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Acórdão 55/2016, de 14 de Março

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Sumário

Não julga inconstitucionais os artigos 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil, interpretados no sentido de abrangerem uma pretensão indemnizatória dos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, a serem ressarcidos pelo dano resultante da privação do conhecimento dessa circunstância, no quadro das respetivas opções reprodutivas, quando esse conhecimento ainda apresentava potencialidade para determinar ou modelar essas opções

Texto do documento

Acórdão 55/2016

Processo 662 15

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - A Causa

1 - Vítor Manuel Fernandes de Araújo e mulher, Marta Raquel Sousa Almeida, agindo por si e em representação do seu filho menor, Ruben Ângelo Almeida Araújo (são estes os autores na ação, sendo aqui Recorridos os dois primeiros), interpuseram no (hoje extinto) Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos (processo 1212/08.4TBBCL do 4.º juízo cível) ação declarativa de condenação, sob a forma ordinária, demandando Maria Paulo Maia Silva Costa da Rocha Pereira, Fernando Chaves da Rocha Pereira, Rita Maria Costa da Rocha Pereira, José Pedro Costa da Rocha Pereira, todos por si e na qualidade de legais representantes da sociedade Centro de Imagem Médica de Barcelos, Lda. e, ainda, Fernando Coelho (todos réus na ação, sendo a ré Maria Paulo e o réu Centro de Imagem Médica de Barcelos os ora Recorrentes). Através desta ação pediram os autores a condenação solidária dos réus no pagamento de uma indemnização de (euro)380.000,00.

Suportando tal pretensão, alegaram os autores - e estamos a resumir a factualidade que indicaram no articulado inicial - serem pais do menor Ruben Ângelo Almeida Araújo, nascido em 07/04/2005 (tinha 3 anos de idade à data da propositura da ação). Os quatro primeiros réus são sócios e gerentes da quinta ré (do Centro de Imagem Médica de Barcelos, Lda.) e o sexto réu é médico radiologista que presta serviços àquela sociedade, sendo a ré Maria Paulo sócia gerente do Centro de Imagem de Barcelos e, igualmente, médica radiologista. A sociedade ré prestou serviços consistentes na realização de ecografias obstétricas durante a gravidez da autora, respetivamente, às 8 semanas e 5 dias, às 21 semanas e 1 dia e às 30 semanas e 4 dias de gestação. Os relatórios respetivos não apontaram quaisquer anomalias do feto. Sucede, porém, que o Ruben nasceu com graves malformações dos membros superiores e inferiores - "[d]eficiência transversa do punho, mão e pé esquerdo [,] [d]eficiência longitudinal do pé direito [,] [s]indactilia da mão direita" -, malformações estas cuja não deteção se ficou a dever a negligência dos réus, ao não respeitarem as leges artis da sua atividade, não indicando malformações fetais necessariamente visíveis nos exames ecográficos, concretamente no segundo. Com efeito, relativamente a este exame, uma "ecotomografia fetal morfológica" realizada às 21 semanas e 1 dia, consta do respetivo relatório, assinado pela médica 2.ª ré (Maria Paulo Rocha Pereira), o seguinte:

"[...]

Observamos um feto vivo, do sexo masculino, com boa vitalidade e movimentos ativos e seletivos dos membros.

Cordão umbilical normal.

Coluna vertebral normal.

Não foi possível pesquisar lábio leporino dada a posição posterior da face.

Visualizamos: bexiga, rins e estômago.

Não foram observadas malformações fetais com tradução morfológica.

Estimativa atual de peso: 400 gr.

DPP - 07/04/05.

[...]".

Em virtude da falta de deteção e de informação aos autores (pai e mãe) sobre as malformações apresentadas pelo feto, contemporaneamente ao exame, não puderam os autores recorrer à interrupção voluntária da gravidez, legalmente prevista para tais hipóteses, ou sujeitar o feto a algum tipo de tratamento, o que - foi o que afirmaram no articulado inicial - poderia reduzir as malformações. Dessas deficiências resultou para o Ruben uma incapacidade de 93 %.

Os autores sofreram grande choque e continuarão a sofrer até ao fim das suas vidas. Também o Ruben sofre com a sua situação. Além do mais, carece de substituir as próteses que lhe foram aplicadas pelo menos anualmente, ficará para sempre dependente de terceiros e padecerá, no futuro, de uma IPP de 40 %.

1.1 - Contestaram os réus, alegando, em suma, que a realização das ecografias não constituiu causa das malformações, que não se justificava a interrupção da gravidez e, ainda, que a situação não era passível de tratamento algum durante o período de gestação. Impugnaram a matéria alegada na petição inicial, designadamente quanto à visibilidade das malformações nas ecografias realizadas, concluindo pela observância das leges artis e pela causação das malformações em virtude de uma patologia que designaram como "síndrome das bandas amnióticas".

1.1.1 - Entretanto, foi proferido despacho saneador (fls. 123/125). Neste os réus Fernando Chaves da Rocha Pereira, Rita Maria Costa da Rocha Pereira e José Pedro Costa da Rocha Pereira foram logo julgados partes ilegítimas e absolvidos da instância.

1.2 - Assim saneado, prosseguiu o processo os seus termos, sendo decidido em primeira instância (referimo-nos a um primeiro julgamento realizado no Tribunal de Comarca) pela sentença de fls. 250/273. Esta decisão, julgando a ação parcialmente procedente, condenou as rés Centro de Imagem Médica de Barcelos, Lda. e Maria Paulo Maia Silva Costa da Rocha Pereira a pagarem a cada um dos autores, solidariamente, a quantia de (euro)35.000,00 e, ainda, uma quantia a liquidar posteriormente respeitante às despesas de substituição das próteses do Ruben até atingir 18 anos, absolvendo do pedido o Réu Fernando Coelho (este realizou, tão-somente, a última das ecografias).

Nesta sentença, considerou-se que as rés condenadas incorreram em responsabilidade contratual perante os autores, qualificando-se a obrigação atinente aos exames ecográficos como obrigação de resultado, incumprida por negligência. Entendeu-se, ainda, que o nexo de causalidade se estabeleceu entre a atuação das rés - realização de um diagnóstico errado na segunda ecografia (morfológica) - e a faculdade de optarem pela interrupção da gravidez, de que os autores se viram, então (às 21 semanas), privados por falta de informação.

Da decisão consta, designadamente, o seguinte:

"[...]

[R]esulta dos factos provados o seguinte quadro: no ano de 2004, a autora Marta contratou com a 5.ª ré [Centro de Imagem Médica de Barcelos] a prestação de serviços consistentes em três ecografias obstétricas, a 1.ª em 06/09/2004, a 2.ª em 26/11/2004 e a 3.ª em 31/01/2005, respetivamente às oito semanas e cinco dias de gestação, às vinte e uma semanas e um dia de gestação e às trinta semanas e quatro dias de gestação; dos referidos exames resultaram os relatórios juntos aos autos a fls. 24 a 26; o filho dos autores, Ruben Alexandre, nasceu em 7/4/2005, com deficiência transversa do punho, mão e pé esquerdo, deficiência longitudinal do pé direito e sindactilia da mão direita; as deformidades descritas no ponto 4 eram detetáveis numa ecografia realizada às 12 semanas de gestação; no entanto, em nenhum dos relatórios das ecografias realizadas pela autora vem referido que foram visualizados os dedos de qualquer dos quatro membros (pontos 2 a 7 dos factos provados). As malformações em causa foram provocadas pela síndroma de bandas amnióticas; as bandas amnióticas são de génese precoce e os seus efeitos, como os referidos no ponto 34, é que podem ser detetáveis em qualquer altura da gravidez; as referidas bandas amnióticas podem provocar garrotagens e originar a amputação de membros ou o desenvolvimento anormal destes por falta de vascularização; tais bandas amnióticas podem ou não ser detetáveis nas ecografias, não o sendo designadamente nas situações em que as mesmas se encontram encostadas ao feto ou à parede do útero; nas ecografias em causa nem as bandas amnióticas foram detetadas, nem foram detetadas as deformidades que provocaram (pontos 32 a 36 dos factos provados).

Perante as considerações expendidas supra, temos de concluir que a realização das ecografias solicitadas pelos autores à 5.ª ré envolvem um risco muito circunscrito e balizado, em que o elevado grau de especialização técnica permite exigir do médico que as executou o resultado contratado (a correta avaliação do desenvolvimento do feto e deteção de deformações morfológicas durante a gravidez), pelo que a obrigação assumida é uma obrigação de resultado.

Ora, se a 5.ª ré se obrigou a um resultado e não o alcançou (pois os relatórios das ecografias realizadas - pelo menos o da ecografia realizada às 21 semanas - não revelaram as malformações que o feto sofria, sendo certo que tais malformações eram detetáveis), temos de concluir pelo incumprimento contratual, ou pela ilicitude da conduta.

Por outro lado, perante os factos provados, temos de concluir que, pelo menos na [...] ecografia realizada às 21 semanas, a médica que a realizou não atuou segundo as regras da boa prática profissional, pois as deformações do feto já eram detetáveis e não o foram; de qualquer forma, não ficou demonstrado que foram tomadas todas as medidas exigíveis ao caso, conformes às leges artis, de modo a evitar o resultado danoso, nem tão pouco, no que respeita ao nexo de causalidade, que houve uma situação de caso fortuito, excludente da relação de causalidade entre a conduta censurável e o dano.

[...]

Assim, [...] quanto à [...] ecografia realizada às 21 semanas, temos de concluir que existiu culpa por parte da médica que a realizou (a ré Maria Paulo Rocha Pereira) [...].

Importa salientar que os autores não lograram demonstrar, nem alegaram, que foi a conduta dos réus que determinou as malformações com que o autor Ruben Ângelo nasceu.

[...]

O que está em causa nestes autos é precisamente [o] errado resultado do exame ecográfico realizado às 21 semanas de gravidez da autora e a não informação aos autores das malformações que já então eram detetáveis. O nexo de causalidade estabelece-se, assim, entre o comportamento da ré Maria Paulo Rocha Pereira e a faculdade que os autores pais teriam de interromper a gravidez e entre aquele comportamento e o forte abalo sentido pelos autores a quem, durante a gravidez, sempre foi dito que o feto era perfeito e que o bebé estava com excelente saúde (ponto 17 dos factos provados).

[...]

Entramos no âmbito das denominadas 'wrongful (life/birth) actions', amplamente debatidas pela doutrina e jurisprudência estrangeiras e doutrina portuguesa, mesmo antes do conhecido Acórdão do STJ de 19/6/2001, que decidiu um caso muito semelhante ao que agora nos ocupa.

[...]

Como se advinha, as questões que levantam este tipo de ações são de grande dificuldade e melindre e ultrapassam as fronteiras do direito, pois estão em causa conceções morais, filosóficas e religiosas.

Conforme se pode ler na Anotação feita por António Pinto Monteiro ao [...] Ac. do STJ (in RLJ, Ano 134.º, p.378) 'convém à partida distinguir as situações em que são os pais a pedir uma indemnização por danos próprios, daquelas situações em que os pais intervêm como representantes do filho menor pedindo uma indemnização por danos deste, por danos sofridos pelo filho. Numa terminologia já muito difundida, as primeiras são situações de wrongful life e as segundas de wrongful birth [...]'.

Nas situações de wrongful life 'o que se pretende indemnizar é precisamente o dano sofrido pela própria criança, por ter nascido com graves deficiências físicas e/ou mentais, deficiências essas que os médicos não detetaram ou sobre as quais não informaram convenientemente os pais, sendo certo que estes, se tivessem sido bem esclarecidos teriam optado por abortar. As wrongful life actions, baseiam-se assim na omissão, pelos médicos, do dever de informação, ou no negligente cumprimento de tal dever, de que vem a resultar o nascimento de uma criança com graves malformações, pelo que é ela própria que pretende ser indemnizada. Porque dano? Pelo dano de ter nascido!' (ibidem).

Na maior parte dos casos, a jurisprudência estrangeira tem negado à criança deficiente a indemnização pretendida nas wrongful life claims (embora se encontrem também decisões que conferiram aos pais uma indemnização contra o médico pelo prejuízo dos encargos económicos que a vida deficiente do próprio filho lhes trouxe).

Também este foi o entendimento sufragado pelo STJ no referido Ac. de 19/6/2001.

[...]

Concluímos assim [...] que a pretensão do autor Ruben Ângelo não pode ser procedente.

As coisas mudam de figura se, em vez de nos debruçarmos no hipotético (mas, como vimos, inexistente) dano ('da vida') causado à criança, pensarmos no mal causado aos pais (ou, pelo menos, assim alegado pelos pais) com o nascimento do seu filho portador de deficiência (wrongful birth).

Neste caso, estão em causa danos sofridos pelos próprios pais, sejam eles patrimoniais (despesas com a vida da criança deficiente), sejam eles morais, resultantes da supressão da faculdade que seria concedida à mãe, ou aos pais, de, informados sobre as malformações do feto, optarem ou não pelo aborto - direito ou interesse que vai sendo objeto de progressiva aceitação na nossa sociedade.

[...]

[H]á que reconhecer que nestas ações de wrongful birth, o pressuposto da indemnização que é, quanto a nós, devida aos pais, assenta na violação do contrato médico e do dever de informar que, como se referiu supra, os privou da faculdade que lhes seria concedida de optar, ou não, pelo aborto.

[...]

No caso dos autos, merecem ser valorados como danos não patrimoniais sofridos pelos autores pais, o abalo sentido no momento do nascimento, o sofrimento por eles ainda vivido: 'no momento do nascimento os autores pais foram confrontados com as malformações no menor e ficaram chocados, estado de choque que ainda hoje se mantém, sendo certo que sempre lhes foi dito pelos réus que realizaram as ecografias que o feto era perfeito e que o bebé estava com excelente saúde; os autores sofrem muito com esta situação, que lhes tem causado muitas angústias e incómodos e que aumenta quando olham para o menor, constatando que este será totalmente dependente de uma terceira pessoa para o resto da vida; agravando o sofrimento de seus pais quando verificam esta situação e ainda por verificarem que o seu filho chora por não conseguir brincar como as outras crianças' (pontos 15 a 21 e 25 dos factos provados).

Será ainda valorada a própria privação da faculdade que era conferida aos autores de poderem optar licitamente pela interrupção da gravidez.

[...]" (sublinhados acrescentados).

1.2.1 - Em desacordo com esta decisão, as duas rés condenadas - as ora Recorrentes - apelaram ao Tribunal da Relação de Guimarães, impugnando a fixação dos factos provados e a subsunção jurídica destes. Consideraram, designadamente, que o dano não decorreu da sua atuação, mas antes das malformações em si mesmas, pelo que não se verificaria, em caso algum, nexo de causalidade entre tal atuação e os danos sofridos. Alegaram, ainda, que não resultou provado que os autores considerassem a hipótese de interrupção da gravidez, além de que as deformidades não eram - e efetivamente não foram - incompatíveis com a vida do Ruben.

1.2.2 - Apreciando este recurso, o Tribunal da Relação de Guimarães, através do Acórdão de fls. 366/380, decidiu alterar a resposta dada ao ponto 35.º da base instrutória e, consequentemente, a redação do item 33 dos factos considerados provados, que tinha a seguinte redação:

"[...]

As bandas amnióticas são de génese precoce e os seus efeitos, como os referidos no ponto 34 é que podem ser detetáveis em qualquer altura da gravidez.

[...]".

E passou a ter a seguinte redação:

"[...]

As bandas amnióticas formam-se no decurso da gestação.

[...]".

Decidiu também o Tribunal da Relação anular parcialmente o julgamento e, consequentemente, a sentença recorrida nesse trecho processual, tendo em vista a ampliação da matéria de facto (nos termos do artigo 712.º, n.º 4 do CPC anterior), por via de novo julgamento na primeira instância, formulando um novo "quesito" reportado ao artigo 30.º da petição inicial: "[a] não deteção, atempada, das deformidades descritas em D) impediu que os autores pudessem efetuar uma interrupção médica da gravidez?".

1.2.2.1 - Regressado o processo à primeira instância, foi este quesito julgado provado, tendo os réus aí apresentado alegações de direito escritas (as de fls. 443vº/448vº). Nestas sustentaram - e sublinhamos terem introduzido neste trecho processual, pela primeira vez, a base argumentativa que veio a estar no cerne da questão de constitucionalidade colocada no presente recurso: a concessão de uma indemnização por wrongful birth -, sustentaram os réus aí, dizíamos, que uma eventual decisão condenatória teria necessariamente que encarar a vida como um dano. Consideraram, por outro lado, que não poderia relevar juridicamente a vontade hipotética de interromper a gravidez, nem o interesse em nascer ou não nascer da própria criança. A deficiência resultou de facto natural e não da atividade médica.

1.2.3 - Foi proferida sentença pelo Tribunal Judicial de Barcelos, condenando e absolvendo nos mesmos termos da anterior decisão anulada (a referida no item 1.2. supra), com fundamentos essencialmente idênticos, aditando-se, todavia, as seguintes considerações à fundamentação:

"[...]

[E]stá em causa a existência de um contrato médico, pelo que estamos perante um caso de responsabilidade contratual do próprio estabelecimento privado de saúde, com quem os autores estabeleceram uma relação jurídica.

No plano contratual, as clínicas privadas respondem pelos atos de todo o pessoal que utilizam no cumprimento das suas obrigações - assim, tendo ao seu serviço médicos, respondem contratualmente pelos atos destes. [...]

Na situação concreta, estamos na presença de um 'contrato entre a clínica e o paciente' pelo que, chegados à conclusão que a 1.ª ré Maria Paulo Rocha Pereira agiu com culpa (além de presumida, também provada), e verificando-se relativamente a ela [...] todos os restantes pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a obrigação de indemnizar os autores cabe não só à ré Centro de Imagem Médica de Barcelos, Lda. como também, de forma solidária, à ré Maria Paulo Maia Silva Costa da Rocha Pereira.

[...]" (sublinhados acrescentados).

Determinaram estas considerações o seguinte pronunciamento decisório (expresso a fls. 461):

"[...]

[J]ulgo a ação parcialmente procedente e, em consequência:

a) condeno as rés Centro de Imagem Médica de Barcelos, Lda. e Maria Paulo Maia Silva Costa da Rocha Pereira a pagarem, solidariamente, a quantia de (euro)35.000,00 a cada um dos autores (Vítor Manuel Fernandes Araújo e Marta Raquel Sousa Almeida) e a quantia que se vier a liquidar no competente incidente de liquidação quanto às despesas que os autores Vítor Manuel Fernandes Araújo e Marta Raquel Sousa Almeida vão ter de suportar com a substituição das próteses do filho até este atingir os 18 anos de idade.

[...]".

1.3 - De novo inconformadas, interpuseram estas rés apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães. Alegaram que o dano não ocorreu em função da sua atuação, mas antes das malformações em si mesmas, pelo que não se verificaria um nexo de causalidade entre aquela atua-ção e os danos sofridos. Sustentaram, ainda -, concretizando agora a dimensão constitucional do argumento que caracterizámos no item 1.2.2.1. supra - que não poderia estabelecer-se uma indemnização por supressão da opção de interromper a gravidez, por tal ser incompatível com a proteção da vida estabelecida no artigo 24.º da CRP. Conceder indemnização aos pais, nestas circunstâncias, violaria - afirmaram as rés - aquela norma constitucional e constituiria interpretação errada do disposto no artigo 67.º, n.º 2, alínea d) da CRP, norma que historicamente se destinou a favorecer medidas de planeamento familiar que evitassem práticas abortivas. Consideraram, em suma, que a vida não pode ser encarada como dano.

1.3.1 - Das alegações produzidas pelas Recorrentes no contexto desta segunda apelação consta, designadamente, o seguinte:

"[...]

[M]esmo que os pais tivessem a intenção de abortar, nunca poderia ser estabelecida um indemnização, por ter sido negada a estes essa 'opção'.

Conforme o consagrado no artigo 24.º da C.R.P., a Constituição Portuguesa não se limita, ao contrário de outros textos fundamentais e da própria DUDH, a dizer que 'todos os homens têm direito à vida', afirmando antes, numa fórmula normativa muito mais forte e expressiva, que 'a vida humana é inviolável' [...] sem fazer menção ao estádio de desenvolvimento em que essa mesma vida se encontra e, naturalmente, sem exigir a personalidade jurídica dos respetivos sujeitos ativos.

Logo, apesar de a jurisprudência constitucional admitir um sistema gradualista de proteção da vida humana, atendendo às suas diferentes fases de desenvolvimento importa perceber que, uma tal ponderação gradualista não significa, no entanto, como melhor se perceberá de seguida, que se possa admitir a constitucionalidade de uma legislação permissiva, utilitarista e instrumentalizadora da vida humana embrionária ou intrauterina.

Até porque, se soluções legais conducentes à 'coisificação' do embrião muito dificilmente podem ter-se por aceitáveis, e apesar de o legislador não ter alterado o artigo 66.º do C.C. no sentido de fazer coincidir o início da personalidade com o momento da conceção, há que reconhecer, sob pena de se incorrer num conceptualismo desajustado, que a personificação do embrião tem natureza instrumental e não a ideia mais vasta de proteção do embrião.

[...]

Portanto, apesar de alguns entenderem que os pais devem ter o direito de determinarem 'livre e conscientemente a dimensão da sua família e o escalonamento dos nascimentos', conceder aos pais o direito a uma indemnização por violação do seu direito à autodeterminação, concretamente no que toca ao familiar é resultado de uma má interpretação constitucional.

Na medida em que, o texto constitucional não autoriza em 'uma interpretação do artigo 67.º, n.º 2, al. d), no sentido de que a interrupção da gravidez constitui um instrumento de planeamento familiar ou uma solução imposta pela necessidade de garantir o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes. Pelo contrário, não só tal leitura ignora o sentido do direito à vida consagrado no artigo 24.º n.º 1, como o propósito disposto no artigo 67.º, n.º 2, al. d), surgiu, historicamente, como uma solução que pretendia favorecer a adoção de meios e métodos que evitassem práticas abortivas' [Parecer do Conselho Consultivo da PGR, n.º 31/82].

[...]

Ora, na presente demanda foi estabelecida uma indemnização com base num facto totalmente indeterminável e casuístico, ou seja, se teria abortado caso soubesse das malformações congénitas.

Por este prisma a vida é encarada, desde logo, como um dano [...].

Portanto, a conduta do médico, apenas seria suficiente para fundar uma pretensão indemnizatória nalguma medida em que a sua conduta implicasse causalmente na produção de um dano, por outras palavras, quando a sua conduta merecesse a desaprovação do Direito.

[...]

Além do mais, não deverá ser aceite a pretensão indemnizatória dos pais tendo por base o dano do nascimento do filho, pois, os encargos económicos alegados têm por base o próprio nascimento. Assim sendo, há uma nítida contradição, pois, a deficiência originária é a própria vida que é tida como um dano, logo, os autores não podem encarar a vida como um prejuízo que possam liquidar a terceiro.

Nos termos do preceituado no artigo 562.º do C.C., quando alguém alega um dano com fim de obter indemnização, faz-se sempre valer da situação que existiria se não tivesse ocorrido o facto causador do dano, ou seja, senão fosse necessária a reparação.

Desta sorte, seria o aborto e, consequentemente, a morte.

Logo, verifica-se uma contraditio absoluta entre o fundamento da pretensão dos autores e o próprio sentido da pretensão a uma indemnização.

[...]" (sublinhado acrescentado).

1.4 - Pelo Tribunal da Relação de Guimarães foi proferida decisão conhecendo do objeto do recurso (Acórdão de 03/07/2014 constante de fls. 569/587). Ali se decidiu, quanto à matéria de facto, alterar a resposta de "provado" para "não provado" ao quesito aditado pelo anterior acórdão dessa mesma Relação (perguntava este: "[a] não deteção atempada das deformidades descritas em "D)" impediu que os Autores pudessem efetuar uma interrupção médica da gravidez?").

No mais, o Tribunal da Relação considerou que o dano decorrente do desconhecimento atempado das deformidades do filho não foi causado pela falta de informação precoce sobre a existência destas, mas pela existência, em si mesmas, das deformidades (cf. parágrafo final de fls. 584). Assim, concluiu a Relação de Guimarães inexistir nexo de causalidade entre o sofrimento dos pais e a atuação das recorrentes. Negou, pois, a indemnização dos danos patrimoniais, já que a deformidade não resultou de nenhum ato médico. Por outro lado, afirmou-se neste Acórdão que o dano moral dos pais não seria maior ou menor em função do conhecimento, mais cedo, das deformidades do filho.

Entendeu-se, ainda, não existir direito à indemnização por supressão da escolha de interromper a gravidez. No essencial, remeteu-se para o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 31/82, com o seguinte teor (parcial):

"[...]

[O] texto constitucional [artigo 67.º/2/d) da CRP] não autoriza uma interpretação no sentido de que a interrupção da gravidez constitui um instrumento de planeamento familiar ou uma solução imposta pela necessidade de garantir o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes. Pelo contrário, não só tal leitura ignora o sentido do direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1, como o propósito disposto no artigo 67.º, n.º 2, alínea d) surgiu, historicamente, como uma solução que pretendia favorecer a adoção de meios e métodos que evitassem práticas abortivas.

[...]".

E acrescentou o Tribunal da Relação o seguinte:

"[...]

[E]xiste uma contradição entre o fundamento da pretensão dos Autores e o próprio pedido de indemnização, na medida em que sendo a própria vida encarada desde logo como um dano, não podem os autores encarar a vida como um prejuízo que possam liquidar a terceiro.

[...]".

E, ainda, citando desta feita Manuel Carneiro da Frada ("A própria vida como um dano? Dimensões civis e constitucionais de uma questão-limite", in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 68.º, n.º 1 - janeiro de 2008, pp. 215 e ss.):

"[...]

Nenhum médico pode ser responsabilizado por uma deficiência se a conduta que a teria permitido poupar fosse a causação da morte do deficiente.

[...]".

Em função destes argumentos, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães absolver as duas rés do pedido.

1.5 - Desta decisão de segunda instância interpuseram os autores aqui Recorridos recurso ordinário de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, rematando a motivação com as seguintes conclusões (aqui transcritas na parte que interessa ao presente recurso):

"[...]

1.ª - Está provado e assente nas duas decisões da primeira instância e nos Acórdãos desta Relação, incluindo aquele de e que ora se recorre, que os réus cumpriram de forma defeituosa a sua prestação contratual para com os recorrentes.

2.ª - As decisões da primeira instância deram como assente que os recorrentes sofreram danos morais em virtude desse cumprimento defeituoso.

[...]

6.ª - A sentença da primeira instância deu como provado, e o Acórdão recorrido confirma, o seguinte: '6. As deformidades descritas no ponto 4 eram detetáveis numa ecografia realizada às 12 semanas de gestação - resposta ao quesito 1.º 7. Em nenhum dos relatórios das ecografias realizadas pela Autora vem referido que foram visualizados os dedos de qualquer dos quatro membros - resposta ao quesito 2.º 15. Confrontados no momento do nascimento com as malformações no menor, os autores ficaram chocados - resposta ao quesito 12.º 16. Estado de choque que ainda hoje se mantém - resposta ao quesito 13.º 17. Sempre lhes foi dito pelos réus que realizaram as ecografias que o feto era perfeito e que o bebé estava com excelente saúde - resposta ao quesito 14.º 18. Os AA sofrem muito com esta situação - resposta ao quesito 15.º 19. Que lhes tem causado muitas angústias e incómodos - resposta ao quesito 16.º'

7.ª - A conjugação sequencial da matéria dada por assente e citada na conclusão anterior permite concluir [...] que os recorrentes sofreram danos morais indemnizáveis em consequência de não terem sido atempadamente avisados pelos réus das malformações de que o seu filho já era portador durante a gravidez.

[...]

18.ª - Na apreciação, interpretação e aplicação das normas legais referentes à responsabilidade civil, dever de indemnizar (artigo 799.º do CC), e nexo de causalidade (artigos. 563.º e seguintes do CC), a decisão recorrida cometeu mais um e não menos grave erro.

[...]

21.ª - As decisões da primeira instância apontaram ainda e fixaram duas vertentes desses danos morais: primeiro, uma maior intensidade do sofrimento dos autores por estarem convencidos pelos réus que o seu filho era saudável e só terem sabido das malformações no momento do nascimento. Os autos não têm indícios, factos ou documentos, que permitam à decisão recorrida afirmar que o sofrimento era o mesmo fosse qual fosse a altura em que os recorrentes soubessem das malformações. Além disso, essa conclusão da decisão recorrida é totalmente desconcertante porque deslocada em absoluto da realidade e da normalidade das coisas. Bem andou a primeira instância que se aproximou com sabedoria dessa realidade e normalidade. É um facto notório que as coisas são mesmo assim, porque bastará atentar que os recorrentes viveram nove meses enchendo um balão de expectativas com a ajuda dos réus que lhes garantiram que tudo estava bem com o feto, para que tudo rebentasse com enorme estrondo e dor no dia do nascimento. Não se pode aceitar que a decisão recorrida não tenha a sensibilidade para distinguir uma maior intensidade na dor e sofrimento dos recorrentes por tudo se ter passado como passou; em segundo lugar, um dano moral resultante do facto de a conduta dos réus ter privado os recorrentes da possibilidade de optarem pelo recurso à interrupção voluntária da gravidez, direito esse que a lei lhes conferia.

[...]

25.ª - Contrariamente ao que se conclui na decisão ora recorrida, o dano detetado e fixado nos autos é aquele que os pais sofreram pela falta de informação que lhes era contratualmente devida pelos réus. É desse dano que tratam os autos, e este ocorreu por duas formas e em momentos diferentes. A sentença da primeira instância condenou os réus pelos danos causados aos recorrentes e não à criança. Por isso [...] a decisão recorrida confunde os danos daqueles e os da criança, e os primeiros existem, foram apurados e fixados na primeira instância e os réus devem ser condenados a indemnizá-los, porque os provocaram pelo cumprimento defeituoso da sua prestação contratual.

[...]

27.ª - A decisão recorrida errou [...] ao consagrar um entendimento que defende a igualdade de intensidade do dano em causa independentemente do momento em que os factos são conhecidos pelos lesados. Se é verdade que os recorrentes teriam sofrido um desgosto enorme se os réus tivessem cumprido sem defeitos a sua prestação contratual, ou seja, se os tivessem avisado atempadamente, como era seu dever, que a criança nasceria com malformações, também não é menos verdade que, uma informação prestada no tempo que era devido, ou seja, aquando da realização das ecografias, pelo menos às 21 semanas, teria permitido aos recorrentes ter feito tudo o que lhes fosse possível para tentarem inverter a situação, ainda que o mal se revelasse irremediável. Se isso tivesse ocorrido, e essa tivesse sido a vontade dos recorrentes, então estes hoje poderiam ter a sua consciên-cia tranquila porque tinham feito tudo o que humanamente lhes era possível para eliminarem as terríveis malformações do seu filho.

28.ª - O Acórdão recorrido está ferido de inconstitucionalidade, uma vez que a conclusão a que chegou envolve uma violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP. Tal decorre do facto de o Acórdão consagrar e validar uma interpretação das normas legais, quer da CRP quer do CP, que privou os recorrentes de desfrutarem de um direito que a lei lhes consagra, ou seja, o direito de optarem pela interrupção voluntária da gravidez.

29.ª - Não se entende, por manifestamente incompreensível, qual o sentido da ligação que o Acórdão pretende estabelecer entre os artigos 24.º e 67.º da CRP, quando na pág. 18 parece que se quer salientar uma inviolabilidade do direito à vida que impediria qualquer hipótese dos pais, in casu os ora recorrentes, pensarem sequer em recorrer à interrupção da gravidez, quando o ordenamento jurídico português consagra a permissão da prática de interrupção da gravidez em certas e contadas situações. É o que, nomeadamente, resulta da redação dada pela Lei 16/2007 de 17/4 ao artigo 142.º n.º l alínea c) do CP, despenalizando a interrupção voluntária da gravidez quando há seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excecionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo.

30.ª - Depois, a decisão recorrida, ao aludir ao artigo 67.º da CRP, faz uma inapropriada incursão em política de planeamento familiar, pois é desta matéria que trata a alínea c) do n.º 2 desse preceito. O Acórdão concluiu que se faria uma errada interpretação deste artigo 67.º da CRP caso se atribuísse aos recorrentes o direito a uma indemnização pela violação do seu direito de autodeterminação, concretamente no que toca ao planeamento familiar. Esta conclusão envolve uma enorme confusão a propósito espírito normativo do artigo 142.º do CP, pois não estamos a falar de um caso de estrito planeamento familiar, mas sim de um daqueles casos específicos que a Lei quis deliberadamente enquadrar como de decisão esclarecida dos pais em recorrer à interrupção da gravidez, ou seja, a situação de malformação do feto.

[...]

32.ª - A decisão recorrida interpretou e aplicou de forma incorreta o disposto nos arts. 24.º e 67.º da CRP, e no artigo 142.º do CP.

[...]".

1.5.1 - As rés - que foram as Recorridas nesse recurso, sendo as Recorrentes no presente recurso de constitucionalidade - responderam à motivação dos autores, renovando os argumentos de inconstitucionalidade anteriormente invocados, formulando as seguintes conclusões (aqui em transcrição parcial):

"[...]

8.º - Alegam os recorrentes que o Douto Acórdão recorrido é inconstitucional, porque alegadamente viola o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da CRP, por não entenderem a ligação que o acórdão pretende estabelecer entre os artigos 24.º e 67.º da CRP.

9.º - Ora, os recorrentes não conseguem, ou melhor, não quiseram entender o que o douto acórdão recorrido mencionou, isto é, que é errado interpretar o estatuído no artigo 67.º, n.º 2, alínea d) da CRP de forma a sustentar aos pais o direito a uma indemnização por violação do seu direito à autodeterminação.

10.º - Que é exatamente o que os aqui recorrentes pretendem!

11.º - Conforme o que já alegaram os aqui recorridos, o artigo 24.º da CRP não se limita, ao contrário de outros textos fundamentais e da própria DUDH, a dizer que 'todos os homens têm direito à vida', afirmando antes, numa fórmula normativa muito mais forte e expressiva, que 'a vida humana é inviolável'.

12.º - Apesar de serem evidentes as dificuldades colocadas pela posição original que o direito à vida ocupa entre os demais direitos, o facto de o direito à vida se apresentar em regras como um direito de tudo ou nada - no sentido de que não são concebíveis ataques parcelares à vida sem perda dessa mesma vida - e o facto de o nosso Código Penal abrir a sua parte especial com os crimes contra a vida é revelador, de maneira clara e inequívoca, de que o bem ou valor jurídico-penal mais fortemente protegido é o da vida humana.

[...]

14.º - Por conseguinte, só a cedência a um formalismo construtivo, cego perante a necessidade de tutela concreta dos bens jurídicos singulares pode justificar que instituir a possibilidade de aborto sem necessidade da menor justificação constitui ainda uma forma de concordância prática entre a vida intrauterina e os projetos de vida autonomamente definidos peja mãe. Decerto ninguém negará que a proteção da vida intrauterina, com rejeição do aborto a pedido, pode implicar o nascimento de crianças não desejadas, nalguns casos perturbadores dos planos de futuro consistentemente delineados, mas que significado pode isso ter perante a convicção de que "qualquer ser humano é sempre um fim em si mesmo, e não um instrumento para satisfação dos desejos dos seus progenitores".

15.º - Desta forma, apesar da despenalização da interrupção voluntária da gravidez nos casos e dentro dos prazos expressamente previstos, não deve ser descuidada a intenção do legislador constitucional ao pretender garantir uma adequada proteção da vida.

16.º - Além do mais, a CRP afirma que 'a vida humana é inviolável', sem fazer menção ao estádio de desenvolvimento em que essa mesma vida se encontra e, naturalmente, sem exigir a personalidade jurídica dos respetivos sujeitos ativos.

17.º - Logo, apesar de a jurisprudência constitucional admitir um sistema gradualista de proteção da vida humana, atendendo às suas diferentes fases de desenvolvimento, importa perceber que uma tal ponderação gradualista não significa, no entanto, [...] que se possa admitir a constitucionalidade de uma legislação permissiva, utilitarista e instrumentalizadora da vida humana embrionária ou intrauterina.

[...]

21.º - Portanto, apesar de alguns entenderem que os pais devem ter o direito de determinarem 'livre e conscientemente a dimensão da sua família e o escalonamento dos nascimentos', conceder aos pais o direito a uma indemnização por violação do seu direito à autodeterminação, concretamente no que toca ao familiar é resultado de uma má interpretação constitucional.

22.º - Na medida em que, o texto constitucional não autoriza 'uma interpretação do artigo 67.º, n.º 2, al. d), no sentido de que a interrupção da gravidez constitui um instrumento de planeamento familiar ou uma solução imposta pela necessidade de garantir o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes. Pelo contrário, não só tal leitura ignora o sentido do direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1 como o propósito disposto no art, artigo 67.º, n.º 2, al. d), surgiu, historicamente, como uma solução que pretendia favorecer a adoção de meios e métodos que evitassem práticas abortivas'.

23.º - Por outro lado 'a responsabilidade civil é normalmente invocada como forma de proteção da vida e da sua qualidade contra lesões físicas'. Ora, na presente demanda foi estabelecida urna indemnização com base num facto totalmente indeterminável e casuístico, ou seja, se teria abortado caso soubesse das malformações congénitas.

24.º - Por este prisma, a vida é encarada, desde logo, como um dano, para além de que se verifica a ausência completa dos pressupostos da obrigação de indemnizar: dano (em sentido jurídico), de uma ilicitude, de culpa e de um nexo causal.

25.º - Portanto, a conduta do médico apenas seria suficiente para fundar uma pretensão indemnizatória nalguma medida em que a sua conduta implicasse casualmente na produção de um dano. Por outras palavras, quando a sua conduta merecesse a desaprovação do Direito.

26.º - Deste modo, não podemos confundir dano com necessidade, apesar da necessidade se dever à deficiência «A criança deficiente tem certamente necessidade de assistência, mas não experimentou propriamente um dano (em sentido jurídico-normativo). Por isso, deve ser ajudada, não através do direito da responsabilidade civil, mas através dos meios assistenciais, de caráter solidário-distributivo, da segurança social, da segurança social estatal. A sua proteção deve ser efetiva. Todavia, a função do direito da responsabilidade civil carece de ser bem destrinçada da segurança social» [Frada...cit.].

27.º - Além do mais, não deverá ser aceite a pretensão indemnizatória dos pais tendo por base o dano do nascimento do filho pois os encargos económicos alegados têm por base o próprio nascimento. Assim sendo, há uma nítida contradição, pois a deficiência originária é a própria vida que é tida como um dano, logo, os autores não podem encarar a vida como um prejuízo que possam liquidar a terceiro.

28.º - Nos termos do preceituado no artigo 562.º do CC, quando alguém alega um dano com fim de obter indemnização, faz-se sempre valer da situação que existiria se não tivesse ocorrido o facto causador do dano, ou seja, se não fosse necessária a reparação. Desta sorte, seria o aborto e, consequentemente, a morte.

[...]

30.º - Reitere-se que os pais devem ter direito a ajudas sociais do Estado, mas não podem imputar o dano aos Réus, pois o mesmo não resultou de qualquer comportamento culposo dos mesmos

31.º - Até porque 'os deveres de informação do médico não têm como finalidade possibilitar à mãe a prática de um aborto. Prosseguem outros objetivos, à cabeça dos quais a possibilidade de levar a cabo uma adequada terapia à criança. A diligência exigível do médico não pode portanto medir-se em função daquele outro escopo. Na nossa ordem jurídica, não existe qualquer «direito» ao aborto. Apenas ocorre que nalguns casos se encontra estabelecida a não punibilidade do aborto'.

31.º [numeração repetida por lapso no original] - Apesar de o aborto médico não ser punido, não há nenhuma norma que o prescreva. Isto é, há normas que eximem de sanção e normas impositivas. Nestes moldes, não há qualquer fundamento para estabelecer ilicitude da conduta do médico, nem pode ser considerada a vontade hipotética que os autores teriam na altura caso soubessem o desfecho, bem como não pode ser considerado o interesse em viver ou não nascer da própria criança.

[...]" (sublinhados acrescentados).

1.6 - Apreciando a revista interposta pelos autores, proferiu o Supremo Tribunal de Justiça o Acórdão de 12/03/2015 (fls. 759/807) - trata-se da decisão objeto do presente recurso -, concedendo a revista, revogando, pois, o Acórdão da Relação de Guimarães e repristinando a Sentença de primeira instância. Aqui transcrevemos algumas passagens desse Acórdão do Supremo Tribunal:

"[...]

[O] aludido quesito novo, ou seja, '[a] não deteção atempada das deformidades descritas em D) impediu que os autores pudessem efetuar uma interrupção médica da gravidez?', tendo sido redigido, sob uma formulação negativa, isto é, 'a não deteção' e 'impediu' ou 'não permitiu', que conheceu a resposta de 'não provado', pela Relação, ao contrário do que acontecera em sede de 1.ª instância, que o considerou como 'provado', determina que essa factualidade se deva considerar como não alegada.

Deste modo, a falta de prova desse facto negativo significa, apenas, que ele pode ter tido lugar ou não, mas não constitui prova de que ele não teve lugar.

[...]

V. Do nexo de causalidade entre o dano e a falta atempada de informação

V. 1. [...]

A este propósito, o acórdão recorrido, afirmando 'demonstrada a execução defeituosa ou ilicitude da conduta e a culpa', entende que se não verifica 'o nexo de causalidade entre o sofrimento dos pais e a atuação dos recorrentes', porquanto 'o nexo de causalidade, no caso vertente, estabelecer-se-ia entre o comportamento da ré DD (não informação aos Autores das malformações do feto) e o forte abalo sentido pelos autores a quem, durante a gravidez, sempre foi dito que o feto era perfeito e que o bebé estava com excelente saúde e que vieram posteriormente a verificar, aquando do nascimento do filho que não era assim, acontece, porém, que o dano decorrente do desconhecimento atempado das ditas deformidades não foi causado pela falta de informação acerca da existência daquelas, mas pelo dano em si, ou seja, por terem um filho com malformações ou deformações'.

V. 2. As «wrongful birth actions» surgem quando uma criança nasce malformada e os pais, em seu próprio nome, pretendem reagir contra o médico e/ou as instituições hospitalares ou afins, pelo facto de os terem privado de um consentimento informado que, eventualmente, poderia ter levado à interrupção da gravidez.

Trata-se de um cenário que ocorre ou porque o médico não efetuou os exames pertinentes, ou porque os interpretou, erroneamente, ou porque não comunicou os resultados obtidos, não se mostrando, porém, responsável pela verificação da deficiência, propriamente dita, que surge, normalmente, desde o início da vida pré-natal.

Contudo, a omissão do esclarecimento sobre essa deficiência é considerada ilícita, enquanto que o comportamento alternativo lícito do médico teria evitado, na perspetiva dos autores, o nascimento e, deste modo, a vida, gravemente, deficiente, porquanto os mesmos alegam que se tivessem sido informados das malformações que o embrião/feto desenvolveu durante a gestação, teriam optado por interromper a gravidez, imputando, assim, aos réus um erro no diagnóstico pré-natal.

Com efeito, os chamados diagnósticos pré-natais são exames que se destinam a detetar anomalias fetais, durante a gestação, assumindo várias finalidades, nomeadamente, a de tranquilizar ou preparar os progenitores acerca da saúde do feto, permitir, quando possível, o tratamento do feto, indicar o modo mais adequado para a realização do parto, determinar o tratamento a ser dirigido ao recém-nascido e, nos países onde o aborto é permitido, o diagnóstico de uma deficiência fetal incurável possibilita ainda o exercício do direito à interrupção voluntária da gravidez.

Deste modo, o erro médico consistente na falta de deteção de uma anomalia embrionária ou fetal ou na ausência de informação acerca de tal quadro de deficiência, pode ocasionar a perda de chance de uma escolha reprodutiva, mais, especificamente, a realização ou não de um aborto, pelo que este específico direito à autodeterminação é o campo por excelência das ações de «wrongful birth» e de «wrongful live», cada vez mais comuns nos países onde a interrupção voluntária da gravidez é permitida.

V. 3. Invocando os autores o exercício de medicina privada, por parte das Rés Dr.ª Maria Paulo Maia Silva Costa da Rocha Pereira e Centro de Imagem Médica de Barcelos, Lda. [...] trata-se [...] de uma responsabilidade de natureza contratual, em que a obrigação de indemnizar tem por fonte a existência de um vínculo jurídico entre a vítima e o lesante decorrente da celebração de um contrato de prestação de serviços médicos, a que se reporta o artigo 1154.º, do Código Civil.

Estipula, por outro lado, o artigo 486.º, do CC, que 'as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o ato omitido'.

Por ato médico, entende-se a atividade executada por um profissional de saúde que consiste na avaliação diagnóstica, prognóstica ou de prescrição e execução de medidas terapêuticas adequadas, relativas à saúde das pessoas, grupos ou comunidades.

Aliás, facilmente, se intui que a presente «wrongful birth action» se submete ao regime jurídico da responsabilidade civil contratual, porquanto decorre de um contrato celebrado entre o médico e o paciente [...].

O ónus da prova da culpa depende do tipo de responsabilidade subjacente, isto é, da respetiva natureza contratual ou extracontratual.

Ora, na responsabilidade contratual, a culpa só se presume se a obrigação assumida for de resultado, bastando, então, a demonstração do inadimplemento da obrigação, ou seja, que o resultado, contratualmente, assumido não se verificou, pelo que, face à culpa, assim, presumida, cabe ao devedor provar a existência de fatores excludentes da responsabilidade.

Por seu turno, se a obrigação assumida consistir numa obrigação de meios, no âmbito da responsabilidade civil contratual por factos ilícitos, incumbe ao devedor fazer a prova que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, ilidindo a presunção de culpa que sobre si recai, nos termos do preceituado pelo artigo 799.º, n.º 1, do CC.

Assim sendo, enquanto na responsabilidade contratual pelo não cumprimento de obrigações de resultado, o artigo 799.º, do CC, combina-se com um critério de tipicidade/ilicitude, referido ao resultado, e, deste modo, exonera o credor do ónus de provar a omissão do cuidado, exterior ou interior, na responsabilidade contratual pelo não cumprimento de obrigações de meios, o aludido normativo legal já se combina com um critério de tipicidade/ilicitude, referido à conduta, razão pela qual não exonera o credor do ónus de demonstrar a omissão da mais elevada medida de cuidado exterior, sem embargo de a presunção de culpa do devedor, a que alude o n.º 1 do supracitado normativo legal, ser de aplicar à responsabilidade contratual pelo não cumprimento da obrigação de meios, quer à obrigação contratual do médico como obrigação de resultado.

[...]

V. 4. Os autores sustentam o pedido de indemnização pelos danos sofridos, em resultado do deficiente e erróneo cumprimento do dever de informação, [...] relativamente à gravidez da autora, que não fizeram reportar, nos relatórios dos exames de ecografia obstétrica, as gravíssimas malformações dos membros superiores e inferiores do feto, que viriam a determinar uma incapacidade permanente global de 95 % do menor, sendo certo que essas deformações eram detetáveis às 12 semanas, o que não aconteceu, por descuido e negligência grosseira, imputável às mesmas, e que impediu que os autores pudessem efetuar uma interrupção médica da gravidez.

[...]

A maioria dos contratos de prestação de serviços médicos veicula, assim, uma obrigação de meios, pois que o médico não promete a cura, mas sim o empenho, a técnica e o cuidado para atingir um determinado efeito, não implicando, portanto, a não consecução dessa finalidade a inadimplência contratual, e, por isso, quando esse objetivo não tenha sido atingido, cabe, então, ao doente provar que tal facto decorreu de um comportamento negligente do médico.

Ora, constituindo exceção, na área das Ciências Médicas, as obrigações de resultado, a não obtenção de um resultado específico determina, por si só, nessas situações, a presunção de um inadimplemento contratual culposo, por parte do devedor da prestação [médico], competindo, então, a este provar que a impossibilidade de cumprimento, isto é, de obtenção daquele resultado devido é imputável a caso fortuito ou de força maior.

Ora, a realização de exames laboratoriais, com o consequente diagnóstico, constitui uma obrigação de resultado, tratando-se mesmo de um exemplo clássico de uma típica obrigação médica de resultado, porquanto, atendendo ao elevado grau de especialização alcançado pelos exames laboratoriais, em que a margem de incerteza e aleatoriedade é muito reduzida, praticamente, nula, 'o âmbito concedido ao erro é limitado' e a verificação do resultado, altamente, provável, razão pela qual sobre aquele que analisa os resultados destes exames recai, também, uma obrigação de resultado, pelo que se o médico ecografista 'fornece ao cliente um resultado cientificamente errado, então, temos de concluir que atuou culposamente, porquanto o resultado transmitido apenas se deve a erros de análise', com ressalva, como é óbvio, da falibilidade do próprio exame, o que se não demonstrou, mas cuja percentagem de exatidão é de cerca de 90 a 95 %.

[...]

V. 6. Regressando ao caso em análise, impõe-se referir que a alegada falta médica residiu na omissão de todos os conhecimentos, diligências e cuidados para dar a conhecer aos autores a condição do filho, porque foram mal interpretados os exames e porque não foi comunicado aos pais o seu resultado, incumprindo os réus os deveres de informação, em desrespeito pelas «legis artis medicinae», acabando por causar um dano aos autores, uma vez que a sua adesão ao prosseguimento da gravidez não foi consequente a um consentimento esclarecido, dotado de todas as informações relevantes.

Esta conclusão não é sequer abalada pelo facto de a comunicação da informação omitida não conduzir à cura do nascituro, mas, apenas, à possibilidade do seu não nascimento, e isto porque, a partir do momento em que a lei consagra, dentro de certos condicionalismos, a interrupção voluntária da gravidez de um feto com anomalias graves, está a admitir que uma vida, nestas condições, pressupõe um dano, o qual não reside na vida em si, mas nas anomalias de que a mesma pode ser portadora.

[...]

Ficou provado, neste particular, que as deformidades descritas no ponto 4, ou seja, a deficiência transversa do punho, mão e pé esquerdo, a deficiência longitudinal do pé direito e a sindactilia da mão direita, eram detetáveis numa ecografia realizada às 12 semanas de gestação, sendo certo, não obstante, que, em nenhum dos relatórios das ecografias realizadas, designadamente, no relatório respeitante à ecografia efetuada às vinte e uma semanas e um dia de gestação, vem referido que foram visualizados os dedos de qualquer dos quatro membros, antes sempre tendo sido dito pelos réus que realizaram as ecografias que o feto era perfeito e que o bebé estava com excelente saúde.

Com efeito, a verificação da existência de malformações, ao nível das mãos e dos pés, é o verdadeiro objetivo da ecografia que se realiza às 20 semanas, sendo certo que as malformações em causa foram provocadas pelo síndroma de bandas amnióticas que se formam na gestação, as quais não foram detetadas nas ecografias, assim como as deformidades que provocaram.

Deste modo, pelo menos, na ecografia efetuada às vinte e uma semanas e um dia de gestação, eram detetáveis as malformações evidenciadas que o síndroma de bandas amnióticas que se formam na gestação e que as provocaram, por, também, não haverem sido visionadas, não obstaram à sua perceção.

Assim sendo, contrariamente ao que afirmam os réus, e com o muito devido respeito, não só as deformidades já existiam, à data da realização das ecografias feitas pela ré Dr.ª Maria Paulo Maia Silva Costa da Rocha Pereira, e eram visíveis ou percecionáveis por esta, como ainda poderiam e deveriam ter sido observadas pela mesma.

[...]

V. 7. Com efeito, a previsibilidade de um evento não se confunde com a aptidão causal ou idoneidade para a sua produção, que se trata de realidades distintas, relevando esta para efeito do nexo de causalidade, e a primeira para efeito de culpa, porquanto se o médico que atuou com violação das «legis artis» não previu o resultado danoso da sua conduta, por descuido ou negligência, a mesma é-lhe imputada, a título de culpa.

A culpa exprime um juízo de reprovabilidade da conduta do agente, que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade deste, que devia e podia atuar de outro modo, usando todos os conhecimentos, diligências e cuidados que a profissão, necessariamente, impõe e que teriam permitido dar a conhecer aos pais as malformações do filho.

Ora, sendo o erro um equívoco no juízo e não se encontrando o médico dotado do dom da infalibilidade, o erro de diagnóstico será imputável, juridicamente, ao médico, a título de culpa, quando ocorreu com descuido das mais elementares regras profissionais, ou, mais, precisamente, quando aconteceu um comportamento inexcusável em que o erro se formou.

O erro médico só não corresponde a uma atuação culposa se, em razão da insignificância do ato, se entender que não houve um desvio em relação ao padrão médico de atuação, pois que, em caso contrário, o erro médico pressupõe uma conduta culposa, por parte do clínico, ou seja, o erro de diagnóstico só ocorrerá com a ignorância indesculpável ou o esquecimento das mais elementares regras profissionais, que se revelem de modo evidente.

No fundo, a possibilidade de previsão de resultados pelo agente, mesmo daqueles que decorrem da falta da sua antevisão individual, segundo as suas aptidões pessoais, define o limite da culpa e, em consequência, da responsabilidade.

O dever de informação sobre o prognóstico, diagnóstico e riscos envolventes faz parte dos denominados «deveres laterais do contrato médico», e o não cumprimento pelo médico dos deveres de cuidado e proteção a que está obrigado pode ser causa de responsabilidade contratual.

V. 8. Muito embora não exista, no ordenamento jurídico nacional, por parte dos progenitores, qualquer dever jurídico de proceder ao aborto de nascituro deficiente, não é a vida que é tida como um dano, em si mesmo, o dano da vida, propriamente dito, mas antes a deficiência da vida, isto é, o dano da deficiência que essa vida comporta.

E se o «direito a não nascer» se refere a um hipotético direito do embrião uterino a ver interrompida a sua gestação, mediante a interrupção voluntária da gravidez, nem, por isso, o aborto constitui um poder-dever dos respetivos progenitores.

V. 9. De acordo com o disposto pelo artigo 563.º, do CC, 'a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão'. A comparação, para efeitos de cálculo da compensação, opera não entre a existência e a não existência, mas antes entre a situação em que a criança acaba por nascer e aquela que aconteceria se não fosse a lesão, ou seja, entre a existência de uma pessoa, dita 'normal', e a existência de uma pessoa com malformações, pelo que o valor negativo é atribuído à vida defeituosa e o valor positivo à vida saudável.

[...]

Porém, muito embora a malformação não tenha sido causada pelo médico, o certo é que a sua atividade, quando desenvolvida segundo as «leges artis», poderia ter evitado o nascimento com aquela deficiência congénita, o que permite consubstanciar um nexo de causalidade suficiente, um nexo de causalidade, ainda que indireto, entre a vida portadora de deficiência e a correspondente omissão de informação do médico por essa situação, ainda que outros fatores tenham para ela concorrido, isto é, quando o facto não produz, ele mesmo, o dano, mas desencadeia ou proporciona um outro que leva à verificação deste.

Esta relação de causalidade indireta ou mediata, entre o facto e o dano, é compatível com a intervenção, mesmo de permeio, de outros fatores, sejam fatores naturais, sejam factos praticados pelo lesado, desde que estes fatores, também, se possam considerar induzidos pelo facto inicial, segundo um juízo de probabilidade.

E sendo o dano a vida com deficiência e a ausência da possibilidade de escolha pela interrupção voluntária da gravidez, em virtude da violação do direito à informação, e não a criança, em si mesma, que dela padece, admitindo-se o aborto, em caso de deficiência grave do feto, como decorre do preceituado pelo artigo 142.º, n.º 1, c), do Código Penal, mal se compreenderia que os pais se vissem privados dessa opção.

[...]

Seria, assim, num quadro de prognose razoável, para efeito de sustentar a não punibilidade da interrupção da gravidez, de defender que a doença se afigurava grave, não já por não permitir a sobrevivência ao nascer, mas antes por não ser de conjeturar um normal desenvolvimento da autonomia do Ruben, sem um suporte médico continuado das funções vitais.

Aliás, a falta de informação faz funcionar, a favor do credor da mesma, a presunção de que este se teria comportado de forma adequada, ou seja, no caso, que os pais teriam optado por abortar, caso soubessem da deficiência do filho.

[...]

V. 10. Verificado o nexo de causalidade adequada, os danos sobrevindos, tal como vêm alegados pelos autores, relacionam-se com os danos não patrimoniais, por se verem confrontados com as malformações do menor, apenas, no momento do nascimento, e com os danos patrimoniais relativos à deficiência, em virtude de o Ruben ser, totalmente, dependente de uma terceira pessoa, para o resto da sua vida, necessitando de substituir, anualmente, as próteses aplicadas.

Nas «wrongful birth actions», são ressarcíveis os danos não patrimoniais e patrimoniais, onde se não incluem todos os custos derivados da educação e sustento de uma criança, mas, tão-só, os relacionados com a sua deficiência, estabelecendo-se uma relação comparativa entre os custos de criar uma criança, nestas condições, e as despesas com uma criança normal, pois que os pais aceitaram, voluntariamente, a gravidez, conformando-se com os encargos do primeiro tipo, que derivam do preceituado pelo artigo 1878.º, n.º 1, do CC.

Efetivamente, o que está em causa não é a possibilidade de a pessoa se decidir, mas antes de se decidir num sentido ou noutro, de escolher entre abortar ou prosseguir com a gravidez, a partir do momento em que a lei penal autoriza os pais a interromper a gravidez, ante a previsão segura de que o feto irá nascer com malformação congénita incurável, atento o disposto pelo artigo 142.º, n.º 1, c), do Código Penal.

[...]

[S]e o Direito, enquanto ordem normativa reguladora de interesses sociais conflituantes, não deve servir como escudo de valores religiosos, morais, filosóficos, éticos ou de costumes, não podem os autores, que afirmaram esse propósito na petição inicial, ver denegado o proclamado exercício da faculdade da interrupção voluntária da gravidez, a pretexto de que 'a aceitação da responsabilidade do médico por uma qualquer deficiência, significa evidentemente que essa responsabilidade não pode ignorar e absorver a relevância da conduta dos pais na origem da vida do filho, como acontece quando um filho é concebido com uma malformação congénita e essa malformação não foi depois corrigida ou atenuada por um lapso médico, em que a responsabilidade (médica) pela deficiência nunca pode ser equiparada à responsabilidade (dos pais) pela vida, devendo a indemnização ser sempre proporcionada ao papel efetivo do médico na produção do resultado danoso'.

[...]" (sublinhados acrescentados).

1.6.1 - Confrontados com esta decisão condenatória, suscitaram as rés a nulidade do correspondente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Em suma, insistiram na ideia de que as malformações não foram provocadas pela ausência de comunicação do (resultado do) exame. Por outro lado, a faculdade de os pais interromperem a gravidez resultaria de um facto - "[a] não deteção atempada das deformidades descritas em "D)" impediu que os Autores pudessem efetuar uma interrupção médica da gravidez?" - considerado não provado. Logo, na prática, o Supremo Tribunal de Justiça alterou a resposta ao quesito para provado, sob pena de não poder usar tal facto, como fez, ao caracterizá-lo em termos de nexo de causalidade. Ao desconsiderar a matéria de facto provada e decidir contra ela, o Supremo Tribunal de Justiça teria violado o disposto nos artigos 202.º, n.º 2 e 204.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

1.6.2 - O Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a arguição de nulidade, afirmando que o facto foi dado como não provado e nesses precisos termos considerado na decisão, sendo que isso - a não prova - não significa que se tenha provado o seu contrário, limitando-se o tribunal a aplicar o direito à factualidade dada como provada, sem conceder relevância positiva aos factos não provados.

1.7 - Notificados deste último Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, interpuseram as rés Centro de Imagem Médica de Barcelos, Lda. e Maria Paulo Maia Silva Costa da Rocha Pereira recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos seguintes:

"[...]

[N]ão se conformando do Douto Acórdão que concedeu revista aos autores/recorrentes, revogando o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação e repristinou a Douta Sentença proferida em 1.ª Instancia e com o Douto Acórdão da Conferência que o confirmou, vem deles, nos termos dos artigos 69.º, 70.º n.º 1 alínea b) e 2.º, 71.º, n.º 1, 72.º, n.º 1, alínea b) e 2, 75.º n.os 1 e 2, 75.º-A, n.os 1 e 2.º e 78.º, n.º 4, da Lei 28/82, de 15 de novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos seguintes termos:

1.º - Para os efeitos exigidos no n.º 1 do citado artigo 75.º-A, as normas cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade, por si ou conjugadas, e com a interpretação que lhe foi aplicada nas decisões recorridas que se pretende que o Tribunal aprecie são as seguintes:

- 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil.

- 615.º, n.º 1, al. d), 674.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

2.º - Essas violações resultam da interpretação das citadas normas, que delas fizeram o Douto Despacho e a Douta Decisão da Conferência, e segundo as quais:

- A interpretação dos artigos 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil, no sentido de que o nexo de causalidade entre a ausência de comunicação do resultado de um exame, o que configura um erro de diagnóstico, e a deficiência verificada na criança, que poderia ter culminado com a faculdade de os pais interromperem a gravidez e obstar ao nascimento, constitui o pressuposto determinante da responsabilidade civil medica nos presentes autos.

- E consequentemente atribuir aos recorridos uma indemnização, pelo facto de não poderem decidir pelo aborto, isto é, pelo facto de não poderem impedir uma vida.

- Por este prisma a vida é encarada como um dano, como um prejuízo que podem liquidar a um terceiro, e nos termos do preceituado no artigo 562.º do Código Civil, quando alguém alega um dano com fim de obter indemnização, faz-se sempre valer da situação que existiria se não tivesse ocorrido o facto causador do dano, ou seja, senão fosse necessária a reparação.

- Seria assim aborto e, consequentemente, a morte.

- E/ou atribuir aos recorridos uma indemnização por violação do seu direito à autodeterminação, interpretando o artigo 67.º, n.º 2, alínea d) da Constituição como um instrumento de planeamento familiar.

- A interpretação das citadas normas conforme o explanado no Douto Acórdão recorrido viola claramente o princípio constitucional consagrado no artigo 24.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

E ainda,

- A interpretação dos artigos 615.º, n.º 1, alínea d) e 674.º, n.º 3 do Código de Processo Civil no sentido que não constitui alteração na decisão sobre a matéria de facto se o Douto Supremo Tribunal de Justiça determinar que certa factualidade poderia ou não ser declarada como provada.

- Em suma, segundo a interpretação explanada no Douto Acórdão recorrido, ao Douto Supremo Tribunal de Justiça é permitido alterar a resposta fixada pelo Douto Tribunal da Relação a um quesito de não provado para matéria não alegada, e assim, um facto que foi dado como Não Provado pode passar a ter tido lugar ou não.

- Ou seja, a uma certa factualidade que ficou assente que não se verificou, o Douto Supremo Tribunal de Justiça pode alterar essa factualidade de não se verificou para pode ter-se verificado.

- Prevendo o artigo 682.º que: 1 - Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado; e 2 - A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º, se o Tribunal desconsidera a matéria de facto fixada pela 2.ª instância, viola, por desrespeito das leis de orgânica judiciária e processuais civis, o princípio/dever constitucional de assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados - artigo 202.º, n.º 2 da C.R.P.

3.º - Tais normas, por si ou conjugadas, e com a interpretação que lhe foi aplicada violam os artigos 24.º, n.º 1 e 67.º, n.º 1, alínea d) e 202.º, n.º 2 e 204.º da Constituição.

4.º - As referidas inconstitucionalidades foram arguidas nas alegações de recurso interposto pelas rés/recorridas da Douta Sentença proferida em 1.ª Instância e no requerimento de reclamação para Conferência do Douto Acórdão que concedeu revista aos autores/recorrentes, revogando o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação e repristinou a Douta Sentença proferida em 1.ª Instância.

5.º - O recurso tem efeito suspensivo e sobe nos próprios autos.

Termos em que, requer a V. Exas. que se dignem admitir o presente recurso e feito o mesmo subir, com efeito próprio, seguindo-se os demais termos legais.

[...]" (sublinhados acrescentados).

Foi este recurso admitido no Tribunal a quo.

1.7.1 - Chegados os autos a este Tribunal, proferiu o relator o seguinte despacho a fls. 875/876:

"[...]

Notifique o recorrente para alegar, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 79.º, n.º 2 da LTC.

Nas alegações, poderá o recorrente, querendo, pronunciar-se sobre a possibilidade - que o tribunal desde já antevê, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 3.º, n.º 3 do CPC - de não conhecimento do recurso relativamente à invocada inconstitucionalidade dos artigos 615.º, n.º 1, alínea d) e 674.º, n.º 3 do CPC, por a dimensão normativa suscitada no recurso não corresponder à interpretação que constituiu a ratio decidendi da decisão recorrida.

A questão da inconstitucionalidade ficará, pois, reduzida às normas substantivas invocadas, nos seguintes termos, que incorporam a dimensão normativa relevante para a decisão recorrida:

A inconstitucionalidade do artigo 483.º, eventualmente também dos artigos 798.º e 799.º do Código Civil, interpretados no sentido de constituírem dano indemnizável, nos termos gerais da responsabilidade civil, a vida com deficiência e a ausência da possibilidade de escolha pela interrupção voluntária da gravidez, por violação do direito à informação relativa a exame médico, que permitiria uma decisão esclarecida dos progenitores no sentido do prosseguimento ou não prosseguimento da gravidez, em virtude da efetiva verificação de malformações graves do feto, no âmbito de uma das comummente designadas wrongful birth actions, por violação do disposto no artigo 67.º, n.º 2, alínea d) da CRP, na medida em que esta norma exclua a possibilidade de recurso à interrupção voluntária da gravidez como instrumento de planeamento familiar, e no artigo 24.º, n.º 1 da CRP, na medida em que aquela interpretação considera a vida em si como um dano e traduz relevância positiva à morte, enquanto expressão do cenário hipotético tradutor da medida do dano, dimensões normativas tidas por contrárias ao âmbito de proteção da vida exigido por este preceito constitucional.

[...]".

1.7.2 - Alegaram, então, os recorrentes, concluindo o seguinte:

"[...]

Deverá este Tribunal permitir que alguém tire partido de um prejuízo pelo facto de alguém ter nascido?

Esta é a questão que deverá este Douto Tribunal responder. Pois o Supremo Tribunal de Justiça, no Douto Acórdão agora posto em crise, respondeu afirmativamente a essa questão.

[...]

Conclusões:

1.º - As normas cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade, por si ou conjugadas, e com a interpretação que lhe foi aplicada nas decisões recorridas que se pretende que este Douto Tribunal aprecie são as seguintes:

- [artigos] 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil.

2.º - Interpretação essa no sentido de que o nexo de causalidade entre a ausência de comunicação do resultado de um exame, o que configura um erro de diagnóstico, e a deficiência verificada na criança, que poderia ter culminado com a faculdade de os pais interromperem a gravidez e obstar ao nascimento, constitui o pressuposto determinante da responsabilidade civil medica nos presentes autos.

3.º - E consequentemente atribui aos recorridos uma indemnização, pelo facto de não poderem decidir pelo aborto, isto é, pelo facto de não poderem impedir uma vida.

4.º - Esta interpretação viola os preceitos constitucionais previstos no n.º 1 dos artigos 24.º e 67.º, n.º 2, alínea d) da Constituição da República Portuguesa.

5.º - Por este prisma a vida é encarada como um dano, como um prejuízo que se pode liquidar a um terceiro.

6.º - Nos termos do preceituado no artigo 562.º do C.C., quando alguém alega um dano com fim de obter indemnização, faz-se sempre valer da situação que existiria se não tivesse ocorrido o facto causador do dano, ou seja, senão fosse necessária a reparação, que seria assim aborto e, consequentemente, a morte.

7.º - A procedência das chamadas 'wrongful birth actions' e a necessária interpretação das normas supra citadas, constituem uma violação clara do preceito constitucional que protege toda a vida humana.

8.º - O Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que concedeu a indemnização nesses termos, tendo por base a doutrina que concede provimento às 'wrongful birth actions', parece querer afastar a inconstitucionalidade da posição afirmando que "a partir do momento em que a lei consagra, dentro de certos condicionalismos, a interrupção voluntária da gravidez de um feto com anomalias graves, está a admitir que uma vida, nestas condições, pressupõe um dano, o qual não reside na vida em si, mas nas anomalias que a mesma pode ser portadora." (cf. pág. 33 do Douto Acórdão recorrido).

9.º - E consequentemente não é a vida considerada um dano, mas antes a vida com deficiência.

10.º - É certo que a alínea c) do artigo 142.º do C. Penal, não pune a interrupção voluntária da gravidez de um nascituro que pode vir a sofrer de grave doença ou mal formação congénita.

11.º - No entanto, a alínea e) do supra citado art. do Código Penal, prevê também que não é punível interrupção voluntária da gravidez, se for realizada nas primeiras 10 semanas de gravidez.

12.º - Assim a valer a linha orientadora que o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça traçou, é possível atribuir uma indemnização, pelo facto de não se poder decidir pelo aborto, independentemente do nascituro sofrer ou não de deformações.

13.º - Nesta interpretação toda a vida é tida como um prejuízo que tem de ser ressarcido.

14.º - É óbvio que esta decisão tem que necessariamente ser declarada inconstitucional.

15.º - O Acórdão 75/2010 proferido por este Douto Tribunal Constitucional que apreciou a constitucionalidade da Lei 16/2007 de 17 de abril, que introduziu a não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, se for realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas de gravidez, certamente que não pretendeu dar o alcance que a doutrina que suporta as 'wrongful birth actions' pretende dar.

16.º - Este Douto Tribunal Constitucional, não considerou o mencionado preceito inconstitucional, pois em ultima analise, era uma medida que protegia a vida humana.

17.º - A interpretação do Supremo Tribunal de Justiça dos artigos 483.º, 798.º e 799.º do CCl, no sentido de constituírem dano indemnizável, a vida (com ou sem deficiência) e a ausência da possibilidade de escolha pela interrupção voluntária da gravidez, por violação do direito à informação relativa a exame médico, é uma interpretação que atenta a vida humana.

18.º - A interpretação das citadas normas conforme o explanado no Douto Acórdão recorrido viola claramente o princípio constitucional consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

19.º - Desta forma, apesar da despenalização da interrupção voluntária da gravidez nos casos e dentro dos prazos expressamente previstos, não deve ser descuidada a intenção do legislador constitucional ao pretender garantir uma adequada proteção da vida.

20.º - A CRP afirma que 'a vida humana é inviolável' sem fazer menção ao estádio de desenvolvimento em que essa mesma vida se encontra e, naturalmente, sem exigir a personalidade jurídica dos respetivos sujeitos ativos.

21.º - Conforme o consagrado no artigo 24.º da CRP., a Constituição Portuguesa não se limita, ao contrário de outros textos fundamentais e da própria DUDH, a dizer que 'todos os homens têm direito à vida", afirmando antes, numa fórmula normativa muito mais forte e expressiva, que 'a vida humana é inviolável'.

22.º - Apesar de serem evidentes as dificuldades colocadas pela posição original que o direito à vida ocupa entre os demais direito, o facto de o direito à vida se apresentar em regras como um direito de tudo ou nada - no sentido de que não são concebíveis ataques parcelares à vida sem perda dessa mesma vida -, e o facto de o nosso Código Penal abrir a sua parte especial com os crimes contra a vida é revelador, de maneira clara e inequívoca, de que o bem ou valor jurídico-penal mais fortemente protegido é o da vida humana.

23.º - Numa matéria cujas implicações ultrapassam largamente o mundo do Direito, espraiando-se pelos domínios da Ética, da Moral, da Religião, da Filosofia e da Medicina, "o primeiro problema suscitado pela positivação do direito à vida é o da delimitação do âmbito temporal de proteção constitucional da própria vida humana. Trata-se, portanto, de definir o terminus a quo do próprio direito à vida. No que toca ao momento inicial - decisivo, desde logo, para efeito do tratamento jurídico a conceder à interrupção voluntária da gravidez (como importa para o caso em análise) -, há quem faça coincidir o início do direito à vida com o momento da conceção...'.

24.º - Por conseguinte, só a cedência a um formalismo construtivo, cego perante a necessidade de tutela concreta dos bens jurídicos singulares pode justificar que instituir a possibilidade de aborto sem necessidade da menor justificação constitui ainda uma forma de concordância prática entre a vida intrauterina e os projetos de vida autonomamente definidos pela mãe. Decerto ninguém negará que a proteção da vida intrauterina, com rejeição do aborto a pedido, pode implicar o nascimento de crianças não desejadas, nalguns casos perturbadores dos planos de futuro consistentemente delineados, mas que significado pode isso ter perante a convicção de que "qualquer ser humano é sempre um fim em si mesmo, e não um instrumento para satisfação dos desejos dos seus progenitores'.

25.º - Desta forma, apesar da despenalização da interrupção voluntária da gravidez nos casos e dentro dos prazos expressamente previstos, não deve ser descuidado a intenção do legislador constitucional ao pretender garantir uma adequada proteção da vida.

26.º - «A responsabilidade civil é normalmente invocada como forma de proteção da vida e da sua qualidade contra lesões físicas», Ora no Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, foi atribuída aos recorridos uma indemnização com base num facto totalmente indeterminável e casuístico, ou seja, se teriam abortado caso soubesse das malformações congénitas.

27.º - Por este prisma a vida é encarada, desde logo, como um dano, para além de que, verifica-se a ausência completa dos pressupostos da obrigação de indemnizar: dano (em sentido jurídico), de uma ilicitude, de culpa, e de um nexo causal.

28.º - No caso de se entender que os médicos podem ser responsabilizados por uma qualquer deficiência abriria o precedente a que fossem também responsabilizados os pais, pois na verdade estes é que estão na origem da vida dos filhos.

29.º - Em boa verdade, se um filho é concebido com uma malformação congénita, ainda que por lapso médico, a indemnização deve ser sempre proporcionada ao papel efetivo do médico na produção do resultado do dano. Ora, a responsabilidade dos réus, médicos, pela deficiência nunca poderá ser equiparada à responsabilidade dos autores, pais, pela vida.

30.º - Do explanado resulta que, a responsabilidade pela deficiência não pode afirmar-se no facto da não informação em prol do aborto, pois, a única conduta que teria evitado essa deficiência era a eliminação da vida que é suporte da indemnização desse dano.

31.º - Atribuir aos recorridos uma indemnização por violação do seu direito à autodeterminação, é interpretar o artigo 67.º, n.º 2, alínea d) da Constituição como um instrumento de planeamento familiar.

32.º - Apesar do entendimento que os pais devem ter o direito de determinarem livre e conscientemente a dimensão da sua família e o escalonamento dos nascimentos, conceder aos pais o direito a uma indemnização por violação do seu direito à autodeterminação, concretamente no que toca ao familiar é resultado de uma má interpretação constitucional.

33.º - Na medida em que, o texto constitucional não autoriza em "uma interpretação do artigo 67.º, n.º 2, al. d), no sentido de que a interrupção da gravidez constitui um instrumento de planeamento familiar ou uma solução imposta pela necessidade de garantir o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes.

34.º - Pelo contrário, não só tal leitura ignora o sentido do direito à vida consagrado no artigo 24.º n.º 1, como o propósito disposto no artigo 67.º, n.º 2, al. d), surgiu, historicamente, como uma solução que pretendia favorecer a adoção de meios e métodos que evitassem práticas abortivas.

35.º - Deverá ser declarada a inconstitucionalidade dos artigos 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil interpretados no sentido de constituírem dano indemnizável, nos termos gerais da responsabilidade civil, a vida com deficiência (ou sem ela) e a ausência da possibilidade de escolha pela interrupção voluntária da gravidez, por violação do direito à informação relativa a exame médico, que permitiria uma decisão dos progenitores no sentido do prosseguimento ou não da gravidez, por violação do disposto no artigo 67.º, n.º 2, alínea d), da CRP, na medida que esta norma exclua a possibilidade de recurso à interrupção voluntária da gravidez como instrumento de planeamento familiar, e no artigo 24.º, n.º 1 da CRP, na medida em que aquela interpretação considera a vida em si como um dano e traduz relevância positiva à morte, enquanto expressão do cenário hipotético tradutor da medida do dano, dimensões normativas tidas por contrarias ao âmbito de proteção da vida exigido por este preceito constitucional.

[...]

Deve o presente recurso ser julgado procedente, e ser declarada a inconstitucionalidade dos artigos 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil quando interpretados no sentido supra explanado, e ser a decisão do Tribunal a quo revogada absolvendo assim os Recorrentes.

[...]"(ênfase no original).

1.7.2.1 - Responderam às alegações os Recorridos, contrapondo conclusivamente o seguinte:

"[...]

Conclusões:

1 - A questão central a decidir nestes autos é a de saber se a atuação dos recorrentes contém em si os pressupostos legalmente indicados para que aqueles incorram em responsabilidade contratual para com os recorridos, e possam ser condenados numa indemnização reparatória dos danos que causaram.

2 - Dizer, em jeito de pergunta, como fazem os recorrentes, se pode este tribunal permitir que alguém tire partido de um prejuízo pelo facto de alguém ter nascido, além de evidenciar que o Acórdão recorrido não foi entendido, constitui ainda uma tentativa de desvirtuar a realidade e descentrar a questão fundamental dos autos.

3 - Os recorrentes não entenderam a doutrina das wrongful birth actions, da forma que a decisão recorrida a tratou, e confundem grosseiramente qual o dano que o seu incumprimento contratual veio a gerar.

4 - De forma que não se aceita, nem se compreende, os recorrentes, convocando para a questão a legislação que permite a interrupção voluntária da gravidez, e descontextualizando por completo a possibilidade dessa interrupção ocorrer até às dez semanas, a qual tem pressupostos totalmente diversos da interrupção que era permitida aos recorrentes no caso concreto, acabam por produzir uma inaceitável conclusão, segundo a qual, a tese da decisão recorrida significaria que toda a vida é tida como um prejuízo que tem de ser ressarcido.

5 - Os recorrentes não entenderam ainda que o dano de que fala a doutrina das wrongful birth actions não é a vida, mas sim as deficiências com que essa vida se gerou e que a acompanharam.

6 - A interpretação que a decisão recorrida faz dos artigos 483.º, 789.º e 799.º do CC nunca poderia ser contrária ao disposto no artigo 24.º da CRP, uma vez que subjacente àquela decisão está a interpretação da legislação sobre a IVG que permite que a mesma se faça em caso de doença grave ou malformação do feto.

7 - A alusão à IVG até às dez semanas nada tem a ver com o caso dos autos, e sua invocação pelos recorrentes só pode resultar de uma enorme confusão sobre esta matéria, ou de uma desesperada tentativa de se inventar um argumento que veio a possibilitar uma pouco convincente alegação de uma indecifrável inconstitucionalidade.

8 - Os recorrentes também ainda não entenderam de que forma a omissão da informação correta sobre o estado do nascituro, que eles culposamente cometeram, é suscetível de ter provocado danos aos requeridos.

9 - Ainda que a divulgação da informação omitida não tivesse qualquer resultado positivo no estado de saúde do nascituro, pois isso não iria afastar as malformações, os recorrentes não entenderam ainda que se tivessem fornecido aos recorridos a verdadeira informação sobre o estado do nascituro, tinham colocado ao dispor destes informação preciosa que os iria habilitar a tomar uma decisão ponderada e consciente sobre uma possibilidade que a lei, na altura, lhes concedia, e que era a de optarem pela interrupção voluntária da gravidez.

10 - Como bem se diz na decisão recorrida, a falha médica, leia-se dos recorrentes, "residiu na omissão de todos os conhecimentos, diligências e cuidados para dar a conhecer aos autores a condição do filho porque foram mal interpretados os exames e porque não foi comunicado aos pais o seu resultado, incumprindo os réus os deveres de informação, desrespeito pelas leges artis medicinae, acabando por causar um dano aos autores, uma vez que a sua adesão ao prosseguimento da gravidez não foi consequente a um consentimento esclarecido, dotado de todas as informações relevantes.'.

11 - Depois, e esclarecendo a confusão dos recorrentes acerca da compatibilidade da legislação sobre a IVG com o artigo 24.º da CRP, a decisão recorrida esclarece que a conclusão citada no ponto anterior '...não é sequer abalada pelo facto de a comunicação da informação omitida não conduzir à cura do nascituro, mas, apenas, à possibilidade do seu não nascimento, e isto porque, a partir do momento em que a lei consagra, dentro de certos condicionalismos, a interrupção voluntária da gravidez de um feto com anomalias graves, está a admitir que uma vida, nestas condições, pressupõe um dano, o qual não reside na vida em si, mas nas anomalias de que a mesma pode ser portadora'.

12 - As dúvidas dos recorrentes sobre a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil contratual nas suas condutas são desfeitas na fundamentação da decisão recorrida, quando ali se refere que 'ficou provado, neste particular, que as deformidades descritas no ponto 4, ou seja, a deficiência transversa do punho, mão e pé esquerdo, a deficiência longitudinal do pé direito e a sindactilia da mão direita, eram detetáveis numa ecografia realizada às 12 semanas de gestação, sendo certo, não obstante, que, em nenhum dos relatórios das ecografias realizadas, designadamente, no relatório respeitante à ecografia realizada às vinte e uma semanas e um dia de gestação, vem referido que foram visualizados os dedos de qualquer dos quatro membros, antes sempre tendo sido dito pelos réus que realizaram as ecografias que o feto era perfeito e que o bebé estava com excelente saúde...' e ainda: 'Deste modo, pelo menos, na ecografia efetuada à vinte e uma semanas e um dia de gestação, eram detetáveis as malformações evidenciadas que o síndroma das bandas amnióticas que se formam na gestação e que as provocaram, por, também, não haverem sido visionadas, não obstaram à sua perceção.'...' e ainda, citando o anterior Acórdão recorrido: '...pelo que, temos de concluir que pelo menos na realização da ecografia realizada às 21 semanas, a médica que a realizou não atuou segundo as regras da boa prática profissional, pois a s deformações do feto já eram detetáveis e não o foram'.

13 - Mais adiante, e continuando a desmontar a tese dos recorrentes, a fundamentação do Acórdão recorrido considera a atuação dos recorrentes como contrária às boas regras profissionais como suscetível de legitimar uma imputação ao médico, a título de culpa, de um erro de diagnóstico, dizendo-se que 'o dever de informação sobre o prognóstico, diagnóstico e riscos envolventes faz parte dos denominados deveres laterais do contrato médico, e o não cumprimento pelo médico dos deveres de cuidado e proteção a que está obrigado pode ser causa de responsabilidade contratual.'

14 - Depois, a propósito da questão do nexo de causalidade, a decisão recorrida fundamente a sua existência, sustentando que ainda que a malformação não tenha sido causada pelo médico, 'o certo que a sua atividade, quando desenvolvida segundo as leges artis, poderia ter evitado o nascimento com aquela deficiência congénita, o que permite consubstanciar um nexo de causalidade suficiente, um nexo de causalidade, ainda que indireto, entre a vida portadora de deficiência e a correspondente omissão de informação do médico por essa situação, ainda que outros fatores tenham para ela concorrido, isto é, quando o facto não produz, ele mesmo, o dano, mas desencadeia ou proporciona um outro que leva à verificação deste'.

15 - Ou ainda quando se diz: 'O nexo de causalidade entre a ausência de comunicação do resultado de um exame, o que configura erro de diagnóstico, e a deficiência verificada na criança, que poderia ter culminado com a faculdade de os pais interromperem a gravidez e obstar ao nascimento, constitui, in casu, o pressuposto determinante da responsabilidade civil médica em apreço'.

16 - E se conclui que '...se o médico executa ou interpreta mal um diagnóstico pré-natal produz um resultado negativo falso, concluindo-se a gravidez que a mãe teria podido interromper, podendo, então, dizer-se que a conduta culposa do médico foi a causa do nascimento com a deficiência que não foi diagnosticada'.

17 - Sobre o dano, e embora o mesmo já tenha sido vastamente assinalado como existente, mais uma vez a decisão recorrida fundamenta de forma inequívoca e inatacável a sua existência, quando refere: "E sendo o dano a vida com deficiência e a ausência da possibilidade de escolha pela interrupção voluntária da gravidez, em virtude da violação direito à informação, e não a criança, em si mesma, que dela padece, admitindo-se o aborto, em caso de deficiência grave do feto, como decorre do preceituado pelo artigo 142.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, mal se compreenderia que os pais se vissem privados dessa opção...'.

18 - Por fim, deve ainda assinalar-se, não obstante a maioria dos contratos de prestação de serviços médicos veicular uma obrigação de meios, a realização de exames laboratoriais, e de radiologia, como são as ecografias, constituem uma exceção na área das Ciências Médicas, sendo reconhecidas como obrigações de resultado.

19 - Daí que, a fundamentação da decisão recorrida também neste ponto se afigura como inatacável, quando se diz com toda a pertinência: 'Ora, a realização de exames laboratoriais, com o consequente diagnóstico, constitui uma obrigação de resultado, tratando-se mesmo de um exemplo clássico de uma típica obrigação médica de resultado, porquanto, atendendo ao elevado grau de especialização alcançado pelos exames laboratoriais, em que a margem de incerteza e a aleatoriedade é muito reduzida, praticamente, nula, o âmbito concedido ao erro é limitado e a verificação do resultado, altamente, provável, razão pela qual sobre aquele que analisa os resultados recai, também, uma obrigação de resultado, pelo que se o médico ecografista 'fornece ao cliente um resultado cientificamente errado, então, temos de concluir que atuou culposamente, porquanto o resultado transmitido apenas se deve a erros de análise', com ressalva, como é óbvio, da fiabilidade do próprio exame, o que se não demonstrou, mas cuja percentagem de exatidão é de cerca de 90 a 95 %'.

20 - A decisão recorrida, tal como as duas decisões da primeira instância, confirmaram a existência de todos os pressupostos da responsabilidade civil contratual, e aplicaram o disposto nos artigos 483.º, 798.º e 799.º do CC, sem qualquer violação do artigo 24.º da CRP.

21 - Assim, não se vislumbra quaisquer inconstitucionalidades nas decisões citadas, em especial no Acórdão ora recorrido.

TERMOS EM QUE

A) Deve ser rejeitado o presente recurso, por inadmissível, uma vez que não cumpre os requisitos processualmente exigidos, nomeadamente porque nunca os recorrentes haviam suscitado quaisquer questões de inconstitucionalidades.

Sem prescindir,

B) Devem ser rejeitadas as inconstitucionalidades apontadas à interpretação dada no Acórdão recorrido aos artigos 483.º, 789.º e 799.º do CC, por manifesta falta de fundamento.

[...]".

II - Fundamentação

2 - Relatámos até aqui o desenrolar do processo desde a propositura da ação até à prolação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/2015, constante de fls. 759/807. Tal decisão, consubstanciando o pronunciamento final desta causa na jurisdição comum, na qual percorreu os três graus hierárquicos, constitui o objeto processual do recurso de constitucionalidade, configurando-se este como questão incidental culminante do julgamento respeitante à pretensão indemnizatória formulada pelos autores na ação. Assim, em função do pedido - e depois dos recortes subjetivos que este sofreu em primeira instância, com a exclusão de alguns dos réus iniciais e a não aceitação do pedido formulado pelos autores em nome do próprio menor (o que retirou à ação a natureza de wrongful life) -, em função do pedido e destas incidências, dizíamos, podemos caracterizar a situação como correspondendo a uma pretensão indemnizatória dos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, não atempadamente detetada ou relatada aos mesmos em função de um erro médico, a serem ressarcidos (eles os pais) pelo dano resultante da privação do conhecimento dessa circunstância, no quadro das respetivas opções reprodutivas, quando esse conhecimento ainda apresentava potencialidade para determinar ou modelar essas mesmas opções.

Foi esta a pretensão dos autores que o Supremo Tribunal de Justiça acolheu na decisão recorrida, tratando-se, como dissemos, da fixação de uma indemnização aos pais (relativa a danos próprios destes), indemnização cujo facto gerador do dano pretendido reparar é habitual-mente referido na literatura jurídica através da expressão wrongful birth (nascimento indevido), aqui também utilizada pelo STJ e pelas instâncias que o precederam. Note-se que esta designação foi empregue, paralelamente à de wrongful life, pela primeira vez em 1963, por um Tribunal norte-americano - por contraposição à ideia-conceito de wrongful death (o tipo de indemnização correspondente ao que designamos por dano morte) - numa decisão de um Tribunal de recurso do Estado do Illinois (a decisão Zepeda v. Zepeda, acessível no seguinte endereço: http://www.leagle.com/decision/196328141IllApp2d240_1238/ZEPEDA%20v.%20ZEPEDA; recusou esta decisão a atribuição da indemnização aí peticionada). Posteriormente, já num contexto próximo do da presente ação, foi a expressão retomada em 1967, por um Tribunal de New Jersey, na decisão Gleitman v. Cosgrove [esta decisão, também recusando a indemnização desse tipo, é acessível no seguinte endereço: http://www.leagle.com/decision/19677149NJ22_160/GLEITMAN%20v.%20COSGROVE; sobre o contexto jurisprudencial do aparecimento das expressões wrongful birth e wrongful life e dos correspondentes conceitos, v. Erin Nelson, Law, Policy and Reproductive Autonomy, Oxford, Portland, 2013, pp. 205 e ss., Thomas A. Burns, "When life is an injury: an economic approach to wrongful life lawsuits", Duke Law Journal, February, 2003, 52(4), pp. 812/816 e Athena N. C. Liu, "Wrongful life: some of the problems", inJournal of medical ethics, 1987, 13, 69/70, este texto está disponível no endereço: http://europepmc.org/backend/ptpmcrender.fcgi?accid=PMC1375426&blobtype=pdf].

Sendo este o objeto central da ação - e sendo ele que foi aqui invocado como principal questão de inconstitucionalidade, referida a uma determinada interpretação dos artigos 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil (CC) -, importa ter presente, todavia, que o recurso inicialmente interposto pelos Recorrentes para este Tribunal (aqui se remete para a transcrição feita no item 1.7., supra do requerimento de interposição) apresentava, igualmente configurada como suscitação prévia no quadro da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, uma incidência temática mais ampla que a correspondente às referências normativas da questão da atribuição de uma indemnização por wrongful birth. De facto, nessa configuração inicial, abrangia o recurso um segundo tema, expresso num outro bloco normativo composto pelos artigos 615.º, n.º 1, alínea d) e 674.º, n.º 3 do CPC (trata-se do CPC atual), estando em causa a forma como o Supremo Tribunal de Justiça alegadamente construíra, na decisão recorrida, por referência à questão de facto decorrente do julgamento realizado nas instâncias, o acervo fáctico que considerou estabelecido e ao qual aplicou o Direito.

Abordaremos desde já, num quadro introdutório de delimitação do objeto do recurso de constitucionalidade, esta última questão.

2.1 - Através do despacho inicial de fls. 875/876 (transcrito no item 1.7.1., supra) equacionou o ora relator as duas questões de constitucionalidade antes mencionadas, adiantando-se aí - rectius, abrindo-se à discussão das partes nas subsequentes alegações - a possibilidade do não conhecimento pelo Tribunal da questão referida às normas do Código de Processo Civil e enunciando como apta a ser conhecida a questão atinente às normas de direito substantivo sedeadas no Código Civil (correspondendo esta última à questão do wrongful birth). É com base nesse despacho preliminar, ponderando agora a posição dos Recorrentes nas alegações e nas conclusões destas, que fixaremos a exata incidência temática do recurso.

A este respeito, importa considerar a circunstância dos Recorrentes, em sede de motivação do recurso por via das alegações, aceitando implicitamente a posição que o relator expressou no despacho interlocutório, não terem produzido alegações quanto à dita questão de constitucionalidade de incidência processual que inicialmente haviam referido aos artigos 615.º, n.º 1, alínea d) e 674.º, n.º 3 do CPC, interpretados, conforme também haviam indicado, no sentido de não constituir alteração da decisão sobre a matéria de facto a circunstância de o Supremo Tribunal de Justiça, no quadro de um recurso de revista, considerar que determinada factualidade poderia ou não ser declarada como provada. Lembramos ter sido este sentido interpretativo que o despacho de fls. 875/876 assinalou como não correspondendo a qualquer ratio decidendi da decisão impugnada (porque entendeu o ora relator que o que estava em causa nesse elemento da decisão do Supremo Tribunal era um problema de alocação do ónus da prova aos Recorrentes e a decisão, face a um non liquet, com base numa "regra de decisão" formada em função da atribuição daquele ónus aos réus: estes deveriam provar certo facto, jogando contra eles a não prova do mesmo, como resulta da chamada "teoria das normas", com respaldo nos artigos 342.º e ss. do CC).

Seja como for, devemos concluir ter ocorrido aqui, por banda dos Recorrentes, um abandono desta questão no desenvolvimento do recurso, já na fase de alegações, sendo essa delimitação temática pelos Recorrentes relevante na fixação do objeto final da respetiva impugnação, nos termos resultantes do artigo 635.º, n.º 4 do CPC - "[n]as conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso" -, disposição aqui aplicável ex vi do disposto no artigo 69.º da LTC.

Este abandono restringiu, pois, a indagação de conformidade constitucional agora colocada ao Tribunal Constitucional à questão da tutela indemnizatória concedida aos pais do menor (aos aqui Recorridos), com base na consideração de uma situação que as instâncias e o Supremo Tribunal de Justiça assumiram corresponder à atribuição de uma indemnização por wrongful birth, sendo esta referida ao enquadramento normativo indicado no despacho de fls. 875/876, a saber: a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 24.º, n.º 1 e 67.º, n.º 2, alínea d) da CRP, dos artigos 483.º, 798.º e 799.º do CC, interpretados estes no sentido de constituir dano indemnizável, nos termos gerais da responsabilidade civil, a vida com deficiência e a ausência da possibilidade de escolha pela interrupção voluntária da gravidez, por violação do direito à informação relativa a exame médico, que permitiria uma decisão esclarecida dos progenitores no sentido do prosseguimento ou não prosseguimento da gravidez, em virtude da efetiva verificação de malformações graves do feto, no âmbito de uma ação por nascimento indevido (wrongful birth action).

2.1.1 - Assim se caracteriza, em termos gerais, o sentido do presente recurso. Note-se que esta caracterização (a que foi sinalizada aos Recorrentes e aos Recorridos a fls. 875/876) é totalmente congruente com a indicada supra no item 2. (trecho sublinhado), podendo expressar-se, recorrendo a esta última, o objeto temático colocado à apreciação deste Tribunal nos termos seguintes: a (invocada) desconformidade constitucional dos artigos 483.º, 798.º e 799.º do CC, interpretados no sentido de abrangerem, nos termos gerais da responsabilidade civil contratual - no quadro de uma ação designada por nascimento indevido (por referência ao conceito usualmente identificado pela expressão wrongful birth) -, uma pretensão indemnizatória dos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, não atempadamente detetada ou relatada aos mesmos em função de um erro médico, a serem ressarcidos (os pais) pelo dano resultante da privação do conhecimento dessa circunstância, no quadro das respetivas opções reprodutivas, quando esse conhecimento ainda apresentava potencialidade para determinar ou modelar essas opções.

2.1.2 - A este respeito, ainda num quadro preambular, controlando a presença no caso dos pressupostos de um recurso de constitucionalidade fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (isto em vista da afirmação dos Recorridos, nas contra-alegações, quanto à não integração desses pressupostos), diremos (i) corresponder a construção do objeto (subsistente) do recurso aqui apresentada no final do item antecedente à efetiva ratio decidendi do Acórdão recorrido, (ii) estar em causa uma dimensão interpretativa com caráter normativo, (iii) e ter a questão sido suscitada, como questão de inconstitucionalidade, pelos Recorrentes, no decurso do processo em momento relevante, em concreto anteriormente à decisão recorrida.

Com efeito, estando em causa no processo a fixação de uma indemnização num quadro de responsabilidade civil contratual referida a uma situação geralmente designada como wrongful birth, correspondendo a questão discutida à legitimidade constitucional da atribuição de uma indemnização desse tipo, observamos ter o Supremo Tribunal de Justiça (a decisão recorrida) fixado a cargo dos Recorrentes, precisamente, uma indemnização com essa base.

Por outro lado, a construção dos pressupostos jurídicos de tal indemnização assentou na aplicação de normas: assentou nas normas gerais respeitantes à responsabilidade civil contratual, entendendo estas como abrangendo a situação-conceito identificada, com clara vocação de generalidade, ao longo do processo (desde a primeira decisão de primeira instância) como indemnização pelo médico aos pais da criança portadora de malformações congénitas numa situação habitualmente identificada como wrongful birth, fazendo corresponder esse conceito (geral) ao objeto da tutela indemnizatória aqui concedida, nos termos gerais da responsabilidade civil por ato médico, no quadro de um contrato de prestação de serviços médicos visando um diagnóstico pré-natal. Lembramos que este Tribunal aceita um conceito funcional de norma para efeitos de acesso à sua jurisdição, concretamente em sede de fiscalização concreta. Trata-se - e utilizamos aqui os termos do recente Acórdão 684/2015 - do que usualmente é referido na jurisprudência do Tribunal, desde o Acórdão 55/85, como "a norma em determinada interpretação", respeitando esta ao específico sentido interpretativo que na decisão recorrida tenha sido conferido a uma concreta norma ou bloco de normas, sempre que tal sentido possa ser destacado do próprio ato de julgamento, como "[...] critério normativo da decisão, sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica [...]" (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, 2010, p. 32). É o que sucede - e é o que aqui sucede - quando determinadas normas entendidas compaginadamente são feitas corresponder a um conceito geral identificado e caracterizado na Doutrina e na Jurisprudência.

Finalmente, controlando a verificação do pressuposto referido no trecho final da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (suscitação da inconstitucionalidade durante o processo), diremos que os ora Recorrentes identificaram o cerne da questão que agora nos defronta nas alegações de direito apresentadas a culminar o segundo julgamento realizado em primeira instância (assinalámos esse momento no item 1.2.2.1. supra), estruturaram esse problema expressamente como "questão de constitucionalidade" na motivação da segunda apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães (cf. item 1.3. e 1.3.1 supra) e, enfim, tendo obtido ganho de causa nessa impugnação na Relação (cf. item 1.4. supra), não deixaram de renovar esse argumento de inconstitucionalidade nas contra-alegações (ocupavam aí a posição de Recorridas) que dirigiram ao Supremo Tribunal de Justiça no contexto da revista que viria a originar a decisão ora recorrida. Vale isto por dizer que os Recorrentes efetivamente suscitaram uma questão de inconstitucionalidade normativa (precisamente a que agora colocam ao Tribunal Constitucional), mantendo-a sempre operante ao longo do processo, até ao exato contexto processual - e é este que aqui interessa - que originou o Acórdão objeto do presente recurso de constitucionalidade.

Mostram-se, assim, plenamente integrados os pressupostos do recurso de constitucionalidade interposto pelos Recorrentes, com a delimitação acima assinalada neste Acórdão (itens 2.1 e 2.1.1). Resta-nos, pois, apreciá-lo.

2.2 - Conforme já referimos, utilizamos aqui a expressão-conceito original em língua inglesa, wrongful birth, que vem sendo adotada para designar uma pretensão indemnizatória deste tipo (a dirigida pelos pais contra o médico responsável pelo errado diagnóstico pré-natal). Reconhece-se que a expressão, tal como sucede com wrongful life, não é particularmente feliz e que a tradução para "nascimento indevido" ("vida indevida", no segundo caso) não a melhora. Trata-se, em qualquer dos casos, de designação excessiva no seu significado semântico imediatamente apreensível, relativamente ao que verdadeiramente está em causa neste contexto: que é, fundamentalmente, um problema de responsabilidade civil indemnizatória, de alcance bem mais restrito que o sugerido pela "força" literal implícita em expressões indiscutivelmente "malsonantes" [cf. Paulo Mota Pinto, "Indemnização em caso de 'nascimento indevido' e de 'vida indevida' ('wrongful birth' e 'wrongful life')", in Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais. Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Coimbra, 2007, pp. 917/918; Fernando Araújo, A Procriação Assistida e o Problema da Santidade da Vida, Coimbra, 1999, p. 96].

Estamos, assim, tanto com a expressão wrongful birth como com a expressão wrongful life, perante metáforas criadas por associação de ideias e com um propósito simplificador. Trata-se, fundamentalmente, do que se designa como "[...] «metáforas heurísticas», ou seja, aqueles «deslizamentos semânticos» capazes de atrair o espírito para novas formas de perceção e de entendimento dos fenómenos (não autorizados por interpretações literais)" (Fernando Araújo, A Tragédia dos Baldios e Anti-Baldios, Coimbra, 2008, p. 9).

Falamos aqui em wrongful birth, pois, da mesma forma que antes o fizeram as instâncias e o Supremo Tribunal de Justiça, pressupondo um conceito sobejamente referenciado e discutido na Jurisprudência e na Doutrina, estrangeira e nacional, através do qual se indica o tipo de ação/pretensão indemnizatória que acima caracterizámos, ou seja, a ação intentada pelos pais (não pela própria criança portadora da deficiência), na qual "[...] releva o facto de o evento lesivo ter conduzido a um nascimento indesejado [, em que] há um nascimento em resultado de uma situação de wrongful conception, ou, sendo a conceção desejada[ - como aqui sucedeu - ],verificou-se um nascimento na sequência de um erro médico [...] que retirou à mãe a oportunidade de tomar uma decisão informada e tempestiva sobre a continuação ou a interrupção da gravidez, afirmando os demandantes que, se não fosse o evento lesivo, a criança nunca teria nascido" (Paulo Mota Pinto, "Indemnização em caso de 'nascimento indevido' e de 'vida indevida'...", cit., p. 916, sublinhado ausente no original).

Recordamos que, por via da decisão do Supremo Tribunal de Justiça aqui impugnada, foi expressamente repristinada a Sentença de primeira instância de 20/11/2013 (a de fls. 450/461vº, que caracterizámos supra no item 1.2.3.), sendo os ora Recorrentes condenados, solidariamente, a satisfazer aos pais do menor Ruben Ângelo Almeida Araújo, ou seja, a cada um dos autores, a título de indemnização por danos não patrimoniais, nos termos do artigo 496.º, n.os 1 e 4 do CC, a quantia de (euro)35.000,00. Adicionalmente, como indemnização referida a danos patrimoniais dos mesmos autores (dos pais do menor), foi atribuído a estes na decisão repristinada um valor a liquidar ulteriormente, nos termos dos artigos 661.º, n.º 2 e 378.º a 380.º-A do CPC anterior, respeitante a despesas com a substituição (até à maioridade) de próteses das quais o menor carecerá, em função das malformações congénitas que apresenta.

Como pano de fundo destas atribuições indemnizatórias temos a aceitação pelo Supremo Tribunal de Justiça, confirmando o entendimento da primeira instância - e afastando o entendimento da segunda instância -, de uma pretensão indemnizatória assente no mencionado conceito de wrongful birth. Este foi feito corresponder, face às incidências do caso concreto, às normas substantivas que alicerçaram a afirmação deste tipo de dever de indemnizar, num quadro que foi caracterizado como de responsabilidade contratual e foi especificamente referido aos artigos 483.º, 798.º e 799.º do CC. Nestas situações, como já antes referimos neste texto, a obrigação de indemnizar é gerada num contexto de erro médico (qualificado este como má-prática médica) relativo a um diagnóstico pré-natal, quando o desvalor da ação, na execução de um contrato de prestação de serviços médicos com a peculiaridade de se referir a um diagnóstico deste tipo, privou os pais (os credores da atividade médica objeto desse contrato) do conhecimento de malformações do feto, conduzindo a um nascimento retrospectivamente qualificado de indesejado; um nascimento que os pais perspetivam como tal no momento da afirmação da correspondente tutela indemnizatória, por privação da respetiva liberdade de realizar, autónoma e informadamente, as suas escolhas reprodutivas (seguimos aqui a caracterização da essência de uma ação por wrongful birth, por Erin Nelson, Law, Policy and Reproductive Autonomy, cit., p. 230). Retemos aqui o uso do adjetivo "qualificado" - ...nascimento retrospectivamente qualificado de indesejado pelos pais...-, expressando o exato contexto de uma afirmação reportada à caracterização de um facto passado que se tornou num dado imutável do presente e cuja abordagem indemnizatória se esgota na fixação de uma indemnização em dinheiro (v. o artigo 566.º do CC).

Está em causa, pois, simplificando algo as coisas, uma indagação, sob a forma de recurso de constitucionalidade fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, quanto à conformidade constitucional, face aos artigos 24.º, n.º 1 e 67.º, n.º 2, alínea d) da CRP, do enquadramento normativo conferido, na lei civil substantiva, à atribuição de uma indemnização no quadro de uma wrongful birth claim (ação por nascimento indevido). Interessa precisar a diferenciação deste tipo de ação (por wrongful birth) das chamadas wrongful life claims (esta última situação foi aqui afastada logo na primeira das decisões do Tribunal de Barcelos, cf. item 1.2., supra), nas quais é o próprio menor portador da deficiência que figura como demandante do médico que falhou o diagnóstico atempado das suas próprias malformações, ou a informação de um diagnóstico correto aos seus pais, quanto à existência de deficiências. Como indica Paulo Mota Pinto, "[...] nas hipótese ditas de 'vida indevida' (wrongful life), é [...] interposta uma ação com fundamento no facto de ter nascido uma criança indesejada - designadamente, nascida com uma grave deficiência -, mas a ação é interposta pela própria criança em causa, que vem pedir uma indemnização por ter nascido" ("Indemnização em caso de 'nascimento indevido' e de 'vida indevida'...", cit., p. 916; cf. Thomas A. Burns, "When life is a injury...", cit., p. 807). Trata-se aqui, pois, de uma situação de wrongful birth - não de wrongful life - sendo esse, e só esse, o objeto de apreciação deste Tribunal.

Traduziu-se o pronunciamento decisório ora recorrido numa parcial procedência da pretensão indemnizatória dos autores (dos pais do menor) relativamente às rés, por via da afirmação do direito daqueles (dos pais) a serem indemnizados, num quadro de responsabilidade civil contratual, estando em causa uma obrigação de resultado e não uma obrigação de meios (foi nestes termos qualificada a situação pelo Supremo Tribunal de Justiça, cf. o Acórdão ora recorrido, entre outros, no trecho expositivo de fls. 785/787), pela situação decorrente de um erro médico atribuído às rés. Consistiu tal erro na não prestação aos autores de uma informação correta (traduziu-se, logo, na prestação de uma informação incorreta) quanto ao "resultado positivo" de um exame ecográfico, realizado em vista de um diagnóstico pré-natal. Este exame revelava, na sua correta interpretação, a existência de malformações no feto (convencionamos designar aqui como "resultado positivo", precisamente, a existência dessas malformações, considerando como "resultado negativo" o que revelasse a inexistência de malformações).

O elemento tempo referido à correção da informação prestada aos pais quanto ao diagnóstico pré-natal resultante desse exame médico (uma ecografia morfológica realizada às 21 semanas de gestação, que foi pericialmente qualificada em julgamento como erro de diagnóstico), é relevante no sentido em que a transmissão aos pais, então, de uma informação correta quanto à existência dessas malformações no feto, teria propiciado àqueles equacionar - e é tão-somente isso (equacionar) o que aqui está em causa - uma interrupção voluntária de gravidez, a qual seria legalmente possível até às 24 semanas de gestação (cf. o artigo 142.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 do Código Penal, na redação neste introduzida pela Lei 90/97, de 30 de julho, em vigor ao tempo da realização da segunda ecografia).

2.3 - Como vimos, a questão de constitucionalidade foi construída pelos Recorrentes no decurso do processo, rectius, após a prolação de uma primeira condenação destes no Tribunal de Comarca, com base no entendimento deste tipo de indemnização dita por wrongful birth, como implicando a ofensa das normas constantes do artigo 24.º, n.º 1 e 67.º, n.º 2, alínea d) da Constituição. Por via destas referências ao texto constitucional pretendem os Recorrentes introduzir a questão da interrupção voluntária da gravidez, enquanto fator de ponderação da viabilidade legal de uma indemnização deste tipo, em termos de associar o estabelecimento dos pressupostos de um dever de indemnizar assim construído à discussão do problema do aborto relativamente ao caráter inviolável da vida humana. É exatamente neste contexto que aparecem, no argumentário dos Recorrentes, as referências ao artigo 24.º, n.º 1 da CRP e mesmo ao artigo 67.º, n.º 2, alínea d) da CRP (desta feita por afirmação da exclusão do aborto do âmbito do planeamento familiar).

2.3.1 - Uma primeira nota para sublinhar o que constitui uma evidência decorrente dos factos em causa neste processo e em todas as situações de indemnização por wrongful birth e (embora não seja este o caso) por wrongful life. Referimo-nos à óbvia circunstância de não estar em causa, neste contexto, qualquer modificação de uma realidade física existencial, digamo-lo assim, pretendendo sublinhar que neste contexto tudo se passa no domínio da abstração, relativamente àquilo de que se fala a respeito da "interrupção da gravidez". Trata-se neste caso, tão-somente, de argumentar num plano hipotético, equacionando algo que poderia ter acontecido mas que, efetivamente, não aconteceu - que provavelmente até aconteceria face a um quadro factual pretérito, agora só configurado como hipótese contrafactual. Tudo se encerra, pois, quanto ao estabelecimento de uma indemnização por wrongful birth,na realização de uma operação intelectual de fixação dos pressupostos com base nos quais, depois, aí sim encarando o que realmente aconteceu, se determinará qual o comportamento que era devido pelos Recorrentes enquanto médicos, no sentido do comportamento que lhes era exigível a propósito da realização de um exame de diagnóstico pré-natal no quadro do relacionamento contratual estabelecido com os Recorridos.

Este raciocínio, que é, na alusão à possibilidade de uma interrupção da gravidez, de natureza puramente contrafactual, limita-se a convocar determinadas premissas que encerram/contêm as informações essenciais que servem de base à resolução de um problema prático com incidência jurídica. E este - o problema que aqui se coloca - resume-se a determinar qual teria sido o comportamento adequado dos Recorrentes (médicos), no quadro da realização de um exame médico de diagnóstico pré-natal contratado com os Recorridos, e se a omissão desse comportamento devido por parte daqueles determinou a estes últimos (aos Recorridos) um dano, relativamente ao qual devam ser indemnizados pelos Recorrentes, em função da qualificação desvaliosa da respetiva performance contratual como incumprimento ou cumprimento defeituoso. Ou seja, valendo como dano, em sentido jurídico, "[...] a supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida pelo Direito" (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, tomo III, Coimbra, 2010, p. 511), trata-se aqui de detetar a existência deste elemento relativamente aos autores e, alcançada uma resposta positiva, de referir um dever de indemnizar aos réus ora Recorrentes.

Estes utilizam a tal respeito, na procura de um fundamento de inconstitucionalidade quanto à afirmação desse dever de indemnizar, um argumento - trata-se, em bom rigor, mais propriamente de um modelo argumentativo - que é habitual na abordagem de problemas deste tipo, traduzido na rejeição da construção de um fundamento indemnizatório em que a reposição da situação hipotética que pressuporia a ausência de dano - a operação intelectual, que é indicada no artigo 562.º do CC, de reconstituição da situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação - conduzisse, ou pudesse conduzir, embora sempre como hipótese contrafactual, a algum tipo de afirmação retrospetiva (enquanto correspondência à situação de ausência de dano) da "não existência" do sujeito passivo do dever de indemnizar (no caso de wrongful life), ou daquele em função do qual a verificação desse dano é afirmada (no caso, que é o que aqui se coloca, de wrongful birth). Decorreria essa afirmação projetiva, e puramente virtual, de "não existência" de alguém da configuração hipotética do comportamento dos pais desse alguém, face ao comportamento devido por banda do médico a respeito do diagnóstico pré-natal, como envolvendo - teria envolvido preteritamente, tivesse sido correta a informação então prestada aos pais - a prática de uma interrupção voluntária da gravidez. Daí que a "afirmação" da existência de um sujeito resultante da pretensão de obter uma tutela indemnizatória, chocasse, nesta visão das coisas, com a operação intelectual de determinação desse dano ao conter esta, implicitamente, a afirmação de uma "não existência" desse sujeito como correspondendo à ausência de dano.

Esta questão é habitualmente referida, neste exato contexto, como "problema da não existência", ou como "paradoxo da não existência" (cf. F. Allan Hanson, "Suits for wrongful life, counterfactuals, and the nonexistence problem", inSouthern California Interdisciplinary Law Journal 5:1-24, 1996, texto disponível em: https://kuscholarworks.ku.edu/bitstream/handle/1808/4273/SoCalInterdisLJ.pdf?sequence=1&isAllowed=y). A rejeição de uma atribuição indemnizatória nas chamadas wrongful birth claims, com fundamento na afirmação do caráter inultrapassável deste paradoxo, hipotisa a consequência do que poderia ser o "comportamento lícito alternativo" à situação geradora do dano, no sentido em que a observância desse comportamento teria conduzido os pais, tivessem estes sido informados a tempo da deficiência do filho em gestação (tivessem eles sido confrontados nessas circunstâncias temporais com o comportamento lícito do médico), à prática de um aborto e, assim, à supressão da vida em função da qual a indemnização é (agora) pedida. Ora, a construção que permite a afirmação da existência de um dano nestas condições conteria - é o que dentro deste argumentário se pretende afirmar - uma espécie de "bomba lógica", um oximoro argumentativo, sendo a situação identificada como "contradição performativa": uma "[...] autocontradição [...], pela qual de certa forma se põe em causa retroactivamente a base sobre a qual assenta a possibilidade de invocação da pretensão de informação [aqui a pretensão indemnizatória]" [Claus-Wilhelm Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Coimbra, 2003, p. 96, nota 207 - tenha-se presente referir-se o Autor no trecho acabado de transcrever à pretensão do filho de conhecer a identidade do pai, na inseminação artificial em que o dador tenha sido anónimo: "[n]o atual estado do direito dos alimentos e das sucessões, o dador razoável só se declarará [...] pronto para a doação se for garantido em princípio o seu anonimato. Este constitui, assim, de facto, verdadeiramente uma condição de possibilidade de que o filho possa de todo chegar a viver, e não pode, pois, a meu ver, ser intensamente prejudicado, ou, mesmo, inteiramente posto em causa, por uma pretensão geral de informação sobre identidade do dador" (ibidem, p. 96); note-se que este Autor estende esta ideia de "contradição performativa" à pretensão indemnizatório do filho por wrongful life, ibidem, pp. 96/97, nota 208].

Já num outro plano, por referência ao caráter inviolável da vida humana - sendo este o plano que diretamente interessa a este acórdão - a negação da possibilidade de que um dano possa ser construído com esta base, assentaria na recusa de encarar a vida de alguém, mesmo no quadro de uma mera operação intelectual contrafáctica, como um dano.

2.3.2 - Entre nós, é este ponto de vista claramente sustentado por Manuel Carneiro da Frada (precisamente o Autor citado pelos Recorrentes):

"[...]

São especialmente discutidos os casos em que uma criança gravemente deficiente (representada pelos seus pais) aciona o médico que assistiu a mãe durante a gravidez, pretendendo que o médico omitiu aos pais a informação acerca da sua deficiência e, com isso, impediu a mãe da realização de um aborto da sua pessoa.

É certo que o médico não se apresenta responsável pela implantação da deficiência, que surge normalmente logo desde o início da vida pré-natal. No entanto, a omissão do esclarecimento sobre essa deficiência é tida como ilícita. O comportamento alternativo lícito do médico teria evitado o nascimento e, deste modo, a vida gravemente deficiente.

A vida (ou o nascimento) é aqui considerada um dano, o que se exprime nas fórmulas conhecidas wrongful life e wrongful birth.

[...]"("A Própria Vida como Dano? Dimensões Civis e Constitucionais de uma Questão-Limite", in Forjar o Direito, Coimbra, 2015, p. 254).

E acrescenta este Autor, fundando a rejeição de uma indemnização com este fundamento a cargo do médico (referida, é certo, diretamente às situações de ação por wrongful life, nos termos acima caracterizados):

"[...]

Porque é que haveria de permitir-se que alguém prescindisse (embora mentalmente) da sua própria vida, levando a sério o seu desejo alegado de não viver (e esquecendo, contrafacticamente, a convicção empírica da força do instinto de conservação)? Tal ocorreria, no final de contas, a expensas de terceiros - do médico ou da mãe, que de repente teriam de suportar as consequências dessa inexigibilidade e, assim, da (simples) disposição virtual da própria vida pelo sujeito.

[...]" (ibidem, p. 266).

Na fase inicial da discussão desta questão - vimos que isso ocorreu em ambiente judicial nos Estados Unidos na década de sessenta do século passado -, este paradoxo conceptual conduziu maioritariamente à rejeição das pretensões indemnizatórias construídas com esta base [cf. Erin Nelson, Law, Policy and Reproductive Autonomy, cit., pp. 205/209, este Autor refere, aludindo especificamente à experiência norte-americana e às ações por wrongful life, a um sentimento inicial, expresso em algumas decisões, de "desconforto judicial e de incerteza" no tratamento deste tipo de situações, sentimento do qual a própria designação encontrada, indisfarçadamente despectiva, constituiria manifestação (p. 206, cf., infra, item 2.3.1.1.)].

A paulatina abertura a pretensões indemnizatórias deste tipo alicerçou-se na desvalorização do sentido do paradoxo da não-existência, por via da caracterização da realidade em causa nessas ações como substancialmente distinta nos seus pressupostos da afirmação hipotética contida na formulação do paradoxo. Tratar-se-ia nestes casos, e mais claramente até nas situações por wrongful birth, de fixar uma indemnização, necessariamente fora de qualquer quadro de "reconstituição natural", por danos atuais imutáveis, sempre atribuída em função de uma efetiva situação de existência e sempre estabelecida por referência a desvalores decorrentes das peculiaridades da atividade de médicos agindo no quadro de um diagnóstico pré-natal. E tudo isto, enfim, com base na consideração de não se justificar deixar fora da tutela indemnizatória a má-prática médica nestas situações, vistas como correspondentes a obrigações de resultado, e de não ser justo, igualmente, não conferir essa tutela aos destinatários da informação contida nesse tipo de diagnóstico - os pais - quando essa informação tinha um significado como critério de decisão destes naquela conjuntura temporal, perdendo-o totalmente fora desse enquadramento temporal.

Encontramos um exemplo marcante da desvalorização do sentido do paradoxo conceptual da não existência numa decisão de 1980 de um tribunal de recurso da Califórnia, Curlander v. Bio-Science Laboratories (disponível em: http://law.justia.com/cases/california/court-of-appeal/3d/106/811.html, estando em causa uma ação por wrongful life, não por wrongful birth, na qual uma menor pretendia ser indemnizada por um erro de diagnóstico, no início da respetiva gestação, da doença de Tay-Sachs, uma grave doença degenerativa), afirmando o Tribunal a este respeito:

"[...]

Não é necessário nem é justo refugiarmo-nos numa meditação especulativa sobre os mistérios da vida. Não necessitamos de nos preocupar com a possibilidade de o demandante poder não ter chegado a existir, não fora a negligência dos demandados [had defendants not been negligent].O facto é que o demandante, afetado de uma grave deficiência, chegou à existência e dispõe de todos os seus direitos.

[...]".

Trata-se, nesta visão das coisas, de sublinhar, enquanto verdadeira essência deste tipo de ações, a circunstância de expressarem - de só expressarem -, como dissemos, pretensões de compensação indemnizatória por má-prática médica. A circunstância de assentarem, de alguma forma, numa construção contendo algo de paradoxal, pouco ou nada muda nessa essência reparatória de danos sofridos por pessoas determinadas em resultado do desvalor da conduta de outras pessoas. Aliás, a base de afirmação do paradoxo da não existência - da autocontradição ou contradição performativa nos termos referidos por Claus-Wilhelm Canaris no trecho supra transcrito - é objeto de contestação, afirmando-se - e citamos Paulo Mota Pinto (referindo-se, é certo, às situações de wrongful life) - que a imputação à afirmação pressuposta no pedido indemnizatório da autodestruição da base em que assenta a formulação desse pedido, "[...] está longe de ser inevitável, pois a existência da criança é um dado real, que evidentemente não é afetado pela formulação do pedido" ("Indemnização em caso de 'nascimento indevido' e de 'vida indevida'...", cit., p. 935). E acrescenta este Autor, "[c]omo refere Erwin Deutsch, 'a jurisprudência negou esta pretensão porque nem existe um fundamento de pretensão delitual, nem a criança se poderia colocar na posição de que seria melhor não ter nascido', mas 'ambos os argumentos se rebatem a si próprios: o direito de personalidade em formação atribui um fundamento de pretensão no caso de lesão; a afirmação de que seria melhor não ter nascido é justamente o pressuposto da pretensão ressarcitória'; e - acrescentamos nós - a existência da criança é um dado que não pode estar em causa, para efeitos da sua legitimidade" (idem).

2.3.2.1 - Aliás, os argumentos esgrimidos no sentido do afastamento deste paradoxo não assentam em fundamentos substancialmente distintos do raciocínio que possibilita afirmar a ressarcibilidade do dano morte, enquanto dano da própria vítima, distinto dos danos daqueles (fundamentalmente os familiares) que também foram afetados por essa morte. Com efeito, assente que o comportamento desvalioso do médico, nas situações designadas como wrongful birth (a que aqui concretamente se coloca), é suscetível de gerar um dano que poderemos considerar evidenciado pela existência de uma pessoa em determinadas condições, é possível fazer descaso de muito do sentido do paradoxo da não existência, valendo aqui, por relevante identidade de razão, as observações de António Menezes Cordeiro a respeito do caráter artificial das construções que pretendem excluir a indemnização por dano morte, por esta envolver o fim da existência do titular do direito a ser ressarcido:

"[...]

[D]eve ficar bem claro que a solução [...] tem de ser procurada através de uma interpretação valorativa e não de um esquema aparentado à jurisprudência dos conceitos. A questão de saber se o dano-morte é, ou não, indemnizável não pode ficar dependente de lucubrações teóricas, assentes em exercícios silogísticos formais [...].

[...]" (Tratado de Direito Civil Português, II, tomo III, cit., p. 521; no mesmo sentido, cf. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 4.ª ed., Coimbra, 2005, pp. 321/322).

Recordemos, a este propósito, o exato contexto do aparecimento das designações wrongful life e wrongful birth, em pronunciamentos judiciais norte-americanos na década de sessenta do século passado (cf. item 2., supra). Com efeito, tratou-se em tais casos de descrever, metaforicamente, que a pretensão indemnizatória na qual se vislumbrou uma base paradoxal - estar vivo e pressupor-se a morte como a ausência do dano -, funcionava como uma espécie de antítese da wrongful death, que, todavia, colocaria um problema metodologicamente semelhante ao da atribuição do tipo de indemnização que se qualifica, entre nós, como dano morte (v. Edward J. Kionka, Torts, 4.ª ed., St. Paul, Minnesota, 2005, pp. 417/418), sendo que na common law a "regra" a tal respeito, que se associa à reafirmação do brocardo "actio personalis moritur cum persona", excluía a consideração como dano indemnizável da própria morte de alguém [o que foi estabelecido como precedente por Lord Ellenborough, na decisão Baker v. Bolton (King's Bench) de 1808 ("in a civil court, the death of a human being could not be complained of as an injury", cf. Edward J. Kionka, Torts, cit., pp. 413 e 418); daí que nos sistemas de common law este tipo de indemnização assente, invariavelmente, em opções legislativas expressas, não no estabelecimento de qualquer precedente, ibidem, pp. 413 e 419/420]. O jogo metafórico de designações - wrongful birth/wrongful death - procurou, assim, explicitar a negação de uma pretensão indemnizatória por esta ser vista como encerrando um paradoxo conceptual com algum paralelismo ao que existiria na wrongful death, ou seja, na consideração indemnizatório do dano morte. É assim que observamos uma base argumentativa com aspetos comuns no afastamento das objeções lógicas à consideração do chamado dano morte e do paradoxo da não existência a respeito da indemnização por wrongful birth. Trata-se de sublinhar o caráter conceptualista do paradoxo, quando encarado como obstáculo inultrapassável, e de afirmar a existência, nestas situações, de razões de justiça depondo no sentido do acolhimento, no quadro da responsabilidade civil, da ressarcibilidade de danos cuja construção apresente, todavia, algum elemento paradoxal.

2.3.3 - Centrando-nos agora na situação que nos ocupa, a indemnização por wrongful birth - sublinhamos sempre ser esta a situação aqui em causa e que, por isso, só a conformidade constitucional dessa indemnização decidiremos aqui -, importa dar conta das posições que, convergindo com o sentido da decisão do Supremo Tribunal de Justiça ora recorrida, não excluem a consideração de uma indemnização, a cargo do médico responsável por um erro no diagnóstico pré-natal, quando este erro interferiu relevantemente com as opções reprodutivas dos pais da criança, entretanto nascida, privando-os do conhecimento de dados importantes, aptos a modelar essas opções em conformidade com o Direito, num quadro temporal pretérito em que existia a possibilidade de (ainda) serem consideradas diversas opções a esse respeito, designadamente a de pôr termo à gravidez. Esta possibilidade - e estamos tão-somente a indicar um dado de facto objetivo: o exato enquadramento legal da situação em 26/11/2004, às 21 semanas e um dia de gestação, existindo motivos seguros para prever que o nascituro viria a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita, ecograficamente comprovada (artigo 142.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, na redação da Lei 90/97, de 30 de julho) -, esta possibilidade, dizíamos, vale aqui como indicação do que não deixaria de integrar uma atuação lícita dos pais quanto à modelação das suas opções reprodutivas, face às diversas possibilidades de escolha que, então, se lhes apresentavam, dentro de uma panóplia de comportamentos não censurados pelo Direito.

Afirmar a liberdade das pessoas, reconhecer a sua autonomia decisória e de atuação num quadro não censurado pelo Direito, não pode deixar de considerar como situação apta a gerar um dever de indemnizar a interferência de terceiros, em desconformidade com o ordenamento jurídico, com essa liberdade e autonomia.

A este respeito, sublinhamos a interrogação através da qual António Menezes Cordeiro introduz a consideração deste problema:

"[...]

O próprio nascimento poderá [...] ser considerado um dano?

[...]".

E acrescenta este Autor, enfatizando a complexidade de que se reveste a procura de uma resposta:

"[...]

[N]a hipótese de erro médico de que resulte uma gravidez não programada, há lugar a uma indemnização reparatória. Não deixa de haver dano pelo facto de, em consequência do erro, ter surgido um nascituro com direito à vida e, por maioria de razão, uma criança com a plenitude das posições reconhecidas ao ser humano.

Foi celebrado um contrato de prestação de serviço médico. Por força desse contrato, a interessada adquiriu o direito a um aconselhamento capaz e competente e, sendo esse o caso, a tratamentos adequados. Quando o contrato seja deficientemente cumprido, ela tem direito a todas as demais despesas assim ocasionadas, despesas essas que não são compensáveis com o gosto que, afinal, até possa ter por acolher mais um filho. Noutro prisma: admitir que certos contratos de prestação de serviço médico pudessem ser desleixadamente cumpridos a pretexto de que, daí, 'apenas' resultaria uma criança é inadmissível: seria premiar a irresponsabilidade e o enriquecimento ilícito, uma vez que o médico é pago pelos seus serviços.

[...]

Evidentemente: nestes casos de falhas de planeamento familiar, quem não terá razão de queixa será o próprio nascituro. A questão poderá pôr-se de modo diverso se este for um deficiente e se a falha médica tiver consistido na má realização do diagnóstico pré-natal. Tal diagnóstico permitiria, designadamente e por hipótese, pôr cobro à gravidez, integrando uma situação na qual o aborto se encontra despenalizado.

[...]" (Tratado de Direito Civil Português, I, tomo III, Coimbra, 2004, pp. 282/283).

Recordando este Autor o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/06/2001 - que entre nós constituiu a primeira decisão do Supremo Tribunal que apreciou uma pretensão indemnizatória por wrongful life, equacionando em paralelo a atendibilidade da indemnização por wrongful birth, rejeitando a primeira situação e aceitando a segunda (este Acórdão, referindo-se a uma situação de erro médico praticamente igual ao aqui em causa, está publicado, com uma anotação de António Pinto Monteiro, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, 134.º Ano, 2001/2002, n.º 3933, pp. 371/384) -, aludindo a esta decisão do Supremo Tribunal de 2001, acrescenta António Menezes Cordeiro:

"[...]

Atribuir uma indemnização à criança...por esta ter nascido equivaleria a considerar a sua vida (atual e, porventura, deficiente) como dano, sendo que a alternativa apontaria não para uma vida 'normal', mas para a não-vida. Pedir-se-ia ao Direito que considerasse a morte preferível à vida deficiente, o que é de todo impossível, por contraditoriedade a qualquer sistema jurídico civilizado. Já a pretensão por deficiente diagnóstico - e, portanto, por mau cumprimento do contrato de prestação de serviço médico - parece razoável, independentemente de, daí, poder resultar o aborto: as pretensões da criança e as dos pais não são, claramente, homogéneas.

Os casos de 'vida indesejada' já haviam sido discutidos nos Estados Unidos, tendo, aí, soluções semelhantes às encontradas pelo BGH alemão e pelo nosso Supremo Tribunal de Justiça [refere-se ao Acórdão de 19/06/2001 acima referido, também disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a58b8e01db0db488802577a80046c040?OpenDocument].

Parece patente que a dificuldade por eles colocada resulta de uma contradição absoluta de valorações: a de se considerar eliminável a vida do nascituro deficiente e intocável a vida do recém-nascido que se encontre nessas mesmas condições. Daí que se revele tecnicamente impossível considerar a vida (extrauterina) como um dano, para efeito de penalizar a não-'interrupção' da vida intrauterina. A não incriminação do denominado aborto eugénico não permite progredir, uma vez que, ela própria, entra em contradita com a forte incriminação do infanticídio, mesmo quando se trate de uma vítima deficiente.

A intocabilidade da vida do recém-nascido conduzirá, assim, a que este não possa demandar o médico...por estar vivo. Simplesmente este raciocínio, a ser coerentemente mantido, vai vitimar, também, as pretensões dos pais. Sendo a vida do filho inviolável, como podem ser indemnizados por ele estar vivo? Todavia, é evidente que o médico que, por negligência (ou, até, dolo!) falseie um diagnóstico pré-natal, vedando a alternativa, efetivamente existente na generalidade dos Direitos do Ocidente, de um aborto eugénico, não cumpre o seu contrato, devendo ser civilmente sancionado.

Temos de reconhecer, com humildade, que as contradições de valores pré e pós-natais tornam impossível uma solução científica e sistematicamente conforme. Procurar uma saída na relativização do próprio ser humano não é dogmaticamente possível nem eticamente imaginável. A solução está noutra latitude: o alargamento dos escopos de responsabilidade civil e a tutela da confiança na execução dos contratos levam-nos a propender para um direito dos pais a uma indemnização, por violação do contrato e do dever de informar. Em termos de valoração material, poderemos considerar que o médico se torna coresponsável pelo produto da (in)execução do contrato.

[...]" (Tratado de Direito Civil Português, I, tomo III, cit., pp. 288/289, sublinhado acrescentado).

No mesmo sentido aponta Fernando Araújo (referindo-se embora, especificamente, a erros no quadro da aplicação de técnicas de procriação assistida):

"[...]

[P]ese embora as designações pomposas (e algo absurdas) de «nascimento indevido» e de «vida indevida», o que está fundamentalmente em causa é uma questão de justiça com forte incidência económica, que se centra na legitimação de interrogações sobre a eventualidade de ficar impune uma conduta que negligentemente causa despesas extraordinárias a outrem - no sentido de causar danos físicos que requerem tratamentos especiais -, ou sobre a possibilidade de, contra a regra jurídica comum, se admitir a irresponsabilidade de médicos e cientistas num domínio onde o potencial de dano é tão vasto, e as consequências individuais podem ser tão onerosas como permanentes. Postas as questões nestes termos [...] vemos como a solução se integra facilmente nos quadros tradicionais da responsabilidade civil, nos quais o Direito se preza de dispor de preceitos sedimentados e consagrados há milénios.

[...]" (A Procriação Assistida e o Problema da Santidade da Vida, Coimbra, 1999, p. 100).

Aceitando a indemnização no caso de wrongful birth, e também em situações qualificadas como wrongful life, refere a este respeito Paulo Mota Pinto:

"[...]

[T]endemos a admitir a concessão de uma indemnização aos pais, pelos seus danos patrimoniais (designadamente, o 'dano do planea-mento familiar' resultante do não cumprimento de um contrato) ou não patrimoniais em resultado do nascimento da criança indesejada, salvo, no caso dos danos não patrimoniais, quando se alegasse como seu fundamento tão-só o nascimento de uma criança saudável. E cremos, por outro lado, que, nos casos de nascimento de uma criança com uma deficiência, deve também aceitar-se o ressarcimento da própria criança, pelas suas necessidades acrescidas e até por danos não patrimoniais. Isto, embora possa discutir-se, como fez o STJ [refere-se o Autor ao Acórdão já mencionado de 19/06/2001], se este pedido deve poder ser deduzido pelos pais, enquanto a criança for menor, pelo menos nos casos em que ela, provavelmente, não necessitará do suprimento de uma incapacidade por toda a vida.

[...]

[A] negação de uma indemnização com fundamento na inadmissibilidade de uma bitola 'contrafactual', ou hipotética, a que aquela criança que formula a pretensão possa recorrer, quase envolve, nos resultados a que chega (que são evidentemente o teste decisivo), como que uma renovada afirmação da ofensa que lhe foi feita: não só a criança nasceu com uma grave deficiência, como, na medida em que não teria podido existir de outro modo, é-lhe vedado sequer comparar-se a uma pessoa 'normal', para o efeito de obter uma reparação pelo erro médico.

Ora, mesmo que individualmente não fosse possível o nascimento daquela criança sem deficiência, é óbvio que existe um padrão contrafactual de comparação - o da pessoa sem malformações e regularmente funcional -, e, para evitar o referido resultado, é a ele que há que recorrer.

[...]" ["Indemnização em caso de 'nascimento indevido' e de 'vida indevida' ('wrongful birth' e 'wrongful life')", cit., pp.927/928 e 934].

2.3.4 - O desvalor aqui apontado pelos Recorrentes à atribuição de uma indemnização por wrongful birth - é desta, tão-somente, que trata o presente recurso - convoca, como antes dissemos, enquanto valor constitucional que os Recorrentes afirmam ser colocado em causa, o caráter inviolável da vida humana, por referência à norma do texto constitucional contendo esta afirmação:

Artigo 24.º

Direito à vida

1 - A vida humana é inviolável.

[...]

O sentido em que tal inviolabilidade seria colocada em causa já foi suficientemente caracterizado ao longo deste Acórdão, sublinhando-se o caráter virtual dessa construção (expressa no paradoxo da não-existência), no sentido de ela aparecer - e de se esgotar - na formulação de uma hipótese contrafactual no quadro da caracterização das consequências do incumprimento do objetivo precípuo de um ato médico (do contrato que o pressupõe) com as peculiares características técnicas de um diagnóstico pré-natal, no sentido em que este se traduz no assumir, pelo médico, de uma obrigação de resultado. É com este sentido que se afirma que o paradoxo da não existência neste tipo de ações pode ser descartado, sendo estas conceptualizadas "[...] mais em termos dos danos atuais causados a quem está vivo, pela negligência de outros, do que em termos da condição imaginada em que estaria o demandante se a conduta negligente não tivesse ocorrido" (F. Allan Hanson, "Suits for Wrongful Life Counterfactuals...", cit., p. 3). Seja como for, mesmo colocando-se o acento tónico na questão da não existência, não deixa de ser significativa a circunstância de esta se esgotar numa construção intelectual, sem qualquer repercussão efetiva na existência de alguém, enquanto dado de facto que não sofre alteração alguma com o estabelecimento de uma indemnização em dinheiro. Vale, a este respeito, a constatação de que a proteção do direito à vida, no contexto do n.º 1 do artigo 24.º da CRP, se refere à tutela "[...] da existência vivente, físico-biológica", "[abrangendo] não apenas a vida das pessoas, mas também a vida pré-natal, ainda não investida numa pessoa, a vida intrauterina [...]" (J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, pp. 447 e 449; cf. o Acórdão 75/2010), não exclui, no quadro da afirmação dessa inviolabilidade, que a aferição da existência de um dano envolva uma operação intelectual de cariz contrafactual que identifique, como hipóteses não verificadas, as várias opções não excluídas pela ordem jurídica que se colocariam aos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, da qual não foram informados durante a gestação, caso essa informação - da qual eram contratualmente credores - lhes tivesse sido fornecida em determinadas circunstâncias de tempo. É neste sentido que se afirmou - e ora se reafirma - estar aqui em causa, na indemnização dita por wrongful birth, o ressarcimento dos pais pelo dano resultante da privação do conhecimento de um elemento importante no quadro das respetivas opções reprodutivas, quando o conhecimento dessa circunstância ainda apresentava potencialidade para determinar ou modelar essas mesmas opções. Está em causa, pois - como também antes se referiu, supra no item 2.2. -, a interferência pelo médico, através de uma prestação contratual inexata, porque desconforme à que era devida, na liberdade de realização, pelos pais, das suas escolhas reprodutivas de forma autónoma e informada.

Aliás, relativamente à pretensão de associar à questão do aborto ao estabelecimento de um dever de indemnizar com esta base, não deixaremos de sublinhar - e trata-se de uma evidência - que a simples caracterização deste dever nenhum efeito produz ou potencia quanto às questões colocadas a respeito do debate sobre a despenalização, em determinadas condições, da interrupção voluntária da gravidez. De facto, nenhuma interrupção da gravidez ocorre ou ocorrerá por via da fixação de uma indemnização em dinheiro no quadro aqui traçado, sendo certo que este quadro assume, quanto à tutela indemnizatória conferida, a absoluta impossibilidade de qualquer forma de "reparação natural" de um dano em que o fator tempo, entretanto esgotado, assumia um papel central. Isto mesmo é salientado por Paulo Mota Pinto:

"[...]

Quanto às objeções especificamente ético-jurídicas à indemnização, deve rejeitar-se, a nosso ver, a que assenta na indisponibilidade da vida humana, pelo menos para quem entenda que essa indisponibilidade (configurando também uma limitação à liberdade do titular) assenta, decisivamente, na irreversibilidade da disposição da vida, implicando uma destruição irremediável do centro autónomo de decisão que é objeto de proteção jurídica.

Como não está em causa qualquer 'reconstituição natural', consistente na eliminação da criança deficiente - conclusão, que, apesar dos trágicos precedentes históricos, deverá hoje ser óbvia, mas que também não impede uma indemnização por equivalente -, ou o sancionamento da eficácia jurídica de um ato tendente a tal disposição, não se vê como pode a indisponibilidade da vida humana ser afetada por se reconhecer uma indemnização à própria criança (ou aos pais).

[...]" ["Indemnização em caso de 'nascimento indevido' e de 'vida indevida' ('wrongful birth' e 'wrongful life')", cit., pp. 935/936].

2.3.5 - Assente que a aceitação de uma indemnização deste tipo (por wrongful birth) não afeta a inviolabilidade da vida humana, estabelecida no artigo 24.º, n.º 1 do texto constitucional, importa agora considerar o argumento adicional de inconstitucionalidade esgrimido pelos Recorrentes, tomando por referência uma invocada violação do artigo 67.º, n.º 2, alínea d), da CRP. Este argumento é apresentado à consideração do Tribunal nos termos seguintes:

"[...]

Atribuir aos recorridos uma indemnização por violação do seu direito à autodeterminação, é interpretar o artigo 67.º, n.º 2, alínea d) da Constituição como um instrumento de planeamento familiar.

Portanto, apesar do entendimento que os pais devem ter o direito de determinar livre e conscientemente a dimensão da sua família e o escalonamento dos nascimentos, conceder aos pais o direito a uma indemnização por violação do seu direito à autodeterminação, concretamente no que toca ao familiar é resultado de uma má interpretação constitucional.

Na medida em que, o texto constitucional não autoriza uma interpretação do artigo 67.º, n.º 2, al. d), no sentido de que a interrupção da gravidez constitui um instrumento de planeamento familiar ou uma solução imposta pela necessidade de garantir o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes.

Pelo contrário, não só tal leitura ignora o sentido do direito à vida consagrado no artigo 24.º n.º 1, como o propósito disposto no artigo 67.º, n.º 2, al. d), surgiu, historicamente, como uma solução que pretendia favorecer a adoção de meios e métodos que evitassem práticas abortivas.

[...]".

A norma constitucional em causa prevê o seguinte:

Artigo 67.º

(Família)

1 - A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.

2 - Incumbe, designadamente, ao Estado para proteção da família:

[...]

d) Garantir, no respeito da liberdade individual, o direito ao planeamento familiar, promovendo a informação e o acesso aos métodos e aos meios que o assegurem, e organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes;

[...]

Afigura-se razoavelmente linear que esta disposição constitucional não tem qualquer atinência à concreta situação dos autos.

No n.º 2 do artigo 67.º da CRP está em causa, essencialmente, nas palavras de Gomes Canotilho e de Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, cit. p. 864):

"[...]

[U]m «direito social», em sentido próprio, traduzido essencialmente em direito a prestações públicas, a concretizar por lei, [valendo também] face à «sociedade», ou seja, face aos particulares, em especial as entidades empregadoras, nos termos das leis concretizadoras deste direito [...].

[...]".

O direito ao planeamento familiar e à maternidade e paternidade conscientes - que leva implicitamente pressuposto o direito "[...] a ter filhos de acordo com os projetos pessoais de cada um (cf. artigo 36.º-1)" (Gomes Canotilho e Vital Moreira, idem) - exige, antes de mais, que o Estado se organize em termos que permitam assegurar, através de prestações positivas (v. g., a informação ao público ou a criação de serviços de atendimento e acompanhamento dos casais), a formação esclarecida da vontade de procriar.

Como é evidente, o exercício "de uma maternidade e paternidade conscientes" acarreta consequências (positivas) quanto a esta problemática, na medida em que quanto mais esclarecida e ponderada é a concretização da vontade de ter um filho, menor é a probabilidade - no universo das pessoas que procriam - de uma gravidez vir a ser voluntariamente interrompida, independentemente das razões que fundem a interrupção. Todavia, esta asserção nada tem a ver com o fenómeno da interrupção da gravidez em caso de malformações evidenciadas pelo nascituro, ocorrência que, aliás, já constituía causa de não punibilidade da interrupção da gravidez muito antes do movimento de despenalização - cf. artigo 140.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal na redação emergente da Lei 6/84, de 11 de maio. Pelo contrário, a associação entre planeamento familiar e a interrupção da gravidez faz-se, como é evidente, por referência a uma interrupção desmotivada, sem relação com perigos para a saúde da grávida ou do nascituro, designadamente no sentido de reduzir o número de gravidezes indesejadas (cf., por exemplo, a nota descritiva n.º 351, sobre "planeamento familiar", da Organização Mundial de Saúde, disponível na página http://www.who.int/ e Carolyn Curtis, Douglas Huber e Tamarah Moss-Knight, "Postabortion Family Planning: Addressing the Cycle of Repeat Unintended Pregnancy and Abortion", inInternational Perspetives on Sexual and Reproductive Health, vol. 36, n.º 1 - março de 2010, disponível em www.guttmacher.org).

Uma hipótese - como é a dos autos - de uma gravidez desejada relativamente à qual se poderia ter colocado a possibilidade de optar por uma interrupção por motivos de malformação do feto em nada se relaciona com a formação esclarecida e informada da vontade de procriar ou com os meios que devem ser colocados à disposição das pessoas em vista do objetivo programático que subjaz ao artigo 67.º, n.os 1 e 2, alínea d) da CRP.

2.3.6 - Afastado que está o enquadramento da hipótese dos autos como violação do direito à vida - por, manifestamente, não estar em causa a lesão do bem jurídico protegido pela norma constitucional -, e afastada, também, a referência ao artigo 67.º da CRP, há que caracterizar o quadro jurídico-constitucional da obrigação (ou dever) de indemnizar, sendo este o problema fundamental que aqui se coloca. Na verdade, se os Recorrentes sustentam que a imposição de uma obrigação de indemnização - sob a forma de uma decisão condenatória - acarreta a aplicação de normas inconstitucionais, tal conclusão não pode ser validada ou afastada sem compreender de que modo (ou modos) a indemnização adquire (ou pode adquirir) relevância face à Constituição.

Antes de mais, o direito à indemnização - o mesmo vale para a correspondente obrigação de indemnizar - deve ser visto por referência a um outro direito: aquele cuja reparação se pretende assegurar precisamente pela via indemnizatória. A este respeito, tem o Tribunal reconhecido que o direito à indemnização de danos é uma imposição decorrente do princípio do Estado de direito democrático, consubstanciando, também, uma vertente específica da tutela dos direitos individuais. Assinalou-se, a este propósito, no Acórdão 363/2015:

"[...]

O Tribunal Constitucional tem vindo a reconhecer um direito geral à reparação ou compensação dos danos provenientes de ações e omissões fundado no princípio estruturante do Estado de direito democrático acolhido no artigo 2.º da Constituição (cf., em especial, os Acórdãos n.os 385/2005 e 444/2008 [...]. Este «direito geral» impõe desde logo que o legislador assegure a respetiva concretização. Como referido no mencionado Acórdão 444/2008:

«Constituindo missão do Estado de direito democrático a proteção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça, não poderá o legislador ordinário deixar de assegurar o direito à reparação dos danos injustificados que alguém sofra em consequência da conduta de outrem. A tutela jurídica dos bens e interesses dos cidadãos reconhecidos pela ordem jurídica e que foram injustamente lesionados pela ação ou omissão de outrem, necessariamente assegurada por um Estado de direito, exige, nestes casos, a reparação dos danos sofridos, tendo o instituto da responsabilidade civil vindo a desempenhar nessa tarefa um papel primordial».

E o mesmo direito não é incompatível com previsões constitucionais específicas de direitos de indemnização, como sucede, por exemplo, nos artigos 22.º, 37.º, n.º 4, 60.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2. Em especial no que se refere à responsabilidade direta do Estado e demais entidades públicas consagrada no primeiro daqueles preceitos, tem vindo a entender-se que a caracterização de tal princípio como princípio-garantia ou como garantia institucional não prejudica a sua dimensão subjetiva, no sentido de estar em causa também um direito fundamental à reparação dos danos causados por ação ou omissão ilícitas dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas, de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias [...].

[...]".

Nesta perspetiva, pode afirmar-se que os direitos protegidos pela Constituição podem resultar intoleravelmente afetados no caso de ser negada a indemnização dos danos decorrentes da sua lesão (Acórdão 292/2008). O Tribunal teve já oportunidade de associar o direito à indemnização e a tutela dos direitos absolutos (ligação que, aliás, é viva na própria estrutura fundamental do artigo 483.º do Código Civil). Sobre a matéria, recupera-se a linha argumentativa seguida no Acórdão 385/2005:

"[...]

Poderá admitir-se que a Constituição consagra, para além dos casos em que especificamente admite o direito de indemnização por danos, como acontece nos artigos 22.º, 60.º, n.º 1, 62.º, n.º 2, e 271.º, n.º 1, um direito geral à reparação de danos. A existência de um tal direito impor-se-á como um postulado intrínseco da efetividade da tutela jurídica condensada no direito do respetivo titular naqueles casos, pelo menos, em que se verifica a violação de um direito absoluto constitucionalmente reconhecido. O dever de indemnizar, nestas hipóteses, surge como elemento necessário do conteúdo da tutela constitucionalmente dispensada ao direito.

O artigo 483.º do Código Civil poderá ser, assim, visto, pelo menos em parte, como uma norma densificadora da tutela constitucional dispensada aos direitos absolutos. E diz-se em parte porque a obrigação de indemnizar a que se refere, independentemente de não abranger a responsabilidade de fonte negocial e contratual (situada fora do domínio dos direitos absolutos), pode ter por fonte não só a violação de direitos dessa natureza mas também a simples violação de 'disposição legal destinada a proteger interesses alheios'.

[...]".

Não pode esquecer-se, pois, que discutir a responsabilidade civil é discutir consequências da violação de direitos (assim, Manuel Gomes da Silva, O Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar, vol. I, Lisboa, 1944, pp. 82 e ss.) e, como é evidente, a reparação das consequências da violação de um direito é inseparável da sua tutela. Trata-se de uma ideia com inúmeras manifestações no ordenamento jurídico nacional e internacional, podendo assinalar-se, a título de exemplo impressivo, o disposto no artigo 41.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (sobre a matéria, com maior detalhe, cf. Antoine Buyse, "Lost and Regained? Restitution as a Remedy for Human Rights Violations in the Context of International Law", Zeitschrift für ausländisches öffentliches Recht und Völkerrecht, vol. 68 (2008), pp. 129 e ss., especialmente pp. 143 e ss.):

"[...]

Se o Tribunal declarar que houve violação da Convenção ou dos seus protocolos e se o direito interno da Alta Parte Contratante não permitir senão imperfeitamente obviar às consequências de tal violação, o Tribunal atribuirá à parte lesada uma reparação razoável, se necessário.

[...]".

Cumpre ainda referir que a indemnização pode desempenhar um papel inverso - negativo - na tutela dos direitos, em particular nos casos de colisão de direitos, na medida em que imponha um sacrifício ao titular de um direito em benefício do outro. No Acórdão 292/08 fez-se notar, a este propósito:

"[...]

Sempre se poderia argumentar que a responsabilização civil dos jornalistas, a título de negligência (e, necessariamente, a sua responsabilização pecuniária), por notícias publicadas ao abrigo do seu direito de investigação jornalística, restringiria o conteúdo essencial da liberdade de informação e de imprensa, pois aqueles abster-se-iam de publicar notícias e de investigar, salvo quando estivessem absolutamente certos da veracidade dos factos, ou pelo menos, restringiria essas liberdades de modo desproporcionado. No fundo, o regime da responsabilidade civil, a título de mera negligência (e, no nosso caso, na forma inconsciente) poderia vir a funcionar como mecanismo de autocensura, em prejuízo da democracia.

[...]"

E, pese embora, neste Acórdão 292/08, se tenha concluído não ser esse o caso dos respetivos autos, o que cumpre reter é que a imposição de uma obrigação de indemnização (ou uma condenação criminal - v. o Acórdão 113/97) pode constituir uma afetação relevante de um direito do qual é titular o sujeito obrigado a indemnizar, situação frequentemente posta em evidência pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Como se escreveu no acórdão de 07/12/2010, da 2.ª Secção, queixa n.º 39324/07 (disponível na base de dados de jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em http://hudoc.echr.coe.int/), na linha de muitos outros (v. também, na mesma linha, o acórdão de 29/03/2011, da 2.ª secção, queixa n.º 1529/08):

"[...]

No caso, a quantia de (euro)75 000,00 à qual todos os requerentes foram condenados - mas que acabou por ser paga na totalidade pelo primeiro requerente - era incontestavelmente de um montante excecionalmente elevado, sobretudo face a outros processos de difamação submetidos a tribunais portugueses de que o Tribunal teve conhecimento e se se tiver em conta que se tratava da reputação de uma pessoa coletiva e não de um indivíduo. Uma condenação deste tipo corre inevitavelmente o risco de dissuadir os jornalistas de contribuírem para a discussão pública de questões de interesse para a vida da comunidade. De igual modo, esta condenação é de natureza a impedir a imprensa de cumprir o seu papel de informação e de controlo (Monnat c. Suíça, n.º 73604/01, § 70, CEDH 2006 X).

[...]".

Da síntese exposta resulta, com interesse para a presente decisão, que o direito a uma indemnização e a obrigação de indemnizar - no que à tutela constitucional dos direitos respeita - não devem ser olhados de forma desligada das respetivas implicações na tutela dos direitos, seja na perspetiva (positiva) da reparação dos danos como forma de tutela, seja na perspetiva (negativa) da limitação ao exercício de direitos através do vínculo das obrigações. Num caso ou noutro, a indemnização nunca releva enquanto tal, mas como expressão da tutela conferida ou retirada a um direito protegido pela lei fundamental. O mesmo é dizer, agora de outro ponto de vista - este no âmago da questão dos autos - que só podemos afirmar que a atribuição do direito a uma indemnização tem implicações na substância de um direito acolhido na Constituição quando a atribuição ou não atribuição dessa indemnização tiver como efeito a afirmação ou a compressão ou eliminação desse direito.

O que se disse vale no âmbito da responsabilidade extracontratual; e pode, por evidente identidade de razão, transpor-se para a responsabilidade contratual nos casos - como é o dos presentes autos - em que a violação dos direitos absolutos tem origem no contexto de obrigações negociais incumpridas. Nesse caso, concorrem, como é sabido, ambas as modalidades da responsabilidade, o que tem levado à discussão sobre as possibilidades de opção pelo lesado do regime mais favorável ou de consumpção [cf. Álvaro Rodrigues, "Reflexões Em Torno da Responsabilidade Civil dos Médicos", in Direito e justiça, vol. 14, tomo 3 (2000), especialmente pp. 191 e ss.]. De todo o modo, e independentemente da opção a tomar quanto a esta questão (de que a presente decisão não se ocupa) o certo é que o dever de indemnizar continua a ser expressão da tutela dos direitos absolutos que - principal, secundária ou reflexamente - devem ser protegidos ou podem resultar afetados na execução do contrato. E aqui, enfim, não deixamos de observar, enquanto direito colocado em causa por uma prestação contratual claramente inadequada por parte dos Recorrentes, em última análise, o direito dos Recorridos se autodeterminarem nas suas opções reprodutivas, dentro do universo de possibilidades lícitas a tal respeito, direito este aqui irremediavelmente afetado pela falta de prestação de uma informação adequada por parte dos Recorrentes, sendo esta (a informação) contratualmente devida.

Existe, pois, a par da falta de densidade constitucional das objeções suscitadas quanto a este tipo de indemnização (por wrongful birth) - o que só por si conduziria a uma decisão de improcedência do recurso - um respaldo constitucional bastante à tutela indemnizatória concedida aos Recorridos com a base considerada na decisão recorrida. Esta deve, assim, no que respeita a uma apreciação de conformidade constitucional das normas envolvidas na concessão dessa tutela (entendidas estas como abrangendo a concessão de uma indemnização por wrongful birth), deve a decisão recorrida, dizíamos, ser confirmada.

É o que nos resta expressar decisoriamente.

2.4 - Antes, porém, deixamos aqui nota dos traços essenciais do percurso argumentativo seguido ao longo deste Acórdão, através do seguinte sumário:

I - Têm sido designados pela doutrina e pela jurisprudência como ações de wrongful birth os processos em que se deduz uma pretensão indemnizatória dos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, não atempadamente detetada ou relatada aos mesmos em função de um erro médico, a serem ressarcidos (eles os pais) pelo dano resultante da privação do conhecimento dessa circunstância, no quadro das respetivas opções reprodutivas, quando esse conhecimento ainda apresentava potencialidade para determinar ou modelar essas mesmas opções;

II - Em tais situações a obrigação de indemnizar é gerada num contexto de erro médico relativo a um diagnóstico pré-natal, quando este desvalor da ação, posicionado no quadro da execução de um contrato de prestação de serviços médicos com a peculiaridade de se referir a esse tipo de diagnóstico, privou os pais do conhecimento de malformações do feto, conduzindo a um nascimento retrospectivamente qualificado de indesejado: um nascimento que os pais perspetivam como tal no momento da afirmação da correspondente tutela indemnizatória, por privação da respetiva liberdade de realizar, autónoma e informadamente, as suas escolhas reprodutivas;

III - Nas mencionadas circunstâncias, a qualificação do nascimento como "indesejado" traduz-se numa afirmação reportada à caracterização de um facto passado que se tornou num dado imutável do presente e cuja abordagem indemnizatória se esgota na fixação de uma indemnização em dinheiro (v. o artigo 566.º do CC);

IV - Não está em causa, neste contexto, qualquer modificação de uma realidade física existencial, tudo se passando no domínio da abstração, relativamente àquilo de que se fala a respeito da "interrupção da gravidez", esgotada na argumentação em plano hipotético, equacionando algo que poderia ter acontecido mas que, efetivamente, não aconteceu. Trata-se de uma operação intelectual de fixação dos pressupostos com base nos quais se determinará qual o comportamento que era devido pelos médicos, no sentido da realização de um exame de diagnóstico pré-natal no quadro do relacionamento contratual estabelecido com os pais da criança;

V - Não procede, na discussão da viabilidade das ações por wrongful birth, o modelo argumentativo traduzido na rejeição da indemnização em virtude de a reposição da situação hipotética que pressuporia a ausência de dano conduzir a algum tipo de afirmação retrospetiva (enquanto correspondência à situação de ausência de dano) da "não existência" do sujeito em função do qual a verificação do dano é afirmada, em virtude da (hipotética e não efetivamente verificada) interrupção da gravidez;

VI - Tal construção pode designar-se "problema da não existência" ou como "paradoxo da não existência", o qual contribuiu para, inicialmente, a jurisprudência rejeitar as atribuições indemnizatórias nas wrongful birth claims, no sentido em que a observância do comportamento lícito teria conduzido os pais, tivessem estes sido informados a tempo da deficiência do filho em gestação, à prática de um aborto e, assim, à supressão da vida em função da qual a indemnização é (depois) pedida. A afirmação da existência de um dano conteria, assim, uma espécie de "bomba lógica" que conduziria a uma contradição valorativa insuperável;

VII - Já num outro plano, por referência ao caráter inviolável da vida humana, a negação da possibilidade de que um dano possa ser construído com esta base assentaria na recusa de encarar a vida de alguém, mesmo no quadro de uma mera operação intelectual contrafáctica, como um dano;

VIII - As reservas sumariadas em "V", "VI" e "VII" supra foram sendo, progressivamente, afastadas pela doutrina e pela jurisprudência, desvalorizando-se o sentido do paradoxo da não existência, por via da caracterização da realidade em causa nessas ações como substancialmente distinta nos seus pressupostos da afirmação hipotética contida na formulação do paradoxo. Trata-se, pelo contrário, de fixar uma indemnização, necessariamente fora de qualquer quadro de "reconstituição natural", por danos atuais imutáveis, sempre atribuída em função de uma efetiva situação de existência e sempre estabelecida por referência a desvalores decorrentes das peculiaridades da atividade de médicos agindo no quadro de um diagnóstico pré-natal. Por trás desta posição mais favorável à viabilidade da ação, está a consideração de não se justificar deixar fora da tutela indemnizatória a má-prática médica nestas situações, vistas como correspondentes a obrigações de resultado, e de não ser justo, igualmente, não conferir essa tutela aos destinatários da informação contida nesse tipo de diagnóstico;

IX - Nesta outra visão das coisas, favorável à concessão da indemnização, trata-se de sublinhar que estamos perante pretensões de compensação indemnizatória por má-prática médica. A circunstância de assentarem, de alguma forma, numa construção contendo algo de paradoxal, pouco ou nada muda nessa essência reparatória de danos sofridos por pessoas determinadas em resultado do desvalor da conduta de outras pessoas;

X - Neste conspecto, deve notar-se que, mesmo colocando-se o acento tónico na questão da não existência, prevalece a circunstância de esta se esgotar numa construção intelectual, sem qualquer repercussão efetiva na existência de alguém, enquanto dado de facto que não sofre alteração alguma com o estabelecimento de uma indemnização em dinheiro;

XI - O direito à vida, no contexto do n.º 1 do artigo 24.º da CRP, não exclui, no quadro da afirmação dessa inviolabilidade, que a aferição da existência de um dano envolva uma operação intelectual de cariz contrafactual que identifique, como hipóteses não verificadas, as várias opções que se colocariam aos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, da qual não foram informados durante a gestação, caso essa informação - da qual eram contratualmente credores - lhes tivesse sido fornecida em determinadas circunstâncias de tempo;

XII - Assim, esse direito não é afetado pelo ressarcimento dos pais pelo dano resultante da privação do conhecimento de um elemento importante no quadro das respetivas opções reprodutivas, quando o conhecimento dessa circunstância ainda apresentava potencialidade para determinar ou modelar essas mesmas opções;

XIII - O artigo 67.º, n.º 2, alínea d), da CRP não tem qualquer atinência à concreta situação que tem vindo a ser descrita. O direito ao planeamento familiar e à maternidade e paternidade conscientes exige que o Estado se organize em termos que permitam assegurar, através de prestações positivas (v. g., a informação ao público ou a criação de serviços de atendimento e acompanhamento dos casais), a formação esclarecida da vontade de procriar.

XIV - Embora o exercício "de uma maternidade e paternidade conscientes" acarrete consequências (positivas) no fenómeno abortivo, na medida em que quanto mais esclarecida e ponderada é a concretização da vontade de ter um filho, menor é a probabilidade - no universo das pessoas que procriam - de a gravidez ser voluntariamente interrompida, independentemente das razões que fundem a interrupção. Todavia, esta asserção nada tem a ver com o fenómeno da interrupção da gravidez em caso de malformações evidenciadas pelo nascituro. A associação entre planeamento familiar e a interrupção da gravidez faz-se por referência a uma interrupção desmotivada, sem relação com perigos para a saúde da grávida ou do nascituro, designadamente no sentido de reduzir o número de gravidezes indesejadas;

XV - Uma hipótese de gravidez inicialmente desejada relativamente à qual se poderia ter colocado a possibilidade de optar por uma interrupção por motivos de malformação do feto em nada se relaciona com a formação esclarecida e informada da vontade de procriar ou com os meios que devem ser colocados à disposição das pessoas em vista do objetivo programático que subjaz ao artigo 67.º, n.os 1 e 2, alínea d) da CRP;

XVI - O direito a uma indemnização e a obrigação de indemnizar - no que à tutela constitucional dos direitos respeita - não devem ser olhados de forma desligada das respetivas implicações na tutela dos direitos, seja na perspetiva (positiva) da reparação dos danos como forma de tutela, seja na perspetiva (negativa) da limitação ao exercício de direitos através do vínculo das obrigações.

XVII - Num caso ou noutro, a indemnização nunca releva enquanto tal, mas como expressão da tutela conferida ou retirada a um direito protegido pela lei fundamental. Só podemos afirmar que a atribuição do direito a uma indemnização tem implicações na substância de um direito acolhido na Constituição quando a atribuição ou não atribuição dessa indemnização tiver como efeito a afirmação ou a compressão ou eliminação desse direito;

XVIII - Tal conclusão vale no âmbito da responsabilidade extracontratual e pode transpor-se para a responsabilidade contratual nos casos em que a violação dos direitos absolutos tem origem no contexto de obrigações negociais incumpridas;

XIX - Nas situações descritas, a atribuição de uma indemnização em nada interfere com o direito à vida, não sendo expressão ou negação da sua tutela. Em última análise, está (esteve) apenas em causa o direito dos progenitores se autodeterminarem nas suas opções reprodutivas, dentro do universo de possibilidades lícitas a tal respeito, direito irremediavelmente afetado pela falta de prestação de uma informação adequada por parte dos Recorrentes, sendo esta (a informação) contratualmente devida e situando-se a o direito à indemnização, apenas, no quadro da reparação do dano decorrente do incumprimento da prestação devida.

III - Decisão

3 - Face ao exposto, decide-se:

A) Não julgar inconstitucionais os artigos 483,º, 798.º e 799.º do Código Civil, interpretados no sentido de abrangerem, nos termos gerais da responsabilidade civil contratual - no quadro de uma ação designada por nascimento indevido (por referência ao conceito usualmente identificado pela expressão wrongful birth) -, uma pretensão indemnizatória dos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, não atempadamente detetada ou relatada aos mesmos em função de um erro médico, a serem ressarcidos (os pais) pelo dano resultante da privação do conhecimento dessa circunstância, no quadro das respetivas opções reprodutivas, quando esse conhecimento ainda apresentava potencialidade para determinar ou modelar essas opções;

B) Julgar, em função de tal pronunciamento, improcedente o presente recurso;

C) Condenar os Recorrentes nas custas do recurso, fixando-se a taxa de justiça em 21 unidades de conta, com base na ponderação dos critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 7 de outubro (cf. o artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Lisboa, 2 de fevereiro de 2016. - Teles Pereira - João Pedro Caupers - Maria Lúcia Amaral - Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida de acordo com a declaração junta) - Joaquim de Sousa Ribeiro.

DECLARAÇÃO DE VOTO

1 - Vencida.

Discordei do presente acórdão essencialmente por duas ordens de razões:

i) O Tribunal Constitucional conheceu do recurso sem se mostrarem preenchidos os respetivos pressupostos de conhecimento;

ii) O Tribunal delimitou um objeto para a sua pronúncia que, pela distância que o separa da fundamentação da decisão recorrida, acabou por se reconduzir, afinal, a um mero e vão diálogo com a doutrina o qual, não produzindo qualquer efeito útil no julgamento do caso deixa atrás de si um rasto de ambiguidade e incerteza no tratamento de situa-ções semelhantes.

i) Falta de preenchimento dos pressupostos de conhecimento

2 - Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1, do artigo 70.º da LTC, importava verificar o preenchimento dos respetivos pressupostos de admissibilidade. E entre estes contam-se a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente e a suscitação perante o tribunal a quo da mesma questão normativa de constitucionalidade.

Nenhum destes requisitos pode ser dado por verificado nos presentes autos.

3 - Desde logo verifica-se falta de suscitação prévia perante o tribunal a quo da mesma questão de constitucionalidade normativa

Dispõe o n.º 1 do artigo 72.º da LTC que este tipo de recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este ficar obrigado a dela conhecer.

3.1 - No caso em apreciação a decisão recorrida é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que, concedendo a revista dos autores, revogou o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, repristinando a sentença da primeira instância. Assim, o preenchimento do requisito da suscitação adequada e atempada da questão de constitucionalidade exigiria que o recorrente tivesse alegado a inconstitucionalidade em causa perante o Supremo Tribunal de Justiça, de forma a que este ficasse obrigado a dela conhecer.

No caso presente, as aqui recorrentes foram a parte recorrida no recurso de revista interposto perante o Supremo Tribunal de Justiça. Portanto, o preenchimento deste requisito exigiria que nas contra-alegações de recurso produzidas naquele tribunal, as mesmas tivessem suscitado, de forma adequada, a questão de constitucionalidade que renovam perante o Tribunal Constitucional. Só desta forma poderiam dar oportunidade ao tribunal recorrido para conhecer daquela questão, respeitando a natureza de instância de recurso reservada ao Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade.

Ora, basta reler o teor da resposta à motivação apresentada no Supremo Tribunal de Justiça pelas ora recorrentes - transcrito no ponto 1.5.1 do acórdão - para se perceber que em parte alguma daquela peça foi enunciada a "norma" que viria a constituir o objeto decisório do presente recurso. Aliás, no enunciado dessa resposta não existe uma só alusão aos preceitos dos artigos 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil, em que a "norma" sindicada se ancora, aludindo-se apenas ao artigo 562.º do Código Civil, que manifestamente não suporta aquela norma. No mais, as alegações apresentadas diante do tribunal recorrido pelas ora recorrentes limitam-se a fazer uma apreciação, à luz dos artigos 24.º e 67.º da Constituição, da pretensão da parte contrária - os ali recorrentes - que queriam ver revogado o acórdão do Tribunal da Relação.

Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, «Não traduz suscitação adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa a mera invocação da aplicabilidade "direta" de uma norma constitucional, argumentando-se com referência a princípios constitucionais que reclamariam uma certa solução concreta do caso: não referenciando o recorrente, com o mínimo de precisão, qualquer norma jurídica inconstitucional e invocando a aplicabilidade direta de norma constitucional, prescinde de discutir a constitucionalidade de normas, convocáveis ou aplicadas na decisão recorrida, imputando, em última análise, a esta a inconstitucionalidade invocada (cf. Acórdãos n.os 357/07 e 21/09). Do mesmo modo, vem o Tribunal Constitucional entendendo que "se se utiliza uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito legal ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios constitucionais, tem-se por certo que a questão de desarmonia constitucional é imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao ordenamento jurídico infraconstitucional que se tem por violado com essa decisão [...]" (cf. Acórdãos n.os 489/04, 710/04, 128/05 e 307/05)» (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, p. 102-103).

Patente é, assim, que as recorrentes não só não suscitaram perante o Supremo Tribunal de Justiça a mesma questão de constitucionalidade que o Tribunal Constitucional viria a apreciar no presente recurso, como nem sequer enunciaram perante aquele tribunal, de forma adequada, qualquer questão de constitucionalidade normativa o que só por si deveria ter conduzido ao não conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto.

Não será por acaso que no acórdão recorrido o Supremo Tribunal de Justiça não se pronunciou sobre nenhuma questão de constitucionalidade - antes dá como prejudicada a única questão de constitucionalidade suscitada (pela parte contrária) «a violação do princípio da igualdade, devido à privação do direito de optar pela interrupção voluntária da gravidez», o que constitui questão diferente da aqui em vista.

3.2 - Apesar disso, o Tribunal Constitucional decidiu conhecer do recurso.

De acordo com o acórdão, as recorrentes teriam identificado «o cerne da questão [...] nas alegações de direito apresentadas a culminar o segundo julgamento realizado em primeira instancia» e «estruturaram esse problema expressamente como "questão de constitucionalidade" na motivação da segunda apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães [...] e, enfim, tendo obtido ganho de causa nessa impugnação da Relação [...], não deixaram de renovar esse argumento de inconstitucionalidade nas contra-alegações (ocupavam aí a posição de Recorridas) que dirigiram ao Supremo Tribunal de Justiça» (destaques nossos). É com base nestes elementos que no acórdão se conclui que as recorrentes suscitaram perante o tribunal recorrido a mesma questão de constitucionalidade normativa que agora colocam ao Tribunal Constitucional (ponto 2.1.2. do acórdão).

Uma tal resposta à questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelos recorridos nas suas alegações evidencia bem a fragilidade dos argumentos adiantados em prol do seu conhecimento que contrariam flagrantemente a jurisprudência firme e constante do Tribunal Constitucional a respeito dos pressupostos de conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b).

Como no Acórdão 134/2012 (n.º 7) o Tribunal Constitucional teve, mais uma vez, ocasião de sublinhar, «a atual redação do n.º 2 do artigo 72.º da LTC [...] resolveu a divergência que se verificava, à data, na jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido de ser necessário que a suscitação da questão de constitucionalidade ocorra perante a instância que proferiu a decisão de que se recorre para o Tribunal Constitucional, mesmo que o recorrente tenha obtido ganho de causa na instância inferior e, portanto, figure como recorrido no recurso onde foi proferida esta decisão (v., entre outros, o Acórdão 376/2007 e Guilherme da Fonseca/ Inês Domingos, Breviário de Direito Processual Constitucional, 2.ª ed., Coimbra, 2002, 58-59 e jurisprudência constitucional aí citada). Tal entendimento resulta expressa e inequivocamente da redação da norma, quando exige que "a parte [...] haja suscitado a questão de inconstitucionalidade ou a ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer"».

Assim, uma suscitação em momento inicial do processo que a parte não haja renovado perante o tribunal a quo não satisfaz o requisito em causa, o que implica, num caso como o presente, para o recorrido o ónus de suscitar, a título subsidiário, nas contra-alegações que tem oportunidade de apresentar em recurso interposto pela parte contrária, a questão de constitucionalidade que inicialmente havia colocado no processo (cf., por exemplo, os Acórdãos n.os 114/2000 [n.º 1.3], 222/2002 [n.º 4], 269/2004 [n.º 2], 305/2005 [n.º 4], 506/2006 [n.º 4], 347/2006 [n.º 3], 308/2007 [n.º 2.1.], 376/2007 [fundamentação]).

Na medida em que tal, manifestamente, não ocorreu neste processo, o presente acórdão, ainda que não assuma de forma expressa, parece abandonar este sentido uniforme da jurisprudência, sem que resulte claro qual o motivo para tal e qual o critério que se deverá adotar de ora em diante.

3.3 - O problema do presente acórdão é, no entanto, ainda maior. A suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade impõe ao interessado um ónus de clara, precisa e expressa delimitação e especificação do objeto do recurso. Trata-se de uma jurisprudência absolutamente estável e pacífica do Tribunal Constitucional (cf., por exemplo, os Acórdãos n.os 367/94 [n.º 6], 178/95 [n.º 6.2.], 593/95 [n.º 5], 645/97 [n.º 4], 107/99 [n.º 5], 549/2001 [n.º 4], 232/2002 [n.º 2.2.], 302/2002 [n.º 3], 21/2006 [n.º 9], 361/2006 [n.º 6], 415/2006 [n.º 2] e 37/2009 [n.º 4]). É indispensável que a parte identifique a interpretação ou dimensão normativa que refuta por a considerar desconforme à Constituição, em termos de o Tribunal, se vier a julgá-la inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os respetivos destinatários e qualquer operador de direito fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada com tal sentido. Esta enunciação pela parte da norma objeto de fiscalização é também central porque, se ela não ocorrer, será o Tribunal a delimitar o objeto da sua pronúncia, manipulando-o como entender, o que viola o princípio do pedido (artigo 79.º-C LTC) e os limites da jurisdição constitucional.

Ora, é inegável que a concretização da questão de constitucionalidade empreendida pelas recorrentes não cumpre o dever da parte enunciar de forma clara e percetível o exato sentido normativo que se considera inconstitucional, não tendo especificado "positiva e expressamente" o preciso conteúdo normativo que na sua perspetiva padecerá de inconstitucionalidade (cf., por exemplo, os Acórdãos n.os 21/2006 [n.º 9], 126/2007 [n.º II], 244/2007 [n.º II], 50/2008 [n.º II], 476/2008 [n.º 4] e 16/2009 [n.º II]). Assim, aceitar-se, como este acórdão incompreensivelmente aceitou, que basta a prévia identificação ao longo do processo do "cerne da questão" e a sua expressa estruturação como "questão de constitucionalidade" para se considerar cumprido o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, contradiz o sentido firme e unívoco da jurisprudência do Tribunal Constitucional referente a este pressuposto de admissibilidade do recurso.

Sentido esse ainda recentemente renovado no Acórdão 637/2015 [n.º 5], proferido em dezembro de 2015 pela conferência desta 1.ª Secção, quando afirmou que:

«A peça processual adequada para suscitar as questões de constitucionalidade teria sido a reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação [...] do despacho que não admitiu o recurso.

Ora, não obstante essa peça conter uma epígrafe intitulada "Da Inconstitucionalidade", não pode considerar-se que aí tenha sido suscitada qualquer questão de constitucionalidade. [...] [A] mera referência a preceitos constitucionais não corresponde por si só à arguição, durante o processo, de uma forma clara e inteligível, de uma questão de constitucionalidade que o Tribunal deva conhecer.

Na verdade, e segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, «[s]uscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que [...] tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido» (Ac. n.º 269/94, [...]. Como se afirma no Ac. n.º 367/94, [...], "[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição"».

O presente acórdão, invertendo jurisprudência constante, considerou suficiente para conhecer do recurso o referido "cerne da questão" abordado previamente. Também quanto a este aspeto, a 1.ª Secção deste Tribunal, no presente acórdão, abandona a jurisprudência estável que se aplicava quanto à verificação deste requisito injustificadamente e sem indicar qual será o critério de ora em diante. Daqui resulta um sentimento de insegurança jurídica para os recorrentes e recorridos, que perdem qualquer critério firme e rigoroso que lhes permita saber se o recurso vai ou não ser conhecido.

4 - Acresce que não existe coincidência entre a norma que o tribunal recorrido aplicou como ratio decidendi e a norma cuja constitucionalidade é questionada pelas recorrentes, o que, além de configurar a falta de mais um pressuposto de conhecimento do recurso, no caso traz ainda as implicações que abordamos de seguida.

ii) Não correspondência entre a norma objeto de juízo e a ratio decidendi

5 - A questão de constitucionalidade enunciada ao longo dos autos - da forma imperfeita e insuficiente já acima caracterizada, o tal "cerne da questão" -, não corresponde nem ao enunciado "normativo" que o Tribunal Constitucional apreciou no presente acórdão, nem - o que ainda é mais grave - ao fundamento da decisão recorrida.

5.1 - O que o confronto da decisão recorrida com o teor do presente acórdão evidencia é que na procura de resposta à discutida questão da «legitimidade constitucional da atribuição de uma indemnização [...] num quadro de responsabilidade civil contratual referida a uma situação geralmente designada por wrongful birth» - para usar a caracterização feita no próprio acórdão (ponto 2.1.2) -, o Tribunal concluiu não ser inconstitucional a «pretensão indemnizatória dos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, não atempadamente detetada ou relatada aos mesmos em função de um erro médico, a serem ressarcidos (os pais) pelo dano resultante da privação do conhecimento dessa circunstância, no quadro das respetivas opções reprodutivas, quando esse conhecimento ainda apresentava potencialidade para determinar ou modelar essas opções».

Atendendo à decisão recorrida, certo é que, diferentemente da tese sustentada pelas recorrentes ao longo dos autos, que colocavam o "cerne da questão" de inconstitucionalidade na desconformidade do estabelecimento de uma indemnização por supressão da opção de interromper a gravidez com os artigos 24.º e 67.º da Constituição (v. ponto 1.3. do acórdão), para o Supremo Tribunal de Justiça o pressuposto determinante da responsabilidade civil médica em apreço reside no nexo de causalidade existente entre a ausência de comunicação do resultado de um exame e a deficiência verificada na criança (sem se ignorar que esse conhecimento poderia ter culminado na faculdade dos pais interromperem a gravidez e obstar ao seu nascimento). De todo o modo, repudiando a consideração da vida como um dano, argumento que se apresenta como central na construção da tese em que as recorrentes sustentam a inconstitucionalidade da sua condenação, na base da decisão recorrida está antes a conclusão de que «a comparação, para efeitos de cálculo da compensação, opera não entre o dano da vida, propriamente dito, e a não existência, mas antes entre aquele e o dano da deficiência que essa vida comporta, pelo que o valor negativo é atribuído à vida defeituosa e o valor positivo à vida saudável».

A norma em discussão nas instâncias e que veio a ser aplicada na decisão recorrida é, assim, distinta daquela que foi objeto de juízo pelo presente acórdão. O que constitui, desde logo, mais um motivo para não conhecer do recurso, mas tem de levar à reflexão sobre se todo o labor colocado na elaboração do presente aresto seria em vão, pois não teria consequências no processo concreto objeto da decisão recorrida.

5.2 - No acórdão a quo, o Supremo Tribunal de Justiça julgou indemnizável os «danos não patrimoniais, por [os autores] se verem confrontados com as malformações do menor, apenas, no momento do nascimento» e «os danos patrimoniais relativos à deficiência» (v. ponto 10. do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, transcrito no ponto 1.6 do acórdão), neles não incluindo, porém, «todos os custos derivados da educação e sustento de uma criança, mas, tão-só, os relacionados com a sua deficiência [...] pois que os pais aceitaram, voluntariamente, a gravidez, conformando-se com os encargos do primeiro tipo [...]». Também aqui se nota a distância relativamente à "norma" construída pelo presente acórdão. O enunciado "normativo" recortado pelo Tribunal, identificando a causa do dano - a privação do conhecimento da deficiência, por erro médico -, nada nos diz, porém, sobre a natureza dos danos indemnizáveis. A que danos se reporta uma tal norma? Não o sabemos.

A ausência de resposta a esta questão torna incompreensível todo o discurso fundamentador do acórdão, esgrimido a pretexto do conhecimento de uma questão que, por distante da fundamentação da decisão recorrida, acabou por se reconduzir, afinal, a um mero e vão diálogo com a doutrina que, não produzindo qualquer efeito útil no julgamento do caso, deixa atrás de si um rasto de ambiguidade e incerteza no enquadramento jurídico-constitucional de situações semelhantes. - Maria de Fátima Mata-Mouros.

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Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2535251.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-05-11 - Lei 6/84 - Assembleia da República

    Altera o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro (exclusão de ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez).

  • Tem documento Em vigor 1997-07-30 - Lei 90/97 - Assembleia da República

    Altera os prazos de exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez.

  • Tem documento Em vigor 1998-10-07 - Decreto-Lei 303/98 - Ministério da Justiça

    Dispõe sobre o regime de custas no Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2007-04-17 - Lei 16/2007 - Assembleia da República

    Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez .

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