cargo da administração local autónoma. Esta indicação ainda pertence à opção política de (re)organizar o território, sendo a necessidade de dispor de um relatório que permita conhecer a realidade e as suas consequências e de os reflectir (e de os ponderar) no conteúdo do acto de criação um forte elemento de racionalização da respectiva decisão. Acresce que, na falta de fixação suficientemente densificada dos critérios de repartição de bens, obrigações e encargos pelo legislador no acto concreto de criação do novo município, além de se transferir para a fase de instalação a resposta a um problema que aí terá mais elevado potencial de conflitualidade que predispõe a um penoso arrastamento da solução final, com custos na eficiência da actuação das autarquias envolvidas, uma decisão que comporta fortes reflexos políticos porque afecta a definição dos meios e da capacidade operacional de cada autarquia, ficaria, em último termo, relegada para uma decisão administrativa.

Nesta perspectiva, os poderes atribuídos à comissão instaladora do novo município e às câmaras municipais do município ou municípios de origem pela Lei 48/99, embora conferindo alguma autonomia na individualização das situações e de mecanismos de resolução de situações inapreensíveis pelo legislador, cuja presença pode ser interpretada, numa visão global do sistema, no sentido de relativizar ou suavizar as exigências a este impostas na fase de criação, não dispensam a fixação de parâmetros e critérios suficientemente densificados de imputação de bens, direitos, obrigações e encargos logo no acto de criação do novo município.

Deste modo, o elemento teleológico de interpretação da lei corrobora o elemento literal e sistemático, levando à conclusão de que não devem interpretar-se os artigos 11.º e 15.º da Lei 48/99 como revogando tacitamente (ou através da fórmula genérica da parte final do artigo 19.º) as exigências de conteúdo da lei de criação de cada novo município que são impostas pela alínea b) do artigo 9.º da Lei 142/85, de 18 de

Novembro.

Não podendo considerar-se revogadas as normas paramétricas consideradas violadas, desaparece o substrato das demais questões hipotéticas acima enunciadas (legalização superveniente e retroactiva da Lei 83/98).

Conclui-se, portanto, no sentido da ilegalidade da norma do n.º 1 do artigo 4.º da Lei 83/98, de 14 de Dezembro, que criou o município da Trofa, por violação da alínea b) do artigo 9.º, com referência às alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 8.º da Lei 142/85, de 18 de Novembro - lei com valor reforçado. Consequentemente, o recurso

improcede.

III - Decisão

Nestes termos, decide-se julgar improcedente o recurso, confirmando-se o juízo de

ilegalidade formulado na decisão recorrida.

Sem custas.

Lx., 14/4/2010. - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral (com declaração) - Carlos Fernandes Cadilha - Gil Galvão.

Declaração de voto

Votei, sem nenhuma dúvida, a resposta que neste caso foi dada ao problema de saber se o Tribunal deveria conhecer do recurso interposto pelo Ministério Público.

Subscrevi sem hesitação o raciocínio seguido, quanto a este ponto, pelo Acórdão, segundo o qual "todas as razões que, num sistema difuso de controlo da constitucionalidade, justificam a existência de um recurso das decisões dos (demais) tribunais para o Tribunal Constitucional [...] estão presentes perante decisões de contencioso de responsabilidade fundado em ilícito legislativo".

No entanto, não posso deixar de exprimir reservas quanto à afirmação segundo a qual existirá uma equivalência de natureza ou de substância entre a decisão judicial que não aplica norma com fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade (ou a decisão judicial que a aplica, não obstante a questão de constitucionalidade ou de legalidade ter sido suscitada durante o processo) e a decisão judicial que condena o Estado ao pagamento de uma indemnização por prejuízos causados por actos legislativos que sejam "ilícitos". A afirmação ocupa, no percurso argumentativo do Tribunal, um lugar de relevo, visto que é por causa dela que se conclui que os recursos interpostos para o Tribunal de decisões relativas ao contencioso da responsabilidade - quer de decisões que condenem o Estado, por nelas se ter dado como verificado o pressuposto da "ilicitude" da lei; quer de decisões que o absolvam, por nelas se não ter dado como perfeito tal pressuposto - já se incluem, "substancial" ou "naturalmente", nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição, e nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º da lei do Tribunal Constitucional. Duvido que assim seja.

É para mim evidente que sendo, no contencioso de responsabilidade do Estado, a invalidade do acto legislativo pressuposto do dever público de indemnizar, a condenação do Estado (ou a sua absolvição) pressuporá um juízo prévio que, por "natureza" ou "substância", pertencerá sempre ao núcleo de competências próprias do Tribunal Constitucional. Como decidir sobre a "ilicitude" de uma lei - ou seja, julgar a sua constitucionalidade ou legalidade - é, sempre, administrar a justiça em matérias jurídico-constitucionais, nada legitimaria que este tipo de decisões, quando tomadas em acções de responsabilidade, se furtassem ao controlo do Tribunal ao qual compete especificamente realizar a justiça constitucional.

Porém, o modelo de recursos que a Constituição da República desenha - e que a lei do Tribunal Constitucional replica - funda-se em princípios claros, que resultam da conjugação dos artigos 3.º, n.º 3 e 204.º Como não são válidas as normas contrárias à Constituição (artigo 3.º, n.º 3), o juiz, que conhece o Direito, não pode (não deve) aplicá-las nos feitos submetidos a julgamento (artigo 204.º). É dessa decisão, que pressupõe a composição de um certo litígio de acordo com uma norma de cuja constitucionalidade se duvida, que cabe recurso para o Tribunal.

Não me parece que o juízo sobre a "ilicitude" de uma lei, feita em acção de responsabilidade do Estado, possa ser tido simplesmente como um continuum dos recursos para o Tribunal desenhados, pelas razões que acabei de expor, no n.º 1 do artigo 280.º da CRP. No meu entender, ele é outra coisa, dado que se não traduz na composição de um litígio com fundamento em norma de cuja constitucionalidade se duvida. Nas situações do artigo 280.º, o tema a decidir não é a censura do poder legislativo. Tal censura aparece, como bem se sabe, incrustada incidentalmente na questão principal, de direito infraconstitucional, que tem que ser decidida. Nas acções de responsabilidade por ilícito legislativo o thema decidendum é a censura do legislador.

E uma censura ainda mais intensa do que aquela que é feita em sede de controlo puro de constitucionalidade, visto que se não destina apenas a accertare a invalidade de uma escolha do poder legislativo. Partindo dessa invalidade, a acção de responsabilidade (por ilícito legislativo) destina-se a eventualmente repartir os custos da escolha legislativa censurável por toda a comunidade política, de modo a ressarcir o "prejudicado". O tema é, pois, a censura do legislador, e uma censura que, no seu significado constitucional e jurídico-político, ganha contornos de gravidade ou de intensidade que não são compartilhados pelos juízos de inconstitucionalidade de normas, formulados em processos de fiscalização concreta. É por tudo isto que a decisão de inconstitucionalidade que é tomada, pelo tribunal comum, em acção de responsabilidade, não equivale, a meu ver, àquela outra que é tomada pelo mesmo tribunal em processo de fiscalização concreta. Não estamos aqui perante coisas idênticas. Estamos perante algo (na acção de responsabilidade) que é um plus face ao já existente, e que, em última análise, se traduzirá em um novo modo de acesso directo dos particulares à justiça constitucional. - Maria Lúcia Amaral.

203319886

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2010/06/08/plain-275469.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/275469.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1967-11-21 - Decreto-Lei 48051 - Ministérios do Interior e da Justiça

    Regula em tudo o que não esteja previsto em Leis especiais a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domímio dos actos de gestão pública.

  • Tem documento Em vigor 1982-05-26 - Lei 8/82 - Assembleia da República

    Reapreciação dos actos pelo Tribunal de Contas, no caso de recusa de visto.

  • Tem documento Em vigor 1982-06-02 - Lei 11/82 - Assembleia da República

    Estabelece o regime de criação e extinção das autarquias locais e de designação e determinação da categoria das povoações.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1985-05-07 - Decreto-Lei 142/85 - Ministério do Equipamento Social

    Actualiza o valor das indemnizações por expropriação por utilidade pública.

  • Tem documento Em vigor 1985-11-18 - Lei 142/85 - Assembleia da República

    Aprova a Lei quadro da criação de municípios.

  • Tem documento Em vigor 1989-08-30 - Lei 83/89 - Assembleia da República

    Cria a freguesia de Dornelas no concelho de Sever do Vouga.

  • Tem documento Em vigor 1993-01-26 - Acórdão 358/92 - Tribunal Constitucional

    Decide não declara a inconstitucionalidade nem a ilegalidade dos artigos 12.º, 13.º, n.os 1 e 2, e 14.º, n.os 1, 2 e 3, da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, não declara a inconstitucionalidade do artigo 38.º da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, e declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea b) do artigo 50.º da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, por violação do artigo 168.º, n.º 2, da Constituição (Processo n.º 120/92).

  • Tem documento Em vigor 1993-11-15 - Decreto-Lei 380/93 - Ministério das Finanças

    ESTABELECE REGRAS RELATIVAS A AQUISIÇÃO DE ACÇÕES REPRESENTATIVA DO CAPITAL DAS SOCIEDADES A REPRIVATIZAR. FAZ DEPENDER DE AUTORIZAÇÃO PRÉVIA DO MINISTRO DAS FINANÇAS A AQUISIÇÃO, A TÍTULO ONEROSO OU GRATUITO, POR UMA SÓ ENTIDADE, SINGULAR OU COLECTIVA, DE ACÇÕES REPRESENTATIVAS DE MAIS DE 10% DO CAPITAL COM DIREITO A VOTO OU A AQUISIÇÃO DE ACÇÕES QUE ADICIONADAS AS JÁ DETIDAS ULTRAPASSEM AQUELE LIMITE, EM SOCIEDADES QUE VENHAM A SER OBJECTO DE REPRIVATIZACAO. ATRIBUI A COMISSAO DO MERCADO DE VALORES MOBILI (...)

  • Tem documento Em vigor 1997-09-20 - Lei Constitucional 1/97 - Assembleia da República

    Aprova a quarta revisão da Constituição da República Portuguesa, de 2 de Abril de 1976, e fixa normas para aplicação no tempo de alguns dos preceitos revistos. Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1998-12-14 - Lei 83/98 - Assembleia da República

    Cria o município da Trofa, com sede na cidade de Trofa, que fica a pertencer ao distrito do Porto e dispõe sobre a sua constituição e delimitação.

  • Tem documento Em vigor 1999-06-16 - Lei 48/99 - Assembleia da República

    Estabelece o regime de instalação de novos municípios.

  • Tem documento Em vigor 1999-06-30 - Lei 83/99 - Assembleia da República

    Eleva a povoação de Cumieira, no concelho de Santa Marta de Penaguião, à categoria de vila.

  • Tem documento Em vigor 1999-07-26 - Lei 98/99 - Assembleia da República

    Primeira alteração, por apreciação parlamentar, do Decreto-Lei n.º 222/98, de 17 de Julho, que redefine o plano rodoviário nacional (PRN) e cria estradas regionais.

  • Tem documento Em vigor 2007-12-31 - Lei 67/2007 - Assembleia da República

    Aprova o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas e altera (sexta alteração) o Estatuto do Ministério Público.

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