Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2009
Processo 2030/07 - 3.ª Secção
Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:David Alexandre Oliveira Pires Abrantes, menor, actualmente de 16 anos, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 14 de Março de 2007, no processo 4118/06 - 4.ª Secção, em que se decidiu que não havia que proceder ao desconto, na duração da medida tutelar de internamento que, a final, lhe foi aplicada, no processo tutelar educativo n.º 468/06.1TMPRT, do 2.º Juízo do Tribunal de Menores e Família do Porto, do tempo da duração da medida cautelar de guarda em centro educativo, em regime aberto, nos termos do artigo 56.º da LTE (Lei Tutelar Educativa), em oposição ao acórdão (fundamento) da Relação de Lisboa de 4 de Novembro de 2004, da 9.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, exarado no processo 6359/2004-9, onde se decidiu que na duração da medida de internamento se devia imputar, descontando, o tempo de guarda em centro educativo sofrido pelo menor.
I - Declarada, em conferência, a oposição de julgados entre as decisões, depois de individualizado pelo recorrente qual o acórdão fundamento e resolvido incidente sobre a tempestividade do recurso, prosseguiu este, e, no ritualismo legal sequente, o Ministério Público pugnou, alegando, pela fixação de jurisprudência com o alcance do acórdão recorrido, no sentido da inaplicabilidade do instituto de desconto, com consagração no artigo 80.º do Código Penal (CP), reclamando solução de sinal contrário o menor recorrente, em contra-alegação.
Para tanto alegou aquele Exmo. Magistrado que:
Era característica essencial do sistema tutelar concentrado na OTM o tríplice objectivo de protecção, assistência e educação, sem distinção entre situações em que a criança se achasse carente de protecção daquelas em que fosse autora do facto qualificado por lei como crime ou contravenção;
Só em 1982, com a 1.ª revisão da CRP, passaram estas tríplices finalidades a ter assento no artigo 27.º pela adição da alínea d) ao seu n.º 3.
Com a entrada em vigor da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo e da Lei Tutelar Educativa, distingue-se entre intervenção promotora e protectora dos direitos da criança em situação de perigo, da intervenção tutelar educativa, relativa a situações em que a criança, com idade compreendida entre 12 e 16 anos, pratica facto qualificado pela lei como crime.
As medidas tutelares educativas têm como finalidade «a educação do menor para o direito e a sua inserção de forma digna e responsável na vida em comunidade».
Mas a intervenção tutelar educativa não é encarada como punição do mal causado, antes surge como intervenção responsabilizadora da criança, ordenada ao seu superior interesse, enquanto titular do direito ao desenvolvimento positivo da personalidade em formação.
Apesar da prova da prática de facto qualificado pela lei como crime, a imposição de uma medida tutelar educativa só se torna imperiosa se a necessidade da conformação ao direito, ao dever-ser jurídico, se verificar ainda no momento da decisão - princípios da necessidade e actualidade, sendo que o grau de necessidade é de ponderar no momento da «escolha» da medida, nos termos do artigo 6.º, n.os 1 e 2, da LTE.
Os critérios de escolha fundam-se no interesse do menor, no princípio da intervenção mínima e na procura da adesão.
Além disso as medidas tutelares educativas são obrigatoriamente revistas e, verificados os seus pressupostos de lei, podem ser mantidas, modificadas no seu regime de execução, substituídas, aumentadas ou reduzidas na sua duração ou mesmo extintas, em função da sua adequação à evolução das necessidades educativas da criança.
A LTE consagra, diversamente do regime anterior, os princípios da tipicidade, adequação, necessidade, proporcionalidade, subsidiariedade e adequação, determinando os seus pressupostos, formalidades, prazos de duração, revisão e extinção.
As medidas acham-se previstas, de forma taxativa, no artigo 57.º, alíneas a), b) e c).
A duração da medida cautelar de guarda em centro educativo não pode exceder três meses, prorrogável até ao prazo máximo de seis meses em casos de especial complexidade devidamente fundamentada.
São razões radicadas em imperativos de justiça material que justificam no sistema penal que as medidas processuais restritivas de liberdade sejam descontadas no cumprimento da pena de prisão que vier a ser aplicada, por se traduzirem em restrições de liberdade, impostas por motivos cautelares, a presumido inocente.
Na tensão existente entre o apelo às exigências de justiça e a salvaguarda das exigências de prevenção especial, o nosso sistema penal de há muito optou pela prevalência do imperativo de justiça material ao estabelecer a obrigatoriedade de desconto.
Na LTE não existe a obrigatoriedade de qualquer desconto na medida de internamento do tempo de permanência em centro educativo enquanto medida cautelar.
Uma interpretação sistemática, ancorada na globalidade do sistema tutelar educativo, considerando a especificidade do seu âmbito, finalidades, natureza e respectivos instrumentos de realização, dá resposta, por si, à questão presente afastando a ideia de lacuna.
O sistema tutelar educativo, em virtude dos princípios que o enformam, particularmente os da necessidade e da actualidade, assume uma especificidade que implica uma autonomia fundamental em relação à ordem jurídica penal.
O sistema tutelar educativo recorre a alguns elementos da ordem jurídico-penal, porém, o âmbito e sentido do recurso a esses elementos não podem conflituar como os valores, princípios e fins próprios do sistema tutelar educativo, descaracterizando-o e comprometendo-o.
E tal sucederia pelo encurtamento da duração da medida pelo desconto automático e aritmético do tempo de duração da medida cautelar de guarda em centro educativo.
A natureza, pressupostos e finalidades da intervenção tutelar educativa pressupõem que a decisão a que se alude no artigo 118.º da LTE considere todo o percurso da criança, englobando necessariamente o tempo em que esteve de guarda em centro educativo.
Se o tribunal, tendo em apreço a globalidade do percurso da criança, impõe uma medida tutelar educativa de internamento com uma certa duração, é porque considera ser ainda necessário, para uma correcta realização das finalidades da referida medida tutelar educativa, um internamento com a duração que naquele momento fixa.
A medida tutelar educativa não constitui um sucedâneo do direito penal e que é primacialmente ordenada ao interesse do menor; interesse fundado no seu direito à realização de condições que lhe permitam desenvolver a sua personalidade de forma socialmente responsável.
Por isso toda a intervenção tutelar educativa está necessariamente orientada nesse sentido.
Daí que as normas processuais tenham de o reflectir e respeitar.
Por isso a medida cautelar de guarda em centro educativo tem de tomar em consideração o direito à criança da criação das condições que lhe permitam a interiorização dos valores fundamentais da vida em sociedade e da essencialidade seu respeito.
Na verdade, visando o sistema tutelar educativo promover as condições de realização do interesse da criança na sua educação para o direito e sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade, as limitações ao seu direito à liberdade e à autonomia impostas pelo Estado só podem decorrer em consonância com esses interesses pressupostos pelo sistema tutelar educativo.
Não pode haver hiatos que, restringindo a sua liberdade, descurem por períodos não excedente a seis meses a prossecução dos seus interesses.
A medida não pode visar apenas interesses processuais em dissonância com os interesses e finalidades da intervenção tutelar educativa.
A execução da medida tutelar de guarda em centro educativo tem necessariamente de ter em conta e prosseguir finalidades educativas da criança sujeita a medida cautelar de internamento.
Tem de se inserir no espírito educativo da intervenção tutelar.
A ser diferentemente, ter-se-ia de entender que o menor foi sujeito a uma medida de prisão preventiva aplicada uma criança com idade inferior a 16 anos sem suporte constitucional.
Uma interpretação sistemática que considere particularmente:
A implicação dos princípios da necessidade e actualidade;
A intervenção tutelar educativa só se legitima se proporcionar à criança condições que levem à interiorização dos valores fundamentais da vida em comunidade e da essencialidade do seu respeito, pelo que também a execução da medida cautelar de guarda em centro educativo tem em conta e prossegue finalidades educativas da criança a ela sujeita;
Nos termos do artigo 118.º da LTE tem de ser considerado todo o percurso da criança, englobando o que faz parte da situação em que esteve em guarda em centro educativo;
Que se o tribunal aplica uma medida internamento com dada duração é porque considera ser ainda necessário para realização dos interesses da criança em vista da interiorização dos valores fundamentais da vida em sociedade e da essencialidade do seu respeito, com tal duração.
E assim deve ser fixada jurisprudência no sentido de que no sistema tutelar educativo não há lugar ao desconto do tempo de duração da medida cautelar de guarda em centro educativo na medida de internamento em centro educativo, por inexistência de lacuna.
II - Por seu turno, o recorrente alegou no sentido de:
O tempo de privação de liberdade imposta ao menor para a sua educação, a título de medida cautelar de guarda e que teve como pressuposto o cometimento de um facto delituoso, deve ser descontado na execução da medida tutelar de internamento;
O artigo 80.º do CP determina que a detenção, prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas por inteiro no tempo da pena de prisão que lhe for cominada;
Trata-se de determinação expressa, derivada de imperativos de justiça material, na medida em que tal medida importa um sofrimento para o arguido semelhante à pena em que é condenado e esse sacrifício decorre do mesmo facto que integra ou devia integrar o mesmo facto;
Inexiste norma expressa que impeça a aplicação do CP à LTE;
Violou-se o disposto nos artigos 18.º e 27.º da CRP, 2.º, 7.º, 56.º, 57.º, 129.º e 165.º da LTE, 80.º do CP e 4.º do CC.
III - Vista a oposição explícita de julgados, conjugadamente com os demais pressupostos de prossecução, avançar-se-á, pois, no sentido da fixação de jurisprudência.
IV - Colhidos os legais vistos, cumpre decidir.
Desde a Lei de Protecção à Infância, de 1911, que criou os tribunais de menores, o Estado norteou-se por um chamado modelo «Welfare», de protecção em relação ao jovem que se desvia de padrões de normalidade, razão bastante para o legitimar na sua intervenção junto do poder judiciário.
Nesse diploma, como na OTM, aprovada pelo Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro, como na sua versão antecedente, incorporada no Decreto-Lei 44 288, de 20 de Abril de 1962, não se distinguia entre em menores em perigo e menores agentes de crimes, a todos eles se aplicando medidas de prevenção criminal, para protecção, assistência e educação, em processo simplificado e desburocratizado.
Em tais diplomas o menor era encarado numa perspectiva estática, inerte, mais como objecto de um processo do que um sujeito de direitos, que, desde fase inicial do seu processo de formação de personalidade, se via confrontado com o poder judicial, ante o qual se achava desprovido de reais garantias de defesa, havendo que redimensionar esse seu posicionamento, por forma a preservar «o essencial do acesso ao direito» e a correspectiva proibição de «indefesa constitucional», consagrados no artigo 2.º da CRP, garantias que não valem, apenas, para o processo criminal, impedindo «toda a privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito», nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra Editora, em comentário ao artigo 20.º Esse ideário proteccionista, escreve a Prof.ª Anabela Miranda Rodrigues, a p. 7, na introdução ao Comentário à Lei Tutelar Educativa, Coimbra Editora, 2000, aprovada pela Lei 166/99, de 14 de Setembro (doravante simplesmente denominada LTE), cedeu passo a partir dos anos 60, sobretudo pelo recrudescer da delinquência juvenil, dos movimentos de contestação da família e da escola, a que a irrupção dos audiovisuais e a prevalência de uma cultura basilarmente oral serviram de instrumento.
Doravante havia que olhar para essa realidade nascente, proceder a distinções e não incluir na mesma categoria, submetido ao mesmo tratamento, o menor inadaptado, rebelde ou abandonado e o menor agente de facto que caía sob a égide do direito criminal.
Não se fazia mais do que concretizar as directivas da Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da Criança, ratificada pelo nosso Estado, avultando, entre aquelas, o direito à participação e informação em todos os processos judiciais e administrativos que lhe respeitam (artigo 1.º) e o princípio da jurisdicionalidade (artigos 37.º e seguintes), à margem das quais se situavam os diplomas tutelares dos menores do antecedente.
O Governo, pelo despacho do Ministro da Justiça n.º 20/MJ/96, Diário da República, 2.ª série, n.º 35, de 10 de Fevereiro de 1996, teve como imperiosa necessidade rever, além do mais, as medidas a aplicar a jovens e menores, encarregando dessa revisão a denominada «Comissão para a Reforma do Sistema de Execução de Penas e Medidas - Direito de Menores», que, no seu 1.º relatório, teve por adequado sublinhar, desde logo, uma visão dualista de situações, sedimentada na realidade, propondo medidas capazes de lhe responder, para o efeito de os menores autores de factos qualificados por lei como crime e os que achem em situação de perigo serem alvo de normativismo diferenciado, aí se reconhecendo que o processo tutelar não respeitava as «injunções constitucionais e o direito internacional em matéria de garantias do menor».
A LTE confia, em caso de ruptura nítida com princípios basilares da comunidade, ao Estado o direito e o dever de intervir, mesmo contra a vontade dos titulares do poder paternal, sempre que o menor - de 12 anos, no mínimo - atente contra leis criminais, denotando uma personalidade, enquanto repositório de valores de conformação ou desvio ao dever-ser-ético-existencial, avessa a valores fundamentais de convivência comunitária, educando-o para o direito, como forma de interiorização de normas e valores jurídicos pilares da comunidade.
A filosofia subjacente à LTE é a de intervenção estadual para a educação para o direito e tem por diagnóstico o facto, seu sintoma, seu índice, sem o absolutizar, pois que, transcreve-se daquela introdução «a intervenção educativa não deve ter lugar se a prática do facto exprimir ainda uma atitude de congruência [...] ou ainda se insere nos processos normais de desenvolvimento da personalidade» - introdução citada, p. 21.
Se a história pregressa do jovem delinquente narra uma organização e estruturação familiar sólidas, então o menor mostra-se carente de intervenção educativa, sinal de que, ostensivamente, não soube ou não quis acolher os valores fundamentais da vida em sociedade; se, diversamente, a desprotecção social e o marginalismo, face à fragilidade do menor ante a adversidade, o dever que impende sobre o Estado de protecção das crianças, particularmente os órfãos e abandonados, previsto na CRP - artigo 69.º - o impeliram para o delito, a simples intervenção protectora atalha o mal.
O Estado, nomeadamente através de esquemas locais de protecção, designadamente das comissões de protecção de menores, enraizando nelas essa finalidade, em caso de incúria da família, do acometimento por doença, abandono ou maus tratos, não carece de lançar mão da LTE, mas, e como pano de fundo normativo, a Lei 147/99, de 1 de Setembro, de protecção de crianças e jovens em perigo.
V - O jovem delinquente, nem por o ser perde a dignidade de pessoa humana; é um jovem com a sua personalidade em formação, mas que carece de a ver conformada para o direito, embora esse alcance se deva atingir sem lesão dos seus direitos fundamentais, para o que o direito tutelar é estruturado sobre princípios, que recebe por incorporação do processo penal. Escreve-se na exposição de motivos, que precedem a LTE. Não sendo passível de culpa jurídico-penal, por a sua personalidade não estar ainda formada, mas sendo de esperar que o venha a estar, tudo aponta, no entanto, para o tratamento do menor fora do direito penal, designadamente por apelo ao princípio da mínima intervenção, ou seja, de compressão mínima da sua autodeterminação e crescimento no seio de uma família, por isso se exige a prática de um facto qualificado como crime pelo direito penal.
O legislador não pretendeu, pois, escreve-se ainda naquela exposição, «um direito sucedâneo» do direito penal, um direito penal de grau menor, de maior brandura ao nível das sanções, que estão previamente enunciadas, subsumíveis a arquétipos legais, na esteira do princípio da tipicidade - artigo 4.º da LTE.
Não sendo o direito tutelar um direito punitivo penal, em sintonia, de resto, com o pensamento corrente europeu, muito menos com a finalidade retributiva do mal do crime com o mal de uma pena, a intervenção do Estado para a conformação ao direito é ditada por imperiosa necessidade (princípio da necessidade - artigo 3.º) de remediar um défice de conformação ao dever-ser jurídico mínimo e essencial socialmente reinante.
No direito tutelar preponderam, ainda, os princípios da promoção oficiosa pelo Ministério Público, sujeito ao princípio da legalidade, como o do contraditório, de que a nomeação de defensor é expressão - artigo 45.º - , nele se promove a verdade material, obtida pelo da livre apreciação da prova, oralidade e imediação, sob tutela do princípio do sigilo ou do carácter secreto do processo - artigo 41.º - , e, porque o tempo adquire na vida da pessoa uma dimensão antropológica a que no passado se não assistiu, o processo é fortemente influenciado pela celeridade - artigos 105.º a 111.º da LTE.
De O Novo Direito das Crianças e Jovens - Um Recomeço, de Leonor Furtado e Paulo Guerra, edição do Centro de Estudos Judiciários, transcreve-se de p. 89, que é imposto:
«Pela consideração de que o tempo do jovem urge, não se confundindo com o tempo do adulto, necessitando de uma intervenção tão rápida quanto possível com vista a conseguir-se uma resposta adequada e eficaz em tempo útil, impondo-se que estes processos possam correr durante as férias, sempre que o menor estiver sujeito a medida cautelar de guarda e sempre que a demora do processo possa causar prejuízo ao menor» - artigo 44.º Um princípio inovador é o que concerne à mediação: a autoridade judiciária pode determinar a intervenção de autoridades públicas ou privadas de mediação, como forma extrajudicial de resolução do conflito, ligada a uma ideia restaurativa ou de justiça reparadora, de terceiro, e de pacificação comunitária - artigo 42.º da LTE.
VI - Ao menor foi aplicada a medida internamento em centro educativo com regime semiaberto por 13 meses, por se mostrar que, com outros, praticou acto qualificado como crime de homicídio qualificado na forma tentada, a título de dolo eventual, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.os 1 e 2, alíneas a), b) c), 22.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.os 1 e 2, 26.º e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CP, sem desconto na duração daquela medida do tempo de cumprimento de medida cautelar de guarda confiada ao Centro Educativo do Mondego, desde 24 de Fevereiro de 2006.
A medida de internamento é a mais grave das previstas no elenco, taxativo, das medidas tutelares. No artigo 4.º, n.º 1, alínea i), é a única de natureza institucional, manifestando o legislador preferência pelas não institucionais.
O critério geral que preside à sua opção pelo tribunal é fornecido no artigo 6.º da LTE:
o tribunal dá preferência dentre as que se mostrem adequadas e suficientes à socialização do menor, à que represente menor intervenção na autonomia de decisão e condução de vida do menor e que seja susceptível de alcançar maior adesão do menor, seus pais, representante legal ou pessoa que o tenha à guarda, comparticipação vocacionada como forma de lograr uma maior eficácia da intervenção.
A determinação da duração da medida deve ser proporcionada à gravidade do facto e à necessidade de educação do menor para o direito manifestada na prática do facto e subsistente no momento da decisão - artigo 7.º, n.º 1, da LTE -, princípio regulativo esse que, escrevem Anabela Miranda Rodrigues e António Carlos Duarte Fonseca, em Comentário à Lei Tutelar Educativa, assume um papel limitador do poder-dever educativo do Estado.
A actualidade da avaliação da medida da necessidade de educação para o direito, no momento preciso da decisão, pode reduzir ou excluir mesmo a necessidade de intervenção, desde que se mostre presente uma congruência ex post ao direito.
O regime de execução da medida está previsto no artigo 17.º da LTE: em regime aberto, semiaberto e fechado, este nos casos equacionados no seu n.º 4, alíneas a) e b).
A duração da medida em regime aberto e semiaberto é de 3 meses a 2 anos; em regime fechado tem a duração mínima de 6 meses e máxima de 2, podendo ascender a 3 anos no condicionalismo previsto no artigo 18.º, n.os 1, 2 e 3, da LTE.
Propõem-se as medidas tutelares, também, a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade, nos termos do artigo 2.º n.º 1, da LTE, acentuando-se, neste segmento, a vertente socializadora da intervenção tutelar em conformidade com as exigências de defesa da sociedade - cf. Comentário da Lei Tutelar Educativa, citada, p. 62.
VII - O menor pode ser sujeito a medidas cautelares, com elas se visando acautelar a averiguação no processo das eventuais prática do facto e necessidade educativa do menor; são preliminares, apresentando-se como preparatórias da medida definitiva, porém, são substituíveis, revistas oficiosamente, cessando quando deixarem de se verificar os respectivos pressupostos, extinguem-se no preciso condicionalismo do artigo 64.º da LTE e cumprem-se, para não perturbação da respectiva personalidade, à margem de contactos com jovens em cumprimento efectivo de medidas.
Entre elas figura a de guarda em centro educativo que não pode exceder 3 meses, prorrogável até ao limite máximo de mais de 3 meses, em casos de especial complexidade devidamente fundamentados - artigos 57.º, alínea c), e 60.º, n.º 1, da LTE - integrando-se, ab initio, intimamente na teleologia do processo, mostrando-se dominadas pelos princípios da tipicidade, necessidade, adequação, proporcionalidade, subsidiariedade e precariedade - artigos 56.º, 57.º, 58.º, n.º 1, 61.º e 62.º da LTE.
VIII - É, agora, chegado o momento de se dedicar indispensável reflexão sobre a figura do desconto, prevista no artigo 80.º do CP, na sua redacção actual introduzida pela Lei 59/07, de 4 de Setembro, no seu n.º 1, com o alcance de que a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que se tiver sido condenado tiver sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
O Prof. Figueiredo Dias, explicitando a sua razão de ser, convoca uma ideia de justiça material segundo a qual as privações de liberdade em razão do facto ou factos que integram ou deviam integrar o objecto de um processo penal devem, por imperativos de justiça material, ser imputadas ou descontadas na pena em que naquele processo (penal) o agente venha a ser condenado - cf. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, § 434.
A aplicação da regra do desconto, para aquele penalista, comporta o inconveniente de conflituar, em certas situações, com princípios de determinação da pena, nomeadamente com a prevenção especial de socialização, quando, impondo-se o cumprimento de prisão efectiva, o tempo de desconto quase consome, se não excede, aquela pena - op. cit., § 435.
É da resposta à amplitude da regra do desconto, se restrita ao processo penal, ou se, alargadamente, por analogia, ao processo tutelar educativo, conducente ao abater o tempo de guarda em centro educativo à duração da medida de internamento, como se sufragou no acórdão fundamento, que emerge o sentido decisório a imprimir ao recurso, sendo incontroverso que a LTE é completamente omissa a respeito desse desconto.
Só é legítimo o recurso à analogia com o regime de desconto para o processo penal, quando por uma esgotante interpretação das normas que integram o diploma, do espírito do legislador e de uma visão sistémica do ordenamento jurídico for de concluir que o legislador, por imprevisão sua, se absteve de prever a regulamentação global do caso concreto, porém, ainda assim, se conformaria com esse regime analógico, por não atraiçoar o seu espírito, que não manifestou, positivando-o, caso que não deixaria dúvidas aquele recurso.
O caso omisso não postula, necessariamente, uma lacuna, uma incompletude da lei, que se mantém em silêncio.
O acentuar do conceito de lacuna só surge quando a questão de que se trata é em absoluto susceptível e está necessitada de solução jurídica, reconhecendo-se que, desde o século xix, a doutrina afirmou «um espaço livre de Direito», enquanto sector que a ordem jurídica deixa, sem exageradas preocupações de certeza e segurança do direito, por regular.
Uma lei particular e também uma codificação completa só podem conter lacunas sempre e na medida em que falte pelo menos uma regra que se refere a uma questão que não tenha sido deixada ao «espaço livre do Direito», pode ler-se in Metodologia da Ciência do Direito, de Karl Larenz, p. 527.
Por isso, para chegar a uma resolução juridicamente satisfatória, o juiz precisa de preencher a lacuna da regulação legal, de tomar em linha de apreço não só os propósitos e as decisões conscientemente tomadas pelo legislador, mas também os fins objectivos do direito e os princípios gerais que se acham insertos na lei, entre os quais um que é inerente a toda a lei na medida em que se pretende ser «Direito», continuamos a citar Larenz - op.cit., p. 531 -, e que é o tratamento igual daquilo que é igual, donde o recurso à analogia, nos termos do artigo 4.º do CC.
Uma lacuna da lei é uma interpretação contrária ao plano da lei, no dizer de Engish, que também a distingue da chamada lacuna de direito enquanto imperfeição do direito estatuído, comparado com o plano conjunto da codificação, sendo aquela a inferir pela via da interpretação histórica e teleológica.
IX - Os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos, havendo analogia sempre que, no caso omisso, procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei, nos termos do artigo 10.º, n.os 1 e 2, do CC.
A analogia entre o processo penal e o processo tutelar educativo é recusada na tese do acórdão recorrido, que parte, ainda, para refutar a inexistência de um caso omisso, justificativo do recurso à via integrativa, pela consideração de que só ao título iv se aplica, subsidiariamente, o CPP; nos casos omissos observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo tutelar, como consagra o artigo 128.º, n.os 1 e 2, da LTE, inscrito no capítulo vi daquele título.
E assim o direito penal, muito particularmente a norma do artigo 80.º do CP, de direito substantivo, não rege para a situação, apenas cobrando razão para aplicação à qualificação jurídico-penal do facto imputado ao menor.
X - Numa linha de plena congruência com os princípios aplicáveis ao direito tutelar de menores cumpre ter presente que a teleologia das penas criminais se situa num plano quantitativa e qualitativamente diferenciado do processo tutelar educativo; aquela orientada, em primeira linha, numa feição pragmática ou utilitarista, para a protecção de bens jurídicos de relevância comunitária, em vista da defesa da sociedade, ou, na impressiva formulação de Jakobs, empenhada na estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na vigência da norma jurídica, postas em crise pela prática de um crime, acentuando o seu carácter público, como preocupação primeira, sem erigir o interesse de ressocialização do condenado como meta primordial, mas como meta desejável, frustrada se o condenado se mostrar incorrigível, ou seja, incapaz de emenda cívica.
Diversamente no processo tutelar educativo, já o vimos, o artigo 2.º da LTE erige em consideração de primeiro plano o interesse privado, particular, do menor - artigo 6.º, n.º 2, da LTE - de educação para o direito, de ressocialização, ou seja, de retorno ou permanência no tecido social sem ostracizar o direito, com o que acaba, há que convir, também, por realizar o interesse do Estado na medida em que a este cabe assegurar a defesa da sociedade dos seus elementos mais prevaricadores ainda que seja de cidadãos menores - cf. Comentário da Lei Tutelar Educativa, autores citados, p. 62 - , mas este interesse só surge em posição colateral aos olhos do aplicador de qualquer das nove medidas taxativamente compendiadas no artigo 4.º da LTE.
E esta é, desde logo, uma razão fundamental para marcar diferença entre o direito tutelar educativo e o criminal.
Por outro lado, a filosofia que preside à aplicação das medidas tutelares inspira-se em princípios que, pela sua especificidade, marcam a diferença dos que presidem à aplicação de penas, estruturando a adopção daquelas sob o império da necessidade de educação para o direito, manifestada na prática do facto e subsistente no momento para a decisão do direito, sob o signo da proporcionalidade - artigo 7.º Quer isto dizer que a finalidade da intervenção não é retribuir o mal causado, o direito de menores nunca poderia ser um direito punitivo, direccionado ao puro sancionamento pela prática de um facto havido por ilícito na lei penal, mas de correcção da sua personalidade, salientou-o, no seu relatório final, a já aludida Comissão para a Reforma do Sistema de Execução de Penas e Medidas - cf. fl. 450 do Comentário à LTE.
E não obstante a prática de um acto qualificado pela lei penal como crime, a intervenção estatal não é imperativa, se se concluir que, ainda assim, o facto é de pequena gravidade, não afirmando evidente e evitável ruptura com valores de relevância comunitária, ainda socialmente toleráveis, atribuídos a uma juventude só acidentalmente maculada.
Podem, assim, ver-se nessa não intervenção por desnecessidade e desproporção, na medida em que poderiam trazer mais inconvenientes à sua reinserção social do que vantagens, aferidas no preciso momento da avaliação do facto, aspectos claramente incompatíveis com o direito penal.
Realce-se que, não obstante a interactividade entre penas criminais e medidas tutelares, pois que sempre que o menor seja simultaneamente arguido em processo penal, ele cumpre, cumulativamente, as medidas tutelares e penas desde que se mostrem compatíveis entre si - artigo 23.º da LTE; dessa interactividade se registando, ainda, que a duração máxima da medida de internamento em centro educativo não pode exceder, em caso algum, o limite máximo da prisão prevista para o facto tipificado como crime (artigo 7.º, n.º 2, da LTE) e cessa mesmo em caso de condenação do jovem maior de 16 anos a pena de prisão efectiva, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, salvo o disposto no n.º 2 da LTE, todavia, daí não deriva uma excessiva colagem ao direito criminal, mas, apenas, o propósito do legislador, nesse caminho de não absorção, de não abandonar o fim primário da medida em vista da correcção da personalidade do jovem e de lhe causar o mínimo de danosidade.
XI - Saliente-se, ainda, que a LTE dedica um regime exaustivo à revisão das medidas tutelares, prevendo três tipos: a oficiosa, a requerimento e por proposta do IRS.
Assim, nos termos do artigo 136.º da LTE:
1 - A medida tutelar é revista quando:
a) A execução se tiver tornado impossível por facto não imputável ao menor;
b) A execução se tiver tornado excessivamente onerosa para o menor;
c) No decurso da execução a medida se tiver tornado desajustada ao menor por forma que frustre manifestamente os seus fins;
d) A continuação da execução se revelar desnecessária devida aos progressos educativos do menor;
e) O menor se tiver colocado intencionalmente em situação que inviabilize o cumprimento da medida;
f) O menor tiver violado, de modo grosseiro ou persistente, os deveres impostos ao cumprimento da medida;
g) O menor com mais de 16 anos cometer infracção criminal.
A medida tutelar de internamento é obrigatoriamente revista quando, nos termos do n.º 2:
a) A pena ou medida devam ser executadas nos termos do artigo 25.º;
b) For aplicada prisão preventiva a jovem maior de 16 anos que esteja a cumprir medida tutelar de internamento;
c) Nos casos previstos no n.º do artigo 27.º, o jovem for absolvido.
O artigo 137.º da LTE alude à revisão a requerimento do Ministério Público, do menor, dos pais, do representante legal, de quem tenha a guarda do facto ou do defensor ou medida proposta dos serviços de reinserção social; os artigos 138.º e 139.º dedicam-se aos efeitos da revisão das medidas tutelares não institucionais e o artigo 139.º da LTE à revisão da medida mais grave, a que se aplica em última ratio, ou seja, a de internamento.
Incompatível é, a toda a evidência, o regime de revisão das medidas, dominado pela ideia de que o tempo de um jovem não é igual ao de um de adulto, com o regime de execução das penas; a todo o tempo a sua personalidade pode dar sinais de transformação tanto num sentido positivo como negativo, pelo que importa responder adequadamente às necessidades educativas em mutação para o bem ou para o mal, de acordo com o princípio da contingência, dominado pela necessidade de adequar a medida a uma personalidade em evolução, realizando uma sua contínua avaliação.
O regime da revisão, de alteração nas hipóteses previstas na lei, dominado, pois, pelo princípio rebus sic stantibus, realiza a dinâmica do sistema, o que é incompaginável com o regime executivo das penas, onde prepondera maior estabilidade, fixidez e rigidez, aspecto também marcando toda a diferença.
O modo de cumprimento da medida de internamento, no aspecto aberto ou semiaberto, também se contradistingue do cumprimento da pena, como não equivale a prisão preventiva o tempo de guarda em centro educativo (cf. Tomé d'Almeida Ramião, in Lei Tutelar Educativa, Anotada e Comentada, Quid Juris, Março de 2004, 102; em contrário Paulo Guerra, jurisprudência crítica, in Revista, DGRS, ano i, Setembro de 2008), pese embora lhe estar ínsita limitação de liberdade, aqui também o seu regime legal se caracterizando por laivos de justificada flexibilização.
Pondere-se que, inscrevendo-se o regime de guarda já no processo da medida tutelar, enquanto seu preliminar, preparatório, o desconto do tempo de duração da guarda, comprimindo a duração da medida de internamento, não deixaria de funcionar in malem partem, ou seja, contra o menor, prejudicando o escopo reeducativo, o que não esteve, por certo, na mente do legislador, que, por razão lógica, pragmática e de unidade do sistema, não o inscreveu intencionalmente.
É o próprio interesse do menor que arreda a aplicação do instituto.
Não impressiona o recurso a princípios próprios do processo penal, não se resistindo, pelo valor interpretativo que representa, de reconstituição da vontade histórica do legislador, a transcrever o segmento do relatório daquela Comissão - fl. 442 do Comentário à LTE - onde se respiga que:
«A primeira nota que ressalta do modelo de processo que a seguir se esboçará é a sua semelhança com o processo penal. Todavia, há que estabelecer rigorosamente os termos dessa semelhança, sendo certo que os fins dessa intervenção tutelar - educação do cidadão menor para o respeito pelas regras jurídicas mínimas da coexistência social e, nessa medida e com esses limites protecção dos bens jurídicos essenciais da comunidade - não se identificam com os fins da intervenção penal - protecção dos bens jurídicos essenciais da comunidade através da cominação e execução de reacções punitivas.» Se fosse de haver como prisão o tempo de guarda em centro educativo, então assistiríamos ao paradoxo de termos de aceitar o cumprimento da pena já de prisão por menor de 16 anos, em ofensa ao estipulado na lei geral - no artigo 9.º do CP - e em grave ofensa ao princípio constitucional vertido no artigo 27.º, n.os 1 e 2, da CRP, do incontornável respeito pelo valor da liberdade individual Os processos tutelar e criminal tocam-se, mas não se confundem, sendo-se, por isso mesmo, levado a concluir que o legislador conhecedor dessas assimetrias, dos princípios inspiradores e da finalidade específica de cada, se relegou a um bem justificado e eloquente silêncio, dando à estampa um diploma regulador de forma global e autónoma a matéria, não se inserindo na sua vontade a transposição pura e simples do desconto penal, por lacuna de regulamentação, sendo certo que o único (desconto) previsto no tempo de cumprimento da medida de internamento é o atinente à fuga e não regresso após saída autorizada - artigo 155.º, n.os 1 e 2, da LTE.
Aliás, dos trabalhos preparatórios da LTE, entre cujo elenco figuram os supracitados despacho ministerial e os relatórios da Comissão, do ponto de vista em que funcionam como elementos de reconstituição da vontade do legislador (artigo 9.º do CC) e da interpretação da lei, não ressalta em caso algum a obrigatoriedade de desconto, presumindo-se que adoptou a solução mais justa.
A finalizar, em época de acrescida exaltação garantística, sempre seria de estranhar que, em tal clima, de que são exemplos as recentes reformas legislativas introduzidas pelas Leis n.os 48/07, de 29 de Agosto, e 59/07, de 4 de Julho, o legislador deixasse cair no esquecimento o interesse pelos seus cidadãos que, mais prematuramente, lesam os interesses fundamentais de convivência comunitária, não intervindo, afirmando o desconto.
XII - Nestes termos decide o Supremo Tribunal de Justiça, no pleno das suas secções criminais:
1 - Firmar jurisprudência no sentido seguinte:
«Não há lugar, em processo tutelar educativo, ao desconto do tempo de permanência do menor em centro educativo, quando, sujeito a tal medida cautelar, vem, posteriormente, a ser -lhe aplicada a medida tutelar de internamento.» 2 - Confirmar-se o acórdão recorrido.
Lisboa, 8 de Outubro de 2008. - Armindo Santos Monteiro (relator por vencimento) - Arménio Augusto M. de Castro Sottomayor - José António Henriques dos Santos Cabral - Artur Jorge Fernandes Oliveira Mendes - José Adriano Machado Souto de Moura - Eduardo Maia Figueira da Costa (vencido, nos termos do voto do conselheiro Rodrigues da Costa) - António Pires Henriques da Graça - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges (vencido, nos termos do voto de vencido do Exmo. Conselheiro Rodrigues da Costa) - António José Bernardo Filomeno Rosário Colaço (vencido, nos termos do voto de vencido do Exmo. Conselheiro Artur Rodrigues da Costa) - Jorge Henriques Soares Ramos - Fernando Manuel Cerejo Fróis - António Pereira Madeira - Manuel José Carrilho de Simas Santos (vencido nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Santos Carvalho e consequentemente do Exmo. Conselheiro Rodrigues da Costa) - José Vaz dos Santos Carvalho (vencido, com a declaração de voto que junto) - António Artur Rodrigues da Costa (vencido, conforme declaração de voto que anexo) - Luís António Noronha do Nascimento (presidente) - Luís António Noronha Nascimento (tem voto de conformidade do Exmo. Conselheiro António Henriques Gaspar).
Declaração de voto
Acompanho a declaração de voto do conselheiro Rodrigues da Costa e acrescento que o entendimento jurisprudencial que ora saiu vencedor não está em consonância com o preceito constitucional que consagra a igualdade de direitos de todos os cidadãos perante a lei (artigo 13.º da CRP), fazendo funcionar a idade como factor de discriminação negativa. - José Vaz dos Santos Carvalho.
Declaração de voto
Votei vencido pelas razões que passo a explanar:1 - A questão 1.1 - Pretende-se através do presente recurso extraordinário determinar se, perante processo tutelar e na sequência da aplicação de uma medida de internamento a um menor, se permite, por analogia com o disposto no artigo 80.º do CP, o desconto, naquela medida, da medida de cautelar de guarda em centro educativo.
O acórdão recorrido decidiu a questão em sentido negativo, ao passo que o acórdão fundamento a decidiu em sentido positivo.
A discrepância de soluções gira em torno da interpretação da Lei Tutelar Educativa (LTE) e das normas que, analogicamente, lhe deverão (ou não) ser aplicadas.
2 - O instituto do desconto:
2.1 - O instituo do desconto, regulado nos artigos 80.º a 82.º do CP, surge relativamente a medidas processuais que se traduzam em restrições ou limitações de liberdade (artigo 80.º), em relação a penas anteriores impostas por decisão transitada em julgado e posteriormente substituídas por outras (artigo 81.º) e em relação a medidas processuais ou penas que o agente tenha sofrido pelo mesmo ou pelos mesmos factos, no estrangeiro (artigo 82.º).
No que se refere a medidas processuais, que é o único tema que nos interessa no presente conflito de jurisprudência, dispunha o artigo 80.º do CP, segundo as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março:
«1 - A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado, são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão que lhe for aplicada.
2 - Se for aplicada pena de multa, a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas à razão de 1 dia de privação da liberdade por, pelo menos, 1 dia de multa.» Com as alterações introduzidas pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, o n.º 1 do artigo 80.º foi alterado no seguinte sentido:
«1 - A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.» 2.2 - Escreve Figueiredo Dias:
«O instituto do desconto, regulado nos artigos 80.º a 82.º, assenta na ideia básica segundo a qual privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha já sofrido em razão do facto ou factos que integram ou deveriam integrar o objecto de um processo penal devem, por imperativos de justiça material, ser imputadas ou descontadas na pena a que, naquele processo, o agente venha a ser condenado.
Esta ideia vale sobremaneira relativamente às frequentes [...] privações de liberdade que têm lugar antes do trânsito em julgado da decisão do processo: prisões preventivas sobretudo (CPP, artigos 202.º e seguintes), mas também meras detenções (CPP, artigos 254.º e seguintes) e obrigações de permanência na habitação (CPP, artigo 201.º). Medidas estas - todas elas - que não são de modo algum 'penas antecipadas', mas intervêm, fundadas embora num princípio processual de necessidade cautelar, num momento em que o arguido se encontra ainda a coberto da presunção de inocência (CRP, artigo 32.º, n.º 2, e Decreto-Lei 265/79, artigo 209.º, n.º 1), integralmente se justificando assim, quanto a elas, o desconto na pena» (Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 434, pp. 297-298).
2.3 - Também no sentido de que o instituto em causa tem por base princípios de justiça material se pronunciou Maria da Conceição Ferreira Da Cunha («Desconto das medidas processuais privativas de liberdade - Análise de algumas questões», Juris et de Jure - Nos 20 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Porto 1998, pp. 873-899), salientando que, face a tensões entre princípios do direito penal, «algumas ordens jurídicas optaram por abrir certas excepções ao instituto do desconto, enquanto que outras, como é o caso português, consagraram-no sem excepções, dando prevalência aos imperativos de justiça material.» O problema, em tese, segundo a referida penalista, coloca-se mais, em certos casos, no critério de compensação adoptado, do que nas excepções. A adopção de critérios de compensação de sacrifícios, de natureza mais aritmética, fará prevalecer as exigências de justiça material, ao passo que a adopção de critérios mais equitativos será mais própria de uma ideia de satisfação de exigências de prevenção, que se fazem prevalecer. Em alguns casos, porém, haverá uma certa coincidência entre exigências de justiça e necessidades de prevenção e, de todo o modo, o sacrifício total da justiça material nunca favorece as exigências de prevenção.
A mesma penalista sublinha, em nota (p. 881), que o sacrifício implicado pelo cumprimento de uma medida processual é muito mais custoso para o agente do que o cumprimento da pena, devido à presunção de inocência nessa fase processual, à incerteza da situação e à possível convicção da injustiça do caso. E, a dada altura, questiona-se no texto: «Efectivamente, como se poderia entender num Estado de direito material, que um agente fosse submetido, pelos mesmos factos, a uma duplicação de 'sacrifícios'? E como se poderia justificar, em termos de justiça relativa, que um agente cujo processo tivesse um desenrolar mais lento (o que poderá suceder em virtude de factores independentes da conduta do agente) e, por isso, sofresse um tempo mais prolongado de, por exemplo, prisão preventiva, ficasse prejudicado relativamente a um outro cujo processo fosse mais rapidamente resolvido?» 2.4 - No confronto entre as exigências de prevenção especial e as de justiça material, podendo aquelas ser enfraquecidas com o instituto do desconto, o nosso sistema penal dá prevalência ao imperativo de justiça, como se referiu já, impondo que se desconte por inteiro na pena a cumprir o tempo de privação de liberdade de «qualquer tipo» (prisão preventiva, obrigação de permanência na habitação e mesmo detenção) que o agente haja sofrido por conta do facto ou factos que integram ou deviam integrar o objecto do processo e, actualmente, mesmo que as medidas hajam sido aplicadas em processo diferente daquele em que foi proferida a condenação, nos termos indicados na parte final do actual n.º 1 do artigo 80.º do CP.
Sublinha-se que na base do instituto do desconto está uma privação de liberdade «de qualquer tipo», sofrida pelo agente por conta de um facto ilícito típico, numa fase do processo em que a prova da sua prática e a responsabilidade do agente, que tem por si o principio da presunção de inocência, ainda não estão comprovadas judicialmente, com a certeza própria de um julgamento. Ora, a privação da liberdade está reconhecidamente presente, também, na aplicação, quer da medida cautelar de guarda, quer na de internamento em centro educativo, que mais adiante desenvolveremos.
2.5 - A Constituição da República Portuguesa, originariamente, no seu artigo 27.º, que trata da liberdade e segurança dos cidadãos, «ou seja, do direito a não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço ou impedido de se movimentar», como anotam Vital Moreira e Gomes Canotilho (Constituição Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 184), não previa as situações que implicavam privação de liberdade de menores penalmente inimputáveis.
Apenas com a revisão de 1982 (Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro), se passou a incluir nas excepções ao princípio da não privação da liberdade a sujeição de um menor a medidas de protecção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial, competente (n.º 3, alínea d). Estas medidas traduzem-se em privações de liberdade do menor, embora não estejam aí incluídas, por ainda não estarem previstas legalmente, como agora, a medida de internamento e a medida cautelar de guarda.
O que é certo é que esse preceito se inspirou no artigo 5.º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (adoptada em Roma em 4 de Novembro de 1950, e entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa em 9 de Novembro de 1978), que contempla, em idênticos moldes, como ressalva ao direito à liberdade, a «detenção legal de um menor, feita com o propósito de o educar sob vigilância», ou a sua «detenção legal com o fim de o fazer comparecer perante a autoridade competente».
Na verdade, conforme se define no n.º 11 do anexo relativo às Regras das Nações Unidas para a Protecção dos Jovens Privados de Liberdade, adoptadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 45/113, de 14 de Dezembro de 1990, «privação de liberdade significa qualquer forma de detenção, de prisão ou a colocação de uma pessoa, por decisão de qualquer autoridade judicial, administrativa ou outra autoridade pública, num estabelecimento público ou privado do qual essa pessoa não pode sair pela sua própria vontade».
2.6 - Resta, pois, saber se essa privação de liberdade sofrida por um menor em fase de investigação do facto ilícito típico num processo específico, que não tem propriamente natureza penal, se deve ou não descontar na medida de internamento que lhe venha a ser aplicada.
É o que vamos ver, passando de imediato a analisar a pertinente legislação de menores no que releva para tal efeito.
3 - A Lei Tutelar Educativa:
3.1 - A evolução da legislação portuguesa de finais do século xx relativamente à infância e juventude caracterizou-se pela superação do modelo proteccionista e pela distinção conceptual e normativa entre o tratamento jurídico a conferir aos menores vítimas de perigo e aos menores agentes de infracções criminais. Foi esse o objectivo da aprovação e entrada em vigor da Lei 147/99, de 1 de Setembro (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo) e da Lei 166/99, de 14 de Setembro (Lei Tutelar Educativa).
Com efeito, a exposição de motivos deste último diploma começa por afirmar a inadequação do modelo proteccionista, por um lado, por desrespeitar totalmente os direitos fundamentais do menor e por outro, por estar desadequado em relação ao nosso tempo, em que se verificaram profundas transformações no domínio da criminalidade, incluindo a praticada por menores, a qual adquiriu irrecusável gravidade, reclamando outro tipo de respostas, quando, a par disso, se questiona o Estado-providência, os seus recursos e prioridades.
No que respeita aos direitos do menor, este não passa, em tal modelo; de «um cidadão em potência», segregado do ordenamento jurídico, entregue aos cuidados proteccionistas de um «Estado-tutor», que «não podendo, pela natureza das coisas, substituir-se ao meio familiar, cria um arsenal de meios paliativos que, em muitos casos, mais não fazem que vigiar burocraticamente o seu crescimento».
A intervenção do Estado, «implicando restrições a direitos do menor (como o direito à liberdade e à autodeterminação pessoal) e de direitos dos progenitores (como o direito à educação e à manutenção dos filhos)», deveria ser encarada como excepcional e «sujeitar-se aos princípios da necessidade e da proporcionalidade» Acontece, porém, que a institucionalização do Estado de direito tem sido progressiva, havendo sectores da sociedade e do Estado que permaneceram incólumes, até mais tarde, aos seus princípios e às consequências deles derivadas, como se verifica em relação a medidas de segurança aplicadas a inimputáveis em razão de anomalia psíquica e também, como é o caso presente, a menores carecidos de protecção ou que se tornaram agentes de factos típicos ilícitos que a lei penal qualifica como crimes.
Os inimputáveis e os menores são, paradigmaticamente, pela sua fragilidade, pela marginalidade com que foram encarados, exemplos de destinatários a quem foi negada a cidadania e a categoria de sujeitos, destituídos «de voz activa e a quem, em nome do seu próprio bem, se recusou, até muito tarde, o exercício de direitos fundamentais», como afirma a referida exposição de motivos, que prossegue:
«O carácter sincrético do ideário proteccionista agudizou-se especialmente a partir da década de sessenta. O recrudescimento de formas de violência juvenil, os movimentos de contestação global e a rebelião à escola e à família apareceram como sintomas de uma nova cultura, a que a irrupção dos audiovisuais e a prevalência da cultura oral serviram de instrumento.
Neste contexto, o menor desadaptado, o menor abandonado ou em risco, o menor rebelde ou o menor agente de um crime corresponderam a categorias que não deveriam ter sido confundidas.» (N.º 3.) [...] A situação agravou-se com a ocorrência de transformações profundas nos modos de viver e nas relações intergeracionais. A modificação da estrutura familiar, com a perda de coesão e a crescente expressão da família monoparental, e os novos e poderosos instrumentos de comunicação repercutiram-se nas formas de desenvolvimento biológico e intelectual.
Um modelo proteccionista, guiado pela ideia de que é possível responder do mesmo modo a problemas tão diversos como o do abandono do menor ou o da prática, por este, de condutas anti-sociais ligadas ao mundo do crime organizado, condena-se por si próprio.» (Idem.) Daí que se tenha sentido a necessidade de distinguir formas de intervenção diversificadas, consoante a resposta a dar a situações muito diferentes. A intervenção protectora do Estado fica reservada para aquelas situações em que o menor se pode considerar em perigo, devido à ingerência de factores exógenos, condicionantes da sua formação e desenvolvimento, com reflexos de desadaptação e dificuldade de enquadramento ao nível social, familiar, cultural e cívico. Será o caso de tais consequências aparecerem em virtude de «incúria, exclusão social, abandono ou maus tratos».
A intervenção tutelar tem outra razão de ser, outro fundamento, outro âmbito e outras finalidades, pois começa por se traduzir numa intervenção coerciva do Estado, justificada, por um lado, por uma ou por várias condutas do menor que atentem contra valores comunitários considerados fundamentais, revelando «uma personalidade hostil ao dever-ser jurídico» e, por outro lado, pelo direito e pelo dever do Estado de se imiscuir na educação desse menor, dita educação para o direito, com o intuito de o fazer compenetrar dos valores essenciais por que se rege a sociedade e da necessidade de respeitar esses valores para que a vida comunitária seja possível, mas não como forma de o imbuir de uma determinada visão do mundo e da vida e, particularmente, uma visão ideológica, doutrinal, religiosa, etc. De qualquer forma, essa imiscuição do Estado na educação do menor exerce-se mesmo contra a sua vontade e a dos seus pais ou de quem está investido no poder paternal.
Por isso mesmo, porque intervenção coerciva, é que essa intervenção deve pautar-se por determinadas regras, baseadas nos direitos fundamentais, e deve ter lugar só quando se verifique um facto suficientemente grave, qualificado pela lei penal como crime (pois o direito penal é, reconhecidamente, inspirador desta forma de intervenção). Di-lo claramente a exposição de motivos, que temos vindo a seguir:
«Se a intervenção tutelar não deve realizar-se nos moldes estritos do direito penal, não está, no entanto, excluído que não deva encontrar inspiração nesse sistema. Ela passa, desde logo, pela identificação de um núcleo de valores cujo desrespeito legitima a intervenção do Estado. Este núcleo [...] é representado pelas normas criminais. O mundo do direito a que a formação da personalidade do menor deve aspirar é o que vigora na comunidade. Nesta, aquelas normas representam o quadro substancial de referência e o mínimo de obediência devida.» (N.º 6.) A este direito/dever de o Estado intervir na educação para o direito do menor não são alheias «exigências comunitárias de segurança e de paz social, de que o Estado não pode alhear-se só porque a ofensa provém de cidadão menor.
Esta orientação dá cumprimento: ao dever que ao Estado incumbe de garantir o gozo e o exercício dos direitos fundamentais à liberdade e à autodeterminação (de que é titular o menor) e à educação e manutenção dos filhos (de que são detentores os progenitores); ao dever que ao Estado incumbe de proteger a infância e a juventude, nomeadamente na formação da sua capacidade de autodeterminação (função-educação); ao dever que ao Estado incumbe de proteger a paz social e os bens jurídicos essenciais da comunidade (função-segurança); ao dever que ao Estado incumbe, em homenagem a objectivos de prevenção geral e especial, de atacar precocemente o desenvolvimento de carreiras criminosas.» (Idem.) 3.2 - Sobre a nova orientação da intervenção do Estado no âmbito da delinquência juvenil, pronunciaram-se diversos autores, alguns dos quais fizeram parte da Comissão encarregada da reforma do sistema.
Assim, Anabela Miranda Rodrigues e António Carlos Duarte-Fonseca, na introdução ao Comentário à Lei Tutelar de Menores, Coimbra Editora 2000, salientam o dever do Estado «intervir correctivamente - mesmo contra a vontade de quem está investido do poder paternal - sempre que o menor, ao ofender normas criminais, revele uma personalidade hostil ao dever-ser jurídico básico. Torna-se então necessário educar o menor para o direito, por forma a que interiorize as normas e os valores jurídicos.» Na opção entre modelos de intervenção, afirmam que a solução do direito português não se ateve a um modelo de justiça puro, mas também não a um modelo protectivo extremado, constituindo antes uma terceira via, «que harmonize em si a salvaguarda dos direitos do menor - o que conferirá legitimidade à intervenção - e a satisfação das expectativas comunitárias de segurança e paz social, o que lhe conferirá, por sua vez, eficácia». Esta ideia foi também salientada por outros autores, como, por exemplo, Eliana Gersão, «Ainda a revisão da Organização Tutelar de Menores», Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, t. 1.º, p. 465), em que ganham vulto a responsabilidade do menor e daí o atribuir-se-lhe certos direitos e garantias fundamentais, e a intervenção educativa, que conleva a satisfação das expectativas comunitárias em relação aos factos ilícitos típicos praticados por menores.
Nessa medida, o Estado só deve intervir por força da prática de um facto qualificado como crime e que tenha suficiente gravidade para revelar uma necessidade de educação, sendo certo que este facto é mais tomado como sintoma de um desfasamento do menor em relação à vida comunitária, do que como um facto susceptível de censura jurídico-penal. Esta responsabilidade «não é uma responsabilidade pelo facto (típica do direito penal), mas uma responsabilidade por aquilo que o menor 'é'», adverte Anabela Miranda Rodrigues noutro local («Repensar o direito de menores em Portugal - Utopia ou realidade?», separata da Revista Portuguesa de Direito Criminal, 1997, fascículo 3.º).
A intervenção do Estado caracteriza-se por um outro princípio, que é o da necessidade, visto que, conforme constatam os autores citados no Comentário, o Estado só deve intervir se for necessário, atalhar à situação por meio da adopção de qualquer das medidas tutelares tipicamente previstas - necessidade que tem de ser avaliada na situação concreta e se subsistir no momento da aplicação da medida, exprimindo este pressuposto um outro princípio - o da actualidade.
3.3 - Estas características do direito tutelar extremam-no do direito penal, apesar de o ponto de partida ser sempre a prática de um facto qualificado pela lei penal como crime, pois nem sempre a ocorrência da infracção dará lugar à aplicação de uma medida tutelar, ao contrário do que sucede com o direito penal, de cariz repressivo e punitivo, em que a sanção se segue sempre à prática comprovada do facto.
3.4 - Em relação ao processo penal, afirmam os mesmos autores que «nada obsta a que este processo sirva de fonte ao processo educativo, já que constitui um ordenamento que realiza de forma particularmente activa as garantias constitucionais da pessoa em face de pretensões de intervenção do Estado na esfera dos direitos fundamentais.» Essas garantias, destinando-se a proteger os direitos fundamentais, num âmbito de restrição da liberdade de autonomia e de condução de vida do menor, constituem a salvaguarda do respeito pelo conteúdo essencial desses direitos, devendo obedecer ao princípio geral contido no artigo 18.º da Constituição, o qual impõe a mínima restrição possível dos direitos fundamentais e quando o imponha a protecção de outros direitos fundamentais (princípio da proporcionalidade).
3.5 - Entre as garantias assinaladas no âmbito do processo tutelar (verdadeiras garantias criminais), contam-se, o princípio da legalidade processual, o princípio de audição, o princípio do contraditório, o princípio de constituir advogado.
No domínio das medidas aplicáveis, de que já destacámos o princípio da tipicidade, salienta-se ainda a flexibilidade relativamente ao conteúdo e modalidades de execução, devendo observar-se o princípio da escolha da medida de menor gravidade e que possa suscitar adesão do menor, excepto, como veremos, no que toca à medida de internamento.
Por seu turno, Eliana Gersão, ob. cit., afirma que, com a nova lei, se visou «consagrar a posição jurídica a que as crianças têm direito no mundo de hoje, instituir um regime coerente com os princípios que enformam outros ramos do nosso ordenamento jurídico (direito constitucional, direito penal e processual penal, direito da família) e com os instrumentos diplomáticos internacionais a que o país se encontra vinculado e encontrar, em última análise, uma resposta mais adequada e humanista à delinquência juvenil».
No aspecto processual, destaca o direito dos menores a um due process of law, impondo que aos menores «sejam reconhecidas, pelo menos, as garantias do processo criminal de natureza constitucional, que, aliás, coincidem em larga medida com as mencionadas no artigo 40.º da Convenção sobre os Direitos da Criança».
3.6 - No mesmo sentido convém Teresa Bravo, que salienta «prerrogativas legais e processuais», como as já indicadas, que constituem uma «aproximação ao estatuto do arguido no processo penal de adultos.» («As faces de Janus - Uma perspectiva crítica sobre o direito de menores em Portugal», Estudos em Homenagem ao Juiz Conselheiro António da Costa Neves Ribeiro, Almedina).
3.7 - Mas percorramos algumas disposições da lei, na mira de lhe surpreendermos as características já apontadas e a sua aproximação aos princípios do direito penal e do processo penal.
3.7.1 - De todo o conspecto normativo que constitui a LTE se retira a ideia básica de que o direito penal é a fonte dos valores a ter em conta para o desencadeamento do processo tutelar, muito embora este último não tenha cariz punitivo, mas encontre a sua razão de ser na educação para o direito, estabelecida no interesse do menor, mas também tendo preocupações com a paz e segurança sociais, procurando satisfazer exigências comunitárias de prevenção através da intervenção educativa, quando e na medida em que deva impor-se contra a vontade do próprio menor (ao menos no caso de medida institucional) e de quem detém o poder paternal, limitando a autonomia de decisão e de condução de vida, pelo que respeita ao menor, e o direito de educação e manutenção dos filhos, pelo que toca aos pais (artigos 2.º, 4.º, 6.º, 17.º e 18.º).
O processo, iniciando-se com o conhecimento ou denúncia do facto, segue uma forma analógica à do processo penal, com o Ministério Público a figurar como detentor exclusivo da acção tutelar e como titular do inquérito, o juiz a praticar os actos jurisdicionais a ele relativos e o menor investido da qualidade de um dos sujeitos processuais, dotado de um conjunto de direitos e prerrogativas (garantias criminais), que constituem um estatuto próximo do do arguido (artigos 28.º, 29.º, 30.º, 40.º e 45.º).
A comprovação do facto está sujeita a regras e princípios de prova que obedecem a princípios idênticos às daquele processo, estando a audiência sujeita ao principio do contraditório (artigos 92.º, 94.º e 104.º).
As medidas tutelares, sobretudo as não institucionais, obedecem a uma certa flexibilidade na sua aplicação, segundo os princípios da necessidade, da actualidade e da adesão, podendo mesmo não ser aplicadas se isso for do interesse do menor (artigos 56.º a 60.º).
A medida de internamento é aplicada como ultima ratio para os casos de maior gravidade da delinquência juvenil, traduzindo-se na colocação do menor em centro educativo e implicando, em maior ou menor grau, uma restrição do contacto com o meio exterior, podendo mesmo traduzir-se, no caso de ser em regime fechado, numa segregação do menor em relação ao ambiente externo, «estando as saídas, sob acompanhamento, estritamente limitadas ao cumprimento de obrigações judiciais, à satisfação de necessidades de saúde ou a outros motivos igualmente ponderosos e excepcionais» (n.º 1 do artigo 169.º).
«A amplitude e intensidade das restrições à liberdade do menor internado em regime fechado são equivalentes às comportadas pela prisão», como assinala António Carlos Duarte-Fonseca (Internamento de Menores Delinquentes, Coimbra Editora, 2005, p.
393). Tanto assim é, que se a um menor com mais de 16 anos, a cumprir medida tutelar de internamento, for aplicada prisão preventiva, a execução da medida não se interrompe. Se o regime de internamento é o regime fechado, o menor mantém-se no mesmo ou em outro centro educativo com esse regime, durante o tempo da prisão preventiva (artigo 25.º, n.º 5, da LTE - cf. anotação a esse artigo no já citado Comentário à Lei Tutelar Educativa).
As medidas estão sujeitas a revisões com bastante amplitude, podendo ser modificadas, atenuadas, suspensas, extintas, mas também podem ser agravadas, o que as afasta, também por esse aspecto, das sanções criminais (artigos 137.º e 138.º).
3.8 - Propositadamente deixamos para o fim algumas considerações sobre as medidas cautelares, dada a sua importância para o tema deste conflito de jurisprudência.
Relativamente às medidas cautelares previstas na LTE, encontra-se provavelmente uma maior similitude com as medidas de coacção enunciadas no CPP, nomeadamente quanto à sua natureza e pressupostos.
Na verdade, o legislador procurou «estabelecer um regime que responde à exigência de, por um lado, o processo tutelar respeitar os direitos fundamentais do menor e de, por outro, ter ao seu dispor os mecanismos necessários à descoberta da verdade material e da necessidade de educação do menor para o direito, bem como ao restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa com a prática do facto qualificado pela lei como crime.
[...] As medidas cautelares estão intimamente ligadas às finalidades do processo [a satisfação das necessidades de educação do menor para o direito (finalidade de socialização) e, nessa estrita medida, de defesa da sociedade]. Uma série de princípios condicionam a sua aplicação: os princípios da tipicidade (artigo 57.º), da necessidade (artigo 58.º, n.º 1), da adequação (artigo 56.º), da proporcionalidade (artigos 56.º e 58.º, n.º 2), da subsidiariedade (artigo 57.º) e da precariedade (artigos 61.º e 62.º). O respeito por estes princípios na aplicação, em concreto, das medidas cautelares confere-lhes uma natureza estritamente cautelar, tendo em vista que visam acautelar a averiguação, no processo, das eventuais práticas do facto e necessidades educativas do menor. São, assim, exigências cautelares de natureza processual que justificam a aplicação de uma medida cautelar.» (Anabela Miranda Rodrigues e António Carlos Duarte-Fonseca (ob. cit., p. 159) O referido paralelismo ressalta da análise comparativa das normas atinentes às medidas cautelares previstas na LTE (artigos 56.. a 58.º) e das relativas às medidas de coacção constantes do CPP (artigos 192.º, n.º 2, 193.º, 201.º, 202.º e 204.º).
Desde logo, a aplicação de qualquer das medidas cautelares tipificadas no artigo 57.º da LTE rege-se pelos princípios da adequação e da proporcionalidade (artigo 56.º daquele diploma), que orientam, a par com o da necessidade, a aplicação das medidas de coacção (artigo 193.º do CPP).
Por outro lado, as medidas cautelares pressupõem a existência de indícios do facto, a previsibilidade da aplicação de medida tutelar e a existência fundada de perigo de fuga ou de cometimento de outros factos qualificados pela lei como crime, em moldes semelhantes aos denominados requisitos gerais de imposição de medidas de coacção, previstos nos artigos 192., n.º 2, e 204.º do CPP, e completados com os demais pressupostos da respectiva aplicação estabelecidos nos preceitos atinentes a cada uma daquelas medidas.
E, tal como no CPP a prisão preventiva está prevista como medida de último recurso, também na LTE se exige, para que possa aplicar-se a medida de guarda do menor em centro educativo, que os factos indiciariamente por ele praticados sejam tão graves que justifiquem a imposição de internamento em centro educativo em regime fechado [artigos 58.º, n.º 2, e 17.º, n.º 4, alínea a), da LTE], a última e a mais gravosa das medidas tutelares educativas.
Impõe-se, pois, concluir que as alterações introduzidas pela LTE ao sistema de justiça dos menores, com a aludida aproximação ao modelo do processo penal e aos princípios do direito penal, visaram consagrar um estatuto jurídico que dotasse a criança (que, segundo a Convenção sobre os Direitos da Criança, é «todo o ser humano menor de 18 anos»), enquanto sujeito processual, de um conjunto de garantias pelo menos equivalente ao dos adultos.
4 - Medida cautelar de guarda e desconto:
4.1 - Na medida cautelar de guarda em centro educativo está em causa uma verdadeira privação da liberdade (sendo ou não considerada prisão - não é isso que interessa), em tudo idêntica às demais contempladas no artigo 80.º do CP. Tanto assim é, que se exige, como um dos pressupostos para a sua aplicação, que o facto ou factos praticados revistam a mesma gravidade que é exigida para a aplicação da medida tutelar de internamento em regime fechado (artigo 58.º, n.º 2, da LTE). E, como anota Eliana Gersão, «a privação da liberdade é particularmente penosa para um jovem que atravessa uma fase da vida em que a conquista da liberdade é o desejo supremo, e potencialmente mais danosa para ele do que para um adulto, uma vez que a sua personalidade ainda está em formação e a sua socialização inacabada» (ob. cit, p. 473). A isto juntam-se as características da fase processual em que decorre tal privação da liberdade, já focadas - uma fase de incerteza quanto à comprovação do facto ilícito típico, coberta pelo princípio da presunção de inocência.
Nessa medida, não pode deixar de concluir-se que a não inclusão na LTE, por parte do legislador, de uma norma que preveja a compensação ou desconto do período de sujeição a medida cautelar de guarda no de aplicação da medida tutelar de internamento em centro educativo, em moldes semelhantes aos estabelecidos naquele preceito, se traduz numa lacuna, que importa preencher, mediante o recurso ao aludido normativo, por via da analogia, legítima porque favorável ao agente. Neste sentido, ainda na vigência do CP 82 - cujo artigo 80.º, n.º 1, apenas previa o desconto, na pena de prisão aplicada, da prisão preventiva sofrida pelo arguido - , afirmava Figueiredo Dias, a propósito das privações de liberdade de natureza processual, que «À prisão preventiva devem equiparar-se, apesar do silêncio da lei, outras privações da liberdade de carácter processual, como é o caso da detenção e da obrigação de permanência na habitação: a justificação é, nestes casos, exactamente a mesma da prisão preventiva e a solução é favorável ao agente, não havendo por isso obstáculos à integração da lacuna por esta via».
Com efeito, «verificado o caso omisso, o intérprete busca uma norma que regule situações afins da que se lhe apresenta para, inspirando-se na razão que a ditou, dela extrair um princípio válido no caso a resolver, segundo a regra de que ubi eadam ratio ibi eadam dispositio».
«No que respeita às normas incriminadoras o direito penal não tem lacunas. Valem os princípios da tipicidade e da fragmentariedade. Não assim no que respeita às demais normas do direito penal, às denominadas normas negativas, aquelas que, delimitando negativamente as normas incriminadoras, garantem ou favorecem os direitos das pessoas. Relativamente a estas valem os princípios gerais sobre integração das lacunas» (cf. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, I, Introdução e Teoria da Lei Penal, Verbo, 1997, p. 254).
Ora, o direito tutelar educativo, sendo diferente do direito penal, baseia-se nos seus princípios e nos valores comunitários de matriz constitucional tutelados pelas normas incriminadoras, cuja infracção por um menor constitui o fundamento da intervenção tutelar educativa. Nessa medida, não constituindo o artigo 80.º, n.º 1, do CP, norma incriminatória ou definidora de qualquer estado de perigosidade ou determinativa de correspondente pena ou medida de segurança, não pode deixar de ser tida como uma daquelas «normas negativas» no sentido acima adiantado, já que garante ou favorece os direitos das pessoas, pelo que não suscita objecção de princípio a sua aplicação analógica.
Não procede, pois, o argumento de que a ausência, na LTE, de norma que determine o desconto em moldes semelhantes aos estabelecidos no artigo 80.º do CP constituiria uma consciente opção legislativa.
4.2 - Igualmente não colhe a ideia, também avançada em sentido contrário ao entendimento acima expresso, de que são diversas as finalidades da intervenção tutelar (finalidade educativa - educação do menor para o direito) e a aplicação de pena de prisão (função punitiva do Estado e ressocializadora do arguido).
Em primeiro lugar, a função educativa, principalmente quando se trata da medida de internamento, exerce-se coactivamente, não sendo o direito tutelar meramente protector, como também não é puramente de justiça, mas combinando, numa terceira via, elementos de ambos (Duarte-Fonseca, Internamento de Menores, p. 51; Eliana Gersão, ob. cit., p. 465; Anabela Miranda Rodrigues, «Repensar o direito dos menores em Portugal...», p. 373, em coincidência com a exposição de motivos da LTE: «Não se pretende hoje, entre nós [...] consagrar um sistema extremo 'bifurcado puro' de justiça.
Pretende-se sim tentar encontrar uma 'terceira via' que harmonize em si a salvaguardados direitos do menor - o que conferirá legitimidade à intervenção - e a satisfação das expectativas comunitárias em relação aos menores infractores - o que conferirá eficácia à intervenção.»; Teresa Bravo (porventura numa posição mais extremada), ob. cit., p. 315: «Trata-se [...] de um modelo de intervenção estadual, eminentemente judicial, de carácter formal e coercitivo, por contraponto ao modelo de protecção, que é um modelo de matriz consensual e de intervenção não formal».
Ora, a posição que fez vencimento dá um excessivo relevo ao aspecto protectivo, como se a legislação actual se inserisse na continuidade das anteriores e não representasse, como representa, uma ruptura com o passado, em que o menor aparecia como mero alvo de protecção e o Estado como seu 'tutor'.
Em segundo lugar, a satisfação das expectativas comunitárias na defesa da ordem jurídica posta em causa com as infracções praticadas por menores não é, como já resulta do antes exposto, alheia ao direito tutelar educativo. Na exposição de motivos já referida fala-se mesmo, conforme já se viu, no «direito e no dever que o Estado tem de intervir correctivamente sempre que o menor, ao ofender valores essenciais da comunidade e regras mínimas de convivência social, revele uma personalidade hostil ao dever-ser jurídico básico, traduzido nas normas criminais.» E diz-se que «A solução tem, além do mais, a virtualidade de se conformar com exigências comunitárias de segurança e de paz social, de que o Estado não pode alhear-se só porque a ofensa provém de cidadão menor.» (N.º 6). Só que estas exigências comunitárias são satisfeitas na estrita medida em que haja necessidade, do ponto de vista do interesse do menor, embora contra sua vontade e a dos seus pais ou de quem detenha o poder paternal, de o Estado intervir educativamente, limitando a liberdade de uns e outros e em particular a do menor, a sua capacidade de autodeterminação, de decisão e de condução de vida.
É verdade que o artigo 2.º, n.º 1, da LTE, dispõe que as medidas tutelares educativas «visam a educação do menor para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade.» E que o artigo 40.º do CP define as finalidades das penas e das medidas de segurança como visando «a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade».
Já se sabe que o direito penal serve apenas de inspiração ao direito tutelar e que este diverge daquele, não sendo sequer um seu sucedâneo e não tendo finalidade repressiva e punitiva. Por isso mesmo é que o direito tutelar é primacialmente orientado pelo interesse do menor, tendo o tribunal bastante latitude para aplicar ou deixar de aplicar as medidas tutelares e para escolher a medida mais adequada e determinar a sua duração, isto dentro dos princípios da necessidade e da actualidade.
Pode também, sempre na orientação por esses princípios, modificar em, termos amplos as medidas aplicadas no âmbito da revisão a que deve proceder.
Mas o certo é que não se pode perder de vista que a intervenção do tribunal, mesmo que subordinada ao interesse do menor, é coerciva e limitadora dos seus direitos e dos direitos dos seus progenitores, e cerceadora da liberdade do menor, podendo esta ser restringida de forma equivalente à prisão, quando seja aplicada medida de internamento, principalmente se for em regime fechado (facto que prece rasurado na posição que fez vencimento). Essa intervenção coerciva, ao satisfazer exigências comunitárias de paz e segurança, também não se alheia da protecção de bens jurídicos.
De qualquer forma, o certo é que o menor, ao ser-lhe aplicada a medida cautelar de guarda, que tem como pressuposto uma situação de gravidade semelhante à exigida para o internamento em regime fechado, embora possa ser cumprida em regime fechado ou semiaberto, neste último caso obrigatoriamente, se o menor tiver menos de 14 anos de idade (artigo 58.º, n.º 3, da LTE), sofre uma privação de liberdade, que, de acordo com o princípio acima exarado (cf. n.º 2.4.) - de que na base do instituto do desconto está uma privação de liberdade «de qualquer tipo», sofrida pelo agente por conta de um facto ilícito típico, numa fase do processo em que a prova da sua prática e a responsabilidade do agente ainda não estão comprovadas judicialmente - deve ser-lhe descontada na medida posteriormente aplicada.
Impõe-no um principio mínimo de justiça material, sem o qual as exigências de prevenção especial também ficam comprometidas (cf., a propósito, Maria Da Conceição Ferreira da Cunha, n.º 2.3, supra). Esse sacrifício da liberdade tem de ser compensado. De resto, a própria Constituição passou a prever as medidas restritivas da liberdade aplicadas a menores pelos tribunais judiciais competentes como excepção ao direito à liberdade (cf. o referido n.º 2.5.) De outro modo, se a um menor fosse aplicado o período máximo de internamento ou, posteriormente, fosse tal medida prorrogada até esse máximo, nos termos do artigo 139.º, n.º 2, alínea b), da LTE, e não se lhe descontasse o tempo de internamento que sofreu por força de medida cautelar de guarda, esse menor sofreria na prática um internamento superior ao máximo previsto. Eis uma razão acrescida para se aplicar neste domínio o instituto do desconto.
Também quanto às medidas de segurança (cujos pressupostos e finalidades suscitam idênticas questões) se tem entendido que, apesar de o artigo 80.º do CP não prever expressamente o desconto do período de prisão preventiva sofrida pelo arguido a quem venha a ser aplicado aquele tipo de medida, é de efectuar tal desconto, por procederem razões idênticas às que presidem ao instituto.
E, no entanto, como salienta Maria da Conceição Ferreira da Cunha (ob. cit, pp. 888 e 889), «o problema do desconto é muito mais complicado no âmbito das medidas de segurança, tendo em conta os pressupostos em que assenta (agente inimputável, havendo receio, em virtude da anomalia psíquica de que padece e da gravidade do facto praticado, de que volte a cometer futuros crimes - cf. artigo 91.º) e as finalidades que visa alcançar - o tratamento do delinquente para que cesse a sua perigosidade (cf.
artigos 91.º, n.º 1, e 92.º, n.º 1)» Ora, com a referida dedução também se poderia dizer que ficavam comprometidas as finalidades visadas com a medida de segurança, ou por o agente já não ter qualquer medida a cumprir, ou por restar para o seu cumprimento muito pouco tempo, não tendo o agente, durante a prisão preventiva sido sujeito a qualquer tratamento específico, com eventuais reflexos na cessação da sua perigosidade, podendo a prisão preventiva sem acompanhamento até tê-la agravado.
No caso de desconto do tempo da prisão preventiva sofrida na pena aplicada, poderá dizer-se que esta fica algo comprometida nas suas finalidades, mas no caso de aplicação de medida de segurança, o caso parece ainda revestir contornos mais graves, devido à necessidade de tratamento. Todavia, conclui a referida autora que «não haver qualquer dedução também contraria aquele limiar mínimo de justiça, assim como o princípio de que, mesmo as medidas de segurança, estão sujeitas a limites.» Na jurisprudência, pode ver-se a aplicação da mesma doutrina. Vejam-se, entre outros, os acórdãos deste STJ de 30 de Maio de 2001, processo 876/01 - 3.ª, e de 2 de Outubro de 2003, processo 2449/03 - 5.ª, lendo-se neste último: «se se justifica o desconto da prisão preventiva nas penas de prisão aplicadas, sensivelmente pelas mesmas razões se justificará a extensão do mesmo regime às próprias medidas de segurança.
Até porque, sendo a liberdade a regra - artigo 27.º, n.º 1, da Constituição, artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 9.º do Pacto Internacional para a Protecção dos Direitos Civis e Políticos - e a privação dela a excepção, não faria sentido discriminar negativamente, naquele ponto, o arguido sujeito a medida de segurança, sem que para tal se verificassem razões de peso - nomeadamente emergentes da eventual incompatibilidade entre os fins de prisão preventiva e a medida de segurança, incompatibilidade que [...] não se vislumbra, ao menos em termos absolutos, de tal forma que as tornasse mutuamente repelentes».
Todas estas razões valem, por tudo quanto se expôs, para a situação em que está em causa a aplicação, no âmbito de um processo tutelar educativo, de uma medida de internamento a menor que haja sofrido medida cautelar de guarda em centro educativo, sendo certo que o menor representa uma certa categoria de inimputabilidade penal.
De contrário, como sucede, no nosso ponto de vista, com a posição que fez vencimento, ficará comprometido o próprio princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, pois não há razão substancial ou material relevante para não descontar, no que toca a um menor, a privação de liberdade por ele sofrida na medida final de internamento (também ela consistente numa privação coactiva da liberdade) que lhe vier a ser aplicada num processo judicial, e descontá-la, mesmo quando se traduza em privação mais suave, como é a obrigação de permanência na habitação, em todos os casos de condenação em pena de prisão de um agente que pratique um facto ilícito típico.
E, a propósito, parece ser absolutamente apropriado voltar a citar a exposição de motivos da Lei Tutelar Educativa: «Historicamente [...], regista-se que os princípios subjacentes ao Estado de direito não se estenderam do mesmo modo nem ao mesmo tempo às diversas formas de intervenção estadual. E que ficou durante muito tempo incólume àqueles princípios a aplicação de medidas a menores, à semelhança, aliás, do que aconteceu com as medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis em razão de anomalia psíquica. Esta analogia é, em si mesma, elucidativa e mostra o isolamento cívico em que foram tidos dois dos destinatários particularmente frágeis, destituídos, por diferentes razões, de voz activa e a quem, em nome do seu próprio bem, se recusou até mais tarde, o exercício dos direitos fundamentais.» 5 - Em suma, por todas estas razões fixaria a seguinte jurisprudência:
«Em processo tutelar educativo, e na sequência da aplicação de uma medida de internamento, é aplicável, por analogia, a norma do artigo 80.º do Código Penal, devendo proceder-se ao desconto, naquela medida, do tempo de permanência do menor em centro educativo, em virtude da sujeição a medida cautelar de guarda.» António Artur Rodrigues da Costa.