2.ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1 - Nos presentes autos, interpôs António Carlos Fialho Mendes, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de novembro (adiante referida como "LTC"), recurso de constitucionalidade do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de dezembro de 2014 para apreciação da inconstitucionalidade do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (adiante referido como "RCEEP"), aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente (fls. 142-143).
2 - O recorrente patrocinou, ao abrigo do regime de apoio judiciário, vários executados junto da 11.ª Vara Cível de Lisboa. Terminado o processo, apresentou as respetivas notas de honorários e despesas, pedindo o seu pagamento. O pedido referente ao patrocínio do executado José Luís Alves Pinto foi indeferido em 5 de julho de 2011 com o fundamento de que, em conformidade com a tabela de honorários dos advogados pelos serviços que prestem no âmbito da proteção jurídica publicada em anexo à Portaria 1386/2004, de 10 de novembro, e porque o ora recorrente já havia deduzido no âmbito do mesmo processo outras oposições, pelas quais foi pago, o mesmo não poderia receber outras quantias a título de honorários, no mesmo processo, só podendo ser pago pela dedução de uma oposição, e não por tantas quantas houvesse deduzido (cf. fls. 14). Deste despacho foi interposto recurso, alegando o recorrente a violação do princípio da proporcionalidade entre a quantidade de trabalho e a remuneração. Por acórdão de 14 de junho de 2012, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e confirmou a decisão então recorrida, entendendo que o que releva para efeitos de honorários a pagar ao patrono ao abrigo do apoio judiciário é o valor da ação e não o número de intervenções (cf. fls. 19 e ss.).
3 - Na sequência do trânsito em julgado desta decisão, o ora recorrente intentou nos Juízos Cíveis de Lisboa ação com processo sumário contra o Estado Português pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de 2 295,00 (euro), a título de indemnização por danos patrimoniais causados por "ato ilícito de gestão pública, no âmbito da administração da justiça", nomeadamente um grosseiro erro judiciário, violador de normas nacionais e internacionais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data da citação até integral pagamento, e ainda dos danos patrimoniais que vierem a revelar-se, a fixar em execução de sentença, sendo os até à data fixados em 2 000,00 (euro), e dos danos não patrimoniais computados em 20 000,00 (euro).
O Ministério Público, em representação do Estado Português, contestou, dizendo, além do mais, que o pedido de indemnização devia ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, sendo que tal revogação é uma condição prévia da ação de indemnização e que no caso dos autos tal revogação não ocorreu; e que não existia qualquer erro grosseiro, evidente, crasso, palmar indiscutível e de tal modo grave que pudesse fundamentar o pedido do autor. Respondendo quanto à exigência de prévia revogação, o autor, ora recorrente, disse, em síntese, que o Tribunal da Relação de Lisboa prosseguira em "erro continuado" e que, tendo em conta a circunstância de a sua decisão - o mencionado acórdão de 14 de junho de 2012 - ser irrecorrível, a interpretação normativa retirada do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP violaria os artigos 20.º, n.os 1, 4 e 5, da Constituição e 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Em 31 de janeiro de 2014 foi proferido despacho saneador a julgar a ação improcedente e absolvendo o réu do pedido (fls. 75-87). Inconformado, apelou o autor para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP, por violação dos artigos 20.º, n.os 1, 4 e 5, e 22.º da Constituição e do artigo 6.º n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ("CEDH") (fls. 93-98).
Por acórdão de 2 de dezembro de 2014, aquele Tribunal julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida. Quanto à invocada inconstitucionalidade do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP - que considerou ser "a questão fundamental" a resolver no recurso então em causa (fls. 128) - o mesmo Tribunal começou por reconhecer que a exigência estatuída nesse preceito de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente
«[L]imita consideravelmente o exercício desse direito [- o direito a ser indemnizado -], o que equivale, em muitos casos, ao "não direito", pois, além de ser necessário alegar e provar que a decisão é "manifestamente ilegal ou inconstitucional", faz depender ainda o exercício desse direito da prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, o que, por razões várias, nem sempre é possível. Por exemplo, no caso concreto, se se chegasse à conclusão de que a legislação aplicada (concretamente a aludida portaria) tinha sido revogada e que não era, manifesta e indiscutivelmente, aplicável e que, por isso, o autor deixou de receber uma quantia considerável, parece que, face ao trânsito em julgado da decisão, não poderia exigir o pagamento de qualquer indemnização, por não ter provado a "prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente". E isto, repete-se, ainda que seja evidente a ilegalidade da decisão.» (fls. 128-129)
Seguidamente o tribunal a quo apreciou a constitucionalidade daquela norma face ao disposto no artigo 22.º da Constituição, considerando que, não obstante tal artigo conter normas imediatamente aplicáveis e abranger também a responsabilidade do Estado por facto da função jurisdicional, a mesma disciplina "deixa larga margem de conformação ao legislador quanto à definição dos pressupostos da responsabilidade do Estado e constitui uma disciplina normativa aberta ao desenvolvimento judicial do instituto da responsabilidade [, sem prejuízo de] a lei ordinária não pode[r] restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrados constitucionalmente" (fls. 131-132). A questão de constitucionalidade foi, assim, equacionada em termos de saber se, à luz do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, "a exigência de que 'o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente' constitui ou não uma restrição autorizada do direito previsto naquele artigo 22.º" (fls. 133). A resposta dada no acórdão ora recorrido é a seguinte:
«O MP defende que a restrição do n.º 2 do art. 13.º é constitucionalmente justificada pela necessidade de defender a hierarquia dos tribunais consagrada no art. 210.º da CRP. A supressão da restrição levaria à subversão dessa hierarquia na medida em que permitiria que um tribunal de comarca julgasse de mérito uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça, o que constituiria uma aberração. [...]
[A] doutrina tem justificado aquela restrição com a força do caso julgado. É que, se a decisão transitou em julgado já é definitiva e por isso não poderá outro tribunal aferir e apreciar a ilicitude dessa decisão, mesmo que não seja com a finalidade de a revogar.
Os defensores desta doutrina consideram não ser possível compatibilizar a definitividade da decisão com a possibilidade de a ilicitude da mesma poder ser apreciada incidentalmente para efeitos de determinação da atribuição do direito à reparação de danos que aquela tenha eventualmente produzido.
A verdade é que, com a aplicação desta doutrina pode suceder (e muitas vezes sucederá) que a força do caso julgado acabe por transformar decisões erradas em decisões formalmente certas e, por via disso, há quem discorde da exigência desta revogação prévia, a qual, na ausência de um meio impugnatório próprio, pode redundar na impossibilidade do exercício ao direito de reparação por erro judiciário.
Estamos, assim, perante um conflito de direitos: por um lado, a força do caso julgado e, por outro, o direito à indemnização por parte do lesado com a decisão transitada em julgado nos termos referidos. Ou seja, a Constituição concede ao lesado o direito a ser indemnizado. Todavia, por razões de ordem processual, esse direito, em certos casos (e serão muitos), não pode ser exercido.
Mas há que reconhecer que com a Lei 67/2007 se deu entre nós um passo significativo no sentido da responsabilidade do Estado e doutras entidades públicas pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais. [...]
Como vimos, o legislador pode densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar e o regime de responsabilidade. Todavia, não pode restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrados no artigo 22.º da Constituição. E o problema pode surgir, tanto na definição do regime substantivo da responsabilidade, como na estruturação da ação de responsabilidade.
Ou seja, embora reconhecendo ao lesado o direito a ser indemnizado, pode o legislador restringir esse direito, quando e se tal se justificar, não o podendo fazer, porém, de forma arbitrária ou desproporcionada.
Assim, sendo embora certo que o n.º 2 do artigo 13.º contém uma limitação ao exercício do direito à indemnização, face ao que vimos referindo entendemos que tal restrição não é arbitrária e que se justifica e, sobretudo, que a Constituição não impede esta mesma restrição.
Se se considerasse inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 13.º, tal significaria, em boa parte, pôr em causa a autoridade do caso jugado, embora não diretamente. Mas, sobretudo, como se disse, a Constituição não confere um direito absoluto, admitindo as restrições que o legislador ordinário julgue justificadas e que, portanto, não seja[m], arbitrárias e/ou desproporcionadas.
No caso sub judice não é imposto qualquer limite ao montante da indemnização. E, já o dissemos, não consideramos aquelas limitações arbitrárias, pois encontram-se devidamente fundamentadas.
E também não vemos que sejam violados os artigos 16.º e 20.º da CRP, pois não está em causa o acesso ao direito e aos tribunais, mas apenas uma limitação ao exercício do direito, que o legislador considerou justificado.» (fls. 133-136)
4 - Não se conformando com esta decisão, recorreu António Carlos Fialho Mendes da mesma para este Tribunal, conforme referido supra no n.º 1., considerando que a norma do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP, "na interpretação dada de que embora tal norma «...limita consideravelmente o exercício desse direito (o direito à indemnização), o que equivale, em muitos casos, ao «não direito» [...], tal restrição não é arbitrária nem desproporcional".
Admitido o recurso e subidos os autos, foi determinada pelo relator a produção de alegações, advertindo-se, desde logo, para a eventualidade de o Tribunal só vir a conhecer do mérito do recurso na parte relativa à alegada inconstitucionalidade do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP, "sem considerar autónoma e individualizadamente os demais parâmetros normativos indicados no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, em especial, os que integram convenções internacionais ou o direito da União Europeia" (fls. 148).
5 - Ambas as partes alegaram.
O recorrente formulou as seguintes conclusões:
«1.ª A norma contida no n.º 2 do artigo 13.º da Lei 67/2007 de 31/12 é inconstitucional, por violar os artºs 18.º n.os 2 e 3, 20.º n.os 1, 4 e 5, e 22 da CRP e artigo 6.º n.º 1 da CEDH (artigo 16.º da CRP).
2.ª Igualmente por violar os princípios da lealdade comunitária e do primado; artºs 4.º n.º 3 e 6.º n.º 2 do TUE - Lisboa; bem como o parágrafo 1.º do n.º 4 do artigo 5.º do TUE e 59.º n.º 1 alínea a) da CRP por estarem em causa a violação dos artºs 15.º, 20.º e 31.º da CDFUE; e o Protocolo 2 anexo ao TUE juntamente com os princípios da equivalência e da efetividade (cf. artigo 4.º n.º 3 e 19.º n.º 1 parágrafo 2.º do TUE e artigo 267.º do TFUE); bem como a jurisprudência comunitária, como a constante do caso Brasserie du Pêcheurs v/s RFA, constante do Ac. do TJ de 05/03/1996 (proc. apenso C-46/93 e 48/93), e Ac. do TJCE de 15/05/1986 in proc. 222/84 e de 05/03/1980 in proc. 98/79; casos Simmenthal e Traghetti; e, sobretudo, caso Francovich e o.c. República Italiana (proc. apensos C-6/90 e C-9/90).
3.ª Tudo na interpretação dada de que, embora tal norma "... limita consideravelmente o exercício desse direito (o direito à indemnização), o que equivale, em muitos casos, ao "não direito"..." (sic a págs. 13 e ss), tal restrição não é arbitrária nem desproporcional, não violando a CRP nem o direito comunitário.»
O Ministério Público, ora recorrido, pelo seu lado, concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
«[P]or todas as razões anteriormente invocadas, julga-se que este Tribunal Constitucional deverá, agora:
a) concluir não ter havido violação, no caso dos presentes autos, das disposições constitucionais invocadas pelo ora recorrente, ou seja, os arts. 20.º, n.os 1, 4 e 5 e 22.º da Constituição da República Portuguesa;
b) não ser, assim, inconstitucional o artigo 13.º, n.º 2 da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, relativa à responsabilidade extracontratual do Estado e pessoas coletivas de direito público;
c) negar, nessa medida, provimento ao recurso de constitucionalidade interposto;
d) manter, em consequência, o Acórdão recorrido, de 2 de dezembro de 2014, do Tribunal da Relação de Lisboa.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6 - Cumpre recordar que o presente recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC. Tal circunstância determina que este Tribunal, caso conclua no sentido de lhe dever conceder provimento, apenas está habilitado a julgar inconstitucional a norma que a decisão recorrida aplicou - o mencionado artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP -, podendo de todo o modo fazê-lo com fundamento na violação de regras ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada pelo recorrente (cf. o artigo 79.º-C da LTC). Confirma-se, por conseguinte, a limitação quanto aos poderes de cognição enunciada no despacho do relator de fls. 148: o mérito do recurso será apreciado tão-somente no que se refere à alegada inconstitucionalidade do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP, sem considerar autónoma e individualizadamente os demais parâmetros normativos não constitucionais convocados pelo recorrente.
Uma segunda prevenção respeita à natureza da questão normativa concretamente em causa.
Os danos ilícitos que o recorrente alega ter sofrido não são imputáveis ao funcionamento da administração da justiça em geral, mas especificamente a erro judiciário (sobre a distinção deste face factos da «administração judiciária», v. o artigo 4.º, n.os 1, alínea g), e 3, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, e os artigos 12.º e 13.º do RCEEP; na doutrina, cf., por todos, Cardoso da Costa, "Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por atos da função judicial" in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 138.º (2009), n.º 3954, p. 156 e ss., pp. 160-161; Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas Anotado, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2011, anot. 1 ao artigo 12.º, pp. 236-237, e anot. 1 ao artigo 13.º, pp. 250-251; e Luís Fábrica in Aavv, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2013, nota 2.1 ao artigo 12.º, pp. 323-329). Uma coisa é a responsabilidade por atos e omissões de natureza jurídico-administrativa que ocorram no âmbito da função jurisdicional e imputáveis aos magistrados ou funcionários ou à administração judiciária globalmente considerada; outra coisa é a responsabilidade desencadeada pelo conteúdo de uma dada decisão jurisdicional.
In casu os danos que o recorrente pretende ver indemnizados são imputáveis a uma decisão judicial alegadamente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade entre a quantidade de trabalho e a remuneração: o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de junho de 2012 (cf. supra o n.º 2). Mais: esta decisão pretensamente ilícita e danosa respeita à interpretação e aplicação de uma norma de direito português sobre matéria cível - a tabela de honorários dos advogados pelos serviços que prestem no âmbito da proteção jurídica, publicada em anexo à Portaria 1386/2004, de 10 de novembro. Ou seja, não está em causa o direito à indemnização fundado em erro judicial na aplicação de normas penais (cf., em especial, os artigos 27.º, n.º 5, e 29.º, n.º 6, ambos da Constituição, e a ressalva inicial constante do artigo 13.º, n.º 1, do RCEEP) nem, tão-pouco, na aplicação de normas de direito da União Europeia (sobre os problemas específicos que se suscitam neste domínio, v. os Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia de 30 de setembro de 2003, Proc. C-224/01 - caso Köbler - e de 13 de junho de 2006, Proc. C-173/03 - caso Traghetti -; e, na doutrina portuguesa, cf., em especial, Maria José Rangel de Mesquita, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas e o Direito da União Europeia, Almedina Coimbra, 2009; e Jónatas Machado, "A responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia por atos e omissões do Poder Judicial" in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 144.º (2015), n.º 3991, p. 246 e ss.). Por outras palavras, o que importa considerar na aplicação do artigo 13.º do RCEEP ao caso sub iudicio é tão-só o erro judiciário cível sob a forma de um erro de direito: a adoção pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de junho de 2012 - a decisão danosa - de um critério normativo contrário à Constituição (cf. supra o n.º 2; v. sobre o tipo de erro de julgamento em causa, Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil..., cit., anot. 6 ao artigo 13.º, p. 265, e anot. 8 ao mesmo art., p. 276, nota 482).
7 - O RCEEP, aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de dezembro, veio concretizar no plano infraconstitucional o disposto no artigo 22.º da Constituição, estabelecendo, entre outros, também o regime da responsabilidade por danos resultantes da função jurisdicional. É o seguinte o teor do seu artigo 13.º, n.º 1, na parte que interessa à decisão do presente recurso:
«[O] Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais [...].»
E a norma cuja constitucionalidade vem sindicada é a que consta do n.º 2 do mesmo artigo:
«O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.»
Como se tem entendido, o legislador estatuiu neste último preceito uma condição (de procedência) da ação para efetivação da responsabilidade por erro judiciário: a ausência de revogação da decisão danosa fundada num vício de julgamento qualificável como erro judiciário determina, só por si, a improcedência da ação de responsabilidade (cf. Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil..., cit., anot. 8 ao artigo 13.º, p. 274, nota 479, e anot. 9 ao artigo 13.º, p. 276, nota 483; e Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil..., cit., nota 3 ao artigo 13.º, p. 357). Nesse sentido, dir-se-á, que a verificação do requisito da ilicitude convoca "a existência de uma decisão que, com efeitos de caso julgado, determine a revogação da sentença ou acórdão que tenha incorrido em erro de direito ou de facto", pelo que "o direito indemnizatório [só] opera, nos termos previstos na presente disposição, em relação a um erro de julgamento que seja cometido por um qualquer tribunal numa qualquer ordem de jurisdição, desde que se não trate da decisão definitiva, isto é, da decisão que tenha fixado em última instância (e, por isso, sem possibilidade de recurso nem de reclamação) a solução jurídica do caso. Por conseguinte, há lugar a indemnização por erro judiciário que tenha sido praticado em decisão proferida por um tribunal de primeira instância, por um tribunal de segunda instância ou por um tribunal supremo, desde que a existência do erro judiciário tenha sido reconhecida em recurso por um tribunal hierárquica ou funcionalmente superior, em termos de ter determinado a revogação dessa decisão" (assim, v., uma vez mais, Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil..., cit., anot. 8 ao artigo 13.º, p. 274 e pp. 272-273; note-se que a revogação da decisão danosa também pode provir, na sequência de uma reclamação ou de um pedido de reforma, do próprio tribunal - cf. Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil..., cit., anot. 8 ao artigo 13.º, p. 274; e Cardoso da Costa, "Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado...", cit., pp. 159-160 e p. 165). Ou seja, conforme sintetiza Carlos Fernandes Cadilha, "se a decisão pretensamente ilegal ou inconstitucional não é recorrível ou se o tribunal de recurso, que poderia pronunciar-se em última instância sobre a matéria da causa, manteve o entendimento do tribunal recorrido, não pode dar-se como existente um erro de julgamento para efeitos de responsabilidade civil" (v. Autor cit., Regime da Responsabilidade Civil..., cit., anot. 9 ao artigo 13.º, p. 276).
O requisito em análise destinar-se-ia, segundo o n.º 6 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei 95/VIII (de 2001) - justificação depois retomada na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 56/X (de 2006), que esteve na origem da Lei 67/2007, de 31 de dezembro -, a "limitar a possibilidade de os tribunais administrativos, numa ação de responsabilidade, se pronunciarem sobre a bondade intrínseca das decisões" de outras ordens jurisdicionais. Porém, tal justificação não colhe face ao disposto no artigo 4.º, n.º 3, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que, justamente, exclui do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal "a apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes ações de regresso" (sobre esta distribuição de competências, v. Cardoso da Costa, "Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado...", cit., pp. 159-160 e p. 164; e Jónatas Machado, "A responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia..." cit., p. 282).
Ainda assim, poderá haver outras razões materiais justificativas de um tratamento diferenciado do regime do erro judiciário, consignado no artigo 13.º do RCEEP, face ao princípio geral de responsabilidade civil por danos ilícitos causados no exercício da função jurisdicional, previsto no artigo 12.º do mesmo diploma.
8 - O Tribunal Constitucional tem vindo a reconhecer um direito geral à reparação ou compensação dos danos provenientes de ações e omissões fundado no princípio estruturante do Estado de direito democrático acolhido no artigo 2.º da Constituição (cf., em especial, os Acórdãos n.os 385/2005 e 444/2008, ambos disponíveis, assim como os demais adiante referidos, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/; na doutrina, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. IX ao artigo 22.º, p. 432 - que referem um "princípio da compensação"; Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. IX ao artigo 22.º, pp. 476-477; e Alves Correia, "A indemnização pelo sacrifício: contributo para o esclarecimento do seu sentido e alcance" in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 140 [2011], n.º 3966, p. 143 e ss., pp. 145-146). Este «direito geral» impõe desde logo que o legislador assegure a respetiva concretização. Como referido no mencionado Acórdão 444/2008:
«Constituindo missão do Estado de direito democrático a proteção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça, não poderá o legislador ordinário deixar de assegurar o direito à reparação dos danos injustificados que alguém sofra em consequência da conduta de outrem. A tutela jurídica dos bens e interesses dos cidadãos reconhecidos pela ordem jurídica e que foram injustamente lesionados pela ação ou omissão de outrem, necessariamente assegurada por um Estado de direito, exige, nestes casos, a reparação dos danos sofridos, tendo o instituto da responsabilidade civil vindo a desempenhar nessa tarefa um papel primordial».
E o mesmo direito não é incompatível com previsões constitucionais específicas de direitos de indemnização, como sucede, por exemplo, nos artigos 22.º, 37.º, n.º 4, 60.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2. Em especial no que se refere à responsabilidade direta do Estado e demais entidades públicas consagrada no primeiro daqueles preceitos, tem vindo a entender-se que a caracterização de tal princípio como princípio-garantia ou como garantia institucional não prejudica a sua dimensão subjetiva, no sentido de estar em causa também um direito fundamental à reparação dos danos causados por ação ou omissão ilícitas dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas, de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (neste sentido, v., entre outros, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. VI ao artigo 22.º, pp. 428-429; Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., anot. X ao artigo 22.º, p. 477, e anot. XI, p. 480; Alves Correia, "A indemnização pelo sacrifício: ..." cit., p. 146; Manuel Afonso Vaz e Catarina Santos Botelho in Aavv, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, cit., nota 2.1 do Comentário às disposições introdutórias da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, p. 40; Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 352; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo VI, (Direitos Fundamentais), 5.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, p. 394; e Tiago Lourenço Afonso, "A responsabilidade civil extracontratual do estado por ato da função jurisdicional" in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 74 [2014], p. 513 e ss., p. 524). Com efeito, é de reiterar a doutrina afirmada no Acórdão 45/99:
«[O] o artigo 22.º da Constituição reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração. Mas o mesmo artigo 22.º não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há de exercitar esse direito: ponto é que o legislador, ao fazê-lo, não crie entraves ou dificuldades dificilmente superáveis, nem encurte arbitrariamente o quantum indemnizatório.»
Tal entendimento - a que vai associada a ideia de suficiente determinabilidade a nível constitucional para garantir a aplicabilidade direta do preceito e a invocabilidade imediata do direito nele consagrado - não obsta, todavia, e sem prejuízo da garantia da responsabilidade direta do Estado, que se reconheça uma "larga margem de conformação ao legislador quanto à definição dos pressupostos da responsabilidade do Estado" (assim, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. VII ao artigo 22.º, p. 429, que se referem à formulação do artigo 22.º da Constituição como "tendencialmente principial"). Jorge Miranda e Rui Medeiros reconhecem igualmente a conveniência de uma intervenção do legislador ordinário (v. Autores cits., ob. cit., anot. XII ao artigo 22.º, p. 480):
«Embora os juízes em geral possam e devam assegurar a tutela do direito fundamental dos lesados à reparação dos danos, uma tal via apresenta inconvenientes, tanto do ponto de vista da separação de poderes e do papel que, num Estado democrático, deve estar reservado ao legislador legitimado democraticamente, como na perspetiva da igualdade e da segurança jurídica. O legislador pode, pois, densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar e o regime da responsabilidade, cabendo-lhe designadamente delimitar o conceito de ilicitude relevante e esclarecer em que medida uma ideia de culpa [...] constitui pressuposto da responsabilidade.
A lei não pode, porém, restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no artigo 22.º da Constituição.»
A possibilidade de o legislador delimitar e definir o âmbito e os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado já foi expressamente reconhecida no Acórdão 683/2006. Aliás, a liberdade de conformação em apreço é, nos casos de atos de autoridade ilegítimos, inerente ao caráter secundário da responsabilidade civil em relação à tutela primária dos direitos dos cidadãos assegurada pelas vias impugnatórias ou de condenação à prática de ato de autoridade devido (salienta em especial este aspeto Alves Correia, "A indemnização pelo sacrifício: ..." cit., p. 147; cf. também o artigo 4.º do RCEEP). E, de todo o modo, a circunstância de os citados atos de autoridade poderem ser praticados no âmbito de qualquer uma das funções do Estado - e é pacífico ser esse o âmbito do artigo 22.º da Constituição (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. VIII ao artigo 22.º, pp. 430-431; e Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., anot. IV ao artigo 22.º, p. 474) -, obriga naturalmente a concretizar a garantia da responsabilidade direta do Estado, de modo a adequá-la à diferente tipologia de atuações que pode estar em causa. Com efeito, são diferentes os problemas suscitados por atos concretos ou atos normativos, assim como também são diferentes as questões colocadas pela ilicitude dos atos típicos de cada função estadual.
Ponto é, como referido, que a legislação infraconstitucional, nomeadamente as "cláusulas legais limitativas ou excludentes de responsabilidade", não eliminem nem esvaziem de sentido a garantia da responsabilidade direta do Estado (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. VII ao artigo 22.º, p. 429, e anot. XVIII ao mesmo art., pp. 437-438; no mesmo sentido, v. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., anot. XII ao artigo 22.º, pp. 480-481) e não sejam arbitrárias ou desproporcionadas.
9 - A efetivação da responsabilidade por erro judiciário implica o reexercício da função jurisdicional relativamente à mesma questão de direito ou de facto: uma primeira decisão judicial é considerada errada por um ato jurisdicional subsequente. Assim, num caso como o que é objeto do presente recurso, constituirá sempre condição necessária da procedência de uma eventual ação de indemnização, a verificação - ainda que a título meramente incidental - de que a pretensa decisão danosa incorreu num erro de direito - in casu a aplicação de uma norma inconstitucional -, verificação essa que obriga a uma nova apreciação da questão de direito - ou seja, no caso vertente, a um segundo juízo sobre a constitucionalidade da norma aplicada pela primeira decisão.
Tal reexercício pode ocorrer no âmbito de um recurso ordinário interposto da primeira decisão ou fora dele. E é esta segunda hipótese que, desde sempre tem suscitado as maiores dificuldades (quanto à primeira - que corresponde, no fundo, à situação prevista no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP -, v. as condições de aplicação analisadas por Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil..., cit., anot. 8 ao artigo 13.º, pp. 274-276, e anot. 9 ao mesmo preceito, pp. 277-280). Por outro lado, a circunstância de a verificação do erro judiciário exigir o reexercício da função jurisdicional cria naturais interdependências entre o regime constitucional e legal do direito ao recurso e o regime da responsabilidade por erro judiciário (cf., por exemplo, Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil..., cit., anot. 8 ao artigo 13.º, pp. 272-273). Como refere Cardoso da Costa, "o instrumento para superar e corrigir a incorreção de decisões judiciais - vale por dizer, o «erro judiciário» - há de ser primacialmente o do «recurso» (e «reclamação»)", não o instituto da responsabilidade civil do Estado (v. Autor cit., "Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado...", cit., p. 163). Ou, por outras palavras, "os recursos servem para corrigir decisões e as decisões erradas corrigem-se, não se indemnizam" (assim, a síntese da posição de que discorda feita por Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil..., cit., nota 1.1 ao artigo 13.º, p. 344). Todavia, como observa Carlos Fernandes Cadilha, pode haver efeitos negativos gerados pelo erro judiciário que não são afastados pelo provimento de um eventual recurso (v. Autor cit., Regime da Responsabilidade Civil..., cit., anot. 8 ao artigo 13.º, p. 273, nota 474). Daí o reconhecimento generalizado de especificidades próprias do regime do erro judiciário.
10 - Tais especificidades estão na origem de uma orientação seguida por este Tribunal desde o Acórdão 90/84 (subsequentemente afirmada noutros arestos, como, por exemplo, no Acórdão 71/2005), segundo a qual:
«Diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» - o «direito do caso» -, e a sua declaração é plenamente válida (já acima se recordou) se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um ato «definitivo» da Administração possa ser posto em causa por uma instância judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade dos efeitos haver entretanto constituído «caso resolvido», compreende-se do mesmo modo que coisa idêntica não possa suceder com um ato judicial «consolidado». Quer dizer: compreende-se que este último - não havendo sido impugnado, ou, como quer que seja, apreciado pela competente instância de recurso - não possa vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura até de diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles limitados efeitos.»
Este entendimento assenta numa conceção da função jurisdicional em que o juiz é o mediador necessário do direito:
"['D]izer o direito' [...] significa que é o juiz quem recebe e detém a legitimação (e a competência) para 'determinar' o conteúdo, sentido e alcance das normas jurídicas e para 'fixar' e 'qualificar' os factos a que as mesmas vão aplicar-se (sendo que, nem aquelas, nem estes, logram 'falar por si', e exigem justamente uma entidade mediadora para a sua 'revelação'). Em suma, [... o juiz] não deixa de ser o necessário 'verbo' do direito, pertencendo-lhe dizer sobre ele a palavra definitiva. Ora, se é assim, então o 'erro' do juiz [...] não será rigorosamente recondutível, enquanto puro 'erro', e só por si (isto é, quando não tenha ocorrido a consciente quebra ou incumprimento de nenhum dever deontológico, que sobre aquele impenda), a uma situação de 'ilicitude': quando simplesmente 'erra', o juiz não terá propriamente 'violado' o direito, mas antes feito dele uma interpretação e aplicação que, de um ponto de vista externo, serão incorretas.» (cf. Cardoso da Costa, "Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado...", cit., p. 162)
E daí a defesa do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP:
«[S]endo a função jurisdicional e as decisões em que ela se exprime o que são, então não há de poder atribuir-se qualquer relevo a um alegado 'erro' judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o 'erro' (o puro 'erro') só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto. É, pois, desde logo e fundamentalmente, uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo n.º 2 do artigo 13.º - e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos diretamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta.» (v. idem, ibidem, pp. 163-164)
A doutrina sufragada por este Tribunal desde o mencionado Acórdão 90/84 destaca, assim, e de acordo com este entendimento, o ilogismo institucional - "no fundo, a subversão do princípio da divisão dos poderes, enquanto também aplicável à organização da ordem judiciária" - que representaria uma solução que prescindisse de um requisito como aquele que vem estatuído no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP: uma decisão judicial transitada em julgado não deve poder vir a ser posteriormente «desautorizada» - isto é, em concreto afastada ou desconsiderada -, mesmo que só incidentalmente e para efeitos de verificação de erro de julgamento relevante em sede de responsabilidade civil por «facto» da função jurisdicional, por outro tribunal "porventura até de diferente espécie ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior" (cf. Cardoso da Costa, "Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado...", cit., p. 164).
11 - Contudo, esta perspetiva não pode hoje ser aceite sem mais, isto é, sem uma explicação adicional.
Que assim é comprova-o, desde logo, a incompatibilidade com o direito da União Europeia da solução consagrada no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP.
Com efeito, na sequência dos desenvolvimentos do direito da União Europeia, em especial por força da jurisprudência Köbler (n.os 33 a 36) e Traghetti (n.os 33 a 40), é hoje consensual a admissibilidade da responsabilidade de um Estado membro da União em consequência da violação do direito da União imputável ao exercício da função jurisdicional, mesmo que tal violação resulte da decisão de um tribunal que decida em última instância. Consequentemente, o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP é inaplicável à responsabilidade do Estado Português por ações e omissões dos seus tribunais violadoras de normas do direito da União Europeia (nesse sentido, v., por exemplo: Maria José Rangel de Mesquita, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado..., cit., p. 56; e "Irresponsabilidade do Estado-juiz por incumprimento do Direito da União Europeia: um acórdão sem futuro" (anotação ao Ac. do STJ de 3.12.2009, P. 9180/07) in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 79 (jan-mar de 2010), p. 29 e ss., p. 43; Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil..., cit., anot. 6 ao artigo 13.º, p. 268; Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil..., cit., nota 3 ao artigo 13.º, p. 361; e Jónatas Machado, "A responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia..." cit., p. 273).
Acresce que a própria constitucionalidade daquela solução tem vindo a ser questionada por diversos Autores.
11.1 - Maria José Rangel de Mesquita, por exemplo, manifesta dúvidas quanto à legitimidade constitucional da prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente como condição necessária da efetivação de responsabilidade civil por erro judiciário. Na verdade, e como já referido, se tal revogação apenas puder ser obtida pelo lesado de acordo com os meios processuais de reapreciação de decisões judiciais à sua disposição, pode acontecer que não seja admissível recurso ordinário (em razão do valor da causa ou da sucumbência) ou um recurso extraordinário de revisão. Mais: das decisões dos tribunais superiores, em princípio, nunca cabe recurso. Como nota aquela Autora, "tal implica que o lesado não conseguirá, por sua iniciativa, preencher o requisito da prévia revogação da decisão danosa e, consequentemente, demandar o Estado e deduzir o seu pedido de indemnização. [Ora] é duvidoso que a efetivação de um direito constitucionalmente previsto - e concretizado pelo Regime aprovado pela Lei 67/2007 - possa ficar dependente de um requisito que a Constituição, ao consagrar aquele princípio, não prevê e, consequentemente, do teor da legislação ordinária ora vigente em matéria de recursos (reapreciação de decisões judiciais)" (v. Autora cit., "O novo regime da responsabilidade do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional" in Jorge Miranda (coord.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Martim de Albuquerque, vol. II, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2009, p. 415 e ss., pp. 427-428).
Em sentido contrário dir-se-á, todavia, que, conforme mencionado supra no n.º 8, a consagração no artigo 22.º da Constituição do princípio da responsabilidade direta do Estado (e demais entidades públicas) por ações ou omissões ilícitas imputáveis a titulares dos seus órgãos ou aos seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, não é incompatível com a possibilidade de o legislador ordinário delimitar e definir o âmbito e os pressupostos de tal responsabilidade. Tudo dependerá da justificação material e do equilíbrio das cláusulas legais limitativas ou excludentes de responsabilidade. Deste modo, a mera omissão de previsão constitucional de um requisito ou de uma condição de procedibilidade de uma ação de indemnização destinada a efetivar a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas não é condição suficiente da sua inconstitucionalidade.
11.2 - Seguindo uma linha argumentativa assente na rejeição dos pressupostos em que se funda a jurisprudência iniciada com o Acórdão 90/84, Luís Fábrica considera que a norma do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP viola o princípio da igualdade, por força do tratamento discriminatório imposto aos lesados que sofrem danos causados por erros judiciários correspondentes a sentenças que, por um ou outro motivo, não podem ser objeto de recurso (Autor cit., Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil..., cit., nota 3 ao artigo 13.º, p. 359). Por outro lado, considerando que a atribuição de uma indemnização constitui uma das principais formas estabelecidas no ordenamento jurídico para garantir a efetiva tutela dos direitos lesados pelo facto danoso, o mesmo Autor, entende que retirar da esfera do lesado a via indemnizatória de reparação "por circunstâncias estritamente processuais" significa uma ilegítima restrição do direito fundamental à efetiva tutela jurisdicional, "tanto mais chocante quanto o dano sofrido não resulta de ilicitudes comuns, mas de ilegalidades manifestas e de erros grosseiros, imputáveis precisamente aos órgãos a quem a Constituição comete a tarefa de proteger os direitos e interesses legalmente protegidos" (v. idem, ibidem, p. 360). Tal posição, porém, abstrai das especificidades próprias do regime do erro judiciário, em especial a circunstância de a verificação do mesmo implicar um reexercício da função jurisdicional sobre uma questão já objeto de decisão judicial - o que, como de resto foi justamente salientado no Acórdão 90/84 -, afasta qualquer analogia com o caso decidido dos atos administrativos. Na verdade, reconhecendo embora que no caso da ação de indemnização o juiz, ainda que em vista de um fim diferente, volta a ter de exercer a função de «dizer o direito» sobre uma questão relativamente à qual «o direito já foi dito», Luís Fábrica não retira de tal novo exercício da mesma função quaisquer consequências (v. ibidem, pp. 358-359).
Contudo, na verificação do erro judiciário, diferentemente do que sucede em relação ao caso decidido administrativo, o juiz depara-se com o «direito do caso», tal como previamente decidido (declarado com a autoridade própria das decisões judiciais) por um outro juiz. Ou seja, ao reapreciar esta primeira decisão, o juiz da ação de responsabilidade exerce necessariamente sobre a mesma questão função idêntica à do juiz que decidiu em primeiro lugar - ocorre, por conseguinte, um reexercício da função jurisdicional; aliás, é precisamente nesse reexercício que reside a semelhança entre as ações de indemnização por erro judiciário e os recursos reconhecida por aquele Autor. Daí o problema: porque é que a decisão do juiz da ação de responsabilidade dever prevalecer sobre a decisão do juiz da causa inicial? Sem resposta a esta questão, o entendimento firmado no Acórdão 90/84 continua a ser suficiente para infirmar a citada analogia (cf. supra o n.º 10). E, assim sendo, é na própria natureza da função jurisdicional e no modo como o respetivo exercício se encontra estruturado - o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais - que se pode encontrar justificação para a não arbitrariedade e para a justificação de uma limitação como a estatuída no n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP.
Como a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia evidencia, de modo particular no Acórdão Köbler, os problemas não se situam no plano técnico-processual do respeito do caso julgado (v., em especial, o respetivo n.º 39: um processo destinado a responsabilizar o Estado não tem o mesmo objeto e não envolve necessariamente as mesmas partes que o processo que deu origem à decisão danosa e que entretanto transitou em julgado; o demandante numa ação de indemnização contra o Estado obtém, em caso de êxito, a condenação deste no ressarcimento do dano sofrido - tutela secundária -, mas não a revogação ou revisão da decisão que causou o dano - tutela primária) ou no plano institucional da independência e autoridade dos juízes (v., em especial, os respetivos n.os 42 e 43: a responsabilidade civil do Estado por erro judiciário não é confundível com a responsabilidade pessoal do juiz que errou e a existência de uma via de direito que permita a reparação dos efeitos danosos de uma decisão judicial errada "pode também ser vista como sinónimo de qualidade de uma ordem jurídica e, portanto, finalmente, também da autoridade do poder judicial"). O que está em causa é a racionalidade sistémica e a coerência institucional: uma decisão judicial definitiva sobre uma dada questão, em princípio, e salvo razões juspositivas de especial relevo (como as que estão presentes nos recursos extraordinários de revisão), não deve poder ser desconsiderada por outra decisão judicial, uma vez que inexiste qualquer critério jurídico-positivo para fazer prevalecer a segunda sobre a primeira (nem tão-pouco uma eventual terceira ou quarta decisão sobre a decisão imediatamente anterior - é o problema da regressão infinita); menos ainda se poderá admitir, igualmente salvo razões juspositivas de especial relevo, que a decisão judicial definitiva sobre uma dada questão adotada por um tribunal superior possa vir a ser desconsiderada pela decisão de um tribunal hierarquicamente inferior.
12 - Do ponto de vista orgânico-funcional, a questão suscitada pelo erro judiciário pode ser equacionada em termos de saber qual a instância judicial que se encontra normativamente habilitada a pronunciar-se sobre uma determinada causa e qual o âmbito da sua pronúncia. Constitucionalmente, compete ao juiz da causa a autoridade para «dizer o que a norma diz» (cf. Cardoso da Costa, "Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado...", cit., pp. 162-163; e Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil..., cit., nota 1.2 ao artigo 13.º, p. 347). É ele - e só ele - quem tem legitimidade para o concreto ato judicante. Porém, esta habilitação normativa pode também ela ser transferida:
«S]e o ato judicante inicial estiver sujeito a recurso ordinário, a autoridade para "dizer o que diz a lei" [...] pode ser efetivamente transferida para o tribunal ad quem caso o recurso venha a ser interposto, prevalecendo então a apreciação feita por este. [...]
E a situação repete-se [...] no caso da ação destinada a efetivar a responsabilidade por danos causados pela sentença. A (importante) particularidade reside aqui no facto de a sentença ser submetida a uma apreciação meramente incidental, uma vez que o objeto do processo se organiza em torno de um pedido de indemnização. O juiz do processo indemnizatório não vai rever a sentença para a confirmar ou revogar, mas apreciá-la sob uma perspetiva específica - a sua relevância como fonte de um dever de indemnizar - e com um objetivo específico - reconhecer o correspondente direito indemnizatório. A sentença anteriormente proferida não surge neste processo como um ato decisório, mas como mero facto, ao qual a ordem jurídica pode associar determinados efeitos jurídico-materiais. E a questão de saber se um desses efeitos jurídico-materiais se constituiu ou não é precisamente o objeto da apreciação deste juiz: por outras palavras, o que está em causa neste segundo processo é um determinado efeito jurídico-material decorrente da sentença, e não a sentença como ato decisório com certo conteúdo e com certos efeitos, maxime o caso julgado, conteúdo e efeitos que permanecem incólumes.
Portanto, na medida em que o legislador reconheça o direito à indemnização por erro judiciário [...], está a habilitar o juiz do correspondente processo a realizar uma apreciação da sentença.» (v. Luís Fábrica, ibidem, pp. 347-348)
É precisamente esta possibilidade de transferência normativa da autoridade de «dizer o que diz a lei», mesmo fora do âmbito dos recursos, que permite explicar dogmaticamente a solução encontrada ao nível do direito da União Europeia quanto à responsabilidade dos Estados membros por erro judiciário. Todavia, esta linha de raciocínio implica igualmente o reconhecimento de que a apreciação de tal responsabilidade coenvolve uma reapreciação - ainda que meramente incidental - da sentença ou acórdão anterior: a questão de direito objeto de uma primeira apreciação judicial vai ser novamente apreciada por um juiz. E ainda que a primeira apreciação possa processualmente relevar apenas como um facto, a verdade é que substancialmente - em termos de operações cognitivas e valorativas - o acerto de tal apreciação é (também) sujeito a um (novo) exame judicial.
Que isto seja possível sem entorses dogmáticas é uma coisa; outra, diferente, é saber se tal é constitucionalmente exigido.
E a questão coloca-se precisamente porque, em termos de racionalidade sistémica e de coerência institucional não é irrelevante que uma decisão judicial transitada em julgado volte a ser apreciada por um tribunal e, muito menos, que a apreciação de uma questão jurídica feita por um tribunal inferior possa prevalecer sobre a apreciação de idêntica questão feita por um tribunal superior. Nesse plano institucional em que se considera o sistema judiciário como um todo orgânico, contrariamente ao que se deve fazer no plano processual, a dissociação entre o ato judicante - a decisão - e os seus efeitos - o respetivo conteúdo -, embora possível, não é necessária e, frequentemente, não será conveniente. Isto é: pode haver razões de peso que justifiquem a modelação do direito à indemnização sempre que este interfira com a lógica de organização e funcionamento do próprio sistema judiciário. E são tais razões que também podem justificar a solução do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP quando cotejada com os parâmetros constitucionais da igualdade ou da tutela jurisdicional efetiva.
A segurança jurídica, associada às decisões judiciais transitadas em julgado, e a autoridade das decisões dos tribunais superiores, inerente à estrutura hierarquizada do sistema judiciário - em que, por regra, as decisões mais importantes e mais bem fundamentadas são tomadas por tribunais onde têm assento os juízes mais qualificados (cf. por exemplo, o artigo 211.º e ss. da Constituição) - constituem bens constitucionais reconhecidos. Por outro lado, é ainda uma lógica sistémica que explica que o recurso jurisdicional não seja nem universal nem ilimitado, ou que os tribunais se organizem de acordo com certos critérios de especialização. Ora, são precisamente estas considerações que estão na base da ideia de que permitir que um ato judicial «consolidado» - porque não impugnável ou não impugnado tempestivamente - possa vir a ser ulteriormente «desautorizado», mesmo que para os efeitos limitados de reconhecimento de um erro judiciário, por outro tribunal - porventura até de diferente espécie ou pertencente a uma ordem diversa de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior - constitui um ilogismo institucional (cf. o Acórdão 90/84 e Cardoso da Costa, "Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado...", cit., p. 164).
De resto, mesmo a solução do direito da União Europeia relativamente à responsabilidade dos Estados membros por erro judiciário - "uma responsabilidade excecional reservada para situações especialmente graves" (assim, v. Jónatas Machado, "A responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia..." cit., p. 259) -, e em que uma desautorização daquele tipo acaba por ser possível, não é isenta de problemas. Aliás, Jónatas Machado - que chega a falar em disfunções sistémicas - evidencia-o bem, a propósito dos temas da "disfunção hierárquica e defeito de independência", da "imparcialidade e juízo em causa própria" e do "controlo das decisões dos tribunais superiores" (v. Autor cit., "A responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia..." cit., respetivamente, pp. 284-285, 285-286 e 286-288). Sucede, isso sim, que, conforme o mesmo Autor explica, "as apontadas dificuldades e anomalias são amplamente compensadas pela necessidade de assegurar a primazia e a efetividade do direito da UE e da jurisprudência do TJUE, juntamente com a tutela jurisdicional efetiva dos particulares diante das decisões dos tribunais nacionais de última instância que violem direitos e interesses legalmente protegidos pelo direito da UE" (v. ibidem, p. 288; cf. também o Acórdão Köbler, n.os 33 a 36).
Com efeito, no quadro do direito da União Europeia, e face à impossibilidade de os cidadãos demandarem diretamente os Estados membros junto do Tribunal de Justiça por incumprimento daquele direito ou de forçarem o reenvio prejudicial em vista da sua correta interpretação e aplicação (cf., respetivamente, os artigos 258.º e 259.º e o artigo 267.º, todos do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), a tutela secundária correspondente à responsabilidade do Estado membro fundada em erro judiciário relativo ao direito da União Europeia constitui um importante fator de tutela jurisdicional dos direitos dos cidadãos conferidos por esse mesmo direito e de garantia da respetiva primazia face ao direito de cada um dos Estados membros. Comprova-se, assim, a existência de mais-valias sistémicas justificativas da solução do direito da União Europeia.
13 - Analisando agora a solução prevista no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP, importa começar por recordar o amplo espaço de conformação legislativa quanto à definição do âmbito e dos pressupostos da responsabilidade do Estado reconhecido pelo artigo 22.º da Constituição (cf. supra o n.º 8). Em especial, no que se refere à responsabilidade do Estado por erro judiciário, esta interfere, pelas razões já mencionadas, com a própria configuração e modo de funcionamento do sistema judiciário, tal como prefigurados na Constituição (cf. supra os n.os 9, 10 e 12), ampliando desse modo ainda mais o campo de intervenção do legislador ordinário. Assim, para além da previsão genérica do direito à reparação pelos ilícitos cometidos pelos titulares dos órgãos do estado e demais entidades públicas, que, justamente por ser geral, também deve abranger os juízes e os ilícitos que estes eventualmente cometam no exercício das respetivas funções, não é possível a partir do citado preceito constitucional determinar com mais exatidão os contornos do direito à indemnização fundada em erro judiciário.
Certo é que a mencionada solução legal não exclui em absoluto tal direito, limitando-se a estabelecer que o erro judiciário relevante seja previamente reconhecido pela jurisdição competente, o mesmo é dizer, que o reexercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação (ou, porventura, de uma revisão oficiosa). Ao fazê-lo, o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não está a interferir com qualquer âmbito de proteção constitucionalmente pré-definido (muito menos a invadi-lo). E, por isso mesmo, também não se pode dizer que essa norma revista a natureza de uma lei harmonizadora destinada a resolver um qualquer conflito de bens jurídicos fundamentais ou de uma lei restritiva de um direito fundamental (sobre estas categorias e as consequências jurídicas que a elas vão associadas na dogmática dos direitos fundamentais, v., por todos, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 216-217 e, quanto às leis restritivas, p. 277 e ss., e quanto às leis harmonizadoras, p. 298 e ss.).
Em rigor, a norma do artigo 13.º, n.º 2, RCEEP concorre, juntamente com a do n.º 1 do mesmo artigo, para a configuração do conteúdo do direito de indemnização emergente da responsabilidade do Estado por erro judiciário do Estado. É, nessa exata medida, uma lei conformadora ou constitutiva: "não restringe o conteúdo do direito ou da garantia, porque é a ela própria que cabe determiná-lo, para além do conteúdo mínimo do direito ou do núcleo essencial da garantia, que decorrem da Constituição" (cf. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 213). Na verdade, o direito à indemnização por erro judiciário civil foi fixado, na parte respeitante à determinação de quem é o juiz competente para realizar a apreciação da decisão judicial danosa, legislativamente pelo artigo 13.º, n.º 2, em causa (cf. Vieira de Andrade, ibidem, que, na nota 63, refere como exemplo de direitos e faculdades cujo conteúdo é juridicamente construído pelo legislador, entre outros, os direitos às indemnizações previstas nos artigos 27.º, n.º 5, e 29.º, n.º 6, da Constituição - isto é: as indemnizações por erro judiciário penal).
Como explica Vieira de Andrade, "apesar do poder legislativo de configuração, ao juiz cabe ainda verificar o respeito pelo conteúdo essencial do direito (que será em regra o seu conteúdo mínimo) [...], avaliado segundo um critério de evidência" (v. o Autor cit., ob. cit., p. 214). Ora, como referido, a norma do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não elimina o direito à indemnização por erro judiciário, limitando-se a acomodar no regime respetivo, as exigências correspondentes à estrutura e ao modo de funcionamento do sistema judiciário constitucionalmente consagrado. Inexiste, por conseguinte, qualquer evidência de desrespeito pelo conteúdo essencial do referido direito.
Se à partida, e de modo constitucionalmente legítimo, o direito à indemnização em causa é delimitado negativamente em função da possibilidade legal de reapreciação judicial pelo tribunal competente antes do trânsito em julgado da decisão tida como danosa, também não se coloca qualquer problema de acesso ao direito. Este último, enquanto direito-garantia, pressupões um direito material, que, no caso, inexiste. Finalmente, as referidas exigências orgânico-funcionais relacionadas com o sistema judiciário explicam satisfatoriamente a solução legal, afastando a ideia de que a mesma seja arbitrária.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente;
E, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 9 de julho de 2015. - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Joaquim de Sousa Ribeiro.
208946519