Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2008
Processo 3394/07 - 5.ª Secção - Fixação de jurisprudência
Conselheiro Artur Rodrigues da Costa.
I - Relatório. - 1 - O Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que confirmou a decisão do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Penafiel, que absolveu o arguido João Antero Lorga Garcia da prática do crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, com fundamento em que:
Não ocorreu prejuízo patrimonial e, para além disso;
Que o cheque não foi pago por ter sido comunicado falsamente pelo arguido ao banco sacado que o mesmo se havia extraviado e que, «do elenco legal dos motivos concretos do não pagamento, conforme artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro (levantamento de fundos, proibição à instituição sacada do pagamento do cheque, encerramento da conta sacada ou alteração das condições da sua movimentação), não consta o falso extravio (que não se encaixa com propriedade em nenhum dos sobreditos casos típicos), pelo que também com este fundamento inexistiria motivo para condenar o arguido pelo crime de emissão de cheque sem provisão.
Alega o recorrente que este acórdão está em oposição com outro, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 10 de Dezembro de 1998, sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, concluindo:
«1 - Pelo Acórdão recorrido proferido em 7 de Fevereiro de 2007, no processo 2286/05, da 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto (em apenso), foi julgado que a conduta do arguido que falsamente comunica ao banco o extravio do cheque anteriormente emitido e entregue, proibindo dessa forma o seu pagamento, não integra o ilícito típico previsto no artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro, não podendo o arguido ser punido pelo crime de emissão de cheque sem cobertura.
2 - Pelo Acórdão fundamento proferido em 10 de Dezembro de 1998 pelo Supremo Tribunal de Justiça, no recurso julgado no processo comum colectivo n.º 13/98.0TBMDL, do Tribunal Judicial de Mirandela, foi considerado que a conduta do arguido que age dessa forma deve ser integrada nesse regime, devendo ser condenado pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão.
3 - Entre os acórdãos verifica-se, pois, oposição relativamente à mesma questão de direito, tendo ambos sido proferidos no âmbito da mesma legislação, ou seja, na vigência do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Outubro, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro.
4 - A questão a resolver no presente recurso é a de saber se a conduta acima descrita integra a previsão da alínea b) do artigo 11.º do Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro.
5 - Do acórdão recorrido não é admissível recurso ordinário, tendo o mesmo transitado em julgado [artigos 400.º, n.º 1, alínea e), e 411.º do CPP].
6 - O presente recurso é o próprio (artigo 437.º, n.º 2), é interposto tempestivamente (artigo 438.º, n.º 1), tendo para ele o Ministério Público legitimidade (artigo 437.º, n.º 1, todos do CPP).
7 - Devendo, na sua procedência, ser fixada jurisprudência obrigatória.» 2 - Foram juntas certidões dos acórdãos recorrido e fundamento, com nota do respectivo trânsito em julgado.
3 - Admitido o recurso, os autos subiram a este Supremo Tribunal, tendo o Ministério Público, na vista que teve dos autos (artigo 440.º, n.º 1, do CPP), emitido parecer no sentido de ocorrerem os pressupostos legais para o prosseguimento dos autos como recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
4 - Proferido despacho liminar e colhidos os necessários vistos, teve lugar a conferência a que se refere o artigo 441.º do CPP, na qual foi decidido, por Acórdão de 28 de Outubro de 2007, ocorrer oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.
5 - Notificados os sujeitos processuais nos termos do artigo 442.º, n.º 1, do CPP, alegou apenas o Ministério Público.
Começou por se debruçar sobre os pressupostos do recurso e, nomeadamente, sobre a oposição de acórdãos, que entendeu incidir fundamentalmente sobre a questão de saber se do não pagamento de cheque por motivo de falsa comunicação de extravio ao banco sacado, por parte do arguido, resultaria ou não o preenchimento do tipo legal de crime de cheque sem provisão, uma vez verificados os restantes elementos típicos, já que a questão de não ocorrência de prejuízo teve dois votos de vencido, o que significa que a única questão subsistente é a referida. Passou depois em revista as várias posições doutrinais e jurisprudenciais sobre a matéria, sopesando os argumentos de um lado e do outro e concluindo, por fim, com a seguinte proposta de decisão:
«Verificados que sejam todos os restantes elementos constitutivos do tipo de ilícito, integra o crime de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro, a conduta do sacador de um cheque que, após emissão deste, falsamente comunica por escrito ao banco sacado que o cheque se extraviou, e assim determina o banco a recusar o seu pagamento com esse fundamento.» 6 - Como se decidiu no acórdão interlocutório e resulta nítido do n.º 1 do antecedente relatório, é patente a oposição dos acórdãos que polarizam o conflito de jurisprudência aqui sub judicio.
Os acórdãos em oposição transitaram em julgado e foram proferidos no âmbito da mesma legislação.
Assim, nada obsta ao prosseguimento deste recurso, com vista à solução do referido conflito de jurisprudência.
II - Fundamentação. - 8 - A questão.
8.1 - A questão diz respeito a saber se, verificados os restantes elementos constitutivos do tipo de ilícito, a recusa de pagamento de um cheque por motivo de falsa comunicação de extravio, por escrito dirigido ao banco sacado pelo arguido/sacador e já depois de este ter emitido e entregue o título, preenche ou não o tipo legal de crime de cheque sem provisão, previsto no artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro.
Na verdade, esta é a única questão sobre que verdadeiramente incide o conflito jurisprudencial, já que a questão de não ocorrência de prejuízo, que também serviu de fundamento à confirmação da decisão de absolver o arguido, afinal só teve o voto favorável do desembargador relator, tendo os dois desembargadores-adjuntos votado contra, o que significa que a parte da decisão que fez vencimento por maioria foi a que se conexiona com a confirmação da absolvição por se ter considerado que a recusa do pagamento do cheque pelo banco sacado, por força da comunicação escrita que lhe foi feita pelo arguido/sacador do seu extravio, que se verificou ser falsa, não se integra no elenco dos motivos concretos do não pagamento constantes do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 454/91, na redacção do Decreto-Lei 316/97 (levantamento de fundos, proibição à instituição sacada do pagamento do cheque, encerramento da conta sacada ou alteração das condições da sua movimentação).
8.1 - No acórdão recorrido estava em causa a seguinte matéria de facto:
«No dia 19 de Setembro de 2003, o arguido voluntariamente preencheu, assinou e entregou à sociedade JVS - Serralharia, Lda., o cheque junto a fl. 3, com o n.º 7651273037, sacado sobre a agência do BNC - Banco Nacional de Crédito Imobiliário, da Antas, Porto, no montante de (euro) 16 837.
Tal cheque foi entregue pelo arguido e destinava-se ao pagamento de material e serviços de serralharia que a ofendida prestou à sociedade JALG - Construções, Lda., da qual o arguido era sócio gerente, serviços esses que deveriam ter sido pagos em Maio de 2002. Apresentado a pagamento na agência de Penafiel do Banco Comercial Português, S. A., foi o mesmo devolvido em 23 de Setembro de 2002 com a inscrição no verso de 'chq. ver. extravio', no local do motivo da devolução.
Na verdade, por declaração datada de 5 de Setembro de 2003, o arguido comunicou ao banco o extravio do referido cheque, apesar de tal comunicação não corresponder à realidade e, apesar disso, emitiu o cheque em causa.
Conforme consta da declaração cuja cópia se encontra a fl. 71, o arguido formulou, na referida data, um pedido ao banco nos seguintes termos: 'solicito a anulação dos cheques com os seguintes n.os 512729 e 512731, por motivo de extravio'.
O arguido actuou de forma livre e consciente, com intenção de impedir o pagamento do cheque dos autos, sabendo que, em consequência da emissão da referida declaração, ao emitir o cheque ia dar azo a que a ofendida não recebesse o montante de, pelo menos, (euro) 16 837, o que aconteceu, ao que foi indiferente.
Sabia que a sua conduta era proibida por lei.
[...]» 8.1.1 - Perante esta matéria de facto, já vimos como a questão foi decidida. A solução está escassamente fundamentada, limitando-se praticamente ao enunciado já exposto de que o comportamento do arguido sacador, comunicando falsamente ao banco sacado o extravio do cheque apresentado a pagamento e motivando com isso a recusa do seu pagamento por parte do banco «não cabe no elenco legal dos motivos concretos do não pagamento indicados no artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro».
Por conseguinte, considerou-se que tal comportamento do arguido não preenchia nenhuma das condutas típicas referenciadas no tipo legal, particularmente no que diz respeito às que aparecem descritas naquela alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º Esta posição não é isolada, embora seja escassa a jurisprudência que a corrobora, como iremos ver mais adiante (infra, n.º 11.1).
8.2 - No acórdão fundamento, partiu-se da seguinte matéria de facto:
«Os arguidos, na qualidade de legais representantes da sociedade Alves & Ribeiro, Lda., com sede em Mirandela, agindo previamente combinados e em conjugação de esforços, com datas de 15 de Dezembro de 1995 e de 15 de Janeiro, de 15 de Fevereiro, de 15 de Março, de 15 de Maio e de 15 de Junho de 1996, preencheram, assinaram e entregaram à legal representante da Augusto Ceriz & Filhos, Lda., Teresa Augusta Ceriz, os cheques n.os 8400102428, 7500102429, 6600102430, 1400102425 e 9300102427, cada um deles no montante de 938 000$, e n.º 2100102435, no montante de 888 000$, todos sacados sobre o FINIBANCO, agência da Rua de Júlio Dinis, no Porto.
Apresentados a pagamento, o primeiro em 15 de Dezembro de 1995, na agência do BNU em Mirandela, o segundo na mesma agência, em 3 de Janeiro de 1996, os terceiro, quarto, quinto e sexto na agência do Banco sacado, respectivamente em 16 de Fevereiro, em 20 de Março, em 17 de Maio e em 18 de Junho de 1996, foram todos devolvidos com a menção de 'cheque extraviado' ou 'extraviado', os primeiro e segundo pelo serviço de compensação do Banco de Portugal em, respectivamente, 19 de Dezembro de 1995 e em 5 de Janeiro de 1996 e os restantes pelo Banco e agência sacados nas datas de apresentação a pagamento.
Aquela menção foi aposta nos cheques pelo banco sacado em consequência da ordem que os arguidos, legais representantes da titular da conta, tinham dado ao Banco através da declaração aí apresentada em 14 de Dezembro de 1995, onde referiam ter extraviado o livro de cheques e pediam que fosse cancelada a conta, proibindo o pagamento dos cheques desde o n.º 102422 até ao n.º 102514.
Esta declaração cujo teor não corresponde à verdade, o que os arguidos bem sabiam, está plasmada no documento apreendido nos autos a fl. 44.
Com isso conseguiram que o Banco sacado não pagasse os referidos cheques que se destinavam ao pagamento de rendas em atraso que os arguidos deviam à Augusto Ceriz & Filhos, Lda., pela cessão da exploração de um estabelecimento comercial de padaria e fabrico de alheiras, instalado no prédio urbano sito em Fontes Frias, Mirandela, inscrito na matriz sob o artigo 1454, que esta fizera àqueles.
Não recebendo os respectivos montantes e juros, neles ficou prejudicada a sociedade tomadora.
Agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tais condutas não lhes eram permitidas, e com intenção de obterem vantagem patrimonial, não pagando os cheques, como obtiveram, em prejuízo Augusto Ceriz & Filhos, Lda., que nos montantes titulados ficou prejudicada.
Ao subscreverem e entregarem no Banco a sobredita declaração com aquele teor não correspondente à verdade, para produzir o mencionado efeito de não pagamento dos cheques, prejudicaram também a fé pública do documento.
[...]» 8.2.1 - Na respectiva fundamentação, o aresto em foco, a certo passo, desenvolve assim o seu raciocínio:
«O enquadramento jurídico da conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica por escrito ao banco sacado que o cheque se extraviou, e assim determina o banco a recusar o seu pagamento com esse fundamento, tem sido objecto de díspares decisões jurisprudenciais.
Segundo uma corrente, com tal conduta o agente comete um crime de falsificação de documento.
Segundo outra, comete um crime de emissão de cheque sem provisão. A primeira corrente ainda se subdivide entre, por um lado, a que entende que o crime cometido é o de falsificação de documento particular (porque falsa é a declaração no documento particular e não no cheque com nota de extravio) e, por outro, a que sustenta que se trata de falsificação qualificada de documento, previsto e punido pelo n.º 2 do artigo 228.º do CP/82 (hoje artigo 256.º, n.º 3, na versão de 1995), porque a declaração do facto falso se integra num titulo de crédito à ordem 'transmissível por endosso'.
No caso sub judice, e na sequência da acusação, os arguidos foram condenados pelo crime de falsificação de documento simples. Entendemos que in casu deveria ter sido aplicado o regime penal do cheque.
Se a questão do enquadramento jurídico da aludida conduta como um 'crime de emissão de cheque sem provisão' poderia ser discutível na previsão do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 454/91, na sua redacção inicial, porque aí se falava apenas em 'proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue', entendemos que à luz da nova redacção desse normativo, introduzida pelo Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro, ficou claro que tal conduta se integra nesse tipo de crime.
Onde antes se falava em 'proibir à instituição sacada o pagamento do cheque emitido e entregue', fala-se agora em 'proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque'.
É o próprio legislador que, no preâmbulo do Decreto-Lei 316/97, expressamente refere que o âmbito da incriminação desse artigo 11.º é ampliado de modo a abranger a criação voluntária pelo sacador ou terceiro de impedimentos ao pagamento do cheque e que se procura 'por esta forma pôr termo a divergências da jurisprudência e da doutrina relativamente ao âmbito dos impedimentos criados pelo sacador ou terceiro ao pagamento de cheque regularmente emitido e entregue para pagamento, cujo não pagamento não resultava verdadeiramente de falta de provisão, mas de factos de análoga relevância aos já agora previstos no artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro'.
Por outro lado, 'a tutela penal do cheque [...] visa sobretudo a protecção do respectivo tomador, conformando-se o respectivo crime, qualquer que seja a modalidade da acção típica, como de natureza patrimonial'.
Do que se deixa dito resulta que, pelo menos, face à nova lei, que estabelece o regime jurídico-penal do cheque sem provisão, a conduta dos arguidos se deve integrar nesse regime.
Trata-se de um regime especial que prevê e pune especificamente uma determinada conduta como equivalente ao 'crime de emissão de cheque sem provisão', integrando-a especialmente nesta previsão.
É certo que se trata de lei posterior ao momento da prática do facto punível (visto que o Decreto-Lei 316/97 é de 19 de Novembro de 1997), mas ela deve ser aplicada porque o seu regime se mostra, in casu, concretamente mais favorável aos agentes.
É que, como já se disse, todos os cheques foram 'pós-datados' e, por isso, a conduta está descriminalizada nos termos do n.º 3 do citado artigo 11.º do Decreto-Lei 316/97.
Na verdade, segundo esse número, todo 'o disposto no n.º 1 não é aplicável quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador'.
Conclui-se assim que, devendo a conduta dos arguidos ser subsumida à previsão do 'crime de emissão de cheque sem provisão' - artigo 11.º n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 454/91 - ela está descriminalizada ex vi do n.º 3 do citado artigo na redacção dada pelo Decreto-Lei 316/97.
[...]» 9 - A argumentação do acórdão recorrido, tal como resulta do extracto transcrito, contém na essência as linhas mestras que, permitindo encarar a uma nova luz a natureza e os elementos típicos do crime de emissão de cheque sem provisão, tanto os respeitantes ao tipo subjectivo como ao tipo objectivo do ilícito, hão-de guiar-nos (permita-se desde já a antecipação) na solução deste conflito jurisprudencial.
Com efeito, ele inscreve-se já francamente no novo sentido axiológico-normativo que resulta do novo rumo traçado no regime penal do cheque pelo Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, mas sobretudo pelas alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 316/97.
Ora, é exactamente pela análise desses diplomas legais que vamos começar.
9.1 - O Decreto-Lei 454/91.
O artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, que tem a epígrafe «Crime de cheque sem provisão», estabelecia:
«1 - Será condenado nas penas previstas para o crime de burla, observando-se o regime geral de punição deste crime, quem, causando prejuízo patrimonial:
a) Emitir e entregar a outrem cheque de valor superior ao indicado no artigo 8.º que não for integralmente pago por falta de provisão verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque;
b) Levantar, após a entrega do cheque, os fundos necessários ao seu pagamento integral;
c) Proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue.
2 - Nas mesmas penas incorre quem endossar cheque que recebeu, conhecendo a falta de provisão e causando com isso a outra pessoa um prejuízo patrimonial.
3 - A responsabilidade pela prática do crime de emissão de cheques sem provisão extingue-se pelo pagamento, efectuado até ao primeiro interrogatório de arguido em processo penal, directamente pelo sacador ao portador do cheque, do montante deste, acrescido dos juros compensatórios e moratórios calculados à taxa máxima de juro praticado ao momento do pagamento, pela entidade bancária sacada, para operações activas de crédito, acrescido ainda de 10 pontos percentuais, podendo ser efectuado depósito à sua ordem se o portador do cheque recusar receber ou dar quitação.
4 - Os mandantes, ainda que pessoas colectivas, sociedades ou meras associações de facto, são civil e solidariamente responsáveis pelo pagamento de multas e indemnizações em que forem condenados os seus representantes, contanto que estes tenham agido nessa qualidade e no interesse dos representados.» 9.1.1 - Como se vê, a configuração do crime de emissão de cheque sem provisão que emerge desta descrição típica assume claramente o prejuízo patrimonial como elemento do tipo. A introdução expressa desse elemento causou uma viva polémica nos meios jurisprudencial e doutrinal portugueses, com uma corrente a afirmar a descriminalização consequente a tal «inovação», visto que os diplomas anteriores - o Decreto 13 004, de 12 de Janeiro de 1927 (artigo 24.º), com as sucessivas alterações de que foi alvo, e outros (1) - não o incluíam na definição típica, através da qual se desenhava um crime de perigo abstracto com a respectiva tutela incidindo sobre o interesse público (supra-individual) da confiança ou credibilidade do cheque como meio de pagamento, e não no dano ou prejuízo causado ao respectivo tomador ou portador.
Na doutrina, bastará lembrar a posição assumida por Taipa de Carvalho, de acordo com o qual, por adição ao tipo legal de elementos especializadores, não se verificava uma continuidade normativo-típica entre a lei nova (no caso, o Decreto-Lei 454/91) e a lei antiga, ficando consequentemente despenalizado o facto cometido à sombra desta última (Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 2.ª ed., pp. 38 e segs. e 169 e segs.).
Contra esta ideia bateu-se Figueiredo Dias, que defendeu que o crime de emissão de cheque sem provisão sempre foi (desde o Decreto 13 004) um crime de resultado ou de dano, que teve o prejuízo como um dos seus elementos típicos. Segundo esse autor, a admissibilidade do perdão do ofendido e, mais tarde, a consagração do pagamento do valor do cheque e respectivos juros antes de instaurado o procedimento criminal como causa de extinção do crime (Decreto-Lei 14/84), bem como a necessidade de queixa para desencadear o respectivo procedimento, «implicavam que o bem jurídico em apreço só pudesse radicar no património da vítima». Por outro lado, no que toca ao tipo objectivo do ilícito, também por essa via chegava à conclusão de que o bem jurídico protegido residia no património do ofendido, pois era seu elemento típico a recusa de pagamento por falta de provisão, «o que, em termos práticos, equivalia a fazer coincidir a consumação do delito com a efectiva verificação de um prejuízo patrimonial da vítima».
A tudo isto acrescia a analogia da situação material entre o crime de emissão de cheque sem provisão e o crime de burla, tornada mais nítida a partir do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, em que as penalidades impostas foram diversificadas de acordo com a ocorrência de circunstâncias previstas para o crime de burla. Daí que o crime de emissão de cheque sem provisão fosse de qualificar como um crime material ou de resultado, não se verificando nenhuma ruptura entre os elementos essenciais do respectivo tipo antes e depois da publicação do Decreto-Lei 454/91, que conduzisse a qualquer descriminalização das condutas ocorridas antes da sua vigência (parecer publicado na CJ, 1992, t. 3.º, p. 68).
A ideia dominante, porém, era a de que o bem jurídico protegido se corporizava na protecção da confiança e credibilidade do cheque como meio de pagamento (ou seja, um interesse de natureza supra-individual), caracterizando-se esse crime como um crime de perigo abstracto e consumando-se com a simples emissão e entrega do cheque, sabendo o sacador que não possuía os necessários fundos para o seu pagamento. Ideia essa que ficou bem patenteada no Assento 1/81, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 13 de Abril de 1981:
«O crime de emissão de cheque sem cobertura é um crime de perigo para cuja consumação basta a consciência da ilicitude da conduta e a falta de provisão para a ordem de pagamento dada.» Essa configuração do crime de emissão de cheque sem provisão foi seguida, como se disse, maioritariamente, pela jurisprudência, não interessando aqui recensear essa jurisprudência, de resto, já suficientemente inventariada (cf. o referido «parecer» de Figueiredo Dias). Isso não significa que, na linha de certa doutrina, como, por exemplo, a decorrente de um estudo que exerceu considerável influência, de Moitinho de Almeida («Algumas considerações sobre o crime de emissão de cheque sem provisão», Scientia Jurídica, 1969), retomada, de certo modo, por Lucas Coelho (Problemas Penais dos Cheques sem Cobertura, Livraria Petrony, 1979, pp. 25 e segs. e 69 e segs.), alguma jurisprudência não considerasse que, no tipo legal em causa, se protegiam cumulativamente o interesse da circulação do título e o interesse patrimonial do tomador ou portador (assim, os Acórdãos do STJ de 27 de Abril e de 1 de Junho de 1988, publicados respectivamente na CJ, t. 2.º, p. 31, e t. 3.º, p. 9). E mesmo o assento acima mencionado não menosprezava o interesse patrimonial do beneficiário ou portador do cheque, considerando no entanto que o interesse relevante era o que ficou referido.
Deste modo, pode dizer-se que o pensamento dominante, em relação ao prejuízo patrimonial, era o que ficou expresso no estudo de Nuno Ribeiro Coelho («Crime de emissão de cheque sem provisão», CJ, 1992, t. 3.º, pp. 85 e segs.): «o elemento 'prejuízo patrimonial' não necessitava de estar presente para se considerar como viável a incriminação, não era indispensável, não tinha relevância normativa ao nível do tipo fundamental presente no pretérito artigo 24.º, n.º 1 [do Decreto 13 004], embora se pudesse encontrar nas valorações político-criminais que instituíram aquele crime de perigo, na já reafirmada conexão mediata com o bem jurídico patrimonial».
Não admira, por isso, que a referência explícita ao prejuízo, como elemento material do crime de cheque sem provisão, constante da descrição típica do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, fosse tida, de acordo com a óptica que via em tal crime um crime de perigo abstracto e não um crime de resultado ou de dano, como um elemento inovador, reconfigurando o tipo legal para um crime de natureza diferente e acarretando uma descriminalização das condutas praticadas à sombra da lei antiga.
Na sequência da polémica jurisprudencial, veio a ser proferido um outro assento - o Assento 6/93, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 7 de Abril de 1993, que fixou a seguinte jurisprudência:
«O artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, não criou um novo tipo legal de crime de emissão de cheque sem provisão nem teve o efeito de despenalizar as condutas anteriormente previstas e puníveis pelo artigo 24.º do Decreto 13 004, de 12 de Janeiro de 1927, apenas operando essa despenalização quanto aos cheques de valor não superior a 5000$ e quanto aos cheques de valor superior a esse montante em que não se prove que causaram prejuízo patrimonial.» Não obstante a enunciação desse dispositivo, considerou-se nas conclusões que imediatamente o precedem e que fazem uma súmula de todas as considerações tecidas até aí:
Que o bem jurídico essencialmente protegido pelo tipo legal de crime de emissão de cheque sem provisão é a confiança na circulação do cheque, dada a sua função económico-jurídica como meio de pagamento.
Quanto ao elemento prejuízo, considerou-se que configurava uma condição objectiva de punibilidade, pelo menos desde a Lei 25/81, de 21 de Agosto, e, como tal, fazia parte do tipo legal de crime do artigo 24.º do Decreto 13 004, de acordo com o que se considerava ser a doutrina mais representativa.
O Decreto-Lei 454/91 consagrou o elemento prejuízo patrimonial como elemento estrutural do tipo, mas, todavia, não introduziu elemento novo que não estivesse já contido no tipo legal.
Podia, aliás, considerar-se que o elemento prejuízo material sempre foi tido pelo legislador como conatural do não pagamento de um cheque por falta de provisão.
9.1.2 - Para além do elemento prejuízo, agora claramente inscrito no número dos elementos do tipo objectivo do ilícito - prejuízo que, note-se, não se confunde com o simples não pagamento do valor do cheque, como sucede no domínio cambiário - , outros elementos apontavam, no citado artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, para a caracterização do crime de emissão de cheque sem provisão como crime material de dano ou de resultado, protegendo essencialmente o património do ofendido, pese embora o referido Assento 6/93 continuar a considerar, pelo menos ao nível da sua fundamentação, que o bem jurídico protegido era essencialmente o de proteger a confiança na circulação do cheque como meio de pagamento.
Assim, a já citada proximidade com o crime de burla, que se surpreende, desde logo, na referida exigência de causação de prejuízo patrimonial, referencia-se também através da equiparação das respectivas penalidades, que já vinha do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, que introduziu o Código Penal. Essa equiparação é, de resto, afirmada no preâmbulo do Decreto-Lei 454/91: «A aplicação das penas do crime de burla ao sacador do cheque sem provisão, bem como ao que, após a emissão, proceda ao levantamento de fundos que impossibilitem o pagamento ou proíba ao sacador esse pagamento, é uma consequência da proximidade material desses comportamentos com os que integram aquela figura do direito penal clássico.» Tal significa, como nota Grumecindo Dinis Bairradas, que a punição passou a depender da gravidade dos interesses patrimoniais atingidos («O crime de emissão de cheque sem provisão no âmbito do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro», CJ, 1993, t. 5.º, p. 11), e não, propriamente, de qualquer outro interesse específico.
Por outro lado, havia a destacar a possibilidade de extinção da responsabilidade criminal através do pagamento efectuado pelo sacador ao portador do cheque, nos termos e condições referidos no n.º 3 do artigo 11.º Não obstante isso, o crime tinha agora natureza pública, certamente numa tentativa de o aproximar, também neste aspecto, do crime de burla, que no Código Penal de 1982 tinha essa natureza, mas que o Decreto-Lei 400/82, introdutor daquele diploma legal, ao modificar o regime do cheque, sobretudo no tocante às penas, mantivera como crime semipúblico, ao não alterar a fórmula «a pedido do respectivo portador», que vinha da redacção do artigo 24.º do Decreto 13 004.
Acresce que o facto típico só passou a ser punível a partir de certo montante - 5000$ - (passando depois, sucessivamente, para 12 500$ com a publicação do Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro, para (euro) 62,35, com a alteração introduzida pela Lei 323/2001, de 17 de Dezembro, e para (euro) 150, com a redacção conferida pela Lei 48/2005, de 29 de Agosto, sendo a instituição de crédito sacada obrigada a pagar qualquer cheque emitido através de módulo por ela fornecido de montante não superior ao indicado, não obstante a falta ou insuficiência de provisão, nos termos do artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 454/91, com as referidas alterações.
9.1.3 - Quanto às modalidades da acção típica, esta deixou de se concentrar na emissão de cheque sem provisão para abranger outras situações: as indicadas no artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Decreto-Lei 454/91: a) levantamento dos fundos necessários ao seu pagamento, depois da entrega do cheque; b) proibição à instituição sacada do pagamento do cheque emitido e entregue.
Por outro lado, na linha já defendida por certos autores quanto à responsabilização criminal do endossante (Moitinho de Almeida, ob. cit., p. 47, e Lucas Coelho, ob. cit., p.
74), também o endossante do cheque que tivesse conhecimento da sua falta de provisão e causando com isso a outra pessoa um prejuízo patrimonial passou a incorrer nas penas fixadas para qualquer das outras referidas modalidades de acção típica.
Como salienta Germano Marques da Silva, o crime de cheque sem provisão só o é no nomen juris, que ainda conserva da tradição legislativa, pois abrange «comportamentos típicos diversos que apenas têm de comum o não pagamento de um cheque regularmente emitido e posto em circulação [...]» (Regime Jurídico-Penal dos Cheques sem Provisão, Principia, Lisboa, 1997, p. 43).
Certo é que a fisionomia do crime passou a ser outra também quanto aos sujeitos da infracção, podendo o sujeito activo ser outra pessoa que não o sacador, e o momento relevante para a respectiva consumação também não podia já sustentar-se no momento da emissão e entrega do cheque. Ou seja, a tutela penal do cheque afasta-se cada vez mais da relação cartular.
Esse afastamento veio a acentuar-se de uma forma decisiva com o Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro.
10 - O Decreto-Lei 316/97 (preâmbulo).
O preâmbulo do Decreto-Lei 316/97, começando por dar conta das «profundas alterações» introduzidas no regime penal do cheque com a publicação do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, afirma o seu relativo fracasso relativamente aos objectivos pretendidos, de que aponta como sintomas a «erosão da função do cheque, o seu descrédito como meio de pagamento e as dimensões assumidas pela emissão de cheques não pagos». Entre as causas indicadas para esse diagnóstico aponta-se «a generalização dos cheques pós-datados, utilizados como instrumentos creditícios e não, como é sua função específica, como simples meio de pagamento».
Proclama-se a intenção de contribuir para uma maior eficácia do regime instituído com a adopção de várias medidas destinadas, nomeadamente, a aperfeiçoar as normas incriminadoras e a acabar com os cheques de garantia ou emitidos com data posterior à da sua entrega.
Define-se claramente o objectivo fundamental de protecção do respectivo tomador, considerando a natureza patrimonial do crime e acentua-se a exigência que deve recair sobre aquele nos cuidados a tomar relativamente à aceitação de cheques e ao ónus de colaboração processual.
Define-se, enfim, como pressuposto da tutela penal a dependência do cheque de uma obrigação subjacente.
Mas vejamos as principais alterações introduzidas com incidência na questão a resolver neste conflito de jurisprudência.
10.1 - Alterações mais significativas introduzidas pelo Decreto-Lei 316/97, destacadas em itálico:
«Artigo 11.º
Crime de emissão de cheque sem provisão
1 - Quem, causando prejuízo patrimonial ao tomador do cheque ou a terceiro:
a) Emitir e entregar a outrem cheque para pagamento de quantia superior a 12 500$ (2) que não seja integralmente pago por falta de provisão ou por irregularidade do saque;
b) Antes ou após a entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, nos termos e para os fins da alínea anterior, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque; ou c) Endossar cheque que recebeu, conhecendo as causas de não pagamento integral referidas nas alíneas anteriores;
se o cheque for apresentado a pagamento nos termos e prazos estabelecidos pela Lei Uniforme Relativa ao Cheque, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa ou, se o cheque for de valor elevado, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se valor elevado o montante constante de cheque não pago que exceda o valor previsto no artigo 202.º, alínea a), do Código Penal.
3 - O disposto no n.º 1 não é aplicável quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador.
4 - Os mandantes, ainda que pessoas colectivas, sociedades ou meras associações de facto, são civil e solidariamente responsáveis pelo pagamento de multas e de indemnizações em que forem condenados os seus representantes pela prática do crime previsto no n.º 1, contanto que estes tenham agido nessa qualidade e no interesse dos representados.
5 - A responsabilidade criminal extingue-se pela regularização da situação, nos termos e prazo previstos no artigo 1.º-A. (3) 6 - Se o montante do cheque for pago, com reparação do dano causado, já depois de decorrido o prazo referido no n.º 5, mas até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena pode ser especialmente atenuada.
Artigo 11.º-A
Queixa
1 - O procedimento criminal pelo crime previsto no artigo anterior depende de queixa.2 - A queixa deve conter a indicação dos factos constitutivos da obrigação subjacente à emissão, da data de entrega do cheque ao tomador e dos respectivos elementos de prova.
3 - Sem prejuízo de se considerar apresentada a queixa para todos os efeitos legais, designadamente o previsto no artigo 115.º do Código Penal, o Ministério Público, quando falte algum dos elementos referidos no número anterior, notificará o queixoso para, no prazo de 15 dias, proceder à sua indicação.
4 - Compete ao Procurador-Geral da República, ouvido o departamento respectivo, autorizar a desistência da queixa nos casos em que o Estado seja ofendido.» 10.2 - As principais notas a salientar, nestas alterações, são as seguintes:
A) Restrição e ampliação da incriminação:
Restrição, na medida em que passou a exigir-se um quantitativo superior para o cheque sem provisão ser digno de tutela penal. Os cheques de valor inferior terão de ser pagos pela instituição sacada, quando não tenham a necessária provisão, adoptando-se outras medidas (de carácter administrativo), que já vinham da redacção anterior, mas que agora se refinaram e que se fazem recair sobre a instituição bancária e também sobre o sacador para proteger os portadores de cheques de pequeno valor (artigos 1.º a 10.º);
Ampliação da incriminação, na medida em que não só a falta de provisão é uma das modalidades da conduta previstas no tipo mas também a irregularidade do saque, agora introduzida pelo Decreto-Lei 316/97, a par das outras modalidades de comportamento típico;
A irregularidade do saque, como elemento típico do crime de emissão de cheque sem provisão constitui, como assinala Germano Marques da Silva, mais um desvio em relação à disciplina cambiária, pois, nesta, o saque irregular não obriga o banqueiro ao pagamento (ob. cit., p. 64).
De entre as outras modalidades de acção típica, é de notar que:
Relativamente ao levantamento dos fundos necessários ao pagamento, passou a ser também criminalmente relevante o levantamento prévio (antes ou depois da emissão e entrega do cheque);
Foi acrescentada uma nova modalidade de acção, para além da referida e da proibição à instituição sacada do pagamento do cheque: a modalidade que consiste em encerrar a conta sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque.
B) Equiparação das penas às do crime de burla, mas agora com um limite máximo para os casos em que o prejuízo é de valor elevado - 5 anos de prisão ou pena de multa até 600 dias, ficando-se por aqui a referida equiparação, pois, no Código Penal (desde a revisão de 1995), a pena pode ser ainda agravada, tendo como limite mínimo 2 anos e máximo 8 anos de prisão, tendo em conta várias circunstâncias agravantes, nomeadamente nos casos de o prejuízo causado ser de valor consideravelmente elevado, o agente fizer da burla modo de vida, o agente se aproveitar da situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença (4), a pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica [artigo 218.º, n.º 2, alíneas a), b), c) e d)].
Esta limitação das penalidades estabelecida para o crime de emissão de cheque sem provisão terá subjacente a ideia de que, não obstante a proximidade material desse tipo legal de crime com o de burla, subsiste entre ambos alguma diferença, nomeadamente quanto ao artifício fraudulento (v., no entanto, posição contrária de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 69) e à intenção de obter para si ou para terceiro benefício ilegítimo, pelo que punir o crime de emissão de cheque com penas superiores a determinado limite seria, segundo alguns autores, violar o princípio da proporcionalidade. Isto, a menos que o crime de emissão de cheque fosse praticamente equiparado às hipóteses de burla (Grumecindo Dinis Bairradas, ob. cit., p. 13).
Germano Marques da Silva, a tal propósito, expende que «[a]gora importa apenas o valor do cheque. A pena é estabelecida em função do valor do cheque, não tendo relevância para a definição da pena aplicável as circunstâncias modificativas do crime de burla previstas no n.º 2 do artigo 218.º do Código Penal» (ob. cit., p. 84). Porém, esta afirmação só parcialmente será correcta, pois uma das circunstâncias modificativas consiste precisamente no valor consideravelmente elevado, o que significa que, relativamente ao valor, só se levou em conta, no caso do crime de emissão de cheque sem provisão, a circunstância qualificativa do n.º 1 do artigo 218.º - prejuízo patrimonial de valor elevado.
C) Perda de relevância dos cheque pós-datados, deixando estes de ter tutela penal.
Esta terá sido a alteração mais significativa no regime penal do cheque, contribuindo decisivamente para lhe acentuar a natureza de crime de dano, em que a causação de prejuízo pelo não pagamento é um dos seus elementos típicos.
Como acentua Germano Marques da Silva, «sendo o cheque um meio de pagamento, é preciso, para que haja prejuízo, que o portador tenha o direito de receber o valor do cheque no momento da sua apresentação a pagamento» (ob. cit., p. 29).
Uma tal ideia foi bem expressa pelo legislador no preâmbulo do diploma, ao afirmar:
«Pretende-se excluir da tutela penal os denominados cheques de garantia, os pós-datados e todos os que não se destinem ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente.» Nesta alteração reside mais um significativo desvio da disciplina jurídica da relação cambiária, visto que, segundo a Lei Uniforme Relativa ao Cheque:
«Artigo 28.º
O cheque é pagável à vista. Considera-se como não escrita qualquer menção em contrário.O cheque apresentado a pagamento antes da data do dia indicado como data da emissão é pagável no dia da apresentação.» D) Com esta alteração relaciona-se, de forma muito íntima, a alteração introduzida pelo novo artigo 11.º-A.
O procedimento criminal voltou a ficar dependente de queixa, ao contrário do regime consignado no Decreto-Lei 454/91, em que, como vimos (supra, n.º 9.1.2), o crime revestia natureza pública, pelo menos até à data da entrada em vigor das alterações ao Código Penal introduzidas pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, e dessa data em diante e até à publicação do decreto-lei agora em análise, natureza pública, semipública ou particular, seguindo o regime do crime de burla consignado no Código Penal de 95.
Por conseguinte, o procedimento criminal, à semelhança do que sucedia no Decreto 13 004, passou a depender sempre de participação do ofendido. Todavia, uma outra alteração de vulto, porque está ligada com toda a teleologia da norma incriminadora, na vertente da exigência de prejuízo patrimonial, e com a agora introduzida descriminalização dos cheques pós-datados, é a que se refere aos elementos que a queixa deve conter, ou seja: indicação dos factos constitutivos da obrigação subjacente à emissão, da data de entrega do cheque e dos respectivos elementos de prova.
Com tal exigência legal ficou claro que o cheque, sendo para pagamento imediato e devendo causar prejuízo ao tomador, tem de ter na sua base uma obrigação subjacente, cujo cumprimento o cheque se destina a satisfazer. Daí que o ofendido com direito de queixa seja obrigado, logo na apresentação da queixa, a indicar os respectivos elementos constitutivos dessa obrigação e os competentes elementos de prova. A tutela penal do cheque afasta-se definitivamente da responsabilidade cambiária e da fisionomia que define, no âmbito da relação cartular, o cheque como título de crédito dotado das características da literalidade, formalidade, autonomia e abstracção (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial III, Coimbra, 1975, pp. 8 e segs.), significando tudo isso que o cheque incorpora em si a obrigação, que esta tem os limites e o conteúdo que decorrem do próprio título, sendo este autónomo e independente da relação jurídica subjacente, nisso residindo a característica da abstracção.
11 - Detenhamo-nos agora nas modalidades da acção típica.
Para o problema que nos interessa dilucidar, importa considerar aquelas modalidades que consistem na recusa de pagamento pela instituição sacada pela proibição transmitida a esta pelo sacador ou terceiro com poderes bastantes para o efeito no sentido de não efectuar o pagamento de cheque regularmente emitido e entregue.
Mais concretamente, para nos atermos aos dados do conflito de jurisprudência que urge resolver, importa saber se a falsa comunicação feita por escrito pelo sacador ao banco sacado de que o cheque se extraviou, determinando com isso a recusa do pagamento pela instituição sacada, integra ou não uma das modalidades de crime de emissão de cheque sem provisão, nomeadamente das previstas na alínea b) do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro.
Este é, como vimos, problema que está no centro deste conflito de jurisprudência.
Vejamos as diferentes posições na jurisprudência e na doutrina.
11.1 - Na jurisprudência, como se assinala no acórdão fundamento, detectam-se fundamentalmente duas posições: uma que considera que o referido tipo de comportamento integra um crime de falsificação de documento; outra, um crime de emissão de cheque sem provisão.
A primeira das correntes, por seu turno, ainda se subdivide em duas outras: uma que considera que a falsificação é de documento particular, porque consubstanciada no escrito a comunicar ao banco, falsamente, o extravio do cheque [fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante - artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal (CP) de 1982, que corresponde ao artigo 256.º, n.º 1, alínea b), do CP resultante da versão introduzida pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março], e outra que qualifica a conduta pelo tipo agravado - falsificação qualificada de documento, prevista e punida pelo artigo 228.º, n.º 2 do CP/82, que corresponde ao artigo 256.º, n.º 3, do CP/95. Isto, porque, neste entendimento, a declaração falsa se integra num título de crédito à ordem «transmissível por endosso».
A controvérsia gerada a propósito desta questão, sobretudo antes da publicação do Decreto-Lei 454/91, mas prolongando-se para além dele, acabou por dar origem a um conflito de jurisprudência que foi decidido pelo Assento 4/2000, de 19 de Janeiro, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 17 de Fevereiro de 2000, que fixou a seguinte jurisprudência:
«Se na vigência do Código Penal de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei 454/91, depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacador recusa o pagamento e, no verso do título, lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador não comete o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.os 1, alínea b), e 2, nem o previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do CP de 1982.» A prolação deste assento veio modificar, como é natural, o panorama jurisprudencial sobre a questão. Antes dele, porém, e sobretudo a partir do Decreto-Lei 316/97, já era maioritária a posição de que a comunicação de falso extravio do cheque ao banco sacado preenchia uma das modalidades de crime de emissão de cheque sem provisão (tal a tese do acórdão fundamento), muito embora seja possível encontrar uma outra posição mais matizada num ou outro acórdão.
Assim:
A) Antes do Assento 4/2000:
O Acórdão da Relação do Porto de 2 de Julho de 1997, processo 1125/97, da 4.ª Secção, embora não muito característico, devido à multiplicidade dos motivos de recusa e à precedência de uns sobre outros: «A comunicação escrita enviada pelo sacador de um cheque ao banco sacado a referir falsamente que o cheque se extraviou, para obstar ao seu pagamento, o qual veio a ser devolvido por falta de provisão, irregularidade de saque e extravio, conforme anotações apostas no seu verso, integra um crime de emissão de cheque sem provisão e não um crime de falsificação de cheque.»;
O Acórdão da mesma Relação de 27 de Janeiro de 1999, processo 998/98, da 4.ª Secção: «Verifica-se a existência de prejuízo patrimonial [para efeitos de crime de emissão de cheque sem provisão] relativamente à ofendida a quem foi entregue o cheque emitido pelo arguido destinado ao pagamento de mercadoria fornecida por aquela a este, o qual veio a ser devolvido por, entretanto, o arguido ter comunicado falsamente ao banco o extravio do cheque, prejuízo correspondente ao valor da mercadoria fornecida e não paga.»;
O Acórdão da mesma Relação de 15 de Dezembro de 1999, processo 855/99, da 4.ª Secção: «A falsa declaração de extravio de um cheque (comunicado ao banco), para que este não seja pago, não constitui um crime autónomo de falsificação mas mero instrumento para a prática do crime de emissão de cheque sem provisão.»;
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 1998, processo 756/98, da 3.ª Secção: «Se à luz do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei 454/91 era discutível o enquadramento a dar à conduta do sacador, que, após a emissão de um cheque, determinava o seu não pagamento mediante a comunicação por escrito ao banco sacado de que aquele se havia falsamente extraviado, em face da nova redacção introduzida pelo Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro, dúvidas não há de que tal conduta integra apenas a prática de um crime de emissão de cheque sem provisão.»;
O Acórdão do mesmo Tribunal de 13 de Maio de 1999, processo 1301/97, da 3.ª Secção: «A declaração não verdadeira de extravio de cheque era, à luz do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, na sua redacção inicial, um dos elementos de uma das modalidades da comissão do crime de emissão de cheque sem provisão, pelo que aquela declaração não correspondia à comissão, em acumulação real, de um crime de falsificação (intelectual) do dito documento, sob pena de violação frontal do princípio constitucional do ne bis in idem.
B) Depois do Assento 4/2000:
O Acórdão da Relação do Porto de 28 de Abril de 2004, processo 1116/04, da 1.ª Secção, no qual, apesar de se ter negado provimento ao recurso, se afirma que «[a] falsificação concretiza um atentado contra o documento enquanto meio de prova. E a referida declaração aposta no verso dos cheques não prejudica o cheque na sua função de meio de prova de uma ordem de pagamento. Essa declaração apenas lesa o cheque enquanto meio de pagamento. Por essa razão só releva no campo dos crimes contra o património, designadamente em sede de crime de emissão de cheque sem provisão, que aqui não pode ser tido em conta pelas razões já vistas. Na verdade, a conduta do arguido é um dos comportamentos típicos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91.»;
O Acórdão da mesma Relação de 12 de Maio de 2004, processo 1700/04, da 1.ª Secção, do mesmo relator do anterior, o qual aparentemente se posiciona contra a doutrina do mencionado assento, sustentando haver indícios do crime de falsificação, mas porque não estavam preenchidos os requisitos do crime de emissão de cheque sem provisão (cheque pós-datado), não sendo este, por isso, punível, mas sendo-o aquele, na falta deste, devido ao facto de o crime de cheque estar em relação de concurso aparente com o de falsificação: «Não é aqui válida a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ de 19 de Janeiro de 2000, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 17 de Fevereiro de 2000, em que busca apoio a decisão recorrida, na medida em que essa jurisprudência é restringida ao regime anterior ao resultante do Decreto-Lei 454/91: «Se, na vigência do CP de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei 454/91 [...] E não tem sentido argumentar, como também se faz na decisão recorrida, que, integrando a conduta da arguida um dos elementos do crime de emissão de cheque sem cobertura - 'proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque' [artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 454/91] - haveria violação do princípio ne bis in idem se houvesse punição pela falsificação, na medida em que no caso não há procedimento pelo crime de emissão de cheque sem provisão por se ter entendido não estarem presentes todos os seus elementos constitutivos [...]»;
O Acórdão da mesma Relação de 4 de Outubro de 2006, processo 4063/06, da 1.ª Secção, que adopta posição semelhante ao anterior.
Com efeito, o que aí estava em causa eram cheques pós-datados:
«Sobre o eventual enquadramento dos factos indiciados no crime de emissão de cheque sem provisão, a recorrente conforma-se com a decisão, pois os dois cheques em causa foram 'pós-datados', o que afasta a incriminação da sua emissão - cf. artigo 11.º, n.º 3, do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro).
[...]» No presente caso, o arguido fez um relato falso, comunicando por escrito aos bancos sacados o extravio dos cheques entregues à assistente, visando assim evitar o seu pagamento. A carta enviada aos bancos é um documento particular, onde se declarou um facto que se sabe não corresponder à verdade, com intenção de prejudicar o titular do cheque. Estão assim preenchidos os elementos do tipo de ilícito previsto no artigo 256.º do CPenal («Falsificação de documento»).
Por outro lado, a doutrina do assento não é transponível (já vimos acima que não era directamente aplicável), por ter havido uma alteração substancial do respectivo regime legal. O argumento essencial do assento, segundo o qual a menção de extravio era um facto juridicamente irrelevante, hoje não é sustentável. Tal situação modificou-se com o Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, uma vez que, como sublinha o acórdão acima citado [o atrás mencionado de 12 de Maio de 2004], «o extravio do cheque comunicado ao banco/sacado pelo titular da conta é um facto juridicamente relevante, na medida em que esse facto justifica a recusa de pagamento do cheque por parte do banco, nos termos do artigo 8.º, n.º 3, do Decreto-Lei 454/91».
Finalmente, julgamos do mesmo modo que o argumento da Exma.
Procuradora-Geral-Adjunta nesta Relação, segundo o qual a comunicação do extravio faz parte da incriminação do cheque sem provisão, também não é decisivo.
Se é verdade que a proibição do pagamento, à instituição sacada, integra o crime de emissão de cheque sem provisão, tal não afasta a verificação do tipo da falsificação.
Pode, quando muito, justificar apenas a não punição da falsificação, por estarmos perante um concurso aparente (consumpção). Contudo, se não se verificarem os demais elementos do crime de emissão de cheque sem provisão, fica por punir não só o cheque sem provisão como a falsificação. Daí que, como se diz no acórdão acima citado, não tem sentido argumentar, como também se faz na decisão recorrida, que, integrando a conduta da arguida um dos elementos do crime de emissão de cheque sem cobertura - «proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque» [artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 454/91] -, haveria violação do princípio ne bis in idem se houvesse punição pela falsificação, na medida em que no caso não há procedimento pelo crime de emissão de cheque sem provisão por se ter entendido não estarem presentes todos os seus elementos constitutivos».
Em sentido contrário, isto é, no sentido de que a falsa comunicação ao banco sacado de extravio do cheque, com o fim de evitar o seu pagamento, não constitui crime de emissão de cheque sem cobertura (tese do acórdão recorrido), encontraram-se os seguintes acórdãos:
Os Acórdãos da Relação do Porto de 11 de Março de 1998 - JTRP00023092, e da Relação de Lisboa, de 2 de Junho de 1998 - JTRL00022893, este último, porém, só parcialmente coincidente com tal posição.
No primeiro, consta do respectivo sumário:
«É manifestamente infundada a acusação pelo crime de emissão de cheque sem provisão em que consta ter sido recusado o pagamento devido a extravio por à expressão 'cheque extraviado' não poder ser dado, sem mais, o significado de proibição de pagamento, sendo certo que é a lei que expressa e formalmente indica com precisão de que modo e em que termos há-de ser verificada a recusa de pagamento.» No segundo, lê-se no respectivo sumário:
«I - Tendo o cheque sido devolvido pelo banco sacado por se tratar de um cheque extraviado, não há crime de emissão de cheque sem provisão se a declaração de extravio for anterior à emissão de cheque;
II - Nesse caso, haverá, eventualmente, um crime de burla.» Como se vê, este último aresto, não é tão peremptório na conclusão de que a falsa declaração de extravio, determinando a recusa do pagamento do cheque, não integre o crime de emissão de cheque sem provisão visto que exclui a verificação do tipo legal no caso de a referida declaração ser anterior à emissão do cheque;
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Dezembro de 1999, processo 1040/99, da 5.ª Secção, no qual se decidiu confirmar a decisão recorrida que tinha condenado o arguido por crime de falsificação agravada de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.os 1, alínea a), e 3, do CP, por ter comunicado falsamente ao banco sacado o extravio dos cheques emitidos e entregues. Aí se disse:
«Pratica uma falsificação intelectual, e consequentemente um crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 256.º, n.os 1, alínea b), e 3, do CP, quem, após a emissão de um cheque, induz dolosamente a instituição bancária sacada à aposição no mesmo de uma falsa declaração de extravio, em ordem a obstar, por esse meio, ao pagamento do título. Na realidade, posto que essa conduta não incida sobre uma facto que não entra na normal finalidade e estrutura do documento, a verdade é que estamos perante um título de crédito à ordem, transmissível por endosso, da qual tal declaração passa a fazer parte, por inserção obrigatória (artigo 40.º, n.os 2 e 3, da LU), consubstanciando um facto que, por ser causal da recusa de pagamento, é juridicamente relevante.» Todavia, os cheques, nesse caso, eram pós-datados, não podendo proceder-se por crime de emissão de cheque sem provisão. Certo é, porém, que também se não fez qualquer menção a tal propósito no acórdão referido, nem, ao contrário de arestos que vimos anteriormente, se teceu qualquer consideração sobre um eventual concurso aparente de crimes (emissão de cheque sem provisão e falsificação), punindo-se este último em consequência de não estarem reunidos os pressupostos do primeiro. Pura e simplesmente se considerou que os factos preenchiam o crime de falsificação agravada.
Neste último aresto, citam-se, em abono da tese perfilhada, vários acórdãos das Relações de Coimbra e do Porto e do STJ, mas são todos anteriores ao Assento 4/2000, que, como vimos, modificou o panorama jurisprudencial a respeito da questão da qualificação jurídico-penal da conduta consistente em o sacador de um cheque regularmente emitido e entregue declarar falsamente, por escrito endereçado ao banco sacado, que o cheque se extraviou no intuito de que o mesmo cheque não fosse pago.
11.2 - Doutrinalmente, o problema prende-se com o chamado bloqueio do cheque ou ainda revogação do cheque.
Com efeito, Germano Marques da Silva, ao abordar a temática da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, alia directamente essa modalidade de acção à questão da revogação do cheque, afirmando o seguinte: «Também a alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º prevê como conduta típica o acto de proibir à instituição sacada o pagamento do cheque em circulação. O cheque pode não ser pago não obstante a conta estar provisionada e o saque ser regular. Nesse caso, o não pagamento do cheque não está abrangido pela previsão da alínea a), mas da alínea b). A questão mais complexa que a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º suscita, no que respeita ao comportamento em análise, é o do poder de revogação do cheque.» (ob.
cit., p. 68).
Ora, a questão da revogação do cheque é das questões mais controvertidas na doutrina e na jurisprudência. Ela prende-se com o artigo 32.º da Lei Uniforme Relativa aos Cheques (LURC), segundo o qual:
«A revogação do cheque só produz efeitos depois de findo o prazo de apresentação.
Se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo.» Na opinião do autor citado, «tem sido orientação da jurisprudência e da doutrina portuguesa que o portador do cheque não tem direito de acção nem cambiária, nem de responsabilidade civil por facto ilícito contra o sacado que, obedecendo a ordens do sacador (ou de terceiro com poderes para o acto), o não paga quando apresentado a pagamento dentro do prazo estabelecido pela Lei Uniforme.» (idem, ibidem).
Com efeito, diz Filinto Elísio, um dos mais reconhecidos autores que escreveu sobre a matéria:
«Partindo da doutrina do mandato, a conclusão a tirar quanto à revogabilidade do cheque é simples de enunciar: o cheque é sempre revogável pelo sacador, quer no decurso do prazo de apresentação a pagamento quer depois dele.
Há, todavia, o artigo 32.º da Lei Uniforme dizendo que a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação, o que parece abalar a lógica da doutrina condenando a tese da sua revogabilidade no prazo de apresentação.
Supomos não ser assim.
É ponto incontestado que o banco não é devedor do beneficiário do cheque, e não é um dos seus co-obrigados que são apenas o sacador, os endossantes e os avalistas.
O banco não pode aceitar o cheque (artigo 4.º da Lei Uniforme) e o próprio cheque visado não contraria esta doutrina.» É bem determinada a este respeito a opinião do Prof. Ferrer Correia:
«Nem, de resto, o banco é devedor do beneficiário do cheque, como é ponto assente na doutrina: no caso de recusa de pagamento, o portador apenas pode accionar, em via de regresso, o sacador, os endossantes e os avalistas. O banco, ao liquidar o cheque, cumpre uma obrigação que assumiu exclusivamente em face do sacador e, nunca é demais repeti-lo, sempre e só no interesse do sacador [...]» Questiona depois o autor citado:
«Não sendo obrigado no cheque, poderá o banco ser accionado numa acção de perdas e danos por violação do artigo 32.º da Lei Uniforme, obedecendo à revogação? Não com base no cheque, sim com base no facto ilícito?» Baseando-se nos trabalhos da Convenção de Genebra, no decurso dos quais foi rejeitada a proposta do delegado português - Caeiro da Mata - , segundo a qual ao texto aprovado (que se baseou na proposta do delegado italiano) se devia acrescentar:
«Durante o prazo de apresentação, o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com o fundamento na revogação» [texto este que coincidia com a 2.ª parte do proémio do artigo 14.º do Decreto 13 004 (5)], Filinto Elísio concluía: «A Convenção não responsabilizou o sacado por obedecer à ordem de revogação durante o prazo de apresentação, e não é assim a Lei Uniforme, que consagra a irresponsabilidade do banqueiro perante o portador, que pode inspirar tal conclusão.» E resumindo a sua interpretação, exarava:
«O que o artigo 32.º quer dizer é que, mau grado tal revogação, o cheque continua a ser cheque como título, isto é, a revogação não anula o cheque e o portador pode protestá-lo, pode accionar os co-obrigados, numa palavra, continua a beneficiar de todas as potencialidades jurídicas inerentes ao cheque, mas não passará a ter mais uma - que nunca teve -, transformar o sacado em mais um co-obrigado que nunca foi.
Verdadeiramente não há acto ilícito porque não é ilícito o acto que não produz efeitos e o artigo 32.º diz que a revogação do cheque é ineficaz durante o prazo de apresentação.
[...] O que a Lei Uniforme dispôs foi a sobrevivência do cheque perante a revogação no prazo de apresentação, determinando que ela não produz efeitos, é juridicamente anódina, contrariamente ao sistema da revogabilidade onde a revogação anula o cheque como título, esvazia-o das suas virtualidades jurídicas.
O portador, apesar da revogação (ineficaz, é como se não existisse), continua com os mesmos direitos que tinha podendo accionar cambiariamente o sacador, os endossantes e os avalistas - únicos co-obrigados. O sacado nunca é obrigado perante o portador e essa ideia está tão frisantemente patenteada na Lei Uniforme que até lhe proíbe aceitar ou avalizar o cheque (artigos 4.º e 25.º).
A revogação do cheque dentro do comando do artigo 32.º não tira nem dá quaisquer direitos ao portador; estranho seria, portanto, que este viesse a adquirir com a revogação direitos que antes dela não possuía.» Admitindo que, apesar de o cheque «continuar a ser o mesmo que era, em virtude da ineficácia da revogação», e questionando-se sobre a eventualidade de prejuízo que o portador possa ter sofrido pelo não pagamento oportuno, o referido autor não exclui a responsabilidade do sacador, «tudo dependendo de saber se a revogação foi justa ou injustamente feita» (n.º 2 do artigo 1170.º do Código Civil). Sobre ele recairia o ónus dessa prova. O banco sacado é que nunca seria responsável, dado que «não pode deixar de obedecer às instruções do mandante nem está em condições de aquilatar, como julgador que aliás não é, da existência ou não de uma justa causa».
A posição de Filinto Elísio, nos seus traços essenciais, corresponde ao estudo de Ferrer Correia/António Caeiro, no artigo de anotação jurisprudencial «Recusa do pagamento de cheque pelo banco sacado; Responsabilidade do banco face ao portador», Revista de Direito e Economia, n.º 4 (1978), onde os mencionados AA., referindo-se à convenção de cheque, que permite ao titular da provisão dispor dos respectivos fundos, mediante a obrigação assumida pelo banco para com o cliente de pagar aos respectivos beneficiários o valor dos cheques que aquele venha a emitir, afirmam que, em tal convenção, «tudo se passa entre o Banco e o titular da provisão.
[...] O portador, que não é parte na convenção de cheque, não tem acção contra o banco sacado, apenas podendo accionar em via de regresso os signatários do título: o sacador e os eventuais endossantes e avalistas.».
Esta correspondia, segundo afirmavam, à opinião da doutrina e da jurisprudência da generalidade dos países europeus, «praticamente sem discrepância». Apenas a França fugia à regra, considerando que o endosso transmitia «todos os direitos resultantes do cheque, nomeadamente a propriedade da provisão», o que entre nós não acontece, por falta de qualquer disposição legal nesse sentido, sendo que a LURC não disciplina a questão dos direitos do portador sobre a provisão.
Para os mencionados autores, o banco sacado não responde em circunstância alguma perante o portador do cheque. Perante o portador responderia se acaso se pudesse considerar em vigor o artigo 14.º, 2.ª parte do Decreto 13 004, que dispunha:
«A revogação do mandato de pagamento, conferido por via do cheque ao sacado só obriga este depois de findo o competente prazo de apresentação [...] No decurso do mesmo prazo o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação.» Porém, tal normativo foi revogado pelo artigo 32.º da LURC, à qual o Estado Português não opôs qualquer reserva nos termos do artigo 16.º do anexo ii da Convenção sobre a Lei Uniforme em Matéria de Cheques (6), sendo totalmente incompatível com o estabelecido no referido artigo 32.º da LURC e tendo sido recusada a proposta do delegado português, Prof. Caeiro da Mata, que ia exactamente no sentido da 2.ª parte do mencionado artigo 14.º do Decreto 13 004. O artigo 32.º da LURC, ao estatuir que: «a revogação só produz efeitos depois de findo o prazo de apresentação 'tem um sentido de protecção do portador', na medida em que, com ele, 'quis-se assegurar o valor do cheque como meio de pagamento, de modo a proteger o portador contra a frustração da sua expectativa, através da revogação do cheque', sendo que o portador 'conserva todos os direitos inerentes à sua posição contra o sacador, endossantes e avalistas'». A disposição do artigo 32.º - dizem os mencionados AA. - «significa apenas, na expressão de Baumbach-Hefermehl, que o sacado não está obrigado a obedecer à ordem de revogação, não que possa observá-la» (p. 467).
No mesmo sentido dos autores referidos se pronunciaram, entre outros, Sofia de Sequeira Galvão: «Tudo [no contrato de cheque] se passa, portanto entre o banco (sacado) e o cliente/titular da provisão (sacador). São eles as partes no contrato.
Qualquer incumprimento por parte do banco (v. g., recusa injustificada do pagamento do cheque) só funda um direito de acção por parte do sacador. Reconhece-se que o sacado incorreu em responsabilidade contratual.» (Contrato de Cheque, Lex, Lisboa, 1992, p. 30). E, a propósito da revogação do cheque, em anotação meramente indicativa, conclui que «a livre revogabilidade, por parte do cliente/sacador, encontra, no interesse do banco e do beneficiário do cheque, o limite da justa causa (artigo 1170.º, n.º 2, do CC)», ou seja, vai no sentido de Filinto Elísio, que, aliás, cita.
Germano Marques da Silva, com responsabilidades autorais na elaboração da lei penal do cheque aqui em discussão, baseando-se «na orientação da jurisprudência e da doutrina portuguesa», tinha-se já pronunciado abertamente a favor da inexistência, em relação ao portador do cheque, de direito de acção, quer cambiária quer de responsabilidade civil por facto ilícito, do banco sacado no caso de este, «obedecendo a ordens do sacador (ou de terceiro com poderes para o acto), o não pagar, quando apresentado a pagamento dentro do prazo estabelecido pela Lei Uniforme» (ob. cit., p.
69).
A doutrina e a jurisprudência, porém, não são uniformes quanto a tal matéria, notando-se ainda acentuadas discrepâncias. Nomeadamente contra a tese referida pronunciaram-se José Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. iii, Faculdade de Direito de Lisboa, 1982, pp. 256-257, José Maria Pires, o Cheque, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pp. 93 a 101, Alberto Luís, «O problema da responsabilidade civil dos bancos por prejuízos que causem a direitos de crédito», Revista da Ordem dos Advogados, ano 59.º, Dezembro de 1999, pp. 895 a 914, Evaristo Mendes, «Cheque.
Crime de emissão de cheque sem provisão. Inconstitucionalidade», Revista de Direito e Estudos Sociais, Abril/Setembro de 1979, n.os 2 e 3, pp. 196 e segs. Todavia, veremos que alguns destes autores, como é o caso de José Maria Pires e Evaristo Mendes, acabam por contemplar nuances que anulam uma posição antitética e que serão enunciadas ao diante, aquando da solução final desde conflito de jurisprudência.
Dos restantes, José de Oliveira Ascensão concebe a convenção de cheque como um contrato a favor de terceiro, daí derivando a possibilidade de o terceiro exigir directamente o crédito ao sacador, nos termos do artigo 443.º, n.º 1, do CC, e Alberto Luís qualifica a obrigação de o banco sacado pagar o cheque, mesmo contra a ordem em sentido contrário do sacador posterior à sua emissão, de obrigação extracambiária, que tem o seu fundamento na convenção do cheque. Daí que a responsabilidade adveniente para o sacado pelo não pagamento entronque na responsabilidade civil extracontratual, cuja norma nuclear é o artigo 483.º do CC.
11.3 - Vem aqui a propósito mencionar também, ainda que ao de leve, a posição do já referido Assento 4/2000 e do recentíssimo Acórdão de Fixação de Jurisprudência 4/2008, este das Secções Cíveis, de 28 de Fevereiro de 2008, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 4 de Abril de 2008.
O primeiro considerou que o artigo 14.º - 2.ª parte do Decreto 13 004, continuava em vigor, por se tratar de norma materialmente de direito comum, atinente à responsabilidade civil extracontratual, matéria que foi expressamente deixada pela Convenção de Genebra ao direito comum de cada país e, por isso, não se podia considerar revogada pela entrada em vigor da LURC. Nessa linha, sustentava-se no assento, em franca oposição aos autores que defendiam o contrário e, nomeadamente Ferrer Correia/António Caeiro, que o banco sacado não podia deixar de ser responsável, por perdas e danos, pelo não pagamento do cheque regularmente emitido e entregue, se obedecesse a ordens do sacador no sentido da revogação do título: «[...] a afirmação de que o sacado é livre de se conformar ou não com a revogação ou que 'se pagar, pagará bem, mas nada o obriga a fazê-lo', tudo para significar que ele actua de acordo com a lei se não acata a ordem de revogação, mas também não a infringe se se conformar com esta, constitui, ao que nos parece, uma negação da evidência.» O segundo aresto retomou exactamente esse ponto de vista, seguindo de perto a argumentação desenvolvida em tal assento, acabando por fixar jurisprudência neste sentido:
«Uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento do cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUCH (7), com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos artigos 14.º, segunda parte, do Decreto 13 004 e 483.º, n.º 1, do Código Civil.» Todavia, como se anota no voto de vencido do juiz conselheiro Salvador da Costa:
«A doutrina de longe maioritária não defende a vigência do artigo 14.º do Decreto 13 004, de 12 de Janeiro de 1927, e, antes do assento [4/2000] [...] tal entendimento era praticamente pacífico.
[...] Certo é que o Assento 4/2000, de 19 de Janeiro, das secções criminais deste Tribunal, se pronunciou no sentido da permanência em vigor da segunda parte do proémio do referido artigo 14.º Todavia, essa pronúncia apenas consta da fundamentação do assento, a qual, nessa parte, extravasou manifestamente do objecto do aresto, porque este era o de saber se o sacador cometia o crime previsto no artigo 228.º, n.os 1, alínea b), e 2, ou o previsto no artigo 228.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, ao solicitar ao banco sacado, por escrito, que não pagasse o cheque porque se extraviara, sabendo que isso não correspondia à verdade. Por conseguinte, não assume o referido assento força vinculante no que concerne ao objecto do recurso em análise, e só lhe resta a autoridade doutrinária se a referida fundamentação [...] não contrariasse o sistema da Lei Uniforme sobre Cheques.» 11.4 - Dado o exposto panorama, Germano Marques da Silva sentiu-se mais uma vez obrigado a vir à liça, desta feita num ensaio intitulado «Proibição de pagamento do cheque (Da necessária articulação da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, do Regime Jurídico do Cheque sem Provisão e do Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária)», publicado em Estudos de Homenagem ao Prof. Raul Ventura, vol. ii, 2003, p. 81 e segs.
Aí enuncia, logo de início, o seu propósito:
«A profusão de disposições legais e as controvérsias doutrinária e jurisprudencial sobre qual o efectivo regime vigente é motivo de perturbação nas instituições bancárias e a atribuição aos bancos do poder de apreciar a existência de justa causa para a aceitação da proibição de pagamento suscita dificuldades e divergências de actuação de banco para banco, sendo causa de eventuais responsabilidades pelo mau exercício de função que lhes não compete, quando não se converte mesmo em factor criminógeno.
Importa, por tudo isso, clarificar o regime [...] É que, resolvida em grande parte pelo Decreto-Lei 316/97 a crise judiciária motivada pelo excesso de processos por crime de emissão de cheques sem provisão pós-datados, há que estar alerta para que os processos cíveis e criminais não surjam agora em razão da profusão de leis, sua interpretação e conjugação. É esse o propósito deste estudo [...].» No referido estudo, reforça posições anteriores quanto à possibilidade de revogação do cheque mesmo durante o prazo de apresentação a pagamento, não sendo o sacado responsável pelo não pagamento se obedecer a ordens do sacador no sentido de o proibir. Isto, porque o artigo 14.º - 2.ª parte do Decreto 13 004, contrariamente ao enunciado no Assento 4/2000, está revogado pelo artigo 32.º da LURC e este deve ser lido no sentido que lhe atribuem Ferrer Correia/António Caeiro e outros autores.
Com efeito, o portador do cheque não tem quaisquer direitos em relação ao banco sacado, sendo o contrato de cheque unicamente celebrado entre o titular da conta e o banco; o portador é completamente estranho a essa relação. O portador também não tem quaisquer direitos sobre a provisão, pois a LURC não disciplina tal matéria (artigo 19.º do anexo ii da Convenção de Genebra) e, por isso, o sacador mantém a plena disponibilidade sobre o depósito, como é tradição no direito português, podendo inclusive levantar todo o dinheiro depositado, depois de emitido e entregue um cheque, sem que o banco sacado se lhe possa opor. E se mantém essa disponibilidade, não se compreenderia que mais simplesmente o sacador não pudesse proibir o pagamento do cheque pela instituição sacada.
Se o banco sacado fosse responsável pelo não pagamento, obedecendo a ordens do sacador, por a revogação do cheque não produzir efeitos quanto a ele (sacado), seguir-se-ia daí que a ilicitude da revogação acabaria por recair no sacado, pois seria este a violar a lei e não o sacador, «porque a sua contra-ordem de pagamento seria ineficaz». O certo é que o artigo 40.º da LURC, em caso de recusa de pagamento de cheque apresentado em tempo útil, concede ao portador direito de acção apenas contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados, entre os quais se não conta a entidade sacada.
Se o artigo 14.º - 2.ª parte do Decreto 13 004 regulasse, como norma de direito interno, a questão da responsabilidade por perdas e danos pelo acto ilícito do não pagamento, seria uma norma supérflua pois já existe o artigo 483.º do CC que estabelece o princípio geral da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito.
O artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 454/91, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 316/97, responsabiliza o sacador criminalmente pela proibição do pagamento do cheque, se de tal facto resultar prejuízo patrimonial para o tomador do cheque ou para terceiro, o que significa que no espírito da lei se encontra a ideia da admissibilidade da revogação do mandato de pagamento do cheque (proibição de pagamento) desde que não cause prejuízo patrimonial ao tomador. Ora, se o banco sacado fosse, afinal, responsável pelo não pagamento, em virtude de não poder respeitar a ordem de revogação, não se compreenderia a responsabilidade penal do sacador.
A tutela penal do cheque é muito mais redutora do que a tutela cambiária, sendo certo que o crime respectivo tem uma nítida natureza de crime patrimonial e de dano, tendo como suporte uma obrigação jurídica subjacente e exigindo a verificação de prejuízo, que se não confunde com o simples não pagamento do cheque, nem sequer sendo este que é objecto da tutela penal. Para tais efeitos, o cheque perdeu muitas das suas características essenciais, nomeadamente a da abstracção.
O Regulamento do Sistema de Compensação Interbancário (SICOI), publicado ao abrigo do artigo 14.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal e anexo à Instrução do Banco de Portugal n.º 125/96, estabelece que «os participantes no subsistema de telecompensação de cheques apenas podem devolver cheques pelos motivos nela expressamente indicados, entre os quais se refere o cheque revogado por justa causa:
Quando, nos termos do n.º 2 do artigo 1170.º do Código Civil, o sacador tiver transmitido instruções concretas ao sacado, mediante declaração escrita, no sentido do cheque não ser pago, por ter sido objecto de furto, roubo, extravio, coacção moral, incapacidade acidental ou qualquer outra situação em que se manifesta falta ou vício na formação da vontade. O motivo concretamente indicado pelo sacador, no registo lógico, deve ser aposto no verso do cheque pelo banco tomador.» O autor que se vem seguindo discorda desta instrução, por extravasar os poderes regulamentares do Banco de Portugal, nomeadamente o que dispõe a lei sobre a revogação do cheque ou sobre proibição de pagamento, objecto do artigo 32.º da LURC e do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91 e do Decreto-Lei 316/97. Todavia, contemporiza em certa medida com ele, para evitar mais «confusões» na presente situação, fazendo dele uma leitura de compromisso. Essa leitura vem a cifrar-se no seguinte: muito embora devesse bastar uma simples declaração do sacador, feita por escrito, no sentido de o cheque não ser pago e a correspondente menção do facto, por parte do sacado, no verso do cheque, para justificar a recusa de pagamento, deve aceitar-se, enquanto não houver clarificação legislativa, que, como fundamento da recusa, conste uma qualquer causa de justificação das indicadas no SICOI, integrando-se a mesma na figura da revogação do mandato com justa causa, prevista no artigo 1170.º, n.º 2, do CC.
O banco sacado não tem de averiguar da veracidade dos motivos indicados.
12 - Como se vê, continua a ser objecto de muita divergência a questão da revogação do cheque. E não só a revogação em si mas também a distinção dessa figura da proibição de pagamento e ainda a questão de saber se a falsa comunicação de extravio se integra num ou noutro ou em ambos os conceitos.
12.1 - Começámos por afirmar que a questão da proibição de pagamento do cheque normalmente aparece aliada à questão da revogação e daí que tivéssemos enveredado pelo tratamento jurídico, ainda que sumário, desta figura, sobretudo no âmbito da relação cambiária.
Ora, a verdade é que o contrato ou convenção de cheque - uma das relações jurídicas que está na base da emissão de um cheque; a outra é a relação de provisão - se vem a traduzir num acordo entre o banco e o titular da provisão, pelo qual «o primeiro acede a que o segundo mobilize os fundos à sua disposição por meio da emissão de cheques. Esta convenção, que pode ser tácita, celebra-se na prática mediante a requisição pelo cliente de um ou mais livros de cheques e a entrega destes pelo banco» (Ferrer Correia/António Caeiro, ob. cit., p. 457).
Quanto à natureza jurídica deste contrato, a tradição da doutrina e da jurisprudência dominantes vão no sentido de o definir como «um contrato de prestação de serviços, sob a forma de mandato - sob o ângulo das relações sacador-sacado» (Filinto Elísio, ob. cit., p. 490). A própria LURC, no artigo 1.º, n.º 2, diz que o cheque contém o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada, muito embora, como anota o autor citado, a «Conferência de Genebra não quis[esse] tomar posição doutrinária ao empregar a palavra mandato», citando a propósito Jacques Bouteron, segundo o qual «[...] la Conférence de Genève s'est sagement abstenue de chercher à definir le cheque, du point de vue juridique pur [...]» (Le Statut International du Cheque, p. 220). Todavia, «não quis significar nem que o fosse, nem que o não era» (idem, ibidem).
Na mesma linha vai Sofia de Sequeira Galvão:
«O contrato de cheque pode ser, numa dada perspectiva, recondutível à ideia de mandato. Diz-se então que, com a celebração do contrato de cheque, o banco (mandatário/sacado) se obriga perante a contraparte (mandante/sacador) a, por conta deste, praticar actos jurídicos. I. e., concretizando, a pagar os cheques que lhe sejam apresentados. [...] Através do contrato de cheque, o banco oferece aos seus clientes a possibilidade de utilizarem a emissão de cheques como forma de disposição dos respectivos fundos. Oferece-lhes, portanto, um determinado serviço. Nessa sua dimensão, o banco é um prestador de serviços [...] O contrato de cheque exprime a ideia de mandato. E, como parece óbvio, de um mandato sem representação (artigo 1180.º e seguintes do CC). O banco, por força do contrato de cheque, compromete-se a pagar os cheques emitidos pelo seu cliente. Mas a sua actuação faz-se sempre em nome próprio. É o banco quem paga os cheques, não o cliente.» (ob. cit., pp. 60 e segs.) Também Ferrer Correia/António Caeiro reconduzem o contrato de cheque ao mandato: «O sacado mais não é do que um simples mandatário ou executante de uma ordem do sacador. A relação intercedente entre o banco e o sacador não tem por fonte o acto de emissão do título, mas um negócio jurídico que lhe é anterior: o contrato de cheque.» (ob. cit., p. 463).
Ora, da configuração do contrato de cheque como um mandato deriva a possibilidade de revogação. Aliás, o artigo 32.º da LURC, tantas vezes citado, fala expressamente em revogação do cheque, muito embora, como vimos, a Convenção de Genebra não quisesse tomar posição sobre a natureza jurídica do contrato ou convenção do cheque.
«Revogar um cheque é proibir o seu pagamento; é dá-lo como não emitido.» (Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Cheques, 5.ª ed., p. 196).
«Sendo o cheque um acto jurídico unilateral sob a forma de uma ordem de pagamento, a sua revogação só poderá ser feita por uma outra ordem de sentido contrário.» (José Maria Pires, ob. cit., p. 104). Uma ordem de sentido contrário é uma proibição de pagamento.
«A revogação é [...] a interdição de pagar o cheque» - posição do delegado belga na Conferência de Genebra de 1931, quando se tratou de estabelecer as diferenças entre revogação e oposição (cf. Assento 4/2000, cit.).
Germano Marques da Silva, como já referimos a propósito da sua obra Regime Jurídico-Penal dos Cheques, liga a revogação à proibição de pagamento. E o mesmo sucede no também já referido estudo Proibição de Pagamento do Cheque...:
«Parece-nos manifesto ter estado no espírito do legislador a admissibilidade da revogação do mandato (ou proibição de pagamento) (8) dentro do prazo de apresentação a pagamento nos termos estabelecidos pela Lei Uniforme [...]» Nesta obra vai, contudo, um pouco mais longe, explicando em nota (p. 91, n. 29):
«Temos por certo que o uso da palavra proibir (proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque) e não revogar, como na Lei Uniforme, foi intencional. É que a proibição dirige-se directamente ao sacado e tem o significado de imposição de uma interdição, de não permissão do pagamento do cheque, ou seja, de impedimento de movimentação a débito da conta de depósito em razão daquele cheque. A revogação refere-se, pelo contrário, ao próprio título cambiário.» 12.2 - Relativamente ao furto ou extravio.
Muitas vezes, o furto ou extravio do cheque aparecem nos tratadistas como conceitos distintos da revogação. Assim é que, no mencionado Assento 4/2000, se dá conta de que a questão (de «perda ou vol») foi discutida na Conferência de Genebra, mas que não foi tratada como revogação e foi mesmo objecto de considerações que a integravam num outro conceito: o de oposição. Todavia, não chegou a ser regulada pela Lei Uniforme devido à diversidade de formas de oposição e respectivos procedimentos, tendo sido objecto apenas da referência contida no artigo 21.º da LURC (9). A matéria em causa foi, além disso, deixada para o domínio da formulação de reservas pelas Altas Partes Contratantes, que poderiam determinar as medidas a tomar em caso de perda ou roubo de um cheque (cf. artigo 16.º - último parágrafo - do anexo ii da Convenção de Genebra - supra n. 6) (10).
Por seu turno, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência 4/2008, afirma expressamente: «Tais situações não cabem no conceito de revogação (v. J. M. Pires, ob. cit., pp. 107 e 108) nem estão compreendidas na proibição à instituição sacada do pagamento do cheque, por parte do sacador, constante da alínea b) do artigo 11.º do mesmo diploma [alínea c) na redacção anterior ao Decreto-Lei 316/97].» Vejamos o enquadramento jurídico feito por alguns tratadistas:
Filinto Elísio, a propósito da revogação do cheque, que defende, como vimos, tanto antes como depois da apresentação a pagamento, e aludindo à justa causa da revogação consagrada no artigo 1170.º, n.º 2, do CC, encara a possibilidade de responsabilização do sacador nestes termos: «O sacador pode ter justos motivos para revogar o cheque; são exemplos clássicos dessas possíveis situações a perda ou o roubo do cheque ou ter sido desapossado por acto fraudulento ou quaisquer outras razões que possam integrar o conceito de justa causa. Se não há justa causa o sacador é responsável; se ela existe, dirime essa responsabilidade.» (ob. cit, p. 502).
Tratar-se-ia, portanto, de uma revogação com justa causa.
Sofia de Sequeira Galvão vai no mesmo sentido ao afirmar que «a livre revogabilidade por parte do cliente/sacador encontra, no interesse do banco e do beneficiário do cheque, o limite da justa causa (artigo 1170.º, n.º 2, do CC)».
José Maria Pires, citado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência 4/2008 como opondo-se à ideia de os casos de furto ou extravio não serem recondutíveis ao conceito de revogação, inclui-os, no entanto, no âmbito das causas que podem levar justificadamente à proibição de pagamento:
«Estas situações como a acabada de mencionar [falsificação de assinatura], o sacador pode e deve advertir o sacado para a situação de saque viciado e opor-se ao pagamento. Não se trata, todavia, de revogação, uma vez que não se pode revogar o que é inválido.
A esta oposição ao pagamento denomina a alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, de 29 de Dezembro, 'proibir à instituição sacada o pagamento do cheque [...]' Porém, a proibição de pagamento só se justifica quando as razões invocadas digam respeito a circunstâncias que, viciando a validade da ordem de pagamento dada pelo saque, ou as regras da sua emissão (entrega ao tomador), ou a regularidade formal dos endossos, são objecto de controlo obrigatório pelo sacado.
Com efeito se a autenticidade da ordem de pagamento estiver viciada por falsificação, se a entrega ao tomador não resultar de acto voluntário, se a sequência dos endossos se mostrar irregular, o cheque não deve ser pago. Algumas dessas situações são susceptíveis de detecção pelo exame do próprio título, como as falsificações seriamente indiciadoras, outras, normalmente, só chegarão ao conhecimento do sacado mediante informação do sacador [furto, roubo (11), falsificações não detectáveis pela diligência normal do bonus argentarius, ...]. Em qualquer das hipóteses, o sacador pode e deve sempre avisar o sacado, constituindo esse aviso uma proibição de pagar determinado cheque (12). Todavia, se a informação for falsa, a recusa de pagamento faz incorrer o sacador no crime previsto na mencionada alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91.» (Ob. cit., pp. 106-107.) António Augusto Tolda Pinto, relativamente ao furto, roubo e extravio, defende também que o sacador (ou outro contitular da conta sacada ou pessoa com poderes ou autorizada para a movimentar) deve, nesses casos, dar instruções ao banco sacado, mediante declaração escrita no sentido de o cheque não ser pago por força de qualquer desses fundamentos, constituindo essas instruções uma proibição de pagamento. Se essa proibição for injustificada, fica preenchido o tipo de ilícito da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 316/97.
Cabe às autoridades judiciárias o apuramento dos elementos do tipo de ilícito (objectivo e subjectivo). «Se, no decurso da investigação criminal, vier a indiciar-se que a causa da comunicação é justificada, encontra-se afastada a culpa e a ilicitude por parte do sacador - ou do terceiro -, devendo, deste modo, ser ilibado da autoria do crime de emissão de cheque sem provisão. Contudo, pode ocorrer que, no decurso da mesma investigação criminal, venha a indiciar-se que a comunicação de extravio/furto/roubo visou tão-só emitir uma proibição junto da instituição bancária como meio de obstar ao pagamento do cheque - então, neste caso, o autor incorrerá na prática de um crime de emissão de cheque sem provisão.» (Cheques sem Provisão - Regime Jurídico, Coimbra Editora, 1998, pp. 163-164).
Evaristo Mendes, muito embora sustente que a questão da revogação do cheque não se confunde com a questão de extravio, sendo este regulado pelo direito interno dos diversos Estados, já que não disciplinado pela LURC nos termos sobreditos, distingue os países, como os que acolhem a concepção germânica de irrevogabilidade fraca, dos que adoptam uma concepção de irrevogabilidade forte. Para os primeiros, a revogação será aceitável qualquer que seja o motivo; para os segundos, fala de oposição ao pagamento, que deveria ser sempre circunscrita aos casos previstos na lei, «exigindo-se, porventura, confirmação escrita e, eventualmente, prolongando a irrevogabilidade até a questão suscitada ser decidida.» O que é certo é que a sua posição se situa mais no âmbito das possibilidades do que da certeza: «Ainda nesta linha, admite-se que possa bastar a mera invocação oral ou telefónica de extravio para obstar ao pagamento, sujeitando-se o autor da comunicação às possíveis sanções cominadas para os casos de falsidade da mesma, mas sem afectar, de resto, a liberdade do sacado quanto à movimentação da conta sacada. Nesta ordem de ideias, compreende-se que o Supremo Tribunal de Justiça continue a aplicar o § único do referido Decreto 13 004.» (13) (Ob. cit., pp. 196-197.) Por conseguinte, retendo o que interessa e deixando de lado esta última parte, em que o autor manifesta compreensão pela jurisprudência do STJ que continua a aplicar o § único do Decreto 13 004, que, afinal, se encontra revogado segundo o Assento 4/2000, o que é certo é que ele vê na comunicação de extravio um motivo de revogação nos países de irrevogabilidade fraca e de oposição ao pagamento nos países de irrevogabilidade forte. Em qualquer dos casos, tratar-se-ia de proibição de pagamento («obstar ao pagamento», refere o autor citado), ainda que o sacado, na sua opinião, possa manter, na oposição, a liberdade para movimentar a conta, «eventualmente prolongando a irrevogabilidade até a questão ser decidida».
Posição singular é a de Grumecindo Dinis Bairradas, pois este autor defende a irrevogabilidade do cheque durante o prazo de apresentação a pagamento, fazendo uma interpretação do artigo 32.º da LURC que não deixa margem para o banco sacado cumprir a ordem de revogação que lhe seja transmitida pelo sacador ou terceiro que aja em sua representação, afirmando que o Decreto-Lei 454/91, ao criminalizar esta conduta, reforçou esta interpretação. No entanto, começa por admitir que «a posição do banco é delicada, nomeadamente se o cliente invoca um motivo justificativo da ordem de não pagamento do cheque». E anota que alguns autores colocam como hipótese, para evitar que os direitos do portador sejam defraudados, «a de o banco cativar o valor do cheque até que a questão seja decidida pelos meios legais», o que se lhe afigura, em termos práticos, uma hipótese não isenta de dificuldades. Tudo isto para terminar por defender uma excepção que vem a confluir com a ideia de revogação por justa causa. Nessa ordem de ideias, diz que o banco «não pode aceitar a revogação do cheque, dentro do prazo de apresentação, excepto se for invocada causa justificativa» (A Protecção Penal do Cheque - Regime Actual, Almedina, 1998, p. 93). Assim, por esta via, não há diferenças muito significativas em relação a outras posições já vistas, que admitem a oposição ou revogação com justa causa.
12.3 - Ora, de toda esta explanação resulta que, seja por se considerar o contrato de cheque como uma modalidade particular de mandato ou mais especificamente um contrato de prestação de serviços sob a forma de mandato, a que se liga a possibilidade de revogação, sendo a doutrina dominante no sentido de que o artigo 14.º do Decreto 13 004 foi revogado pela Lei Uniforme, cujo artigo 32.º, ao estabelecer a ineficácia da revogação durante o prazo de apresentação a pagamento, apenas quer significar que o cheque continua válido como cheque, mantendo o portador ou tomador o direito de acção contra os responsáveis cambiários, e não que o sacado não possa obedecer à ordem de revogação, que se mantém livre, seja ainda por se entender que a revogação só pode ter lugar no caso de ocorrer uma justa causa, nos termos do artigo 1170.º, n.º 2, do CC, no qual se incluem as hipótese de furto, roubo e extravio, ou ainda por se conceber para tais hipótese um direito de oposição, distinto da revogação, a ordem ou aviso de não pagamento transmitidos ao sacado configuram-se como uma proibição de pagamento do cheque.
13 - Em conclusão:
1 - Com a publicação do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, que procurou disciplinar de uma forma sistemática a matéria penal relativa aos crimes de cheque sem provisão, pondo cobro, como se diz na preâmbulo, ao «persistente acréscimo» desse tipo de crime, ao clima de generalizada desconfiança em relação ao cheque como meio de pagamento e à «excessiva absorção de polícias e tribunais» na investigação e julgamento desses casos, o tipo legal de crime de emissão de cheque sem provisão passou a incluir na sua previsão típica o elemento prejuízo patrimonial (artigo 11.º, n.º 1).
2 - Para ser crime, o não pagamento do cheque terá de causar prejuízo ao beneficiário ou portador - um elemento que terá de ser apurado autonomamente, «integrando o conceito de 'prejuízo patrimonial' o não recebimento para si ou para terceiro, pelo portador do cheque, quando da sua apresentação a pagamento, do montante devido correspondente à obrigação subjacente relativamente à qual o cheque constituía meio de pagamento» (Acórdão de Fixação de Jurisprudência 1/2007, de 30 de Novembro de 2006, in Diário da República, 1.ª série, n.º 32, de 14 de Fevereiro de 2007).
3 - Devesse ou não já, na fase anterior a esse diploma legal, o crime de emissão de cheque sem provisão ser considerado como um crime de resultado ou de dano, o certo é que a doutrina e a jurisprudência dominantes viam nele, fundamentalmente, um crime de perigo abstracto, protegendo o bem jurídico da confiança e da credibilidade do cheque como meio de pagamento (ou seja, um interesse de natureza supra-individual) e que se consumava com a simples emissão e entrega do cheque, sabendo o sacador que não tinha no banco sacado os necessários fundos para o seu pagamento.
4 - Daí a querela doutrinal e jurisprudencial sobre a natureza do crime e a continuidade dos seus elementos típicos, a partir do mencionado decreto-lei - querela essa que culminou no Assento 6/93, que, embora considerando que a protecção da confiança e credibilidade do título continuava a ser o bem jurídico predominantemente tutelado com a incriminação, tinha o prejuízo material como conatural ao não pagamento do cheque, sendo este prejuízo uma condição objectiva de punibilidade e, como tal, devendo considerar-se, na esteira de certa doutrina, pertencente ao tipo legal de crime.
5 - Entre as alterações introduzidas pelo mencionado diploma legal, conta-se a introdução de várias modalidades de comportamento típico (as previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 11.º), que não se reconduziam à clássica falta de provisão, consistindo uma delas em proibir à instituição sacada o pagamento de cheque emitido e entregue.
6 - Para além das várias modalidades da conduta, também os agentes do crime passaram a ser pessoas diferentes do sacador, estendendo-se essa possibilidade ao endossante do cheque que conheça a falta de provisão, causando com isso um prejuízo patrimonial.
7 - As penas cominadas para o crime de emissão de cheque sem provisão passaram a ser as do crime de burla, acentuando-se por essa via, e pelas modalidades da conduta, a analogia com este tipo de crime, tendo ambos como elemento típico fundamental o prejuízo patrimonial da vítima e a sanção penal escalonada de acordo com a gravidade do prejuízo causado.
8 - A consumação do crime de emissão de cheque sem provisão também deixou de poder reportar-se ao momento da emissão e entrega do cheque.
9 - Com o Decreto-Lei 316/97, que alterou o Decreto-Lei 454/91, não só se consolidou como se aprofundou a natureza patrimonial do crime de emissão de cheque sem provisão, tutelado penalmente enquanto meio de pagamento imediato de uma obrigação actual subjacente, distinta da obrigação cartular e cujo não pagamento tem de causar prejuízo em qualquer das modalidades da conduta típica. Este prejuízo não pode ser o prejuízo identificado com o simples não pagamento do cheque, isto é, com a frustração do direito de crédito baseado na relação cambiária, mas tem de ligar-se ao incumprimento de uma obrigação subjacente, actual e exigível. Por isso mesmo, os cheques pós-datados deixaram de merecer tutela penal.
10 - Elevou-se o montante a partir do qual a emissão de cheque constitui crime punível.
11 - O bem jurídico protegido é fundamentalmente o património do ofendido, como claramente se afirmou no preâmbulo do referido diploma legal.
12 - Nas modalidades da conduta típica, para além de a irregularidade do saque, previram-se outras modalidades não constantes do Decreto-Lei 454/91, como sejam o encerramento da conta sacada e a alteração por qualquer modo das condições da sua movimentação, assim se impedindo o pagamento do cheque.
13 - O crime passou a ser sempre semipúblico, admitindo, assim, desistência de queixa, nos termos do artigo 116.º, n.º 2, do CP, seja qual for o valor do cheque. Além disso, a responsabilidade criminal extingue-se quando verificada a falta de pagamento e notificado o sacador obrigatoriamente pela instituição de crédito, a situação seja regularizada, «mediante a consignação em depósito ou pagamento directamente ao portador do cheque, comprovado perante a instituição de crédito sacada, do valor do cheque e dos juros moratórios calculados à taxa legal, fixada nos termos do Código Civil, acrescida de 10 pontos percentuais» (artigos 1.º-A e 11.º, n.º 6).
14 - As penas continuam a ser equiparadas às do crime de burla, mas agora com uma limitação da pena a 5 anos de prisão ou multa até 600 dias, correspondente ao cheque de valor elevado, tendo desaparecido a agravante do valor consideravelmente elevado e as restantes agravantes previstas no n.º 2 do artigo 218.º do CP para o crime de burla qualificada especialmente qualificada.
15 - De tudo resulta que a caracterização do crime de emissão de cheque sem provisão se afasta cada vez mais da disciplina da relação cartular, passando mesmo por cima de certas características fundamentais desta, nomeadamente a característica da abstracção, e aproximando-se mais dos crimes de natureza patrimonial, especialmente o crime de burla.
16 - Uma das modalidades da conduta prevista como típica do crime de emissão de cheque sem provisão consiste em proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque [artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 454/91, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 316/97].
17 - Essa questão prende-se com a revogação do cheque, que é uma proibição de pagamento. Trata-se de uma matéria doutrinária e jurisprudencialmente muito controvertida, conexionando-se com o sentido a atribuir ao artigo 32.º da LURC e com a vigência ou não do artigo 14.º - 2.ª parte do Decreto 13 004.
18 - A doutrina maioritária pende para a revogação pela LURC deste artigo 14.º, n.º 2, e a corrente mais liberal, com tradições na doutrina portuguesa, interpreta aquele artigo 32.º como querendo apenas significar que a revogação do cheque, durante o prazo de apresentação a pagamento, é ineficaz, continuando o cheque a valer como tal e conservando o portador o seu direito de acção contra todos os responsáveis cambiários. Não que o banco sacado não possa acatar a ordem de proibição de pagamento emanada do seu cliente, de quem é mandatário e executante das suas instruções, configurando-se o contrato ou convenção de cheque como um contrato de mandato para prestação de serviços, ao qual é totalmente estranho o beneficiário ou portador do cheque. Além disso, o banco não é responsável cambiário, não podendo aceitar nem avalizar o cheque.
19 - Acresce que o terceiro beneficiário ou portador não teria direitos sobre a provisão, que não foram regulados pela LURC.
20 - Numa outra versão mais restrita, o mandato contido no cheque pode ser revogado desde que haja justa causa, no âmbito do artigo 1170.º, n.º 2, do CC, precisamente porque o contrato ou convenção de cheque reveste a forma de um mandato conferido também no interesse de terceiro.
21 - Nesse contexto, o próprio Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária (SICOI), constante da parte vii do anexo à Instrução 125/96, do Banco de Portugal, admite a revogação com justa causa, indicando como constituindo justa causa o furto, o roubo, o extravio, a coacção moral, a incapacidade acidental e qualquer situação em que se manifeste falta ou vício na formação da vontade.
22 - Ao menos nesses casos conceber-se-ia a revogação do cheque, ou seja, a proibição do seu pagamento.
23 - Para quem, na linha das discussões travadas no âmbito da Conferência de Genebra, entenda que a questão do furto, roubo ou perda do cheque se não enquadra na figura da revogação, mas na da oposição, que não ficou regulamentada na LURC, deixando-se essa disciplina às legislações nacionais, nos termos do 2.º parágrafo do II Anexo à Convenção Estabelecendo uma Lei Uniforme em Matéria de Cheques, de 19 de Março de 1931, essa oposição tem também o sentido de obstar ao pagamento, ainda que eventualmente de forma temporária ou suspensiva, por meio da invocação de uma justa causa, sujeitando-se o invocante à prova do facto e a eventuais sanções penais no caso de falsidade. O próprio iniciador dessa discussão na Conferência - Sichermann - definiu a oposição como «[...] um simples escrito particular, um aviso ao portador, seja ou não o sacador, alertando o sacado para a perda, vol, etc., e proibindo-o de pagar ao terceiro portador. [...] O aviso tem por efeito imediato impedir, obstar ao pagamento. Deste efeito principal da oposição resulta que esta é, no fundo, idêntica à revogação, ou, pelo menos, irmã gémea [...]» (citado no Assento 4/2000).
24 - Falando a lei penal do cheque [artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 454/91, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 316/97] em proibir à instituição sacada o pagamento desse cheque, aí se inclui qualquer conduta do agente que vise revogar ou obstar ao pagamento do título, invocando uma causa aparentemente idónea a produzir esse efeito, nomeadamente extravio do cheque, servindo-se normalmente de aviso ou escrito endereçado ao banco sacado, cujo conteúdo se vem a revelar falso.
25 - Ao banco sacado não compete averiguar da veracidade do motivo invocado, sendo certo que a lei penal do cheque tipifica como ilícito criminal o comportamento do agente que falsamente invoca uma dessas causas, como extravio, furto ou roubo, com o intuito de proibir o seu pagamento e causando com esse facto prejuízo, que tem de estar conexionado com uma relação jurídica subjacente.
26 - É certo que o artigo 8.º do diploma legal invocado se refere à recusa justificada da instituição sacada do pagamento do cheque, por motivo diferente da falta ou insuficiência da provisão, nomeadamente por «existência de sérios indícios de falsificação, furto, abuso de confiança ou apropriação ilegítima do cheque». Todavia, tal norma inscreve-se no âmbito das situações que se configuram como obrigação da instituição sacada de pagar o cheque, ainda que este não tenha provisão ou tenha provisão insuficiente, não sendo essas situações transponíveis para o domínio do ilícito criminal tipificado no artigo 11.º 27 - Neste último âmbito, só o autor do ilícito é responsável, incorrendo nas sanções penais pertinentes, ficando a cargo da autoridade judiciária averiguar a existência do facto ilícito, por meio do processo adequado.
28 - O que pode suceder é que algum dos responsáveis do banco sacado, agindo em nome dele ou em sua representação, tenham responsabilidade na prática dos factos, podendo estes ser-lhes imputados a título de autoria ou de qualquer forma de comparticipação. E, nesse caso, o banco poderá também ser responsável, a título de responsabilidade civil extracontratual, pelos danos causados.
III - Decisão. - 13 - Nestes termos, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça decide:
a) Fixar a seguinte jurisprudência:
Verificados que sejam todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito, integra o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro, a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica ao banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a recusar o seu pagamento com esse fundamento;
b) Julgar procedente o recurso interposto, revogando a decisão recorrida para que o Tribunal da Relação do Porto profira outra em consonância com a jurisprudência agora fixada.
14 - Dê-se cumprimento ao disposto no artigo 444.º, n.º 1, do CPP.
Sem custas.
(1) Decreto-Lei 182/74, de 2 de Maio, que agravou substancialmente as penas, punindo também a não aceitação de cheques, como forma de incrementar o seu uso como meio de pagamento, logo a seguir à Revolução do 25 de Abril, a fim de impedir a saída abusiva de fundos do sistema bancário [preâmbulo]; Lei 25/81, de 21 de Agosto, que diversificou as sanções aplicáveis, consoante o valor em causa, assim morigerando o rigor das penas estabelecidas anteriormente; Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, que introduziu o Código Penal de 1982, o qual voltou a alterar as penas, estabelecendo uma pena (prisão até 3 anos) para o crime simples e penas (de 1 a 10 anos) para o tipo agravado, segundo várias circunstâncias indicadas nas diversas alíneas do n.º 2 e que correspondiam às circunstâncias agravantes do crime de burla; Decreto-Lei 14/84, de 11 de Janeiro, que manteve as penas idênticas às do crime de burla, mas veio permitir a extinção da responsabilidade criminal pelo pagamento do cheque e juros, ou depósito da respectiva quantia, desde que efectuados antes de instaurado o procedimento criminal, e a suspensão da execução da pena, quando tal pagamento ou depósito tivessem lugar depois, mas antes de encerrada a audiência de julgamento, excepto se o arguido não fosse reincidente.
(2) Como já vimos supra (n.º 9.1.2), este valor passou a ser de (euro) 62,35 com o Decreto-Lei 323/2001, de 17 de Dezembro, e de (euro) 150, com a redacção conferida pela Lei 48/2005, de 29 de Agosto.
(3) artigo 1.º-A, aditado pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 316/97, de 19 de Novembro:
«Falta de pagamento de cheque 1 - Verificada a falta de pagamento do cheque apresentado para esse efeito, nos termos e prazos a que se refere a Lei Uniforme Relativa ao Cheque, a instituição de crédito notificará o sacador para, no prazo de 30 dias consecutivos, proceder à regularização da situação.
2 - A notificação a que se refere o número anterior deve, obrigatoriamente, conter:
a) A indicação do termo do prazo e do local para a regularização da situação;
b) A advertência de que a falta de regularização da situação implica a rescisão da convenção de cheque e, consequentemente, a proibição de emitir novos cheques sobre a instituição sacada, a proibição de celebrar ou manter convenção de cheque com outras instituições de crédito, nos termos do disposto no artigo 3.º, e a inclusão na listagem de utilizadores de cheque que oferecem risco.
3 - A regularização prevista no n.º 1 faz-se mediante consignação em depósito ou pagamento directamente ao portador do cheque, comprovado perante a instituição de crédito sacada, do valor do cheque e dos juros moratórios calculados à taxa legal, fixada nos termos do Código Civil, acrescida de 10 pontos percentuais.» (4) Circunstância introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro.
(5) A revogação do mandato de pagamento, conferido por via do cheque ao sacado, só obriga este depois de findo o competente prazo de apresentação estabelecido no artigo 12.º do presente decreto com força de lei. No decurso do mesmo prazo o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação.
(6) Qualquer das Altas Partes Contratantes, por derrogação do artigo 32.º da Lei Uniforme, reserva-se a faculdade de, no que respeita aos cheques pagáveis no seu território: a) admitir a revogação do cheque mesmo antes de expirado o prazo de apresentação; b) proibir a revogação do cheque mesmo depois de expirado o prazo de apresentação.
Qualquer das Altas Partes Contratantes tem, além disso, a faculdade de determinar as medidas a tomar em caso de perda ou roubo de um cheque e de regular os seus efeitos jurídicos.
(7) LUCH é a designação abreviada que também se dá à Lei Uniforme Relativa ao Cheque, a par de outras designações como LU e LURC, esta adoptada no texto.
(8) Itálico nosso.
(9) artigo 21.º da LURC:
«Quando uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de um cheque, o detentor a cujas mãos ele foi parar - quer se trate de um cheque ao portador quer se trate de um cheque endossável em relação ao qual o detentor justifique o seu direito pela forma indicada no artigo 19.º - não é obrigado a restituí-lo, a não ser que o tenha adquirido de má fé, ou que, adquirindo-o, tenha cometido uma falta grave.» (10) O § único do artigo 14.º de Decreto 13 004 também disciplinava a matéria:
«Se, porém, o sacador ou o portador tiver avisado o sacado de que o cheque se perdeu, ou se encontra na posse de terceiro em consequência de um facto fraudulento, o sacado só pode pagar o cheque ao seu detentor se este provar que o adquiriu por meios legítimos.» (11) Itálico do relator do acórdão.
(12) Idem.
(13) Referia-se ao Acórdão do STJ de 19 de Outubro de 1993 (Cardona Ferreira) na CJ ACS STJ, 1993, t. 3.º, pp. 69 e segs.
Supremo Tribunal de Justiça, 25 de Setembro de 2008. - António Artur Rodrigues da Costa (relator) - Armindo dos Santos Monteiro - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - José António Henriques dos Santos Cabral - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - José Adriano Machado Souto de Moura - Eduardo Maia Figueira da Costa - António Pires Henriques da Graça - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - António José Bernardo Filomeno Rosário Colaço - Jorge Henrique Soares Ramos - Fernando Manuel Cerejo Fróis - António Pereira Madeira - Manuel José Carrilho de Simas Santos - José Vaz dos Santos Carvalho - António Silva Henriques Gaspar - Luís António Noronha Nascimento (presidente).