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Assento 1/81, de 13 de Abril

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Sumário

Processo n.º 35539. - Autos de recurso para tribunal pleno em que são recorrente Fernando Filipe Pereira da Silva e recorridos o Ministério Público e outra.

Texto do documento

Assento 1/81

Processo 35539. - Autos de recurso para tribunal pleno em que são recorrente Fernando Filipe Pereira da Silva e recorridos o Ministério Público e outra.

Acordam, em sessão plenária, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça.

O réu Fernando Filipe Pereira da Silva, casado, de 51 anos, comerciante, residente na Rua dos Poiais de S. Bento, 87, 2.º, direito, veio, nos termos do artigo 668.º do Código de Processo Penal, interpor recurso do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 1979, proferido nos autos de recurso penal provindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que ele era aí recorrente e foram recorridos o Ministério Público e a assistente Maria Alice de Oliveira Maurício dos Santos, já melhor identificada, fundando-se em que, no domínio da mesma legislação, deu aquele acórdão solução oposta à que foi ditada relativamente à mesma questão fundamental de direito, pelo Acórdão deste mesmo Tribunal proferido em 4 de Dezembro de 1945, publicado no vol. V, p. 526, do Boletim Oficial do Ministério da Justiça e junto por fotocópia certificada de fl. 17 a fl. 19.

O recurso foi admitido e, produzidas alegações, decidiu-se, em plenário da secção criminal, pelo Acórdão de 11 de Julho de 1979, que existia a oposição de acórdãos invocada e justificativa de recurso extraordinário para o tribunal pleno, ordenando-se, por isso, o prosseguimento dos termos desse recurso.

E, de conformidade com o disposto nos n.os 1, 2 e 3 do artigo 767.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do § único do artigo 668.º do Código de Processo Penal, foi o mesmo recurso doutamente alegado pelo recorrente e pelo digno agente do Ministério Público, correndo, depois, os vistos legais.

Cumpre agora decidir.

Mas porque o acórdão do plenário da secção criminal não vincula o tribunal pleno (artigo 766.º, n.º 3.º, do Código de Processo Civil), terá de ser reexaminada a questão preliminar. E só haverá conflito de jurisdição, pretende dizer-se, conflito de jurisprudência, quando os arestos em confronto tenham resolvido, em sentido contrário, a mesma questão jurídica fundamental (J. A. dos Reis, Código Anotado, vol.

v, p. 260). É pois necessário, do ponto de vista técnico-jurídico, que o problema seja o mesmo e tenha obtido soluções diversas, ou seja, com vantagem se diz no Acórdão deste Tribunal de 31 de Maio de 1978, Boletim, n.º 277, p. 158, que os mesmos preceitos legais em que se tenham fundamentado as decisões apontadas como em oposição tenham sido interpretadas e aplicadas diversamente a factos idênticos e que uma das decisões tenha estabelecido, de forma expressa, doutrina e consequente solução contrária à fixada no outro acórdão, não se tendo como suficiente que nem possa ver-se a aceitação tácita da doutrina expressa no outro, quer dizer-se, da doutrina contrária à enunciada no outro, o que quer dizer que a aceitação tem de ser expressa e não tácita.

Isto posto, a modos de exórdios, é momento de ver se se verificam ou não os pressupostos que condicionam o prosseguimento do recurso.

Os acórdãos ditos em oposição são, como se disse, o de 4 de Dezembro de 1945 e o de 10 de Janeiro de 1979.

À data em que foi proferido o primeiro vigorava o Decreto-Lei 13004, de 12 de Janeiro de 1927. No seu artigo 23.º declara-se quando é criminosa a emissão de um cheque, ou seja, define-se o tipo legal de crime de emissão de cheque sem cobertura;

no artigo 24.º enunciam-se as condições objectivas da punibilidade do mesmo crime e indica-se a pena em abstracto aplicável.

Tais preceitos vigoram, ainda, excepto quanto à medida da pena que o artigo 2.º do Decreto-Lei 182/74, de 2 de Maio, elevou para a de dois a oito anos de prisão maior.

Os cheques, que foram objecto de apreciação jurídico-criminal no acórdão recorrido, foram emitidos em 31 de Julho de 1974. Nos termos do seu artigo 3.º, aquele diploma entrou imediatamente em vigor. Daí que, havendo o crime sido cometido na vigência da lei nova, a respectiva punição se ela houvesse sido submetida.

Será tal alteração o suficiente para que deva ou tenha de concluir-se que os acórdãos ditos em oposição não foram proferidos no domínio da mesma legislação? Entende-se que não.

É que não basta a pluralidade de diplomas legais ao reger o mesmo caso concreto para que tenha forçosamente de concluir-se que se não está no domínio da mesma legislação.

Para tanto seria necessário que as regras de direito enquadradas no Decreto 13004 integrassem um sistema jurídico diferente das que o foram no Decreto-Lei 182/74. Não é, manifestamente, o caso. Mantém-se a mesma definição legal do crime.

Simplesmente se entendeu, por razões de política criminal e garantia mais eficaz da circulação do cheque, como meio de pagamento e patrimonial dos beneficiários exacerbar a pena aplicável à emissão criminosa do cheque. O sistema jurídico criminal manteve-se o mesmo.

É o que manifestamente resulta do artigo 2.º do referido decreto, segundo cujos termos «o crime de emissão de cheque sem cobertura previsto no Decreto 13004, de 12 de Janeiro de 1927, passa a ser punido com a pena de dois a oito anos de prisão maior».

Quer dizer, que tudo se manteve como dantes, excepto a pena, que se agravou com fins imediatos de persuasão e dissuasão, bem assim de tutelar mais eficazmente a circulação do cheque na sua função económica-jurídica como título de crédito, meio de pagamento e garantia patrimonial dos beneficiários.

Tem de se concluir, assim, que os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 1945 e o de 10 de Janeiro de 1979 foram proferidos no domínio da mesma legislação.

Também não pode duvidar-se de que um e outro recaíram sobre a mesma questão fundamental de direito, a emissão criminosa de cheques prevista nos artigos 23.º e 24.º do Decreto 13004, sendo o último referido no artigo 2.º do Decreto-Lei 182/74, de 2 de Maio.

E um e outro dos referidos acórdãos assentaram sobre soluções opostas.

Com efeito, enquanto no Acórdão de 4 de Dezembro de 1944 se decidiu que é material ou de resultado o crime de emissão de cheque sem cobertura do artigo 23.º do Decreto 13004, pelo que pode ser elidida a presunção de dolo neste artigo estabelecida, ou seja, que para a verificação do crime se exige um certo resultado, que o sacador ou emitente do cheque actuou com a intenção de defraudar os beneficiários e, consequentemente, com dolo específico. No Acórdão de 10 de Janeiro decidiu-se que a emissão do cheque sem provisão não é um crime de resultado, não é necessário que o sacador o emita para prejudicar os beneficiários e, em consequência, a circulação do cheque como meio de pagamento e moeda boa para o realizar. Basta o perigo de lesão de interesse digno da tutela jurídica para que, de forma presumida, se consuma o crime de emissão de cheque sem cobertura.

Trata-se, pois, de um crime de perigo abstracto, bastando para a integração do elemento subjectivo o simples dolo genérico, ou seja, a vontade de emitir o cheque com a consciência da falta ou insuficiência de provisão e da ilicitude de tal conduta.

Pode, assim, concluir-se que os dois acórdãos estão efectivamente em oposição sobre a mesma matéria de direito, no domínio da mesma legislação, sendo de presumir o trânsito em julgado do acórdão proferido anteriormente ao recorrido.

Bem se decidiu, pois, a questão preliminar, entendendo-se que havia oposição de acórdãos justificativa de recurso ordinário para o tribunal pleno.

Nada obsta, pois, a que se aprecie o objecto do recurso.

O cheque é um título de crédito, com as características da literalidade e autonomia que revestem os demais. Supõe um depósito bancário. Com efeito, o cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque (artigo 3.º da L. U.). Traduz-se, a final, numa ordem de pagamento dada pelo sacador ao banco pagável a favor de determinada pessoa é transmissível sacado a favor do tomador. O cheque estipulado por via de endosso, que transmite todos os direitos resultantes desse cheque (artigo 14.º e 17.º da referida lei).

Destina-se a funcionar como meio de levantar e transferir dinheiro, a efectuar pagamentos a terceiros. É, como se diz na portaria do Ministério das Finanças de 21 de Fevereiro de 1953, «um dos principais títulos de crédito destinado a realizar na economia nacional larga e proveitosa função no plano das liquidações e facilidades de pagamentos, pela redução das exigências de circulação». Traduz-se num meio de movimentação de fundos e capitais e de evitar despesas que o pagamento em dinheiro representaria, quer quanto à contagem, quer quanto ao selo de quitação.

É, sintetizando, uma ordem de pagamento destinada a circular como se de moeda se tratasse e, em consequência, fiduciariamente e com poder liberatório.

Para o preenchimento cabal de tais fins, necessário se tornava adoptar medidas de protecção jurídico-penal do cheque que assegurassem o direito patrimonial dos tomadores ou beneficiários da sorte, que a sua boa fé e confiança não ficassem iludidas com a recusa do pagamento por falta da provisão bancária quando apresentado, para o efeito, no banco sacado ou através da câmara de compensação e, predominantemente, o interesse geral e público da respectiva circulação fiduciária com poder liberatório.

Para assegurar essa tutela jurídica foi publicado o Decreto-Lei 13004, de 12 de Janeiro de 1927, que, além do mais, estabelece:

Art. 23.º É considerada criminosa a emissão de um cheque que, apresentado a pagamento no prazo do artigo 12.º do presente decreto-lei (hoje artigo 29.º da L. U.), não foi integralmente pago por falta de provisão.

Art. 24.º Ao sacador de um cheque cujo não pagamento por falta de provisão tiver sido verificado, nos termos e no prazo prescritos nos artigos 21.º e 22.º do presente decreto (hoje artigo 40.º n.os 2 e 3, daquela lei), será aplicada, a pedido do portador do cheque, a pena de seis meses a dois anos de prisão correccional.

Por razões de política criminal e natureza económica, designadamente como se diz no relatório «para intensificar o uso do cheque como meio de pagamento e de impedir a saída abusiva de fundos do sistema bancário», foi publicado o Decreto-Lei 182/74, de 2 de Maio, que dispôs no seu artigo 2.º: «O crime de emissão de cheque sem provisão previsto no Decreto 13004, de 12 de Janeiro de 1927, passa a ser punido com a pena de dois a oito anos de prisão maior.» E a tanto se circunscreve a tutela jurídico-penal do cheque.

Nestes termos, a emissão do cheque sem provisão traduz a violação de um interesse juridicamente tutelado.

Só que, em teoria jurídico-penal, para a estruturação do facto típico se exige, por vezes, a lesão efectiva do interesse juridicamente tutelado: por outras, contenta-se a lei com a coloração desse interesse em simples perigo de lesão. E temos assim os crimes de lesão e os crimes de perigo. Neste segundo caso pode a lei exigir a verificação efectiva do perigo de lesão e teremos, neste caso, um delito de perigo concreto ao pressupor esse perigo de lesão, e estaremos face a um delito de perigo presumido ou abstracto (cf. o Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 287).

Mas será o crime de emissão de cheque sem provisão um crime de dano ou um crime de perigo e, neste último caso, um crime de perigo concreto ou um crime de perigo presumido ou abstracto? A resposta terá de encontrar-se na letra e no espírito da lei que acima se enunciou e estabelece a protecção jurídico-penal do cheque.

Ora, após longo e exaustivo trabalho jurisprudencial que a doutrina não descurou, chegou-se a um consenso, por assim dizer geral, e neste Supremo Tribunal de Justiça uniformemente aceite, de que o tipo legal de crime definido nos artigos 22.º e 23.º do Decreto-Lei 13004 se preenche com os elementos seguintes que essencialmente o integram: preenchimento do cheque com a assinatura do sacador; a falta ou insuficiência de fundos no banco sacado; a entrega do cheque ao tomador ao beneficiário. Estes são os elementos objectivos. São seus elementos subjectivos: o conhecimento por banda do sacador ou emitente daquela falta ou insuficiência de fundos; a vontade de praticar o facto, sabendo que o mesmo é proibido, ou seja, a consciência da falta de provisão e da ilicitude da conduta.

Deste requisitório podem extrair-se várias conclusões.

A simples subscrição do cheque sem provisão não integra a previsão legal de emissão de cheque sem cobertura. É necessário que ele saia do poder do sacador ou emitente e entre na esfera patrimonial do tomador ou beneficiário e no seu poder da livre disposição. A actividade criminosa do sacador emitente consuma-se com essa entrega. Não é necessária qualquer lesão de interesse juridicamente protegido. Logo não é um crime de dano. Mas criou-se um perigo de lesão de interesses juridicamente protegidos. Trata-se, consequentemente, de um crime de perigo. Ele consuma-se, independentemente de qualquer resultado no mundo exterior ou evento. Mas será necessário que se crie um perigo concreto? Entregue ao tomador pelo emitente um cheque por ele subscrito sem fundos ou com fundos insuficientes no banco sacador, para cobrir a ordem de pagamento, logo ficou criado o perigo de circular fiduciariamente como título de crédito transmissível, por via de endosso, como meio de pagamento e sem poder liberatório, defraudando os fins de protecção visados pelo sistema jurídico-penal de tutela. Pressupõe-se ou presume-se o perigo de lesão dos interesses juridicamente protegidos quando o agente pratica o facto que constitui o crime, sabendo que o é.

Por isso é de concluir que o crime de emissão de cheque sem provisão é um delito de perigo presumido ou abstracto.

E assim sendo, não é necessária a existência do propósito ou intenção de prejudicar, defraudar por parte do emitente do cheque para a estruturação do facto típico, ou seja, o dolo específico. É suficiente o dolo genérico, a intenção do agente de praticar o facto que constitui o crime, sabendo que o é, o mesmo que é dizer, a consciência da falta de provisão e da ilicitude da conduta.

A apresentação do cheque a pagamento no prazo legal e a oposição da nota da falta ou insuficiência de provisão são actos posteriores à consumação do crime.

A actividade do emitente do cheque cessou com a entrega dele ao tomador. É este que vai apresentá-lo a pagamento no banco sacado ou através da comarca de compensação, os quais, na falta ou insuficiência de provisão, aporão a referida nota.

Como manifestamente resulta do texto do artigo 24.º do Decreto-Lei 13004, não são elementos integrantes do crime, mas simples condições objectivas da punibilidade.

Há que observá-los se o portador do cheque pretender dar conhecimento do facto em juízo para efeitos de procedimento criminal.

No cheque pagável à vista considera-se como não escrita qualquer menção em contrário.

O cheque apresentado a pagamento, antes do dia indicado como data da emissão, é pagável no dia da apresentação (artigo 28.º da L. U.).

Nestes termos, os cheques não são documentos de constituição da dívida ou da garantia de incumprimento de obrigações. Eles traduzem sempre uma ordem de pagamento dada pelo sacador ao banco sacado que só a pode recusar na falta ou insuficiência de fundos (artigo 3.º da lei citada).

E deve cumprir ordem no dia da apresentação, mesmo que anterior seja, pretende dizer-se, mesmo que seja antes do dia indicado como data da emissão.

É sempre um meio de pagamento que, como tal, a lei acautela e defende no interesse do tomador e no geral é comum pela fé pública que o cheque tem de ter para preenchimento da sua função jurídico-económica.

Também não significa ausência de dolo pelo lado do sacador emitente o conhecimento antecipado do tomador de que o cheque não tem provisão.

É que tal elemento subjectivo consiste, justamente, no conhecimento ou consciência dessa falta e da ilicitude. Não é só o interesse do tomador que está em causa, mas também, e predominantemente, o geral e público da circulação do cheque, como meio de pagamento e demais funções. Quando muito poderá entender-se que emitente e tomador se concluíram no sentido de frustrar a função económico-jurídica do cheque, fazendo este seu o dolo daquele (ut Acórdão da Relação de Lisboa de 25 de Outubro de 1974, sumariado no Boletim, n.º 340, p. 264).

A mesma doutrina é de entender aplicável ao tomador que, conhecendo a falta de provisão do cheque emitido a seu favor e devidamente entregue, se tenha comprometido perante o emitente, igualmente sujeito passivo dessa aplicação, e, por escrito a só o apresentar a pagamento depois de verificada determinada condição suspensiva.

Para além das razões já aduzidas, é manifesto que o consentimento dado pelo tomador, na hipótese do ofendido, a semelhante conceito, para além de defraudar as funções económica-jurídicas do cheque e os interesses que, com a tutela, jurídica se visa acautelar, é juridicamente irrelevante.

Já se decidiu, com efeito, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Março de 1973, no Boletim, n.º 225, p. 165, que «no crime de emissão de cheque sem provisão não deixa de se verificar a incriminação pela circunstância de o tomador ter sido informado da falta de provisão, uma vez que o cheque é um título destinado à circulação, e outros interesses além dos do tomador são ou podem ser lesados».

Sem considerar mesmo o que se dispõe no n.º 5 do artigo 29.º do Código Penal, o consentimento do ofendido só tem relevância nos precisos termos do artigo 340.º e seus números do Código Civil. É em especial necessário que o consentimento do ofendido no acto lesivo verse sobre direitos de que seja portador exclusivo e, em consequência, disponíveis cf. o Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, II, 23).

Mas não é manifestamente o caso. O consentimento do ofendido no acto lesivo do seu interesse - emissão e entrega de um cheque sem provisão com o seu conhecimento de que a não tinha - não versa sobre direitos de que seja titular exclusivo. Ora, o interesse jurídico que com a incriminação tutelam os artigos 23.º e 24.º do Decreto 13004 não é apenas o patrimonial dos tomadores ou beneficiários, mas antes o interesse público e geral da circulação do cheque como meio de pagamento para preenchimento dos fins da redução de circulação fiduciária da moeda e saída de fundos do sistema bancário.

Logo não obsta à incriminação o conhecimento antecipado do tomador de que o cheque não tem provisão e mesmo o compromisso tomado de mútuo acordo e por escrito de que o cheque só seria apresentado a pagamento depois de verificada determinada condição suspensiva.

Tais considerações não ficam invalidadas pelo facto de o artigo 24.º do falado Decreto 13004 fazer depender o procedimento criminal da denúncia do portador do cheque.

Tal não significa que o interesse patrimonial do portador do cheque sobreleve o geral do preenchimento total da sua função económico-jurídica.

É pura questão de política criminal. Procurou-se, por um lado, incentivar o uso do cheque como meio de pagamento, dando aos portadores para lhes captar a confiança a garantia da aplicação de severas penas para os emitentes que lançassem na circulação cheques sem provisão. Mas, por outro lado, e prevenindo a hipótese de recusa do pagamento por falta de provisão, procurou-se uma solução conciliatória que não comprometesse irremediavelmente o interesse patrimonial do tomador e a liberdade do emitente. Consistiu precisamente essa solução em deixar o procedimento criminal dependente da denúncia do portador, reservando-lhe o seu perdão ao emitente remisso que honrar a ordem de pagamento, efectuando-o antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, caso em que fica extinto tal procedimento (artigo 125.º, n.º 4.º, e § 6.º do Código Penal).

Mas não é isenta de críticas tal solução. Facilita, sobretudo, em prejuízo do interesse geral da circulação do cheque como meio de pagamento, circulação eminentemente fiduciária, frequentes convívios entre o portador e o emitente do cheque, em que aquele, para obviar ao prejuízo total ou parcial, dá quitação por quantias inferiores acompanhadas do perdão.

Mostra-se, assim, que bem se decidiu no acórdão recorrido, considerando o crime de emissão de cheque sem provisão como um delito de perigo presumido ou abstracto com as consequências daí adversientes.

Nega-se, por todo o exposto, provimento ao recurso, condenando-se o recorrente em 3500$00 de imposto de justiça e 2000$00 de procuradoria.

E para resolução do conflito de jurisprudência lavra-se o seguinte assento:

O crime de emissão de cheque sem cobertura é um crime de perigo, para cuja consumação basta a consciência da ilicitude da conduta e da falta da provisão para a ordem do pagamento dada.

Lisboa, 20 de Novembro de 1980. - Augusto de Azevedo Ferreira - António Acácio de Oliveira Carvalho - Francisco Bruto da Costa - Rodrigues Bastos - Daniel Ferreira - Abel Campos - António Furtado dos Santos - Henrique da Rocha Ferreira - Manuel Arêlo Ferreira Manso - Avelino da Costa Ferreira Júnior - Aníbal Aquilino Ribeiro - Carlos Alberto da Costa Soares - Rui Corte Real - Alberto Alves Pinto - Sebastião de Barros e Sá Gomes - Amílcar Moreira da Silva - José Henriques Simões - João Augusto Pacheco e Melo Franco - João Solano Viana - Orlando de Paiva Vasconcelos de Carvalho - Joaquim Augusto Roseira de Figueiredo - José Luís Pereira - Américo Fernando de Campos Costa - Manuel Santos Victor.

Está conforme.

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Março de 1981. - O Secretário, Manuel Fernandes Júnior.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/1981/04/13/plain-202323.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/202323.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1927-01-12 - Decreto 13004 - Ministério da Justiça e dos Cultos - Direcção Geral da Justiça e dos Cultos - 2.ª Repartição

    Regula a emissão, o pagamento e o uso de cheque. Disciplina a sua natureza e forma, a sua transmissibildade por endosso, a responsabilidade pelo pagamento, respectivo pagamento e prescrição de acções.

  • Tem documento Em vigor 1974-05-02 - Decreto-Lei 182/74 - Junta de Salvação Nacional

    Determina a punição com multa equivalente ao décuplo do respectivo valor, com o mínimo de 10000$00, pela não aceitação de cheques apresentados como meio de pagamento e determina que passa a ser punido com a pena de dois a oito anos de prisão maior o crime da emissão de cheque sem cobertura previsto no Decreto n.º 13004, de 12 de Janeiro de 1927.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2008-10-27 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 9/2008 - Supremo Tribunal de Justiça

    Fixa jurisprudência no seguinte sentido: Verificados que sejam todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito, integra o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica ao banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a re (...)

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