Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2016
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, no pleno das
secções cíveis (1):
I. Por sentença transitada em julgado foi declarada, em 21.11.2008, a Insolvência de JOSÉ MARIA E COMPANHIA, LDA.
Foram apreendidos para a massa insolvente apenas bens imóveis dessa empresa.
No apenso de reclamação de créditos foi proferida sentença que, no que aqui interessa, reconheceu que os créditos de ANTÓNIO CARLOS CARDOSO DA SILVA, FERNANDO TEIXEIRA MOTA PEREIRA, MANUEL ANDRADE e RUI DE AZEVEDO NOGUEIRA, ex-trabalhadores da insolvente, beneficiavam do privilégio imobiliário especial estabelecido no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27/8, quanto aos imóveis apreendidos para a massa insolvente que constam das verbas 1 a 14 e 28 a 35.
Discordando desta decisão, apelaram os credores CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS e CONSULTEAM - CONSULTORES DE GESTÃO, LDA, recursos que a Relação julgou procedentes, tendo revogado a sentença recorrida na parte em que graduou em primeiro lugar os aludidos créditos.
Os referidos credores António Carlos Cardoso da Silva, Fernando Teixeira Mota Pereira, Manuel Andrade e Rui de Azevedo Nogueira vieram então interpor recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e pedindo que se lhes reconhecesse o privilégio imobiliário especial sobre os imóveis apreendidos, mantendo-se o decidido na 1ª instância.
A revista foi negada, tendo sido confirmado o acórdão recorrido.
Inconformados, vêm agora os referidos recorrentes interpor recurso para o Pleno do STJ, para uniformização de jurisprudência, nos termos dos arts. 688º e segs. do CPC, invocando como fundamento a contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão deste Tribunal de 13.09.2011 (Proc. nº 504/08.7TBAMR-D.G1.S1).
Concluíram assim as suas alegações:
1. Por douto acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, de que ora se recorre, foi decidido que os créditos laborais reclamados pelos recorrentes não beneficiam do privilégio imobiliário especial previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 377.º do Código de Trabalho, aprovado pela lei 99/2003 de 27/8, em vigor à data da declaração de insolvência, sobre as frações de edifícios construídos pela empresa insolvente. 2. Argumentando-se, em síntese, que o privilégio imobiliário em análise pressupõe uma conexão entre a actividade profissional do trabalhador e o prédio onde a mesma era exercida, considerando-se que “não releva uma ligação ou conexão com um qualquer imóvel onde os trabalhadores tenham exercido funções, importando que esse imóvel faça pare integrante da empresa e de forma estável”.
3. Afirmando-se ainda que no que concerne às frações de edifícios construídos pela empresa insolvente, “mais não representam essas frações que o resultado da actividade da empresa; integram o seu património, mas não a unidade ou organização produtiva da empresa”. 4. Sucede que o Supremo Tribunal de Justiça não tem dado resposta uniforme à questão sub judice.
5. Com efeito, no Acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça de 2011.09.13, relatado pelo Sr. Conselheiro Gregório Silva Jesus, Revista n.º 504/ 08.7TBAMR-D.G1.S1-1.ª secção, foi reconhecido aos trabalhadores o invocado privilégio especial sobre os imóveis destinados à construção ou construídos para revenda pela empresa insolvente.
6. Aí se entendeu que “não tem sentido, nem essa é a “ratio legis”, procurar a preclusão de garantias reais concedidas a alguns credor, como os privilégios imobiliários especiais, em função do destino que aparentemente tinham os imóveis dentro da universalidade empresarial”. 7. Acrescentando-se, em interpretação da al. b) do n.º 1 do art. 377.º do Código do Trabalho, que “se o legislador tivesse querido restringir a atribuição do referido privilégio imobiliário aos imóveis onde o empregador tivesse a sua sede ou estabelecimento e excluir do seu âmbito os imóveis advenientes para a empresa do exercício da sua actividade, certamente teria dado outra redacção a esse artigo referindo claramente essa exclusão e que esse privilégio recairia somente sobre os imóveis onde se encontrassem instalados os serviços da empresa, o que não aconteceu”.
8. Refere ainda o douto acórdão fundamento que “os imóveis destinados à construção ou construídos para revenda são intrinsecamente objecto da actividade da empresa, como bens tangíveis constitutivos do seu activo, são parte integrante da unidade empresarial a que os trabalhadores pertenciam e nos quais trabalharam, pois que seriam a natural fonte de obtenção de novos capitais, de refinanciamento da empresa, e o suporte da continuidade do seu ciclo de actividade de construção. São, inquestionavelmente, parte integrante do património afecto à actividade empresarial que a insolvente desenvolvia”.
9. Resulta do que se deixou exposto que existem manifestamente decisões contraditórias proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça, sobre a mesma questão fundamental de direito e no domínio da mesma legislação. 10. Não havendo jurisprudência uniformizada sobre a matéria.
11. Encontrando-se assim reunidos os pressupostos legais para se requerer uma decisão do Pleno das Secções Cíveis, de forma a uniformizar a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre a questão sub judice. 12. Entendendo os recorrentes que deverá ser firmada jurisprudência no sentido de que o privilégio imobiliário especial previsto na al. b) do n.º 1 do art. 377.º do Código do Trabalho, abrange os imóveis construídos para revenda, devendo estes ser entendidos como parte integrante do património afecto à actividade empresarial desenvolvida pela insolvente.
13. Pois que consideramos ser esta a interpretação da lei que se impõe, por ser a mais consentânea com a letra e o espírito da lei e aquela que melhor se coaduna com a protecção do direito fundamental dos trabalhadores à sua remuneração e à sua sobrevivência condignas. 14. Interpretação diversa levaria, inelutavelmente, na prática, a que a grande maioria dos trabalhadores da construção civil não beneficiasse do referido privilégio imobiliário, o que constituiria uma intolerável discriminação destes trabalhadores, não justificada por qualquer razão válida e legalmente sustentada, consubstanciando uma manifesta violação do princípio da igualdade contemplado no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa.
15. Pois são consabidas as condições em que os mesmos trabalham e que não raras vezes, a entidade patronal não dispõe sequer de instalações próprias onde radica a sua sede, particularmente quando estão em causa pequenas e médias empresas, cujo único património imobiliário são os imóveis construídos para revenda.
16. Face a tudo quanto se deixou alegado, deverá merecer acolhimento a tese defendida pelos ora recorrentes, devendo ser revogado o douto acórdão recorrido e substituído por outro em que se decida a questão controvertida, de acordo com a pretensão dos ora recorrentes, fixando-se jurisprudência nos termos expostos
».
A recorrida Caixa Geral de Depósitos contraalegou, tendo concluído que
o privilégio imobiliário dos trabalhadores não incide sobre os imóveis construídos pela empresa insolvente
».
II. O recurso foi admitido (despacho de fls. 26 e segs.), por se reconhecer que os acórdãos referidos foram proferidos no domínio da mesma legislação e se entender que ocorre entre eles a invocada contradição, quanto à mesma questão fundamental de direito, que respeita, como aí se refere, ao privilégio imobiliário especial reconhecido aos créditos dos trabalhadores pelo art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003 e, concretamente, sobre a extensão objectiva desse privilégio, ou seja, se o privilégio abrange os imóveis construídos pela empresa insolvente. Com efeito, a referida disposição legal foi, num e noutro acórdão, interpretada e aplicada em termos diferentes e opostos, havendo identidade do núcleo da situação de facto subjacente a tal aplicação - estão em causa empresas que tinham por objecto a actividade da construção civil; os credores foram trabalhadores dessas empresas e os respectivos créditos derivam de indemnizações por despedimento a que tinham direito; os imóveis, nos quais, esses trabalhadores exerceram funções, foram construídos por essas empresas para comercialização.
Como se afirmou no aludido despacho,
decidiu-se no acórdão recorrido que não existia o privilégio imobiliário dos trabalhadores da insolvente, por este não abranger esses imóveis (apesar de integrarem o património da empresa, não representam mais do que o produto da actividade por ela desenvolvida, não fazendo parte da organização empresarial estável dos factores de produção com vista ao exercício daquela actividade).
No acórdãofundamento, pelo contrário, reconheceu-se a existência desse privilégio, entendendo-se que este se estende aos referidos imóveis, por serem objecto da actividade da empresa, sendo parte integrante da unidade empresarial a que os trabalhadores pertenciam e nos quais trabalharam
».
A oposição entre os referidos acórdãos parece, assim, não oferecer qualquer dúvida, mostrando-se preenchidos os pressupostos legais de admissibilidade deste recurso. Como decorre do que foi dito, a questão a resolver consiste em saber se os imóveis construídos por uma empresa da construção civil, para comercialização, são abrangidos pelo privilégio imobiliário especial, previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003.
O Exmo Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de que deve fixar-se jurisprudência nestes termos:
Para os efeitos do disposto no artigo 377.º, n.º 1, al. b) do C.T./2003, o privilégio imobiliário especial dos trabalhadores de uma empresa de construção civil não abrange os imóveis construídos pela empresa insolvente no âmbito da respectiva actividade industrial e que esta destinava à comercialização, ainda que na construção dos mesmos os trabalhadores credores tenham trabalhado
».
III. Foram considerados provados os seguintes factos:
A) Para a Massa insolvente de “José Maria e Companhia Lda”, foram aprendidos entre outros, os seguintes bens imóveis:
A1) Fracções AT, AA;
BC, J, chão do edifício “Garden”, sito na Rua Carreiro da Lama/Dr. José de Magalhães, em Castelões de Cepeda, concelho de Paredes, descrito na CRP de Paredes, actual e respectivamente sob as fichas n.º 1439/ 20030724-AT, 1439/20030724-AA, 1439/20030724-BC, 1439/20030724-J.
A2) Fracção C do edifício “Garden”, sito na Rua Carreiro da Lama/Dr. José de Magalhães, em Castelões de Cepeda,, concelho de Paredes, descrito na CRP de Paredes, actualmente sob a ficha n.º 1439/20030724-C.
A3) Fracção E do edifício “Garden”, sito na Rua Carreiro da Lama/Dr. José de Magalhães, em Castelões de Cepeda, concelho de Paredes, descrito na CRP de Paredes, actualmente sob a ficha n.º 1439/20030724-E.
A4) Fracção A espaço comercial para comércio e restauração, correspondente ao rés-do-chão do edifício “Garden”, sito na Rua Carreiro da Lama/Dr. José de Magalhães, em Castelões de Cepeda, concelho de Paredes, descrito na CRP de Paredes, actualmente sob a ficha n.º 1439/20030724-A, e inscrito na matriz predial sob o n.º 2240-A.
B) No, e para o exercício da sua actividade, a Insolvente, “José Maria e Companhia Lda, representada por José Maria Ribeiro Pereira, celebrou com Miguel Ângelo Martins Carneiro Leão e Ana Maria Barbosa Carneiro Leão, uma permuta, de uma parcela de terreno para construção urbana, com 3300 m2, sita no gaveto da Rua do Carreiro da Lama com a Rua Dr. José Magalhães, freguesia de Castelões de Cepeda.
C) Por aquele acordo, outorgado em 14.9.2000, por escritura publica outorgada no cartório notarial de Penafiel, a insolvente propunha-se a construir, como construiu, um prédio urbano constituído por dois blocos, a designar por Bloco N e Bloco P, localizados respectivamente a sul e a norte do terreno onde vão ser implantados, com cave, rés-do-chão, 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º e recuado, que posteriormente iria ser afecto ao regime da propriedade horizontal, e em troca da referida parcela, receberiam desta, como bens futuros, um espaço comercial e três habitações de tipologia T2, a definir como fracções autónomas, com letra a designar quando da constituição do titulo executivo da propriedade horizontal.
D) Em 14 de Setembro de 2000, foi celebrado, por documento escrito e assinado por ambas as partes, e com ambas as assinaturas reconhecidas, como aditamento à referida escritura, mediante o qual o Insolvente, “José Maria e Companhia Lda, representado por José Maria Ribeiro Pereira, prometeu vender a Miguel Ângelo Martins Carneiro Leão e Ana Maria Barbosa Carneiro Leão, e estes prometeram comprar, uma habitação tipo T3, situada no 5.º piso do bloco A, actualmente correspondente à fracção AT referida em A); uma habitação tipo T3, situada no 2.º piso do bloco B, actualmente correspondente à fracção AA referida em A); uma habitação tipo T3, situada no 6.º piso do bloco B, actualmente correspondente à fracção BC referida em A); e uma loja comercial situada no 1.º piso do Bloco B, correspondente à fracção J referida em A).
E) O preço estipulado para a compra foi de € 420.000,00, sendo que a quantia de € 401.250,00, foi paga a titulo de sinal e princípio de pagamento no momento do acordo referido em D), e o remanescente do preço, 14.750,00 seria pago no acto de celebração da escritura definitiva. F) Em 30.9.2008, os reclamantes, Miguel Ângelo Martins Carneiro Leão, Luís Miguel da Silva Carneiro Leão, e Miguel Ângelo Silva Carneiro Leão, intentaram contra José Maria Companhia, Lda, uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário, pedindo fosse decretada a venda das fracções objecto dos acordos referidos em C), D) e E), livres de ónus e encargos; na impossibilidade de execução específica a condenação da Ré a restituir o sinal em dobro; e ainda na impossibilidade de execução específica, a condenação da ré a pagar à A a quantia correspondente ao valor dessas fracções na actualidade.
G) No e para o exercício da sua actividade, a Insolvente, “José Maria e Companhia Lda, representada por José Maria Ribeiro Pereira, celebrou com Miguel Ângelo Martins Carneiro Leão um acordo, celebrado, por documento escrito e assinado por ambas as partes, mediante o qual o Insolvente, “José Maria e Companhia Lda, representado por José Maria Ribeiro Pereira, prometeu vender a Miguel Ângelo Martins Carneiro Leão, e este prometeu comprar:
uma fracção para comércio e serviços, designada pela letra C, com 128 m2, com logradouro de 59 m2, actualmente correspondente à fracção C referida em A) pelo preço de € 120.000,00; e uma fracção designada pela letra E, com 43 m2, actualmente correspondente à fracção E, referida em A), pelo preço de € 42.000,00, ambas livres de ónus e encargos. H) Ficou ainda estipulado no acordo ref. em G) que Miguel Carneiro entregaria naquela data a quantia de € 127,000,00 e o restante preço, ou seja 34.500,00 seria pago quando realização da escritura de compra e venda. I) Em 7.4.2005, Álvaro Ribeiro Pereira, celebrou com José Maria e Companhia, representado por José Ribeiro Pereira, um acordo mediante o qual esta prometeu vender àquele o espaço comercial, fracção A, para comércio ou restauração, com 179 m2, mais 63 m2 de terraço exterior, no rés do chão do Edifício “Garden que se encontrava em construção e respeitante à fracção A identificada em A), pelo preço de 140.000,00 Euros, a pagar da seguinte forma:
a) 125.000,00 já liquidados através de materiais fornecidos pela requerente para a obra de construção do edifício Garden, nomeadamente através de entrega de matérias da sua especialidade de serralharia, tais como chapas, portas, janelas, barras de alumínio, remates de peitoril, aros;
b) 15.000,00 seriam pagos através de materiais a fornecer pela requerente para a obra de construção do edifício Garden, e que esta se comprometeu a executar, mediante preço que constaria das respectivas facturas, de acordo com os preços normalmente por si praticados para a sua actividade.
J) Com o andamento e continuação dos trabalhos, Álvaro Ribeiro Pereira, forneceu os materiais referidos supra em b) da alínea I).
L) Ficou ainda estipulado por ambos, no acordo referido em I), que a escritura definitiva seria marcado pelo promitente comprador, logo que se encontrasse na posse da respectiva licença de utilização, tendo 30 dias para o efeito, devendo avisar o promitente vendedor com antecedência de 8 dias, do dia hora e cartório notarial onde seria realizada.
M) Sobre as fracções identificadas em A) incidem duas hipotecas voluntárias registadas em 13.10.2000 e 6.11.2002, e ainda arresto a favor do BES, Banco Espírito Santo, SA, este registado em 31.3.2008.
N) Em meados de 2005, José Maria Ribeiro Pereira, na qualidade de representante de “José Maria e Companhia, Lda, entregou as chaves das fracções destinadas a habitação identificadas em D) a Miguel Ângelo Martins Carneiro Leão e Ana Maria Barbosa Carneiro Leão.
O) E em meados de 2007, José Maria Ribeiro Pereira, na qualidade de representante de “José Maria e Companhia, Lda, entregou as chaves da fracção J, destinada a comércio identificada em D) a Miguel Ângelo Martins Carneiro Leão e Ana Maria Barbosa Carneiro Leão.
P) Para que aqueles procedessem à limpeza e mostras-sem a quem estivesse interessado em as arrendar/vender. Q) Assim, Miguel Ângelo Martins Carneiro Leão, foi, relativamente às mesmas, celebrando contratos de arrendamento, no pressuposto de que as escrituras iriam ser celebradas brevemente.
R) E sempre insistindo com a celebração da escritura definitiva dos mesmos.
S) A insolvente ia sempre protelando a realização das escrituras, alegando que iria realizar dinheiro com a venda de outras fracções, e assim poder libertar as id. em A) das hipotecas, para o efeito.
T) E em meados de 2007, José Maria Ribeiro Pereira, na qualidade de representante de José Maria e Companhia, Lda, entregou as chaves das fracções C e E referidas em G) a Miguel Ângelo Martins Carneiro Leão.
U) Para que aquele procedesse à limpeza e mostrasse a que estivesse interessado em as arrendar/vender.
V) Assim, Miguel Ângelo Martins Carneiro Leão, foi, relativamente às mesmas (fracções C) e E)), celebrando contratos de arrendamento, no pressuposto de que as escrituras iriam ser celebradas brevemente.
X) E sempre insistindo com a celebração da escritura definitiva dos mesmos.
Z) A insolvente ia sempre protelando a realização das escrituras, alegando que iria realizar dinheiro com a venda de outras fracções, e assim poder libertar as id. em A) das hipotecas, para o efeito.
AA) Na data do acordo referido em I) (7.4.2005), a ora insolvente entregou a Álvaro Pereira as chaves da fracção A (loja), permitindolhe que este pudesse aí fazer as obras que entendesse por convenientes, não podendo opor-se ou de qualquer modo impedir, interromper prejudicar o andamento desses trabalhos.
BB) Desde Abril de 2005, até hoje, ininterruptamente, Álvaro Ribeiro passou a utilizar a fracção A, tendo aí executado paredes, divisórias, e aplicou na cozinha banca e móveis.
CC) Álvaro Ribeiro Pereira colocou anúncios com vista ao eventual arrendamento dessa fracção A) que só ele ocupava e utilizava.
DD) Em 5 de Dezembro de 2005, Álvaro Ribeiro Pereira prometeu arrendar a fracção A à sociedade Búzios do Céu, Unipessoal, Lda, que entrou imediatamente em vigor, tendo aquele começado de imediato a pagar as rendas.
EE) Por isso, desde esse dia até hoje, Álvaro Pereira, começou a receber a quantia mensal de € 750,00 até Fevereiro de 2008, tendo após em Setembro de 2011 arrendado essa fracção a um terceiro, recebendo a quantia mensal de € 400,00 também a título de rendas desse estabelecimento, no qual foi implantado um estabelecimento de salão de chá e snack Bar.
FF) Desde Dezembro de 2005 Fevereiro de 2008, ininterruptamente, a sociedade Búzios do Céu Unipessoal, Lda, mobilou e recheou a fracção A, instalou o estabelecimento e aí vendeu refeições e produtos de pastelaria e cafetaria.
GG) É de conhecimento de todos os condóminos do edifício e da própria administração de condomínio, que apenas se dirige a Álvaro Pereira, para tratar de assuntos relacionados com a fracção.
HH) É Álvaro Pereira quem paga o IMI respeitante à fracção A). ali consumidas.
II) E que, através de Búzios do Céu, paga luz e água JJ) A licença de utilização respeitante à fracção A foi emitida em 1.9.2008, a partir desta data, Álvaro Pereira, foi sempre insistindo com a celebração da escritura definitiva do mesmo.
LL) Mas a insolvente comunicoulhe que não o podia fazer, porque não tinha capacidade financeira para proceder ao distrate da hipoteca.
MM) Durante os dois últimos anos anteriores ao seu despedimento, António Carlos da Silva exerceu funções de carpinteiro numa obra executada pela insolvente, em Marecos, Penafiel, no prédio sito no Lugar da Mouta, inscrito na matriz sob o art.º 548 e descrito na CRP sob a ficha 328/19941109.
NN) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente até ao seu despedimento que ocorreu em 14.3.2008.
OO) Imediatamente antes de ser colocado nessa obra, pelo menos nos anos de 2004 e 2005, António Carlos da Silva exerceu funções de carpinteiro numa obra executada pela insolvente, cita em Castelões Cepeda, no prédio sito na Rua da Carreira da Lama, inscrito na matriz sob o art.º 2240 e descrito na CRP sob a ficha 1439/20030724. PP) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente, deixando o imóvel pronto a ser habitado.
QQ) Durante os dois últimos anos anteriores ao seu despedimento, que ocorreu em 14.3.2008, Rui Azevedo Nogueira exerceu funções de trolha numa obra executada pela insolvente, em Marecos, Penafiel, no prédio sito no Lugar da Mouta, inscrito na matriz sob o art.º 548 e descrito na CRP sob a ficha 328/19941109.
RR) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente.
SS) Imediatamente antes de ser colocado nessa obra, nos anos de 2004 e 2005, Rui Azevedo Nogueira exerceu funções de trolha, numa obra executada pela insolvente, sita em Castelões Cepeda, no prédio sito na Rua da Carreira da Lama, inscrito na matriz sob o art.º 2240 e descrito na CRP sob a ficha 1439/20030724.
TT) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente, deixando o imóvel pronto a ser habitado.
UU) Durante os dois últimos anos anteriores ao seu despedimento, que ocorreu em 14.3.2005, Fernando Teixeira da Mota Pereira exerceu funções de envernizador numa obra executada pela insolvente, em Marecos, Penafiel, no prédio sito no Lugar da Mouta, inscrito na matriz sob o art.º 548 e descrito na CRP sob a ficha 328/19941109. VV) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente.
XX) Imediatamente antes de ser colocado nessa obra, nos anos de 2004 e 2005, Fernando Teixeira da Mota Pereira exerceu funções de envernizador, numa obra executada pela insolvente, sita em Castelões Cepeda, no prédio sito na Rua da Carreira da Lama, inscrito na matriz sob o art.º 2240 e descrito na CRP sob a ficha 1439/20030724. ZZ) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente, deixando o imóvel pronto a ser habitado.
AAA) Durante os dois últimos anos anteriores ao seu despedimento, que ocorreu em 14.3.2005, Manuel Andrade exerceu funções de servente numa obra executada pela insolvente, em Marecos, Penafiel, no prédio sito no Lugar da Mouta, inscrito na matriz sob o art.º 548 e descrito na CRP sob a ficha 328/19941109.
BBB) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente.
CCC) Imediatamente antes de ser colocado nessa obra, nos anos de 2004 e 2005, Manuel Andrade exerceu funções de servente, numa obra executada pela insolvente, sita em Castelões Cepeda, no prédio sito na Rua da Carreira da Lama, inscrito na matriz sob o art.º 2240 e descrito na CRP sob a ficha 1439/20030724.
DDD) De forma consecutiva e ininterrupta, sob as ordens, direcção e fiscalização da insolvente, deixando o imóvel pronto a ser habitado.
IV. A questão fundamental de direito que aqui se discute tem a ver, como se referiu, com o privilégio imobiliário especial estabelecido, em benefício dos trabalhadores, no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003, sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
Trata-se de saber se são abrangidos por esse privilégio os imóveis construídos por uma empresa de construção civil insolvente e destinados a comercialização.
O problema é, essencialmente, de interpretação desse segmento da norma; tem interesse, porém, antes de (e para) o afrontarmos, referir, em breve excurso, a evolução da regulamentação legal desta matéria relativa às garantias dos créditos dos trabalhadores, em especial com incidência sobre bens imóveis, e a controvérsia que foi suscitando. Elementos que reflectem, no fundo, o condicionalismo em que a referida norma foi elaborada e que, nessa medida, terão inspirado o legislador e influenciado o regime que veio a ser fixado, não podendo deixar de ser ponderados, também, como factores hermenêuticos (2).
1. No domínio da versão originária do Código Civil, os créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação desse contrato, relativos aos últimos seis meses, beneficiavam apenas do privilégio mobiliário geral, previsto no art. 737º, nº 1, al. d) (cfr. remissão do art. 25º da Lei do Contrato de Trabalho, aprovada pelo Decreto Lei 49408, de 24.11.1969).
Numa época de crise económica, em que proliferavam situações de salários em atraso, a fragilidade da referida garantia tornou-se patente (para além da limitação temporal, como resultava da própria graduação, depois dos outros privilégios mobiliários - cfr. art. 747º do Código Civil).
Neste condicionalismo, foi publicada a Lei 17/86, de 14 de Junho (designada justamente por Lei dos Salários em Atraso), que, no seu art. 12º, para além de manter o privilégio mobiliário geral (alterando, porém, a ordem de preferência), consagrou, no seu nº 1, al. b), um privilégio imobiliário geral para garantia dos créditos emergentes de contrato individual de trabalho.
As dúvidas que se suscitaram sobre o âmbito desta garantia - se o privilégio valia para o crédito emergente da execução do contrato de trabalho ou, também, para os créditos que decorressem da cessação do contrato - foram resolvidas pela Lei 96/2001, de 20 de Agosto, que estendeu o privilégio aos créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela anterior lei (art. 4º).
A criação deste privilégio imobiliário geral contrariava o que, então, se dispunha no art. 735º, nº 2, do Código Civil - os privilégios imobiliários são sempre especiais; por outro lado, a solução era incongruente, uma vez que aquele privilégio geral prevalecia sobre os privilégios creditórios especiais estabelecidos no art. 748º do referido diploma legal (3).
Acresce que o entendimento adoptado sobre os efeitos do privilégio imobiliário geral assim criado, em relação a terceiros, não foi uniforme.
Parte da doutrina e da jurisprudência defendia a sujeição desse privilégio ao disposto no art. 749º do Código Civil.
Isto porque, dada a sua generalidade, não são direitos reais de garantia - não incidem sobre coisas corpóreas, certas e determinadas - nem, sequer, verdadeiros direitos subjectivos, mas tão só preferências gerais anómalas
»(4). Outros, porém, “por interpretação teleológica (tendo em conta a analogia) da lei especial”, entendiam que era de aplicar a norma do art. 751º, pelo que o privilégio imobiliário seria oponível a terceiros, preferindo à hipoteca, ainda que esta fosse anterior (5).
Uma das razões invocadas nas decisões que acolheram a primeira orientação foi o sentido da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que acabou por julgar inconstitucionais, com força obrigatória geral, as normas constantes do art. 104º do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto Lei 442-A/88, de 30 de Novembro (Acórdão 362/2002, de 17.09.2002) e dos arts. 11º do Decreto Lei 103/80, de 9 de Maio, e 2º do Decreto Lei 512/76, de 3 de Julho (Acórdão 363/2002, de 17.09.2002), na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral por elas conferido prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do Código Civil, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no art. 2º da Constituição da República (6).
Os fundamentos em que assentam estes acórdãos - que, na aludida orientação, valeriam também para o privilégio imobiliário geral reconhecido aos trabalhadores - têm a ver com a amplitude assim reconhecida a esse privilégio, sacrificando os demais direitos de garantia, e não estar sujeito a registo, o que colide com o princípio da protecção da confiança, que
postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia razoavelmente contar
».
Na verdade, como ali se afirma,
o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas
».
Ora, a prevalecer o aludido privilégio, o terceiro que registou o seu direito seria confrontado com uma realidade que desconhecia e que frustra a fé e a confiança que aquele depositou no registo.
Considerou-se também que, não estando o aludido privilégio sujeito a limite temporal e não existindo conexão entre o imóvel onerado e o facto que gerou a dívida, a sua prevalência, nos termos referidos, provoca
uma lesão desproporcionada do comércio jurídico
».
Posteriormente, no Acórdão 498/2003, de 22.10.2003, veio o Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre idêntica questão, relativamente ao privilégio imobiliário geral previsto no art. 12º, nº 1, al. b), da Lei 12/86, decidindo não julgar inconstitucional esta norma, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes de contrato de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do Código Civil (7). Apesar de se reconhecer as semelhanças com as situações analisadas nos acórdãos referidos anteriormente, afirmou-se que era também incontestável a existência de diferenças:
Por um lado, estando em causa privilégios sobre bens imóveis da empresa ao serviço da qual se encontram os trabalhadores, esta ligação
atenua o carácter oculto e imprevisível do privilégio para o credor com garantia real registada
», não sendo
tão intensamente atingido o princípio da confiança especialmente prosseguido pelo registo predial
».
Por outro lado, o privilégio constituirá frequentemente o único meio de permitir a cobrança do crédito laboral (uma vez que o trabalhador não tem à sua disposição os meios alternativos que a Fazenda e a Segurança Social detêm para satisfazer os seus créditos).
Mas acresce, sobretudo, a natureza do direito do trabalhador que é confrontado com o princípio da confiança:
o direito à retribuição do trabalho (art. 59º, nº 1, a), da Constituição), considerado como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, cuja salvaguarda, num critério de proporcionalidade, legitima uma limitação à confiança resultante do registo;
será, eventualmente, o único e derradeiro meio, numa situação de falência da entidade empregadora, de assegurar a efectivação de um direito fundamental dos trabalhadores que visa a respectiva
sobrevivência condigna
».
Convém notar que, neste Acórdão, o Tribunal Constitucional apenas se pronunciou sobre se a interpretação normativa do citado art. 12º, nº 1, al. a), da Lei 17/86 - no sentido de que o privilégio imobiliário aí reconhecido aos trabalhadores prevalece, nos termos do art. 751º do Código Civil, sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada - é ou não compatível com a Constituição.
Como aí se refere expressamente, o Tribunal Constitucional não tinha de
pronunciar-se sobre as opiniões em confronto, no âmbito da interpretação do direito ordinário
», nomeadamente sobre a eficácia do privilégio imobiliário geral em relação a terceiros, ou seja, se seria de aplicar o regime do art. 749º ou o do art. 751º do Código Civil. Assim é que o Tribunal Constitucional, em decisões posteriores (8), veio a acolher solução idêntica, agora no que respeita à aplicação do regime do citado art. 749º, afirmando claramente que das razões que estiveram na base da decisão do Acórdão 498/2003
não decorre a obrigação constitucional de a lei ordinária conferir obrigatoriamente aos créditos laborais uma prevalência sobre o crédito garantido por uma hipoteca anteriormente registada
». Por um lado, essa norma respeita o princípio da confiança, constitucionalmente consagrado (cfr. fundamentos das decisões dos Acórdãos nºs 362/2002 e 363/2002). Por outro lado, no art. 1º da Constituição visa-se garantir a dignidade da pessoa humana, que se concretiza, no que aqui releva, no estabelecimento de
garantias mínimas de subsistência e de condições materiais de vida
». Uma das dimensões em que se desenvolve esse princípio é o direito fundamental a uma justa remuneração do trabalhador, assim como o estabelecimento de garantias especiais para esta (art. 59º, nº 1, a) e nº 3 da Constituição). Todavia, como ali se afirma,
a protecção do direito à retribuição não é absoluta. É certo que o legislador está vinculado (…) a criar um regime de protecção especial dos salários dos trabalhadores. Mas esta protecção não conduz necessariamente a uma solução legislativa que consagre um privilégio creditório absoluto para garantia desses créditos
».
Aliás, acrescenta-se, o legislador tem adoptado outras soluções para a protecção dos salários, como é o caso do Fundo de Garantia Salarial; da impenhorabilidade de dois terços do salário do executado; da limitação à cessão do crédito salarial e do regime da prescrição dos créditos laborais, que beneficia os trabalhadores face ao regime geral da prescrição dos créditos (9).
Concluiu-se, assim, que não é constitucionalmente proibido que a lei ordinária confira prevalência ao crédito garantido por uma hipoteca anteriormente registada sobre os créditos laborais.
É no contexto desta controvérsia doutrinal e jurisprudencial (dos primeiros acórdãos citados) que surge o Código do Trabalho de 2003, que, no que aqui interessa, pôs termo à dúvida sobre o regime aplicável às garantias dos créditos laborais, convertendo o privilégio imobiliário geral anteriormente previsto em privilégio imobiliário especial, que passou a incidir sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade - art. 377º, nº 1, al. b).
Pretendeu-se sujeitar os créditos laborais ao regime mais favorável do art. 751º do Código Civil, para o que seria necessária aquela alteração, uma vez que este último preceito, após a modificação que havia sido introduzida pelo Decreto Lei 38/2003, de 8 de Março (10), passou a ser aplicável apenas ao privilégio imobiliário especial (11). Por outro lado, à alteração operada pelo Código do Trabalho não terão sido alheias as dúvidas que o regime anterior suscitava sobre a sua constitucionalidade (à data em que esse diploma foi aprovado ainda não tinha sido proferido o Acórdão 498/2003).
2. Na noção legal, o privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros - art. 733º do Código Civil. Decorre desta noção que o privilégio tem a sua razão de ser na natureza do crédito que visa garantir - a causa da obrigação - e é de exclusiva origem legal; não pode ser constituído por negócio jurídico (12).
É, por natureza, excepcional, constituindo uma derrogação do princípio da igualdade dos credores (cfr. art. 604º do Código Civil).
Mesmo quando incida sobre bens imóveis, o privilégio produz efeitos independentemente da sua inscrição no registo, traduzindo-se assim numa garantia oculta, pela falta de publicidade (13).
Os privilégios creditórios adquirem a natureza dos bens sobre que incidem, podendo, pois, ser mobiliários ou imobiliários. Uns e outros podem ser gerais, se abrangem todos os bens existentes no património do devedor, à data da penhora ou acto equivalente, e especiais, se incidem apenas sobre determinados bens desse património (cfr. art. 735º do Código Civil).
Incidindo sobre bens certos e determinados, o privilégio imobiliário especial constitui um verdadeiro direito real de garantia, com as características que lhe são próprias. Assim, por via do direito de sequela, é oponível a terceiro que, depois da sua constituição, venha a adquirir o bem imóvel onerado ou qualquer direito real sobre ele. Mas prefere à consignação de rendimentos, à hipoteca e ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam de constituição anterior (art. 751º do Código Civil).
O privilégio imobiliário geral não tem a referida natureza:
por falta de determinação, incidindo sobre todos os bens imóveis do património do devedor, constitui mera preferência no pagamento; apenas se efectiva no momento da apreensão judicial dos bens e, nesta medida, atinge somente os bens que, nessa data, existam naquele património. Não afecta os direitos de terceiro que sejam oponíveis ao exequente, ou seja, os direitos reais de gozo e os direitos reais de garantia, adquiridos ou constituídos depois da penhora (cfr. art. 749º do Código Civil) (14).
Numa primeira aproximação, pode dizer-se que a alteração introduzida pelo Código do Trabalho de 2003, consagrando um privilégio imobiliário especial, representa um indiscutível reforço da garantia conferida aos trabalhadores, que decorre, desde logo, da extensão do privilégio creditório, não apenas aos créditos salariais, mas também aos créditos decorrentes da violação do contrato ou da sua cessação; por outro lado, passou a ser inquestionável a sua sujeição ao regime do citado art. 751º, assegurando-se a prevalência do privilégio sobre direitos reais de gozo e de garantia de terceiros, ainda que estes sejam anteriores. Mas, como seria inevitável, por passar a constituir um privilégio especial, a aludida alteração provocou também uma substancial redução do objecto da garantia, por passar a abranger apenas certos e determinados imóveis do empregador e não todos os imóveis que lhe pertençam (15). A extensão desta redução está, porém, directamente correlacionada com a interpretação que se preconize da norma do art. 377º, nº 1, b), questão de que adiante cuidaremos.
Esta protecção tradicionalmente conferida aos créditos dos trabalhadores concretiza, desde logo, uma imposição constitucional - os salários gozam de garantia especial, nos termos da lei (art. 59º, nº 3) - traduzindo uma
dis-criminação positiva dos créditos salariais em relação aos demais créditos sobre os empregadores
»(16).
Consubstancia uma preocupação evidente do legislador em assegurar uma protecção reforçada dos créditos salariais, tendo em conta a sua dimensão social ou alimentar e não puramente retributiva ou patrimonial, sublinhando a inerência do salário à satisfação das necessidades pessoais e familiares do trabalhador (17).
Com efeito, como afirma NUNES DE CARVALHO,
a retribuição do trabalhador, para além de representar a contrapartida do trabalho por este realizado, constitui o suporte da sua existência e, bem assim, da subsistência dos que integram a respectiva família
»(18).
O salário pode, na verdade, constituir o único meio de subsistência do trabalhador e da sua família, que dependem dessa retribuição para satisfazer as suas necessidades essenciais. Daí que o direito à retribuição do trabalho (art. 59º, nº 1, al. a), da CRP) seja considerado como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (19). Justifica-se, assim, a protecção conferida à retribuição (ou à indemnização devida pela cessação do contrato de trabalho, que desempenha uma “função de substituição do direito ao salário perdido”), mediante os privilégios consagrados na lei. Como se referiu, numa situação de insolvência do empregador – face à concorrência de créditos com outras garantias que, pelo elevado valor, exaurem frequentemente a massa insolvente –, pode constituir o único meio de assegurar a efectivação desse direito fundamental dos trabalhadores e a sua sobrevivência condigna (20). 3. A interpretação da norma do art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003, no que respeita ao âm-bito de incidência do privilégio imobiliário especial aí previsto - bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade -, não tem sido pacífica. A par da questão da prova dos respectivos pressupostos, a efectuar pelo trabalhador que pretende beneficiar desse privilégio, que não está aqui em discussão (21), é também controvertido o objecto sobre que incide essa garantia. A questão coloca-se, em geral, em relação a qualquer empresa:
que imóveis são abrangidos pelo privilégio? Todos os imóveis afectos à actividade do empregador? Apenas aqueles imóveis em que o trabalhador tenha exercido efectivamente a sua actividade?
O sector da construção civil levanta um problema suplementar específico, que é o de saber se os imóveis construídos para venda, no âmbito da actividade da empresa, são igualmente abrangidos pelo privilégio imobiliário. É esta, justamente, a questão controvertida que temos para dirimir. A ela passaremos depois de uma breve referência ao modo como, em geral, é encarado o âmbito de incidência do privilégio referido.
Numa interpretação ampla do aludido preceito legal, tem sido defendido que o privilégio imobiliário especial aí consagrado abrange todos os imóveis do empregador afectos à sua actividade empresarial, a que os trabalhadores estão funcionalmente ligados. Basta, pois, que os imóveis integrem a organização produtiva da empresa a que pertencem os trabalhadores, numa ligação que não tem de ser naturalística - isto é, não tem necessariamente a ver com a localização física do posto de trabalho de cada um deles -, mas meramente funcional.
Apesar desta maior amplitude do privilégio, entende-se que continua a existir a conexão que lhe é típica e necessária - a especial relação que intercede entre o crédito e a coisa garante -, ou seja, entre a actividade do trabalhador, que é fonte do crédito, e os imóveis do empregador afectos à actividade económica por este prosseguida. Por outro lado, mesmo com esse âmbito, este privilégio não se identifica com o privilégio imobiliário geral que se pretendeu abolir, ficando excluídos, designadamente, os imóveis utilizados noutra actividade (por ex., arrendados a terceiros) ou destinados à fruição pessoal do empregador (tratando-se de pessoa singular).
Numa interpretação literal, mais restritiva, da norma do citado art. 377º, nº 1, al. b), sustenta-se que o privilégio abrange apenas o imóvel concreto em que o trabalhador preste, ou tenha prestado, de facto, a sua actividade. O critério será, assim, naturalístico e não apenas meramente funcional; este não é, por si só, suficiente (como na anterior concepção).
Releva a especial ligação entre o imóvel e a actividade do trabalhador, pelo que esse imóvel deve constituir o local onde o trabalhador exerce ou exerceu efectivamente a sua actividade.
As consequências que derivam da opção por uma ou outra interpretação parecem evidentes.
Vejamos estes exemplos:
-Uma empresa que tem a sede instalada em imóvel próprio e alguns serviços a funcionar em edifício arren-dado;
-Uma empresa com os seus diversos serviços a funcionar em vários imóveis independentes próprios;
-Uma empresa com todos os serviços instalados em imóvel próprio, mas com trabalhadores a exercerem funções fora dessas instalações (por ex., motoristas, vendedores, delegados de informação médica, teletrabalhadores).
Na interpretação ampla, todos os trabalhadores podem beneficiar do privilégio sobre todos os imóveis referidos, próprios da empresa.
Na interpretação restritiva, não beneficiam de privilégio imobiliário os trabalhadores que exercem a sua actividade nos imóveis arrendados ou fora dos imóveis próprios do empregador; nem dele beneficiam em relação a imóveis próprios do empregador nos quais não tenham exercido, de facto, funções.
A doutrina não tem adoptado, a respeito desta questão, uma posição uniforme.
Assim, para M. LUCAS PIRES, este privilégio apenas abrange,
relativamente a cada trabalhador, o produto da venda dos concretos imóveis onde desenvolvem a sua actividade, com exclusão dos demais eventualmente existentes no património da empresa devedora, sob pena de, admitindo a hipótese inversa, estar em causa o próprio carácter especial do privilégio e, por arrastamento, a sua sujeição ao regime particularmente favorável do art. 751º do Código Civil
»(22).
SALVADOR DA COSTA segue, actualmente, idêntica posição:
Interpretando a expressão da lei a partir da sua letra e tendo em conta a natureza e o efeito deste privilégio imobiliário especial, bem como a exigência de uma publicidade mínima para a segurança do comércio jurídico, a referida garantia especial só releva em relação ao concreto imóvel onde o trabalhador exerça ou exerceu a sua actividade profissional
»(23)
É essa a solução para que propende também JOANA DE VASCONCELOS, para quem a solução contrária se traduziria “num ressurgir, ainda que sob outra veste, do privilégio imobiliário geral que o CT abolira em 2003, logo com toda a incerteza que rodeava esta figura, desde logo quanto a sua eventual inconstitucionalidade, porventura agravada pela prevalência, nos termos do artigo 751º do CC, deste privilégio especial de
largo espectro
»”(24).
Apontando em sentido diferente, JÚLIO GOMES chama à atenção para as consequências que podem advir de uma interpretação literal e restritiva, que “potencia desigualdades de tratamento entre trabalhadores subordinados do mesmo empregador” (25).
Também MARIA DO ROSÁRIO RAMALHO acompanha o sentido da jurisprudência que sufraga uma interpretação ampla, com fundamento “na teleologia da norma (mais do que fixar um único imóvel, o que se pretende é excluir do privilégio os imóveis de uso pessoal do empregador) e num imperativo de igualdade entre trabalhadores” (26). Parece realmente ser esta a interpretação mais con-sentânea com a razão de ser da atribuição do privilégio creditório aos créditos laborais, que é, como se referiu, a especial protecção que devem merecer esses créditos, em atenção à sua relevância económica e social, que não se concilia com um injustificado tratamento diferenciado dos trabalhadores de uma mesma empresa, em função da actividade profissional de cada um e do local onde a exercem. Como parece evidente, todos esses trabalhadores carecem da mesma protecção, como forma de assegurar o direito fundamental à retribuição, para salvaguarda de uma existência condigna. Será, pois, essa interpretação mais ampla a que se harmoniza com a Constituição (27). Por outro lado, esses trabalhadores estão ligados ao mesmo empregador, que é o devedor comum, por um vínculo contratual idêntico, contribuindo com o seu trabalho - complementando-se nas suas diversas funções - para a prossecução da actividade global da empresa. Integram, assim, a organização empresarial e estão, todos eles, funcionalmente ligados aos imóveis que, constituindo património da empresa, servem de suporte físico a essa actividade.
O local específico onde cada trabalhador presta funções constitui, como tem sido reconhecido, “mero elemento acidental da relação laboral”, “não sendo elemento diferenciador dos direitos dos trabalhadores”
; não pode, por isso, funcionar como critério de atribuição de garantias dos créditos que emergem daquela relação.
Nesta perspectiva, há uma evidente e idêntica conexão de todos os trabalhadores ao referido património da empresa, não existindo fundamento para a desigualdade de tratamento desses trabalhadores, no que respeita à garantia dos respectivos créditos.
A jurisprudência, pelo menos a mais recente, preconiza quase uniformemente, esta interpretação ampla, quer nas Relações (28), quer no Supremo, neste caso servindo de exemplo quer o acórdãofundamento, quer o acórdão recorrido:
Os trabalhadores gozam do privilégio sobre todos os imóveis que integram o património do empregador, afectos à sua actividade empresarial, e não apenas sobre o concreto imóvel onde exerceram funções; importa é que “a actividade laboral do trabalhador, qualquer que ela seja e independentemente do lugar específico onde é prestada, se desenvolva de forma conjugada e integrada na unidade empresarial, a ela umbilicalmente ligada” (acórdão-fundamento).
4. Assentando nesta base comum, o acórdão recorrido e o acórdãofundamento divergem no que respeita à incidência do privilégio imobiliário especial, previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003, sobre os imóveis construídos pelas empresas de construção civil insolventes, no âmbito da sua actividade, destinados a comercialização.
É este, como se referiu, o cerne da questão que temos para decidir.
No domínio do referido diploma, a tese do acórdão recorrido - no sentido da exclusão dos aludidos imóveis da abrangência objectiva do mencionado privilégio - foi seguida no Acórdão do STJ de 23.09.2010 (P. 5210/06):
“No caso específico dos trabalhadores da construção civil, embora eles tenham, materialmente, como local de trabalho, o sítio onde participam na construção de um imóvel, não é esse local o imóvel onde prestam a sua actividade para efeitos do disposto no referido preceito legal”.
Afirma-se neste acórdão que “numa empresa de construção civil, os imóveis que lhe advêm como resultado da actividade que lhe é própria são o produto da organização empresarial, mas não são um elemento que a integra. Por outras palavras, resultam do estabelecimento do empregador, mas dele não fazem parte. Apesar de, após a sua conclusão pertencerem ao património do empregador, não significa isto que, só por tal, passem a englobar o seu estabelecimento. O destino dos imóveis é até, normalmente outro, como seja a sua comercialização”.
De modo idêntico, no Acórdão do STJ de 22.10.2013 (P. 1193/07) (29):
“II - O legislador ao referir “aos bens imóveis do empregador em que o trabalhador presta a sua acti-vidade”, está a aludir à ligação funcional do estabelecimento ou à unidade produtiva da empresa e não propriamente ao local físico onde o trabalhador pode (eventualmente) prestar trabalho. Está a referir-se ao espaço concreto do estabelecimento, ao local real onde exerce a sua actividade industrial/comercial”.
Decidiu no mesmo sentido o Acórdão da Relação de Guimarães de 30.05.2013 (P. 1193/07) (30).
“II - Tratando-se de trabalhadores de empresas de construção civil, quando se atribui privilégio creditório imobiliário aos seus créditos, tem-se em vista, tal como os dos outros ramos de actividades, o universo de imóveis que integram, ainda que em sentido amplo, o seu estabelecimento comercial, a tal unidade produtiva, como escritórios, estaleiros, espaços de promoção comercial, etc.
III - Por isso mesmo, ficam de fora desse privilégio os bens destinados a transacção e que integram a própria actividade em si mesmo considerada”.
Na vigência do Código do Trabalho de 2009, aplicando o regime aí previsto no art. 333º, nº 1, al. b), é abundante a jurisprudência sobre a referida questão, sendo francamente predominante a tese da exclusão (31).
Assim, entre outros:
Acórdão do STJ de 13.11.2014 (P. 1315/11):
“III - Encontram-se afastados do âmbito e alcance do privilégio imobiliário especial consagrado naquele normativo, todos os imóveis construídos pela Insolvente, destinados à actividade de construtora imobiliária desta e onde, além do mais o ora Recorrente, desempenhou pontualmente as suas funções enquanto canalizador, mas onde e após ter efectuado o trabalho correspondente ao seu ofício, neles deixou de prestar qualquer actividade, embora tivesse continuado ao serviço da Insolvente”.
Acórdão do STJ de 13.01.2015 (P. 1145/12):
“I - O que justifica a concessão do privilégio imobiliário especial aos créditos laborais é, sem dúvida, a especial ligação funcional - e não meramente naturalística - do trabalhador ao imóvel, através do exercício da sua actividade, a qual, tendo de ser circunscrita no espaço e no tempo, não pode ser reportada aos diversos prédios ou fracções autónomas em cuja construção tenha participado, o que, podendo até integrar já património alheio por via de subsequente comercialização, não pode constituir o imóvel em que o trabalhador presta a sua actividade, antes tendo de ser encarado como o resultado ou produto da respectiva actividade, como o seriam, v.g., os artigos de vestuário ou calçado produzidos pela respectiva entidade patronal que tais actividades tivessem por objecto”.
Acórdão da Relação do Porto de 22.10.2013 (P. 12067/11):
“II - Os trabalhadores da construção civil não gozam do privilégio imobiliário previsto no artigo 333.º, n.º 1, alínea d), relativamente aos imóveis em cuja construção participaram, por se tratar de bens destinados à comercialização no exercício da actividade da entidade patronal.
III - Tal privilégio apenas pode ser exercido relativamente a imóvel que integre o estabelecimento da entidade patronal, relativamente ao qual exista uma especial ligação do trabalhador”.
Acórdão da Relação do Porto de 28.04.2014 (P. 434/07):
“A norma constante da al. b), do n.º 1, do artigo 333.º do Código do Trabalho (…) deve ser interpretada no sentido de o bem imóvel onde o trabalhador presta a sua actividade não ser um imóvel resultante da actividade despendida na produção industrial da entidade patronal, como ocorre nas empresas de construção civil, mas sim um imóvel que faz parte das infraestruturas produtivas dessa entidade patronal”.
Acórdão da Relação de Guimarães de 29.05.2014 (P. 5049/11):
“Apenas sobre os imóveis que constituem fisicamente o suporte organizacional da actividade empresarial da falida e que contribuem de forma ordenada e permanente para a sua actividade de construção civil, pode incidir o privilégio imobiliário especial a que alude o art. 333º do CT e já não aqueles outros imóveis que lhe advêm como resultado da actividade de construção que lhe é própria ou que lhe pertencem mas estão afectos a outra actividade”.
Acórdão da Relação de Guimarães de 17.09.2015 (P. 2731/11):
“O privilégio creditório imobiliário especial de que gozam os créditos laborais, reconhecido no art.º 333.º do Cód. do Trabalho, incide apenas sobre os imóveis integrados na organização empresarial da devedora, não abrangendo, se esta se dedicar à actividade de construção civil, todas as construções em que o credor/trabalhador desenvolveu a sua actividade profissional”.
Decisão sumária da Relação de Coimbra de 12.11.2013 (P. 2579/04):
“III - Apenas sobre os imóveis que constituem fisicamente o suporte organizacional da actividade empresarial da falida e que contribuem de forma ordenada e permanente para a sua actividade de construção civil, pode incidir o privilégio imobiliário especial a que alude o art. 333.º do CT e já não aqueles outros imóveis que lhe advêm como resultado da actividade de construção que lhe é própria e destinados à venda”.
Acórdão da Relação de Coimbra de 08.07.2015 (P. 1772/09):
“2. A lei exige uma especial ligação funcional do trabalhador ao imóvel. Este deverá fazer parte integrante da empresa, de forma estável, encarada como complexo organizacional do empregador”. Em sentido diferente – isto é, entendendo que os imóveis construídos são abrangidos pelo privilégio – encontrámos estas decisões:
Acórdão da Relação de Guimarães de 11.09.2012 (P. 1425/11):
“Independentemente de serem apenas o produto da actividade ou indústria da insolvente, sobre os imóveis incluídos nesta categoria incide o privilégio imobiliário especial previsto no artº 333º do CTrabalho, pelo que pelo produto da sua venda deve prevalecer o crédito do trabalhador relativamente ao daquele que sobre os mesmos têm constituída uma hipoteca”.
Acórdão da Relação de Lisboa de 09.07.2013 (P. 345/09):
“Na atividade da construção civil, em que há simultaneamente vários edifícios em construção, considera-se prestada em todos eles a atividade do trabalhador que se desloca entre as várias obras, neles beneficiando assim do privilégio imobiliário especial previsto no art. 333.º, 1, b, do Código do Trabalho”.
Na doutrina, M. LUCAS PIRES (32) defende o alargamento do privilégio aos imóveis edificados pelas empresas de construção civil, o que “não implica a qualificação do privilégio como geral, porquanto é sempre exigida a conexão com a actividade do trabalhador, o que permite circunscrever o âmbito da garantia”
; para este efeito, “re-levará tendencialmente o local de trabalho contratualmente definido (…)”.
Com posição diferente, SALVADOR DA COSTA (33) acompanha a jurisprudência, que tem decidido, “em regra sem divergência”, no sentido da não incidência do privilégio sobre os aludidos imóveis.
Também neste sentido, JOANA COSTEIRA (34) entende que o privilégio apenas incide “sobre o imóvel onde funciona a sede da empresa e não quanto aos imóveis onde a actividade desta se desenvolve”. A inclusão destes imóveis constituiria uma solução “demasiado ampla e injusta” e equivaleria a admitir a existência de um privilégio imobiliário geral, contribuindo para a “neutralização da hipoteca”.
5. Enquadrado e delimitado assim a nosso problema, é altura de atentarmos na norma do art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003, mais precisamente no segmento que concretiza o objecto do privilégio imobiliário especial aí consagrado - bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade - procurando, por via hermenêutica, fixar o sentido que lhe deve ser atribuído, por forma a respondermos à questão que temos vindo a referir:
-Se nesses bens devem (ou não) ser incluídos os imóveis erigidos por empresa da construção civil para comercialização. 5.1. É sabido que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas esta constitui naturalmente o seu ponto de partida, eliminando aqueles sentidos que não tenham aí qualquer correspondência ou dando maior apoio a um dos sentidos possíveis; o objectivo é reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, devendo presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º, nºs 1 e 3, do Código Civil) (35).
No caso, deve começar por reconhecer-se que os termos utilizados na norma interpretanda favorecem, aparentemente, a tese da inclusão dos ditos imóveis no aludido privilégio especial.
Ao referir-se a imóveis nos quais o trabalhador preste a sua actividade, o sentido literal da norma parece apelar à ligação naturalística entre o imóvel do empregador e a actividade do trabalhador, ou seja, seria relevante o espaço físico onde é concretamente exercida essa actividade. Já vimos, porém, que, em geral, fora desta situação específica, não pode ser seguido esse critério, por não ser conciliável com a razão de ser da atribuição do privilégio e propiciar situações de injustificada desigualdade entre trabalhadores de uma mesma empresa.
Essas razões implicam que se perspective a questão em termos mais amplos, tendo em conta o conjunto dos trabalhadores da empresa e a estrutura desta, como organização global em que os mesmos estão integrados.
O local de trabalho - entendido em concreto, como o lugar em que, de facto, o trabalhador presta funções - não releva por si só. Interessa a integração na empresa, a actividade do trabalhador para essa empresa, independentemente das funções e do local específico onde estas sejam exercidas.
Mas, se o sentido literal da norma aponta mais claramente para a aludida ligação naturalística, também é certo que não exclui o sentido que se ajusta àquela perspectiva mais ampla, tendo em conta, no âmbito de uma empresa, o conjunto de imóveis desta onde os trabalhadores que a integram executam as suas funções, que se complementam em ordem à prossecução da actividade que constitui o objecto da empresa. Ou seja, como se o preceito mencionasse (o conjunto de) imóveis do empregador nos quais os trabalhadores prestem a sua actividade (36).
Por esta via, os imóveis referidos na norma legal abrangeriam todos os imóveis da empresa onde os trabalhadores prestem a sua actividade, o que incluiria os imóveis construídos destinados a comercialização, onde efectivamente alguns dos trabalhadores (pelo menos, os operários) exercem funções.
Pensa-se, porém, que o conjunto de imóveis a que todos os trabalhadores estão funcionalmente ligados constitui, nesta perspectiva, o suporte físico da actividade empresarial, integrando, por isso, de forma estável, o património e a organização da empresa, o que não acontece com aqueles imóveis destinados à venda.
Para este sentido concorrem, desde logo, os conceitos de local de trabalho e de empresa que a referida norma parece convocar.
5.2. Dispunha o art. 154º, nº 1, do Código do Trabalho de 2003, que o trabalhador deve, em princípio, realizar a sua prestação no local de trabalho contratualmente definido (37).
Sem conter qualquer definição, decorre deste preceito que o local de trabalho “corresponde ao espaço geográfico no qual deve ser realizada a prestação do trabalhador. Trata-se do local de trabalho para efeitos de cumprimento da obrigação a que o trabalhador está adstrito” (38).
A noção é “relativa”, por corresponder a “realidades concretas variáveis, em função da finalidade das normas que a utilizam como referencial. A sua relatividade decorre não só dos diferentes modos por que, em concreto, a execução do contrato de trabalho se
localiza
», de acordo com a natureza da prestação e a sua articulação funcional na organização da empresa (pense-se nos casos contrastantes de um porteiro e um motorista …), mas também da diversidade que pode assumir a ratio dos preceitos que partem da mesma noção” (39)
O local de trabalho situa-se, em princípio, no espaço físico onde o trabalhador presta a sua actividade; coincide, por regra, com as instalações da empresa (40).
Existem, todavia, situações em que as funções exercidas pelo trabalhador dificultam a determinação do local do trabalho (lembre-se os casos, diferentes, do motorista, do teletrabalhador e do operário da construção). Situações que se caracterizam pela ausência ou pela transitoriedade de um específico local de trabalho.
Apesar disso, mantém-se uma ligação comum constante desses trabalhadores à empresa, decorrente do contrato de trabalho que com esta celebraram e das funções que, em execução deste, passaram a exercer. Ligação permanente à empresa e à actividade que esta prossegue; à sua estrutura estável, designadamente aos imóveis que a integram e que suportam essa actividade.
Daí que, perante essas situações, o local de trabalho seja entendido, não apenas como o espaço físico das instalações da empresa, mas também como o “centro estável ou predominante do desenvolvimento da actividade laboral” (41). Parecenos que será este, do mesmo modo, o conceito que releva no caso dos imóveis construídos pelas empresas de construção civil e para efeito de atribuição do privilégio de que estamos a tratar. Existe aí uma evidente ligação naturalística entre a actividade dos trabalhadores (operários) com esses imóveis. Esta ligação, porém, constitui, como se disse, “mero elemento acidental da relação laboral”
; é necessariamente transitória e circunscrita no tempo, perdurando apenas durante a execução da obra de construção e dependendo até das funções concretamente exercidas. Assim, cessada determinada obra, o trabalhador deixa de prestar aí as suas funções, mas continua ao serviço da empresa, vinculado pelo mesmo contrato de trabalho, mantendo uma ligação funcional estável com os demais imóveis afectos à actividade desta.
Neste caso, será essa ligação funcional que releva e será sobre estes imóveis que pode incidir o privilégio imobiliário especial de que beneficiam os trabalhadores.
5.3. Basicamente, a empresa constitui uma organização estável de meios com vista à prossecução de uma actividade económica (42)
Esta ideia de estabilidade dos elementos que integram a organização empresarial está sempre presente na noção de empresa:
“Unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui instrumento de exercício relativamente estável e autónomo de uma actividade de produção para a troca” (43).
Ou seja, um “complexo organizacional estável”, de “pessoas e bens”, para “o exercício de actividades eco-nómicas” (44).
Mesmo para o direito do trabalho (45) a empresa não deixa de ser uma “organização de meios que constitui um instrumento de exercício relativamente continuado de uma actividade de produção, cujos trabalhadores estão sujeitos ao regime do direito do trabalho” (46); uma “organização de meios (materiais e humanos) articulada ou montada por alguém para, através dela, exercer certa actividade económica” (47).
Existe, pois, um conjunto de bens que se encontra afecto ao exercício da actividade empresarial.
Ora, no caso da empresa que se dedica à construção civil, os imóveis por esta edificados para comercialização, enquanto não forem vendidos, integram o seu património, mas não essa organização estável de meios com vista ao exercício daquela actividade; representam antes o produto ou resultado desta. Não é nesses edifícios que o trabalhador presta a sua actividade de forma estável e permanente. Por outro lado, não é essa a situação em que se encontra a generalidade das empresas de outros sectores da actividade económica; nestas, os bens imóveis integram normalmente o seu activo corpóreo fixo (imobilizado), constituindo o suporte físico indispensável à sua actividade. Diferente é o caso dos imóveis edificados pela empresa de construção civil para serem vendidos, uma vez que estes são, como se disse, o produto da actividade desta, integrando sim o seu património, mas apenas transitoriamente, não fazendo parte da organização produtiva estável da empresa. Será, pois, àquela situação comum, de os imóveis integrarem o activo corpóreo fixo da empresa, que a norma legal em questão se dirige; não à situação particular dos imóveis construídos para venda, que representam apenas um activo temporário (circulante) da empresa, destinado a uma próxima conversão em disponibilidades. Justifica-se assim que, no caso da empresa de construção civil, como nas empresas de qualquer outro sector, o privilégio se estenda aos imóveis que integram a organização empresarial estável a que os trabalhadores pertencem; não aos demais imóveis, que são produto da actividade da empresa.
5.4. Já acima referimos o contexto histórico em que surgiu a norma do art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003.
Como então afirmámos, o propósito do legislador foi converter o privilégio imobiliário geral, previsto no regime anterior, num privilégio imobiliário especial, com a incidência objectiva que temos referido.
De uma assentada, o legislador pôs termo à incoerência do sistema até aí vigente, ajustando-o à alteração introduzida no art. 751º do Código Civil (Decreto-Lei 38/2003), e às dúvidas sobre a constitucionalidade que o mesmo suscitava (relembre-se que o referido diploma foi aprovado ainda antes da publicação do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 498/2003).
Esta alteração tem subjacente e confirma a necessidade de uma particular tutela dos créditos laborais e traduziu-se até num efectivo reforço da garantia desses créditos, já que passou a constituir um verdadeiro direito real de garantia, por via da aplicação do regime do referido art. 751º, que se tornou indiscutível.
Mas também é certo que, quanto ao objecto do privilégio, a alteração se reflectiu numa substancial redução, por passar a incidir apenas sobre determinados imóveis do empregador e não, como até aí, sobre todos os imóveis que fossem propriedade deste.
Pois bem, no nosso caso, de imóveis construídos para revenda pelas empresas de construção civil, não será aceitável uma interpretação em geral restritiva que, para além disso, exclua esses imóveis do âmbito de incidência da referida garantia, pois, por esse critério, os trabalhadores das obras nunca beneficiariam de qualquer privilégio imobiliário (para além dos outros trabalhadores já excluídos pela concepção em geral restritiva - cfr. o que afirmámos supra).
Mas também parece de não admitir a interpretação ampla que, para além disso, inclua os referidos imóveis no objecto do aludido privilégio. Seria passar, perdoe-se a expressão, do 8 ao 80:
naquele caso teríamos trabalhadores que não beneficiariam de qualquer garantia imobiliária; neste caso, o privilégio contrariaria a tendência de redução objectiva consagrada pelo novo regime e, em grande parte das situações (sobretudo com pessoas colectivas), traduzir-se-ia até no ressurgir do privilégio imobiliário geral que se pretendeu abolir, pois abrangeria todos os imóveis do empregador.
Se, como vimos atrás, existem razões que justificam, em geral, a opção por esta interpretação ampla sobre o âmbito de incidência do privilégio imobiliário especial, no caso específico da construção civil, essa interpretação não pode conduzir ao entendimento de que são abrangidos pelo privilégio os imóveis construídos para venda. O que deve ser relevado é a ligação funcional da actividade do trabalhador aos imóveis utilizados pela empresa na pros-secução do seu objecto social.
5.5. De todo o modo, essa extensão do privilégio dos créditos laborais aos imóveis construídos para venda pela empresa de construção civil coloca ainda um problema importante, que é o do confronto entre essa garantia e os direitos dos terceiros previstos no art. 751º do Código Civil.
O problema não é novo, face à controvérsia que precedeu a publicação do Código do Trabalho de 2003, que acima se expôs, mas tem contornos diferentes, sobretudo tendo em consideração a natureza dos imóveis a que se estenderia aquele privilégio.
A questão antes apreciada opunha o privilégio imobiliário geral reconhecido então aos trabalhadores e a hipoteca sobre um dos prédios abrangidos por esse privilégio. De um lado, estava o direito do trabalhador à retribuição que, para além do carácter retributivo, assume uma dimensão social ou alimentar, por constituir o suporte da sua subsistência condigna e da respectiva família, que dela dependem para satisfação das suas necessidades essenciais. Daí a sua consagração e a imposição de tutela constitucionais - arts. 59º, nºs 1, al. a) e 3 - sendo considerado um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
Do outro, o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança, que decorrem do princípio do Estado de direito democrático (art. 2º da Constituição) e que exigem um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas, impedindo afectações inadmissíveis. Princípios que seriam violados, a prevalecer o privilégio, atendendo essencialmente ao carácter oculto deste, por não estar sujeito a registo, defraudando as legítimas expectativas dos terceiros titulares de direitos reais sobre os imóveis abrangidos pelo privilégio e frustrando a fé e confiança que estes terceiros depositaram no registo.
O conflito foi resolvido, segundo um critério de proporcionalidade, pela prevalência do direito dos trabalhadores à retribuição, ponderando-se que a limitação à confiança resultante do registo seria um meio adequado e necessário à salvaguarda desse direito fundamental.
Mas também se ponderou, noutras decisões, que, sem desconsiderar a relevância fundamental do direito dos trabalhadores, essa prevalência não teria de ser de grau máximo ou absoluta, tendo em conta que os créditos salariais beneficiam de outras medidas de protecção; assim se permitiria também preservar a confiança num meio garantístico, como a hipoteca, com um importante papel no tráfico jurídicoeconómico. No caso sub judice está em questão um privilégio imobiliário especial. Na interpretação que acima se preconizou, este privilégio abrange os imóveis pertencentes ao empregador que sejam utilizados na sua actividade empresarial.
Sendo o empregador empresário individual é bem possível que, para além desses, seja proprietário de outros imóveis, destinados ao seu uso pessoal (que não são evidentemente abrangidos pelo privilégio). Mas, tratando-se de uma sociedade, não será comum que esta seja titular de património imobiliário que não esteja afecto à actividade que constitui o seu objecto social. Ressalva-se o caso das empresas de construção civil, que podem ter no seu património, para venda, imóveis que edificaram no âmbito da sua actividade.
Pois bem, neste último caso, se abranger também esses imóveis, que não integram o activo fixo da empresa, o privilégio estende-se praticamente a todo o património imobiliário do empregador, não se distinguindo substancialmente do privilégio imobiliário geral consagrado anteriormente. Ora, apesar da protecção reforçada que os créditos salariais merecem, não se justifica, como vimos e adiante se confirmará, que essa tutela tenha de ser absoluta e que se estenda tendencialmente a todo o património do empregador. Por outro lado, deve ter-se em consideração a especial situação dos imóveis (construídos para venda) que seriam abrangidos pelo privilégio e as garantias e direitos de terceiros implicados, em especial a hipoteca, o direito de retenção e os direitos dos adquirentes.
O privilégio imobiliário especial, como se referiu, é um verdadeiro direito real de garantia; constitui-se no momento da formação do crédito, sendo oponível a terceiro que adquira o prédio (ou um direito real sobre ele), à hipoteca e ao direito de retenção, mesmo que estas garantias sejam anteriores (art. 751º do Código Civil).
Estes terceiros, que constituíram essas garantias ou adquiriram o prédio, vêm assim a ser surpreendidos por uma garantia inteiramente oculta, por não constar do registo, que, por isso, não conheciam, nem podiam conhecer. Impressiona que possam ver o seu direito preterido em favor de uma garantia que não conheciam, apesar da diligência que possam ter posto na consulta prévia do registo. Importa ainda notar que, como tem sido reconhecido, com a prevalência do privilégio, a hipoteca é praticamente neutralizada. No caso dos imóveis edificados para venda por empresa de construção civil, será de realçar que o crédito que a hipoteca garante serviu de financiamento à própria construção do imóvel que é objecto dessa garantia; assim, a estender-se o privilégio àqueles imóveis, a protecção do salário seria feita, nesta medida, no fundo, à custa do credor hipotecário, em vez de o ser através do património do empregador.
É certo, também, que o esvaziamento do crédito hipotecário vai tornálo mais oneroso (pelo aumento do risco) e pode ter consequências nefastas na viabilização financeira da empresa (48).
Merece atenção, igualmente, a situação do promitente-comprador que beneficia do direito de retenção:
este garante créditos que funcionam, muitas das vezes, na prática, como cofinanciamento da construção dos imóveis que constituem objecto mediato dos respectivos contratos, pelo que custeariam também (como no caso anterior), nesta medida, a aludida protecção.
Porém, mais importante aqui é a necessidade de tutela do direito do consumidor, do seu interesse e expectativa na consolidação do negócio, que está frequentemente associado à aquisição de habitação própria, podendo, pois, estar em causa o próprio direito à habitação (art. 65º da CRP).
Delicada é, bem assim, a situação do adquirente do imóvel, apesar de reger neste caso o princípio da prioridade temporal (cfr. art. 750º do Código Civil); de todo o modo, já se disse que a limitação que lhe é imposta é “assimilável a uma expropriação” (49).
Por outro lado, na situação em apreço - de empresas de construção civil - os trabalhadores continuam a beneficiar de garantia sobre os imóveis que, de forma estável, servem de suporte físico à actividade da empresa, à semelhança do que ocorre com a generalidade das empresas de outros sectores da actividade económica.
Gozam, portanto, de garantias idênticas às dos trabalhadores dessas empresas, mesmo que não abranjam os aludidos imóveis construídos para venda.
Acresce que a protecção do direito à retribuição não se confina ao referido privilégio imobiliário, sendo de considerar ainda o privilégio mobiliário geral, previsto no art. 377º, nº 1, al. a). Para além disso, e como se sublinhou, o legislador tem adoptado outros mecanismos de tutela que, em cumulação com esse regime, cumprem a imposição fixada no art. 59º, nº 3, da Constituição.
Cumpre salientar a este respeito:
-O princípio da irredutibilidade salarial, consagrado no art. 122º, nº 1, al. d) do CT 2003 (art. 129º, nº 1, al. d) do CT 2009), no sentido de que o empregador não pode diminuir a retribuição, salvo nas raras excepções previstas na lei;
-A impenhorabilidade de dois terços do salário do trabalhador executado (art. 824º do CPC, mantida no actual art. 738º);
-A limitação à cessão do crédito salarial (art. 271º do
CT 2003 e actual 280º);
-O regime da prescrição dos créditos laborais (art. 381º do CT 2003 e actual art. 337º), que beneficia os trabalhadores face ao regime geral da prescrição dos créditos;
-A responsabilidade solidária das sociedades coligadas com o empregador por créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação (art. 378º do CT 2003 e actual art. 334º);
-A responsabilidade solidária dos sócios, gerentes e administradores pelo mesmo incumprimento, desde que a causa deste lhes seja imputável (art. 379º do CT 2003 e actual art. 335º);
-O recurso do trabalhador ao Fundo de Garantia Salarial (arts. 316º a 326º da Lei 35/2004, de 29/6 e actualmente pelo Decreto Lei 59/2015, de 21/4 - cfr. art. 380º do CT 2003 e actual art. 336º) (50) (51).
Sopesando tudo o que fica dito, pode afirmar-se que a protecção que é devida aos créditos salariais não impõe que, na situação em apreço, o privilégio especial incida também sobre os imóveis construídos para venda. Com efeito, mesmo com essa exclusão, os trabalhadores das empresas de construção civil continuam a beneficiar, quanto a imóveis, de tutela idêntica à dos demais trabalhadores das empresas de outros sectores da actividade económica - privilégio sobre os imóveis afectos à actividade empresarial - e, bem assim, do referido privilégio mobiliário geral e dos meios alternativos de protecção da retribuição legalmente instituídos.
Saliente-se que o privilégio imobiliário que, nessa medida, se reconhece aos trabalhadores beneficia do regime de prevalência, decorrente do art. 751º do Código Civil, sobre o direito do adquirente e garantias aí previstas.
À razoável suficiência de tais meios de tutela importa contrapor a necessidade de salvaguardar a posição e as legítimas expectativas dos terceiros, titulares de direitos reais, normalmente preteridas no referido regime, mas que, na situação concreta analisada, se coloca com particular intensidade.
Necessidade que deriva, em primeira linha, como se expôs, da confiança depositada na fiabilidade do registo; da segurança e certeza que este visa prioritariamente. Mas que se acentua decisivamente, tendo em conta a natureza dos imóveis que seriam abrangidos e a especial situação dos terceiros que seriam penalizados, como se deixou assinalado.
Conclui-se, assim, que a protecção dos créditos salariais não exige que o privilégio se estenda aos aludidos imóveis, construídos para venda, não justificando, neste caso, o sacrifício dos referidos direitos dos terceiros e a quebra das suas expectativas assentes no registo.
V. Em face do exposto, acorda-se em:
-Confirmar o acórdão recorrido;
-Condenar nas custas os recorrentes.-Uniformizar a jurisprudência nestes termos:
Os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003.
(1) Proc. n.º 1444/08.5TBAMT-A.P1.S1-A. Fernando Pinto de Almeida (relator por vencimento) (2) Cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução do Direito e ao Discurso
Legitimador (10ª Reimpressão), 177.
(3) Cfr. ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 7ª ed., 625.
(4) MENEZES CORDEIRO, Direito das Obrigações, 2º Vol., 500 e 501; no mesmo sentido, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 5ª ed., 824 e 825; relativamente ao privilégio reconhecido aos trabalhadores, LEAL AMADO, A Protecção do Salário, Suplemento do BFDUC, Vol. XXXIX, 156;
SALVADOR DA COSTA, O Concurso de Credores, 3ª ed., 319;
MIGUEL LUCAS PIRES, Dos Privilégios Creditórios, 2ª ed., 114; e, entre outros, os Acórdãos do STJ de 25.06.2002, CJ STJ X, 2, 135, de 27.06.2002, CJ STJ X, 3, 146, de 24.09.2002, CJ STJ X, 3, 54 e de 06.03.2003 (P. 03B034), de 27.05.2003 (P. 03B198) e de 12.06.2003 (P. 03B1550), estes em www.dgsi.pt.
(5) Acórdão do STJ de 18.11.99, BMJ 491-233 e voto de vencido no citado Acórdão do STJ de 27.06.2002;
SOVERAL MARTINS, Legislação Anotada sobre Salários em Atraso, 28.
(6) Os referidos Acórdãos foram publicados no DR IS-A, de 16.10.2002. (7) Decisão que foi reiterada no Acórdão 672/2004, de 23.11.2004; estes Acórdãos, como os demais a seguir citados estão acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
(8) Acórdãos n.º 284/2007, de 08.05.2007, e nº 257/2008, de 30.04.2008. (9) Neste ponto, será de notar, como se salienta no Acórdão 284/2007, que a prescrição seria impensável num regime de protecção absoluta do direito à retribuição.
(10) A alteração introduzida por este diploma, segundo se decidiu, entre outros, nos Acórdãos do STJ de 19.10.2004, CJ STJ XII, 3, 67, e de 22.03.2007, CJ STJ XV, 1, 144, tem natureza interpretativa.
(11) A não ser assim, isto é, a manter-se o anterior privilégio imobiliário geral, não haveria dúvidas de que, após o Decreto Lei 38/2003, esse privilégio estaria sujeito ao disposto no art. 749º do CC, sendo o crédito assim privilegiado graduado depois dos créditos de terceiros munidos das garantias previstas no art. 751º. Cfr. Acórdãos do STJ de 22.03.2007, acima citado, e de 17.05.2007 (P. 07B1390), de 01.04.2008 (P. 08A329), em www.dgsi.pt, e de 02.07.2009, CJ STJ XVII, 2, 160.
(12) Como refere M. LUCAS PIRES, Ob. Cit., 14, em matéria de atribuição de privilégios, a lei constitui condição suficiente (a simples constituição do crédito determina o seu carácter privilegiado) e necessária (uma vez que só a lei lhe confere essa qualidade).
(13) Se esta característica facilita a sua constituição e fomenta a celeridade do tráfico creditício, também provoca graves inconvenientes para terceiros, pelo erro em que podem ser induzidos sobre a situação dos bens onerados e a solvabilidade do devedor – cfr. M. LUCAS PIRES, Ob. Cit., 74;
ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., 572. (14) Sobre esta caracterização dos privilégios creditórios, cfr. também SALVADOR DA COSTA, O Concurso de Credores, 5ª ed., 127 e segs.;
ROMANO MARTINEZ e FUZETA DA PONTE, Garantias de Cumprimento, 5ª ed., 207 e segs;
L. M. PESTANA DE VASCONCELOS, Direito das Garantias, 328 e segs. (15) Cfr. MARIA DO ROSÁRIO RAMALHO, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, 5ª ed., 703;
JOANA DE VASCONCELOS, Código do Trabalho Anotado, 9ª ed., 705.
(16) GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed., 777.
(17) MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 17ª ed., 411. (18) Reflexos laborais do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de Falência, RDES, XXXVII, nºs 1 a 3, 67.
(19) GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Ob. Cit., 770. (20) Cfr. os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 498/2003, acima citado, e n.º 335/2008, de 19.06.2008.
(21) Apesar de a exigência de prova poder implicar, em muitos casos, implicitamente, uma opção pela concepção restritiva, a seguir referida (ao exigir-se a demonstração de que o trabalhador exerceu efectivamente funções num dos imóveis apreendidos), não tendo a questão, todavia, sido apreciada nesta perspectiva mais substantiva – cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ de 31.01.2007 (P. 07A4111), de 07.02.2008 (P. 07A4137) e de 29.04.2008 (P. 08A1090), em www.dgsi.pt.
(22) Ob. Cit., 246. (23) Ob. Cit., 251. Este Autor reponderou a sua posição anterior, que era no sentido da interpretação ampla – cfr. 3ª ed. da referida Obra, 318.
(24) Ob. Cit., 707. (25) Direito do Trabalho, 899. (26) Os trabalhadores no processo de insolvência, em III Congresso de Direito da Insolvência, 399.
(27) Na “formulação básica” do princípio da interpretação das leis em conformidade com a constituição – GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1099.
(28) Cfr., entre outros adiante referidos, os Acórdãos da Relação do Porto de 22.10.2012 (P. 376/09), da Relação de Coimbra de 23.09.2014 (P. 528/13), de 24.02.2015 (P. 3475/12) e de 08.07.2015 (P. 406/14) e da Relação de Guimarães de 15.01.2015 (P. 924/13) e de 05.11.2015 (P. 1919/14), todos em www.dgsi.pt.
(29) Este acórdão, como o anterior, com sumário publicado em
(30) Pode aceder-se a este Acórdão e aos demais adiante citados em www.stj.pt. www.dgsi.pt.
(31) Segundo o art. 333º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho de 2009, o privilégio imobiliário especial incide sobre o “bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua atividade”.
Apesar desta diferente redacção e do aparente cariz restritivo da mesma, a jurisprudência não tem atribuído um relevo significativo a essa alteração (cfr. acórdãos citados).
Em sentido convergente, afirma M. LUCAS PIRES que, “partindo de uma análise sistemática, constatamos que esta alteração do plural para o singular é um traço comum a todo o Código, na maior parte dos casos sem consequências relevantes, mas podendo representar no presente âmbito, porventura inadvertidamente, uma diminuição das garantias dos trabalhadores”. Assim, no silêncio dos trabalhos preparatórios e pelas “situações profundamente absurdas” que originaria – se a empresa tem vários imóveis de valor considerável, o trabalhador teria de limitar a garantia a um deles, sem que isso seja imposto pela natureza do privilégio (para este basta que “exista um critério objectivo de delimitação dos bens”) –, propõe a interpretação extensiva da aludida norma, “de modo a que a mesma continue a abranger os imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade, ou seja, mantendo a solução constante do CT 2003” – Ob. Cit., 253.
Cfr., em sentido idêntico, a posição acima referida de MARIA DO ROSÁRIO RAMALHO (que inflectiu a posição que assumira no Tratado cit., 703); em sentido diferente, as posições atrás indicadas de SALVADOR DA COSTA (com trajecto inverso) e de JOANA DE VASCONCELOS.
(32) Ob. Cit., 258. (33) Ob. Cit., 250. (34) Os efeitos da Declaração de Insolvência no Contrato de Trabalho:
a Tutela dos Créditos Laborais, 131 e 132.
(35) Cfr. o que, a outro propósito, se afirmou no acórdão recorrido, com apoio em BAPTISTA MACHADO, Ob. Cit., 182.
(36) Ao aludir ao regime do art. 377º, n.º 1, alínea b), SALVADOR DA COSTA exprime-se nesses precisos termos, referindo que o privilégio passava a englobar “apenas aqueles (imóveis) em que os trabalhadores exercem ou exerceram a sua actividade profissional” – Ob. Cit., 248. (37) Em termos idênticos, o actual art. 193º, n.º 1 prescreve que o trabalhador deve, em princípio, exercer a actividade no local contratualmente definido.
(38) P. MADEIRA DE BRITO, Código do Trabalho Anotado, 9ª ed., 462. (39) MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 17ª ed., 388. JÚLIO GOMES também afirma que não existe um “conceito unitário”, apresentando-se antes como “teleológico” e, além disso, “perturbadoramente elástico” – Ob. Cit., 636.
(40) Como refere ROMANO MARTINEZ, “a natureza das coisas aponta para o local de trabalho ser na empresa, junto do empregador” – Ob. Cit. 535.
(41) MARIA DO ROSÁRIO RAMALHO, Ob. Cit., 500; em termos idênticos, MONTEIRO FERNANDES, Ibidem, que alude ao “centro estável (ou perma-nente) de actividade de certo trabalhador”.
(42) Cfr. art. 5º do CIRE. (43) COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 9ª ed., 281; e Da Empresarialidade – As Empresas no Direito, 304.
(44) PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades Comerciais, 3ª ed., 19. Cfr. também MENEZES CORDEIRO, Direito Comercial, 3ª ed., 322;
P. OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais, 3ª ed., 6.
(45) Para ROMANO MARTINEZ, não constando das suas regras o conceito de empresa, o direito do trabalho pode ser subsidiário do direito comercial, interessando a noção comercial de empresa, bem como as indicações do art. 230º do Código Comercial – Ob. Cit., 419.
(46) COUTINHO DE ABREU, Da Empresarialidade, 299. (47) MONTEIRO FERNANDES, Ob. Cit., 229. (48) Cfr. ROMANO MARTINEZ, Ob. Cit., 626. (49) ROMANO MARTINEZ, Ibidem. (50) Para contratos de trabalho celebrados depois de 1 de Outubro de 2013, os trabalhadores dispõem ainda de meios adicionais de tutela para alguns dos seus créditos laborais, previstos na Lei 70/2013, de 30 de Agosto.
(51) Cfr. JÚLIO GOMES, Ob. Cit., 900 e segs;
ROMANO MARTINEZ, Ob. Cit., 617 e segs;
MARIA DO ROSÁRIO RAMALHO, Ob. Cit., 704 e segs;
M. LUCAS PIRES, Ob. Cit., 261 e segs.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2016. - Fernando Manuel Pinto de Almeida (Relator) - Fernanda Isabel de Sousa Pereira - Manuel Tomé Soares Gomes - Júlio Manuel Vieira Gomes - Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão - António Alberto Moreira Alves Velho - Carlos Alberto de Andrade Bettencourt de Faria - José Amílcar Salreta Pereira - João Luís Marques Bernardo - João Moreira Camilo - Paulo Armínio de Oliveira e Sá - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza - Ernesto António Garcia Calejo - Helder João Martins Nogueira Roque - Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego - Orlando Viegas Martins Afonso - Paulo Távora Victor - José Augusto Fernandes do Vale - Fernando da Conceição Bento - José Tavares de Paiva - António da Silva Gonçalves - António dos Santos Abrantes Geraldes - Ana Paula Lopes Martins Boularot - João Mendonça Pires da Rosa (Vencido, conforme declaração que junto) - Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos (Vencido, de acordo com a declaração de voto da Conselheira Clara Sottomayor) - António José Pinto da Fonseca Ramos (Subscrevo o voto de vencido da Exma. Conselheira Maria Clara Sottomayor) - José Fernando de Salazar Casanova Abrantes (Conforme declaração que junto) - Gregório Eduardo Simões da Silva Jesus (Como relator do acórdão fundamento, voto vencido nos termos da declaração de voto apresentada pela Exma. Conselheira Maria Clara Sottomayor) - João José Martins de Sousa (Vencido, nos termos da Exma Conselheira Sottomayor) - Gabriel Martim dos Anjos Catarino (Vencido, nos termos da declaração de voto da Senhora Conselheira Doutora Clara Sottomayor) - João Carlos Pires Trindade (Vencido de acordo com declaração que junto) - Maria Clara Pinto de Sousa Santiago Sottomayor (Vencida, de acordo com declaração que foi junta no processo) - António Silva Henriques Gaspar (Presidente).
Voto de vencido Votaria o projecto apresentado pela Exma Relatora inicial, Conselheira Maria Clara Sottomayor, em cujo voto de vencido sustento agora as razões substanciais do meu próprio voto.
Em resumo, e de uma forma simples, direi:
A alínea b) do nº 1 do art. 377º do CTrabalho2003 (Lei 99/2003, de 27 de Agosto), aqui aplicável, diz o que diz e diz que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
Não conheço nenhum bem imóvel de uma qualquer empresa de construção civil onde o trabalhador sinta mais fortemente que prestou a sua actividade do que aquele que ele próprio, fruto do seu próprio trabalho, viu nascer. E a expressão utilizada na Lei – nos quais o trabalhador preste o seu trabalho – tem manifestamente um sentido que não morre quando o prédio onde alguém trabalhou está concluído. Pode lá um qualquer trabalhador aceitar que a lei conclua que eu presto trabalho num determinado imóvel quando dou os primeiros passos para a sua construção, e já não considere que esse mesmo imóvel é fruto do meu trabalho quando pela força dos meus braços finalmente ele está concluído e pronto a vender?!! Nos quais o trabalhador preste a sua actividade são então os imóveis onde o trabalhador esteja a prestar ou tenha prestado o seu trabalho.
Se isto é o que a lei diz e o que o legislador quis dizer, e se tudo isto é aquilo que o legislador, para o respeito constitucional do trabalho como direito, liberdade e garantia de qualquer homem, podia e devia dizer - art. 59º, nº 3 da nossa Constituição da República - então esta é a única leitura que a lei - o art. 377º, nº 1. al. b) - pode ter. Nem se receie ou se diga que eventuais promitentes compradores dos prédios (igualmente trabalhadores, até também) podem ser postos em causa com a afirmação do Veja-se até como, literalmente, o CTrabalho2009 (Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro) vem reforçar o privilégio do trabalhador:
enquanto no art. 377º, nº 1, al. b) do CT2003 se fala em bens imóveis do empregador nos quais - e o plural nos quais só ao plural imóveis se pode ligar - no CT2009 fala a lei em bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.
Voto de vencido Destinando-se o imóvel para venda, e sendo esta efetivada, estamos face a uma obra que é o resultado da atividade empresarial e, por isso, pretende-se que se considere que não beneficiem de privilégio creditório imobiliário especial os créditos dos trabalhadores que nela trabalharam, evitando-se o risco, para os adquirentes, de um crédito oculto com garantia real.
Isto é assim quando há lugar à venda; no entanto, se o prédio não chegou a ser vendido porque a empresa decidiu afetálo a rendimento ou porque decidiu afetálo a instalações permanentes da empresa, porventura a sua nova sede, ou porque ocorreu entretanto a insolvência da empresa, o imóvel passa a integrar o património da empresa, agora em liquidação porque declarada insolvente, como qualquer outro imóvel; assim sendo, alterado o destino do imóvel, não se vê razão para não reconhecer o privilégio creditório imobiliário dos créditos laborais daqueles que nele trabalharam. Neste caso o propósito passa a ser tão somente o de obstar a que os créditos dos trabalhadores beneficiem da sequela e preferência inerente ao privilégio que a lei nos artigos 377.º/1, alínea b) do CT/2003, 733.º e 751.º do Código Civil lhes reconheceu com preferência, designadamente, sobre hipoteca e direito de retenção. Os créditos dos trabalhadores que prestam a sua atividade em imóvel hipotecado da empresa insolvente, agora em liquidação, beneficiam de privilégio imobiliário especial, graduando-se antes do crédito hipotecário, o que não deixa de ser reconhecido pelo acórdão uniformizador (artigo 751.º do Código Civil); no entanto, o acórdão uniformizador já não reconhece esse privilégio aos créditos dos trabalhadores que prestam a sua atividade em imóvel hipotecado construído para venda; os créditos dos trabalhadores desse imóvel graduam-se, assim sendo, depois do crédito hipotecário. No âmbito da insolvência, e tendo em vista a liquidação da massa insolvente integrada por dois imóveis hipotecados, os créditos salariais dos trabalhadores que neles prestam atividade têm, pois, sorte diversa. No nosso entendimento, e tratando-se da liquidação da massa insolvente, que é o que aqui está em causa, os créditos salariais beneficiariam em qualquer dos casos de privilégio imobiliário especial nos termos contemplados no artigo 333.º/1, alínea b) do Código de Trabalho que prescreve:
1 - Os créditos dos trabalhadores emergentes do contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, gozam dos seguintes privilégios creditórios:
[…] b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua atividade. Ou na redação do artigo 377.º/1, alínea b) Código de 2003:
b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua atividade. O acórdão uniformizador quis evitar, como se disse, o risco da existência de um crédito oculto sobre o adquirente do imóvel, mas, estendendo o seu âmbito aos imóveis que foram destinados à venda, independentemente de esta ter sido realizada, pretende tutelar ainda o interesse dos promitentes compradores à custa dos créditos dos trabalhadores, de todos os trabalhadores e não apenas os da construção, que prestam a sua atividade no imóvel.
Não existindo, como é evidente, o propósito de estigmatizar os créditos de uma categoria de trabalhadores - os da construção civil, reconhecidamente, é certo, os mais atingidos - o que houve aqui foi o propósito fundamental de evitar as consequências da sequela sobre os compradores, tutelando-se ainda os promitentescompradores com direito de retenção.
Como se disse, na ponderação destes interesses, admite-se que se considere desproporcionado não afastar o privilégio, tratando-se de imóveis que foram vendidos e isto pelas nefastas consequências que daí advêm, designadamente para o comprador de imóvel com hipoteca desonerada que vê o imóvel atingido pela reclamação de créditos que de todo não podia contar quando da aquisição; mas é manifestamente excessivo retirálo aos imóveis que o insolvente destinou à construção para venda tout court, restringindo ainda mais o alcance de uma norma sem atender às afetações ulteriores subsequentes do imóvel, designadamente a que resulta da insolvência, pois o promitente comprador sabe, pela essência do seu estatuto legal, que a aquisição do imóvel não está garantida, e muito menos em caso de insolvência, não se justificando, nem a lei tomou essa opção, lançar os créditos salariais de trabalhadores que prestam a sua atividade no imóvel da empresa em liquidação na vala dos créditos comuns para se salvaguardar a vantagem, na graduação, do promitente comprador com direito de retenção - para além do credor hipotecário, aliás, o principal interessado - que é, aliás, apenas aquele que obteve a tradição da coisa [artigo 755.º/1, alínea f) do Código Civil].
Muitos desses trabalhadores, aliás, prestam unicamente a sua atividade no imóvel, contratados para a obra, não integrando os quadros da empresa, situação corrente.
Por isso, preferiria a uniformização constante do projeto inicial, que foi afastada, embora com redação ligeiramente diversa da que foi proposta pelo relator que seria esta:
“os créditos laborais dos trabalhadores, designadamente da construção civil, que prestem atividade nos imóveis construídos pela entidade empregadora declarada insolvente e propriedade desta, beneficiam sobre estes do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377.º, n.º 1, alínea b) do Código de Trabalho de 2003”.
Esta redação, diga-se, nem sequer punha em causa o entendimento de que o privilégio imobiliário especial dos trabalhadores não incidia sobre os imóveis vendidos.
Lisboa, 23-2-2016. - J. F. Salazar Casanova.
João Trindade.
Declaração de voto de vencida
I - Tendo sido a Relatora originária deste recurso de uniformização de jurisprudência, defendi a tese adotada no acórdão fundamento (acórdão de 13-09-2011, proferido no processo 504/08.7TBAMR-D.G1.S1), segundo a qual os bens imóveis, construídos pelos trabalhadores da empresa insolvente, são objeto do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377.º do CT/2003.
Os argumentos defendidos no projeto de acórdão, de que fui relatora, foram os seguintes:
1 - Argumento gramatical ou texto da lei Na linguagem corrente, a cláusula do art. 377.º, n.º 1, al. b) do CT/2003 -
os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua atividade
»- que delimita o âmbito objetivo do privilégio imobiliário especial, significa, centrandonos nas expressões
atividade
» eprestação
», um conjunto de realizações ou de atos coordenados e a execução ou desempenho de uma tarefa ou de um resultado a pedido de outrem. A expressão
nos
» alude ao facto de os bens imóveis serem o lugar, o sítio ou o espaço físico onde o trabalhador presta a sua atividade e a expressãodo
», referindo-se ao empregador, remete para os bens imóveis que são propriedade deste. O argumento gramatical de interpretação não indica que esta norma do art. 377.º do Código de Trabalho de 2003 remeta para a noção de estabelecimento do Direito Comercial tal como está definida nos arts. 5.º do CIRE e 230.º do Código Comercial, enquanto conjunto de fatores de produção (natureza, capital, pessoas e bens), como defende o acórdão que fez vencimento. Pelo contrário, o argumento literal, através de uma interpretação meramente declarativa, indica que a norma em causa remete para o espaço físico, propriedade do empregador, onde o trabalhador executa a prestação que foi contratualizada com a entidade empregadora.
Em princípio, deve prevalecer uma interpretação declarativa, de acordo com o significado corrente das palavras, desde que corresponda ao pensamento legislativo. Em particular no Direito do Trabalho, é ainda maior a dependência dos conceitos jurídicos em relação à linguagem comum, em virtude da especial relação entre este ramo do direito e a realidade social (António Carvalho,
Reflexões sobre o conceito legal de posto de trabalho
», in Para Jorge Leite, Escritos JurídicoLaborais, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 120).
Contudo, o sentido naturalístico ou físico de local de trabalho não tem em conta a interligação e a igualdade verificada entre as diferentes funções dos trabalhadores como contributo para a produção dos bens, seja qual for o local físico em que as exerçam. Adotei, assim, tal como no acórdão fundamento, o critério da conexão funcional entre a atividade prestada e o imóvel em causa, de forma a abranger como titulares da garantia real sobre os imóveis construídos pela empresa insolvente, não só os operários, que prestam funções nas obras, mas também os trabalhadores administrativos, que contribuem para a edificação dos imóveis com trabalhos de orçamentação e planificação, transportando materiais e pessoas para a obra, etc. Neste contexto, é necessário distinguir o âmbito objetivo do subjetivo do privilégio. De acordo com o primeiro, estão onerados com o privilégio imobiliário especial os imóveis onde os trabalhadores prestam atividade, apenas se excluindo os destinados a frutificação pessoal e aqueles que integram estabelecimento diverso do empregador. Para respeitar o princípio da igualdade, nas empresas de construção civil, todos os trabalhadores beneficiam desta garantia, mesmo os trabalhadores externos (motorista, tele-trabalho) ou que trabalhem em edifícios arrendados (sede, postos de venda), na medida em que estes trabalhadores nas suas funções tratam de assuntos ligados aos imóveis em construção (p. ex. transporte de mercadorias, visitas de clientes, tratamento informático de dados, elaboração de orçamentos, etc.).
A doutrina que se pronuncia favoravelmente à inclusão dos bens imóveis destinados a comercialização no âmbito objetivo do privilégio imobiliário (Miguel Lucas Pires, Dos Privilégios Creditórios, 2.ª edição, Almedina, 2015, pp. 257-258), fálo no quadro de uma conceção restrita, que considera onerado pelo privilégio imobiliário especial o concreto imóvel onde, de facto, o trabalhador presta atividade, aceitando situações de desigualdade de tratamento entre os trabalhadores consoante o local físico onde prestam a sua atividade profissional.
Uma interpretação da lei de acordo com o art. 13.º da CRP, que consagra o princípio da igualdade, exige o alargamento do âmbito subjetivo do privilégio a todos os trabalhadores da empresa insolvente, erigindo-se como critério de conexão entre a atividade e os imóveis onerados um critério funcional e não um critério naturalístico, embora no caso concreto não possa deixar de se afirmar que sendo os recorrentes operários das obras, para além da conexão funcional aos imóveis construídos pela empresa insolvente, está presente também a conexão naturalística.
2 - Argumento constitucional O elemento sistemático de interpretação obriga o intérprete a considerar a unidade do sistema jurídico numa perspetiva valorativa, em que a Constituição e os direitos fundamentais nela consagrados ocupam o lugar principal. Trata-se de um fenómeno que a doutrina tem designado por constitucionalização do direito civil e que assenta no primado da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP), a base do Estado de Direito. Neste sentido, acentua-se o valor do trabalho como autorealização da pessoa humana e como uma forma de participar na construção do mundo, a que corresponde o dever de pagar a quem trabalha como um dos instrumentos essenciais para a sobrevivência dos cidadãos, e, em última análise, para a subsistência da própria sociedade humana, cuja estabilidade estará profundamente posta em causa se os trabalhadores, para além de enfrentarem o desemprego, não beneficiarem da garantia prevista no Código de Trabalho para os créditos laborais de salários e indemnizações substitutivas do salário. Foi por razões de justiça social que o legislador reconheceu uma garantia real particularmente forte aos créditos laborais, em virtude da natureza de direito fundamental constitucionalmente protegido do direito que se pretende garantir com o referido privilégio:
o direito à remuneração [art. 59.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 da CRP]. A este direito, bem como às indemnizações devidas ao trabalhador pela cessação do contrato de trabalho, reconheceu o Tribunal Constitucional uma natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (Acórdão 498/2003, Processo 317/02, DR, II, de 3 de janeiro de 2004;
Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 770).
Numa perspetiva funcional dos direitos, é inquestionável que o salário e a sua proteção jurídica visam assegurar aos seus titulares e respetiva família uma existência condigna e estão relacionados com a própria sobrevivência da sociedade humana, assumindo uma natureza alimentar e não meramente patrimonial. A mesma natureza é reconhecida aos créditos relativos a indemnizações, os quais desempenham
uma evidente função de substituição do direito ao salário perdido
»(cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 498/2003). Por isso, o crédito dos trabalhadores não é um crédito comum e beneficia de uma discriminação positiva em relação aos demais créditos, merecendo da ordem jurídica uma particular proteção, consagrada no art. 751.º do Código Civil, que afirma a sua oponibilidade a terceiros que adquiram um prédio ou um direito real sobre ele e a sua prevalência sobre a consignação de rendimentos, a hipoteca e o direito de retenção.
A norma do art. 377.º, n.º 1, al. b) do Código de Trabalho de 2003 é assim uma norma atributiva ou concessiva de direitos aos trabalhadores, conferindolhes o poder jurídico de serem pagos sobre o valor de determinados bens com preferência em relação a outros credores. Os privilégios são sempre de fonte legal e a razão da sua concessão liga-se, ou à qualidade dos credores, ou à natureza do próprio crédito (Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2009, p. 161). A própria noção de privilégio creditório especial, que incide sobre bens certos e determinados, pressupõe uma ligação entre os créditos e os imóveis sobre os quais incidem. Ora, neste contexto, é inegável que os créditos dos trabalhadores da construção civil, decorrentes do direito à retribuição da força de trabalho com a qual produzem os imóveis, têm uma relação com os imóveis construídos, ligação esta que o legislador quis que fosse juridicamente relevante e protegida através de uma tutela constitucional reforçada, dada a sua dimensão pessoal e existencial.
3 - Argumento teleológico O processo de insolvência tem uma dimensão interdisciplinar no sentido em que nele se interrelacionam normas dos vários ramos do direito. No caso em apreço está em causa a interpretação de uma norma de Direito do Trabalho, o que obriga o intérprete à consideração de uma particular ratio legis, que preside às normas de Direito do Trabalho. Este ramo do direito foi construído de raiz em torno do imperativo da proteção do trabalhador, e, apesar de este princípio conhecer avanços e recuos ao longo da história, não deixou de ser um dado históricocultural inegável e que tem constituído o motor do seu desenvolvimento sistemático e dogmático (Guilherme Dray, O Princípio da Proteção do Trabalhador, coleção teses, Almedina, Coimbra, 2015).
A especificidade do caso resulta do facto de os sujeitos que invocam o privilégio imobiliário especial terem a qualidade de trabalhadores da empresa insolvente, isto é, de sujeitos ligados a uma entidade empregadora através de um vínculo de subordinação jurídica, traduzida num dever de obediência às ordens, instruções e diretivas da entidade empregadora, e de subordinação económica, na medida em que dependem da remuneração do seu trabalho para sobreviver e ter uma vida condigna.
Mas a proteção do trabalhador enquanto razão de ser da lei laboral em termos históricos, deve ser complementada pela consideração, dentro da teleologia da norma, do direito dos trabalhadores à remuneração e à proteção reforçada que a Constituição lhe oferece (artigos 59.º, n.º 3 da CRP). A ratio legis é também o elemento de interpretação que faz a ligação da norma à realidade social e aos seus valores. Neste quadro, não pode deixar de ponderar-se, dentro da teleologia da norma, os efeitos económicos da declaração de insolvência da entidade empregadora, na vida pessoal e familiar dos trabalhadores com créditos de natureza alimentar. Esta ponderação não é um
argumento consequencialista
», externo à ordem jurídica, mas um critério que decorre diretamente da normatividade e do sistema jurídico no seu todo, e que não põe em causa a tradicional autonomia dogmática do sistema jurídico em relação ao social.
4 - Argumento histórico Este elemento de interpretação tem apenas uma natureza auxiliar, não decisiva, no debate, desde logo devido à circunstância de o legislador ser um órgão colegial e de não existirem trabalhos preparatórios ou estudos prévios à alteração legislativa que deu lugar à passagem do privilégio imobiliário geral, previsto na lei 12/86, de 14 de junho, para o privilégio imobiliário especial consagrado no art. 377.º, n.º 1, al. b) do CT/2003.
A opinião da doutrina sobre esta questão é a de que o legislador teve por objetivo evitar as dúvidas sobre a constitucionalidade da prevalência do privilégio imobiliário geral sobre os direitos reais de terceiro, defendida por uma parte da jurisprudência (que veio mais tarde a ser considerada constitucional no acórdão do TC n.º 498/2003), e evitar as contradições conceituais geradas por aquela jurisprudência, que criava um desvio dogmático, na medida em que os privilégios gerais não são direitos reais mas apenas preferências de pagamento (Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2.º volume, AAFDL, Lisboa, 1986, p. 501), não sendo de aceitar, de um ponto de vista doutrinal, o regime de prevalência sobre os direitos reais de terceiros que lhes era atribuída pela jurisprudência.
As causas da alteração da solução da LSA (lei 12/86 de 14 de junho), que garantia os créditos laborais com um privilégio imobiliário geral, para a solução do Código de Trabalho de 2003, que o substituiu por um privilégio imobiliário especial,
(…)não se prendiam tanto com o elenco dos objectos abrangidos pela garantia (todos os bens móveis existentes no património do devedor no momento da penhora ou acto equivalente), mas antes com a respectiva graduação em concurso com outros créditos preferentes (…)
»(Miguel Lucas Pires,
Garantia dos Créditos Labo-rais
», in Código do Trabalho, A revisão de 2009, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 388).
A mesma análise da passagem da LSA para o Código de Trabalho de 2003 transparece nas palavras de Pedro Romano Martinez (Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra, 2010, p. 657). Para este autor, o privilégio imobiliário geral previsto no art. 12.º, n.º 1, alínea b) da LSA era uma figura nova, sem previsão na lei civil, que criava a
incongruência de se estabelecer que uma figura geral prevalece sobre uma especial
», como sucedia com a prevalência do privilégio imobiliário geral em relação aos direitos de terceiros. Em face destas reflexões, não é adequado afirmar, como faz o acórdão que obteve vencimento, que o objetivo do legislador com a natureza especial do privilégio fosse o de restringir o círculo de imóveis sobre os quais incide e proteger os demais credores.
Presumindo-se um legislador laboral informado e conhecedor desta realidade específica do setor da construção civil, tem de se aceitar, perante a formulação legal utilizada no art. 377.º do CT/2003, que, para o setor da construção civil, o conceito de local onde o trabalhador presta atividade abrange os locais que são transitórios ou mutáveis em termos geográficos como o caso das várias obras da empregadora. Se o legislador não pretendesse tal resultado, teria exigido um laço permanente do trabalhador ao imóvel, o que não fez.
Também não colhe o argumento usado no acórdão que fez vencimento, de que os imóveis já edificados não são o local onde os trabalhadores da construção civil prestam atividade para o efeito do art. 377.º do CT/2003, pois destinam-se a comercialização.
A exclusão destes imóveis do âmbito do privilégio, por serem o produto final da atividade da empresa, não tem qualquer reflexo na letra da lei, que se refere aos imóveis propriedade da empresa, onde os trabalhadores prestam a sua atividade, sem estabelecer qualquer distinção entre os que estão afetos de forma permanente à empresa e os que se destinam a venda. Deve presumir-se que o legislador se exprimiu de forma adequada e onde a lei não distingue, não deve o intérprete fazêlo. 5.2. Noção de empresa Na interpretação do art. 377.º do Código de Trabalho de 2003, enquanto norma de direito do trabalho, que prevê uma garantia real do salário e dos substitutos do salário de um grupo de sujeitos - os trabalhadores - o conceito de empresa que deve ser utilizado como paradigma ou referência deve ser um conceito amplo e não o conceito de empresa proveniente do direito comercial adotado pelo acórdão que fez vencimento. Neste acórdão defende-se uma noção de empresa, oriunda do Direito Comercial, que abrange apenas os fatores de produção antes de serem transformados pelos trabalhadores, mas não já o produto final que resulta da aplicação do trabalho humano à matériaprima. A este propósito, a doutrina tem entendido que não existe um conceito unitário de empresa comum aos diversos ramos do direito e que, o conceito de empresa em Direito do Trabalho é distinto do conceito de empresa em Direito Comercial (Catarina Carvalho, Da dimensão da empresa no Direito do Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 110;
Coutinho de Abreu, Da empresarialidade, Almedina, Coimbra, p. 299; idem,
A empresa e o empregador em Direito do Trabalho
», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Teixeira Ribeiro, Universidade de Coimbra, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1983, p. 264). Na mesma linha de pensamento, Maria do Rosário Palma Ramalho (Tratado de Direito do Trabalho, Parte I, Dogmática Geral, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 336 e 347) conclui pelo relevo autónomo do conceito de empresa laboral, definindo-a como a modalidade de empresa que tenha trabalhadores subordinados e distinguindo-a do estabelecimento enquanto
conceito de vocação económica e cujo relevo jurídico se mantém na área do Direito Comercial
».
Já Bernardo Xavier dizia que
Não definimos empresa com validade geral para o Direito nem para cada região do Direito e, por vezes, só conseguimos assenhorearnos do seu sentido relativamente a cada corpo normativo ou até a cada norma
»(
Empresa e Direito Europeu. Perspectiva laboral
», RDES Ano XLVIII, 2007, n.ºs 1/2, p. 10). O autor salienta a importância de um conceito de empresa que promova o desenvolvimento integral da pessoa humana e que não reduza os trabalhadores a factores de produção (Ibidem, p. 19).
Relativamente à noção de empresa, Catarina Carvalho (Da dimensão da empresa no Direito do Trabalho, ob. cit., p. 112), na sua tese de doutoramento, afirma que
(…) a concetualização da empresa no direito do trabalho carece de ser autonomizada do entendimento adotado noutros ramos do direito, em função dos específicos fins juslaborais
». Assim,
o conceito de empresa terá de ser apurado à luz da finalidade das normas que o utilizam
», sendo cada vez mais entendido como
evolutivo, redefinido e redefinível de forma permanente, consoante o instituto normativo em causa
»(Ibidem, p. 12). O conceito de empresa é meramente operacional:
o que importa é identificar a função desempenhada pela empresa na modelação das soluções legais (Ibidem, p. 113).
O conceito de empresa é assim funcionalizado à proteção dos interesses e direitos dos trabalhadores. O Tribunal de Justiça da União Europeia tem, também, aplicado um conceito variável de empresa, consoante a área jurídica e o objetivo em causa, afirmando o princípio de que deve ser dado ao conceito de empresa o conteúdo e o efeito útil que se mostrar mais adequado ao objetivo social da área do direito comunitário em que se situa (Liberal Fernandes,
Harmonização social no direito comunitário:
a Directiva 77/187/CE relativa à transferência dos trabalhadores de empresa ou estabelecimento
», in Ab uno ad omnes - 75 anos da Coimbra Editora, 1920-1995, Coimbra, 1998, pp. 1323 e ss).
A noção de empresa em direito do trabalho e em direito comunitário é mais ampla do que a de estabelecimento comercial, e na definição dos seus contornos são decisivos o instituto normativo em causa e a interpretação teleológica das normas (Catarina Carvalho, Da dimensão da empresa…ob. cit., p. 112). Dentro da teleologia da norma do art. 377.º do Código de Trabalho de 2003, ressalta a proteção dos direitos fundamentais dos trabalhadores a receberem a compensação económica correspondente à sua força de trabalho (art. 59.º da CRP).
Na noção laboral de empresa, os trabalhadores não são vistos como fatores de produção a par das matériasprimas ou do capital, mas como pessoas titulares de direitos fundamentais, em que o direito à retribuição e aos seus substitutos, como as indemnizações por despedimento ilícito, são uma condição da dignidade da pessoa humana e não apenas uma dívida da empresa a ser tratada como qualquer outra. O conceito de empresa é, assim, um conceito de direito laboral e não coincide com o de estabelecimento comercial ou empresa, em sentido imaterial ou abstrato, enquanto organização de fatores de produção.
Note-se que nada na letra da lei indica que o legislador remeteu para a noção de empresa ou de estabelecimento comercial oriunda do Direito Comercial, referindo-se, antes, de forma clara e inequívoca, ao local onde o trabalhador presta atividade.
Conforme se afirma no acórdão fundamento:
“Os imóveis destinados à construção ou construídos para revenda são intrinsecamente objecto da actividade da empresa, como bens tangíveis constitutivos do seu activo, são parte integrante da unidade empresarial a que os trabalhadores pertenciam e nos quais trabalharam, pois que seriam a natural fonte de obtenção de novos capitais, de refinanciamento da empresa, e o suporte da continuidade do seu ciclo de actividade de construção. São, inquestionavelmente, parte integrante do património afecto à actividade empresarial que a insolvente desenvolvia”.
Neste quadro construtivo, o conceito que mais se ajusta à especificidade do direito laboral e à interpretação da norma do art. 377.º do Código de Trabalho de 2003 é o de empresa enquanto comunidade de pessoas, cuja força de trabalho é executada sob a direção da entidade empregadora, com a finalidade de produzir bens ou de prestar serviços, tendo como contrapartida o direito fundamental dos trabalhadores a auferir uma retribuição, cuja função jurídica é compensálos do serviço ou da obra realizados e cuja função económicosocial é garantirlhes o seu sustento e o da sua família. A retribuição, além desta dupla função, é um elemento absolutamente necessário em todos os contratos de trabalho e goza de proteção jurídicoconstitucional (art. 59.º da CRP).
5.3. Natureza e finalidade do processo de insolvência O processo de insolvência enquanto processo de execução universal tem como finalidade a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (ressalvados os que sejam titulares de prevalência sobre os demais) ou a satisfação dos credores pela forma prevista no plano de insolvência.
No contexto de um processo de insolvência, é artificial diferenciar na universalidade de bens imóveis, propriedade da empresa declarada insolvente, os imóveis que constituem a sede da empresa ou os seus escritórios dos que são produto da atividade da mesma, mas não foram vendidos a terceiros. A lei não estabelece essa distinção e ubi lex non distinguet, nec nos distinguere debemus.
No âmbito do processo de insolvência, não é relevante o destino inicial dos bens mas a sua situação jurídica à data da declaração de insolvência - propriedade da empresa insolvente - e a sua função dentro da massa insolvente, a satisfação dos créditos graduados de acordo com a hierarquia estabelecida na lei.
Como afirma o acórdão fundamento, a tese ampla é aquela que está mais de acordo com os efeitos da declaração de insolvência,
num quadro normativo em que a partir da declaração de insolvência o objetivo dos bens apreendidos é a satisfação dos interesses dos credores que o direito concursal visa acautelar (…) e que tem por regra privar imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, e suspender os contratos bilaterais não cumpridos para que o administrador da insolvência opte pela execução ou recusa do contrato, não tem sentido, nem essa é a ratio legis, procurar a preclusão de garantias reais concedidas a alguns credores, como os privilégios creditórios imobiliários especiais, em função do destino que aparentemente tinham os imóveis dentro da universalidade empresarial
». II - Razões da discordância com o acórdão que fez vencimento
1. Tese defendida pelo acórdão que fez vencimento O acórdão que fez vencimento afirma defender uma tese ampla quanto ao âmbito objetivo dos privilégios imobiliários especiais, considerando que os imóveis sobre os quais incidem estes privilégios são todos aqueles que integram o património da empresa e que estão afetos, de forma permanente, à sua organização empresarial, excluindo-se apenas os destinados a outro estabelecimento do empregador ou a frutificação pessoal deste.
Neste ponto, todas as teses em discussão convergem. O que as distingue é a posição assumida em relação à questão objeto do processo:
incidem ou não os privilégios imobiliários especiais sobre os imóveis construídos pelos trabalhadores das empresas de construção civil e não alienados a terceiros?
O acórdão que fez vencimento exclui estes imóveis por não os considerar integrados na organização produtiva da empresa, uma vez que se destinam a comercialização, e o acórdão fundamento consideraos abrangidos pelo privilégio e elemento da organização empresarial da insolvente, solução a que aderi no projeto de que fui relatora. É que a consequência lógica da tese ampla, na medida em que assenta num laço funcional entre a atividade prestada e o imóvel, não pode deixar de ser a inclusão dos imóveis construídos pelos trabalhadores no âmbito de incidência do privilégio imobiliário especial. A opção pela exclusão destes imóveis está mais relacionada com ponderação de interesses exteriores ao conflito em causa do que com a vontade do legislador e as valorações contidas na lei. 2. Fundamentação do acórdão que fez vencimento O acórdão que fez vencimento, quando aplica a tese ampla aos imóveis construídos pelos trabalhadores das empresas de construção civil, não alienados a terceiros, decide que sobre estes imóveis não incidem os privilégios imobiliários dos trabalhadores pelas seguintes razões:
1.º Estes imóveis destinam-se a comercialização;
2.º Não integram a organização empresarial da insol-3.º Não constituem o local de trabalho dos trabalhadores destas empresas, mas apenas o local onde transitoriamente exercem funções. vente;
Acrescenta ainda na fundamentação que estes privilégios, como gozam de sequela, põem em causa os direitos reais dos adquirentes e os direitos de retenção dos promitentescompradores, bem como os princípios da confiança e da segurança jurídica em relação aos credores hipotecários que registaram a hipoteca em data anterior e que veriam a sua garantia ser arredada por um direito oculto, que não poderiam ter previsto.
O acórdão que fez vencimento reconhece a natureza de direito, liberdade e garantia ao direito dos trabalhadores à proteção especial da retribuição por privilégio especial e salienta que o regime da prevalência dos privilégios sobre a hipoteca pode ser o único meio de satisfazer os direitos dos trabalhadores -
Justifica-se, assim, a protecção conferida à retribuição (ou à indemnização devida pela cessação do contrato de trabalho, que desempenha uma “função de substituição do direito ao salário perdido”), mediante os privilégios consagrados na lei. Como se referiu, numa situação de insolvência do empregador - face à concorrência de créditos com outras garantias que, pelo elevado valor, exaurem frequentemente a massa insolvente -, pode constituir o único meio de assegurar a efectivação desse direito fundamental dos trabalhadores
».
Contudo, em contradição com os valores afirmados, acaba por fazer prevalecer os interesses das instituições bancárias, retirando assim aos trabalhadores da construção civil a possibilidade de beneficiarem do produto da venda destes imóveis para pagar os seus créditos, conforme resulta deste excerto:
Importa ainda notar que, como tem sido reconhecido, com a prevalência do privilégio, a hipoteca é praticamente neutralizada. No caso dos imóveis edificados para venda por empresa de construção civil, será de realçar que o crédito que a hipoteca garante serviu de financiamento à própria construção do imóvel que é objeto dessa garantia; assim, a estender-se o privilégio àqueles imóveis, a protecção do salário seria feita, nesta medida, no fundo, à custa do credor hipotecário, em vez de o ser através do património do empregador
».
3. A restrição do âmbito objetivo do privilégio, fazendo prevalecer os interesses das instituições bancárias sobre os direitos dos trabalhadores, contraria a lei na sua letra e no seu espírito
O acórdão que fez vencimento, com todo o respeito, não convence da sua bondade, pelo facto de utilizar uma metodologia que parte do resultado para a construção do conceito, restringindo o âmbito de incidência objetivo do privilégio imobiliário especial, a fim de preservar os imóveis (construídos pelos trabalhadores e propriedade da empresa insolvente) livres de ónus e encargos para serem executados pelos bancos, fazendo, assim, prevalecer a hipoteca, ao contrário do que indica a letra da lei e o seu espírito. Esta preocupação com os interesses dos bancos não tem reflexo na lei, porque foi o próprio legislador que decidiu proteger situações de vulnerabilidade social com privilégios ocultos, sujeitando os demais credores ao regime da prevalência destes. Trata-se apenas de considerações extralegislativas sem relevo normativo para a interpretação da norma e que, por isso, não devem ser utilizadas como critério de decisão. A consideração dos efeitos económicos do regime jurídico dos privilégios imobiliários especiais no mercado financeiro e bancário é externa à norma aplicável e envolve prognoses que não estão ao alcance do juiz e põem em causa a autonomia e a especificidade do sistema jurídico. Note-se que foi o legislador que estipulou a prevalência deste privilégio imobiliário especial sobre as hipotecas (art. 751.º do CC), exprimindo claramente uma vontade no sentido de atribuição de uma valoração superior, na graduação de créditos, aos créditos dos trabalhadores, por terem uma natureza alimentar. Quando muito esta questão da prevalência do privilégio sobre a hipoteca, consagrada no art. 751.º do CC, podia ser objeto de um recurso para o Tribunal Constitucional, com base nos princípios da confiança e da segurança jurídica (art. 2.º da CRP), mas não foi sequer colocada neste caso concreto nem tratada pelas instâncias, porque não integrou o objeto do processo. Recorde-se também que o Tribunal Constitucional (acórdão 498/2003, DR, II, 3-01-2004, e acórdão 335/2008, de 19-06-2008, DR, II, 2008-07-18), sempre que chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da interpretação do art. 12.º, n.º 1, al. b) da LSA ou do art. 377.º, n.º 1, al. b) do CT/2003, que reconhecia prevalência, respetivamente, ao privilégio imobiliário geral e ao especial sobre a hipoteca, optou sempre pela constitucionalidade, por reconhecer aos direitos dos trabalhadores uma natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (art. 59.º, n.º 3 da CRP).
4. O acórdão que fez vencimento não tem em conta a realidade económicosocial das empresas de construção civil
Deve notar-se, ainda, que, tratando-se o setor da construção civil de um setor em que predominam as microempresas e em que a mão-de-obra se caracteriza por baixos salários e por grande rotatividade, os valores a pagar aos trabalhadores representarão, em regra, uma pequena parte em proporção ao valor global dos imóveis, que não afetará, de forma relevante, os interesses dos credores hipotecários.
O acórdão que fez vencimento esquece a realidade socioeconómica a que se dirige, e não pondera que, de acordo com a solução que propugna, os trabalhadores da construção civil veem, na grande maioria dos casos, a sua garantia ao salário e/ou indemnizações substitutivas do salário completamente esvaziada. O setor da construção civil é o mais afetado pela crise económica e, em períodos negativos, sofre recessões mais profundas do que os outros setores. Mais de 90 % das empresas são pequenas e médias empresas com sede em edifícios arrendados e que apenas detêm, como única riqueza, os imóveis construídos pela empresa e destinados a comercialização, mas ainda não alienados a terceiros, e portanto, propriedade da empresa.
Não se pode olvidar também que, na construção civil, a parte principal da logística, da organização de trabalho, do parqueamento de equipamento ou dos próprios estaleiros das respetivas empresas encontra-se precisamente nos locais que são considerados o produto da atividade ou indústria das mesmas e que os trabalhadores da construção civil são aqueles que laboram em piores condições de segurança e de higiene, e cuja atividade se caracteriza pela dureza e pela perigosidade, sendo um dos sectores, a par da indústria, com uma taxa mais alta de sinistralidade. Contrariamente ao afirmado pelo acórdão que fez vencimento, a incidência do privilégio sobre os imóveis destinados a comercialização, mas não alienados, não equipara o privilégio imobiliário especial a um privilégio geral. De resto a ser assim, tal significaria também a falência da tese ampla que o acórdão que fez vencimento propugna, a qual tem sido criticada pela doutrina com esse argumento (Joana Vasconcelos, Código do Trabalho Anotado, 9.ª edição, Almedina, 2013, p. 707;
Joana Costeira, Os efeitos da declaração de insolvência no contrato de trabalho:
A tutela dos créditos laborais, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 131-132), pois também aceita como princípio que todos os imóveis afetos à organização produtiva são objeto do privilégio, independentemente do local físico onde o trabalhador exerce funções (excluindo apenas os imóveis destinados a fruição pessoal do empregador ou a estabelecimento diverso).
Conforme afirma Miguel Lucas Pires (Dos privilégios creditórios. Regime jurídico e sua influência no concurso de credores, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 258-259):
(…) o alargamento do privilégio aos edifícios erigidos pelas empresas de construção não implica a qualificação deste privilégio como geral, porquanto é sempre exigida a conexão com a atividade do trabalhador, o que permite circunscrever o âmbito da garantia
», nem beneficia os trabalhadores das empresas de construção civil em relação aos outros setores de atividade, pois estamos perante a contingência da adoção de um critério de delimitação dos bens abrangidos por um privilégio especial e tudo dependerá, inevitavelmente, do património imobiliário da empresa, sempre havendo empresas com mais património do que outras.
5. O acórdão que fez vencimento não tem em conta a especificidade conceitual e finalística do Direito do Trabalho nem as características e natureza do processo de insolvência
5.1. Conceito de empresa e de local de trabalho. O destino dos bens imóveis e a natureza do processo de insolvência. Relativamente às questões ligadas ao destino dos imóveis, ao conceito de empresa e de local de trabalho, estas já foram abordadas atrás quando invoquei os argumentos em que baseei a minha posição como relatora originária. Mas dir-se-á ainda o seguinte:
a) Em Direito do Trabalho, os conceitos de função e de disponibilidade do trabalhador são os conceitos operatórios-chave de qualquer construção jurídica que diga respeito aos seus direitos. Sendo o critério funcional o decisivo para fundamentar o privilégio e aquele que permite uniformizar o tratamento de todos os trabalhadores, tal como entende também o acórdão que fez vencimento, a solução lógica e coerente passa por considerar que é o conceito de função, acompanhado da noção de disponibilidade do trabalhador para prestar atividade sob as ordens ou direção do empregador, que preside à interpretação do conceito de local de trabalho para o efeito do art. 377.º do CT/2003. Em consequência, o que é relevante não é o facto de o trabalhador se encontrar ligado de forma apenas transitória a uma obra, mas a circunstância de as suas funções (cargo, lugar ou posto de trabalho) - de carpinteiro, trolha ou administrativo - estarem ligadas à edificação de imóveis e de os trabalhadores se encontrarem disponíveis para essas funções, em geral, em todas as obras que a empresa venha a edificar. A esta luz o local de trabalho dos trabalhadores são os imóveis para cuja construção contribuem com a sua força de trabalho e a permanência do mesmo não pode ser entendida em termos físicos ou geográficos, mas em termos funcionais.
b) Estes imóveis integram a organização empresarial da insolvente, na medida em que é com o produto da venda destes imóveis que a empresa procede ao refinanciamento da sua atividade e paga aos trabalhadores.
A noção ampla de empresa usada no acórdão fundamento e que inclui, na noção de bens imóveis onde o trabalhador presta atividade, os imóveis já construídos enquanto produtos acabados e destinados a transação, mas ainda não vendidos, é assim a mais ajustada a realizar a finalidade da lei e a respeitar a sua teleologia.
c) Declarada a insolvência da empregadora, os imóveis construídos pela empresa insolvente fazem parte do seu ativo e respondem pelas suas dívidas, de acordo com os critérios legais de graduação dos créditos, independentemente do seu destino, que deixa de ser relevante, pois a lei ordena a suspensão dos contratos em curso (art. 102.º, n.º 1 do CIRE) e a reconfiguração das relações jurídicas.
O facto de sobre estes imóveis (construídos pela empresa insolvente e destinados a comercialização) normalmente incidirem direitos reais registados como o direito de hipoteca do banco financiador, ou direitos ocultos como o direito de retenção do promitentecomprador, não impõe, de um ponto de vista normativo, que os privilégios dos trabalhadores não incidam sobre os referidos imóveis, por contenderem com a segurança jurídica dos outros credores. Esta preocupação revelada pela orientação jurisprudencial que fez vencimento não tem em conta a hierarquia de interesses estipulada pelo legislador, que, sem qualquer condicionamento, conferiu primazia aos direitos dos trabalhadores garantidos por privilégios imobiliários sobre os direitos de terceiro, nos termos do art. 751.º do CC. Assim, no âmbito do processo de insolvência, não é relevante o destino inicial dos bens mas a sua situação jurídica à data da declaração de insolvência e a sua função dentro da massa insolvente:
a satisfação dos credores graduados de acordo com a hierarquia estabelecida na lei.
5.2. Conflito entre o privilégio creditório imobiliário e outros direitos reais
a) Compreende-se que a prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores cause incomodidade a interesses em conflito, como os dos Bancos e os dos promitentes-compradores, e que não se concorde com este regime jurídico, mas foram estas as preocupações do legislador, as quais mereceram tutela constitucional no art. 59.º, n.º 3 da CRP, norma que a doutrina e a jurisprudência do Tribunal Constitucional consideram uma norma de aplicabilidade direta e imediata.
Como já se afirmou neste Supremo Tribunal (acórdão de 11-09-2012, proc. n.º 168-A/1994.L1):
Quando existe uma situação socialmente dramática, como o desemprego e perda de remunerações salariais, sobretudo as vencidas, seria intolerável, num Estado de Direito, não se dotar de garantia sólida e exequível o direito à retribuição salarial, tutelando-o com sólida armadura jurídica
».
b) A probabilidade de ocorrência dos conflitos de direitos, assinalados pelo acórdão que fez vencimento, entre os privilégios laborais e os direitos dos promitentescompradores com direito de retenção sobre os imóveis é diminuta. Não é esta a situação socialmente típica que surge nos tribunais para dirimir, a qual é, por excelência, apenas o conflito entre os bancos e os outros pequenos credores e não o conflito entre os vulneráveis.
Há que dizer, também, que esta questão jurídica (con-flito entre privilégios imobiliários e direitos de retenção) não se coloca no objeto deste processo, pois os imóveis sobre os quais os trabalhadores reclamam os referidos privilégios não estão onerados com direitos de retenção e o segmento uniformizador apenas regula o conflito entre crédito hipotecário e crédito laboral privilegiado e só se aplica dentro dos limites factuais e jurídicos descritos no objeto deste processo.
Invocar como fundamento da exclusão destes imóveis do âmbito objetivo do privilégio o direito de retenção dos promitentescompradores, questão que não está em causa no objeto deste processo, significa colocar no centro do sistema o direito de retenção, o que não terá sido a intenção do legislador, que conferiu uma tutela jurídica mais intensa à retribuição do trabalho.
Sendo assim, não se justifica, considerando a realidade jurídica levada aos tribunais e os limites da uniformização concreta aqui em causa, restringir os direitos dos trabalhadores na relação com as entidades bancárias, para proteger o direito de retenção em todos os potenciais conflitos. Note-se ainda que, declarada a insolvência da empresa de construção civil, suspendem-se, como efeito da insolvência, os contratos em curso, e o cumprimento dos contratos de promessa fica dependente de decisão do administrador de insolvência. Caso este recuse o seu cumprimento, o promitentecomprador goza do direito de retenção, mas apenas nos casos em que houve traditio e em que este tem a qualidade de consumidor, segundo o AUJ n.º 14/2014. Está assim substancialmente reduzida a probabilidade de ocorrer conflito, na graduação de créditos, entre os privilégios laborais e o direito de retenção constituído em processo insolvencial. Por outro lado, havendo várias frações no imóvel, será pouco crível que todas estejam oneradas por direitos de retenção em condições jurídicas de serem protegidos no processo de insolvência, sendo sempre possível harmonizar interesses, fazendo incidir os privilégios nas frações sobre as quais não recaem direitos reais de gozo ou posse de terceiros. O administrador da insolvência pode evitar o conflito entre créditos laborais privilegiados e os créditos do promitentecomprador, titular de direito de retenção, indicando para objeto do privilégio uma fração autónoma que não esteja onerada por um direito de retenção de um promitentecomprador, como sucedeu neste caso.
Negar este direito dos trabalhadores, para prevenir qualquer conflito com direitos de retenção de promitentes-compradores, é retirar qualquer efeito útil à norma do art. 751.º do Código Civil e reduzila a um valor meramente emblemático na ordem jurídica, o que não pode ter sido a intenção do legislador, até porque não é crível que sobre os imóveis afetos à empresa de forma permanente, como a sede ou um armazém de matériaprima, possam incidir direitos de retenção de promitentescompradores com a qualidade de consumidor, que exijam a aplicabilidade desta norma.
c) Relativamente à possibilidade de ações dos trabalhadores, fora dos processos de insolvência, contra os adquirentes dos imóveis, com base na sequela de que gozam os privilégios, minando-se assim a segurança jurídica e a estabilidade das situações reais e do direito de propriedade, trata-se de um argumento ad terrorem, uma hipótese remota, que nunca seria legitimada pela uniformização proposta pelo projeto de acórdão vencido, na medida em que este definiu o seu âmbito de aplicabilidade aos casos de conflito, na graduação de créditos nos processos de insolvência, entre o privilégio imobiliário dos trabalhadores e o crédito hipotecário. Por outro lado, perante a hipótese de tal vir a acontecer no futuro, os Tribunais poderiam sempre proteger o direito de propriedade e as situações possessórias, fazendo uma interpretação restritiva da norma do art. 751.º do Código Civil, para tutelar o direito à habitação dos cidadãos, ou recusar a aplicação desta norma com base na inconstitucionalidade da interpretação adotada pelos requerentes. O que não podem os tribunais, arvorando-se de uma função semelhante à legislativa, com invasão do princípio da separação dos poderes, é revogar, na prática, os artigos 751.º do Código Civil e 377.º do CT/2003, na relação entre os créditos laborais e os créditos hipotecários. O problema dos inconvenientes criados pelos direitos ocultos deve ser resolvido pelo legislador, sujeitandoos a registo.
III - Conclusão A exclusão dos imóveis construídos pelos trabalhadores, propriedade da empresa insolvente, e que respondem pelas Depósito legal n.º 8814/85 ISSN 0870-9963 suas dívidas, do âmbito objetivo do privilégio imobiliário, transforma os créditos laborais em créditos comuns no processo de insolvência, pois estes imóveis serão muitas vezes o único património das empresas de construção civil, na sua maioria pequenas e médias empresas, sem sede ou com a sede a funcionar em edifício arrendado. Frustra-se, assim, na prática, com a interpretação adotada no acórdão que fez vencimento, o objetivo protecionista do legislador em relação aos créditos laborais. A proteção fornecida pelo Fundo de Garantia Salarial, dado estar sujeita a um limite quantitativo, é manifestamente insuficiente no caso das indemnizações devidas pela cessação do contrato de trabalho.
Entendo, por isso, que a justiça social e a dignidade da pessoa humana, enquanto base do Estado de Direito, exigem que os créditos laborais sejam garantidos, nas empresas de construção civil, pelo produto da venda dos imóveis construídos pelos trabalhadores, sendo possível, nos casos de conflitos com outros direitos reais, harmonizar os interesses de todos os titulares, numa perspetiva de concordância prática.
Fazer prevalecer totalmente a segurança de alguns (os credores hipotecários) sobre razões elementares de justiça para com outros sujeitos - os trabalhadores - a cujos direitos o legislador conferiu um grau máximo de proteção porque ligados à sobrevivência económica e à dignidade humana, não é a metodologia adequada à resolução do conflito de interesses em causa. As instituições bancárias pouco lesadas ficariam, dada a desproporção entre as dívidas em salários/indemnizações e o avultado capital mutuado às empresas de construção civil, tantas vezes sem uma análise adequada da capacidade de pagamento do devedor, como lhes competia.
Lisboa, 23 de fevereiro de 2016. - Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor.
Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2568635.dre.pdf .
Ligações deste documento
Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):
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1969-11-24 -
Decreto-Lei
49408 -
Ministério das Corporações e Previdência Social - Gabinete do Ministro
Aprova o novo regime jurídico do contrato individual de trabalho.
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1976-07-03 -
Decreto-Lei
512/76 -
Ministérios das Finanças e dos Assuntos Sociais
Reforça as garantias que assistem aos créditos das caixas sindicais de previdência.
-
1980-05-09 -
Decreto-Lei
103/80 -
Presidência do Conselho de Ministros e Ministérios da Justiça, das Finanças e do Plano e dos Assuntos Sociais
Aprova o Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência.
-
1986-05-21 -
Lei
12/86 -
Assembleia da República
Altera o regime de suspensão da execução dos actos administrativos, revogando o Decreto-Lei n.º 4/86, de 6 de Janeiro, e dando nova redacção aos artigos 77.º, 78.º e 81.º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos).
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1986-06-14 -
Lei
17/86 -
Assembleia da República
Salários em atraso.
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1988-11-30 -
Decreto-Lei
442-A/88 -
Ministério das Finanças
Aprova o Código do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS).
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2001-08-20 -
Lei
96/2001 -
Assembleia da República
Reforça os privilégios dos créditos laborais em processo de falência e alarga o período de cobertura do Fundo de Garantia Salarial.
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2002-10-16 -
Acórdão
362/2002 -
Tribunal Constitucional
Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração resultante do Decreto-Lei n.º 198/2001, de 2 de Julho, do seu artigo 111.º, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751.º do Código Civil.(Proc. nº 403 (...)
-
2002-10-16 -
Acórdão
363/2002 -
Tribunal Constitucional
Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 51.º do Código Civil.
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2003-03-08 -
Decreto-Lei
38/2003 -
Ministério da Justiça
Altera o Código de Processo Civil, o Código Civil, o Código do Registo Predial, o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), o Código de Processo do Trabalho, o Código dos Valores Mobiliários e legislação conexa, alterando o regime jurídico da acção executiva.
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2003-08-27 -
Lei
99/2003 -
Assembleia da República
Aprova o Código do Trabalho, publicado em anexo. Transpõe para a ordem jurídica interna o disposto nas seguintes directivas: Directiva nº 75/71/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 10 de Fevereiro; Directiva nº 76/207/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 9 de Fevereiro, alterada pela Directiva nº 2002/73/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Setembro; Directiva nº 91/533/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 14 de Outubro; Directiva nº 92/85/CEE (EUR-Lex), do Conselho, de 19 de Outubro; Directiva nº 93/1 (...)
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2004-07-29 -
Lei
35/2004 -
Assembleia da República
Regulamenta a Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho.
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2009-02-12 -
Lei
7/2009 -
Assembleia da República
Aprova a revisão do Código do Trabalho. Prevê um regime específico de caducidade de convenção colectiva da qual conste cláusula que faça depender a cessação da sua vigência de substituição por outro instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
-
2013-08-30 -
Lei
70/2013 -
Assembleia da República
Estabelece os regimes jurídicos do fundo de compensação do trabalho (FCT), do mecanismo equivalente e do fundo de garantia de compensação do trabalho (FGCT).
-
2015-04-21 -
Decreto-Lei
59/2015 -
Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social
Aprova o novo regime do Fundo de Garantia Salarial, previsto no artigo 336.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, transpondo a Diretiva n.º 2008/94/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2008, relativa à proteção dos trabalhadores assalariados em caso de insolvência do empregador
Aviso
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