O Ministério Público interpôs recurso extraordinário, para fixação de jurisprudência, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Junho de 1992, no processo 381/92, 3.ª Secção, alegando que [ao decidir que - se depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacado recusa o pagamento e, no verso do título, lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador comete um crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.os 1, alínea b), e 2, do Código Penal (CP) de 1982] ele se encontra em oposição, sobre a mesma matéria de direito e no domínio da mesma legislação, com o Acórdão da mesma Relação proferido em 26 de Fevereiro de 1992, no processo 880, 1.ª Secção [já que este qualificou a mesma conduta do sacador apenas como crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do citado Código].
O acórdão de fl. 25 deu por verificada a alegada oposição de julgados e determinou o prosseguimento do recurso, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código de Processo Penal (CPP).
Cumprido o disposto no n.º 1 do artigo 442.º do CPP não foram oferecidas alegações, limitando-se o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto a referir, no requerimento a fl. 29, que a do acórdão recorrido se lhe afigura ser a solução correcta.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Os acórdãos (recorrido e fundamento) foram proferidos durante a vigência do CP de 1982 e respeitam, ambos, a factos ocorridos nesse período, mas antes da entrada em vigor do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro.
Assim, a questão coloca-se nos seguintes termos:
Se, na vigência do CP de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei 454/91, depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacado recusa o pagamento e, no verso do título, lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador comete o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.os 1, alínea b), e 2, ou apenas o previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do CP de 1982? Solução do acórdão recorrido (transcrição parcial):
«O documento através do qual o arguido comunicou ao banco o 'extravio' dos cheques não é falso. É antes um documento verdadeiro, escrito pelo arguido com o conteúdo correspondente à vontade do declarante. Nele não foi introduzida qualquer alteração nem o pensamento do seu autor foi adulterado. O que acontece é que o que nele está escrito não corresponde à realidade.
Os cheques não foram extraviados, em contrário do que nele se afirma.
Ora, 'a falsidade documental resolve-se em desconformidade entre o documento e a declaração. Mas a declaração falsa, fielmente documentada, não significa documento falso e não é falsidade; o documento que está de harmonia com a declaração e, no entanto, contradiz a realidade não sofre de falsidade intelectual. O seu vício pode ser o de simulação, se se verificarem os pressupostos desta figura [...]' De modo que uma alternativa se põe: ou a comunicação feita pelo arguido ao banco teve a consequência de inserir falsamente nos cheques um facto juridicamente relevante sem que por tal aqueles títulos de crédito deixem de o ser e então está correcta a qualificação jurídica emanada da 1.ª instância ou terá de concluir-se que não há crime algum.
[...] [...] a questão não pode dizer respeito ao documento dirigido ao banco a comunicar o falso extravio.
Esse, como se viu, não é falso. A questão está, sim, em saber se essa comunicação inseriu nos cheques alguma falsidade juridicamente relevante [...] Se assim acontecer, o facto está claramente previsto no artigo 228.º, n.os 1, alínea b), e 2, do Código Penal.
Ora a inserção aludida na mencionada alínea b) difere de qualquer outra alteração das mencionadas na alínea a) por nesta última o documento ser afectado na sua materialidade, ao passo que naquela o documento permanece inalterável.
Esta inserção tanto pode ser coeva da emissão do documento como posterior.
O que tem é que ser juridicamente relevante.
[...] Por outro lado, não é necessário que o agente faça materialmente a alteração, podendo limitar-se a ordenar a sua execução [...] O banco sacado, que em princípio é obrigado a pagar os cheques, não o fará se lhe for comunicado o extravio, o que, naturalmente, beneficia o sacador.
Daí a relevância jurídica da comunicação.
Ora, essa comunicação, ao ser exarada no cheque, não correspondendo à realidade, faz constar dele uma falsidade. E embora não contendendo com os seus elementos essenciais, o documento continua a valer como cheque desde que obedeça aos requisitos da LUC, designadamente o seu artigo 1.º - não o afectando hoc sensu na sua materialidade, afecta-o na sua finalidade primária e que vai subjacente à emissão daquele título de crédito: o pagamento à vista (artigo 28.º da LUC), assim frustrando, não uma simples expectativa, mas um autêntico direito do portador, derivado do chamado princípio da incorporação [...] E assim, a oposição pelo banco da expressão 'extravio', embora não seja elemento de definição do cheque, não deixa de o afectar na sua função legal de título de crédito.
E se é certo que não se concebe um cheque sem um suporte material (o impresso em que constem os elementos do artigo 1.º da LUC), sempre terá de aceitar-se que, em sentido lato, aquela aposição de 'extravio' operada pelo banco se insere num 'cheque'.
Tudo para concluir que a actuação do arguido se subsume na previsão do artigo 228.º, n.os 1, alínea b), e 2, do Código Penal [...]» Diversa, porém, a do acórdão fundamento (transcrição parcial):
«O CP vigente estabelece no artigo 229.º um conceito de documento para efeitos penais.
[...] Parece-nos que neste artigo cabe a declaração feita e assinada e endereçada ao banco sacado, dando conta falsamente do extravio do cheque, tratando-se de um documento particular a que alude o CP anterior.
Tal declaração dando conta do extravio não colide com o próprio cheque ou com os seus elementos essenciais.
O facto do 'extravio' foi aposto pelo funcionário bancário, em virtude da declaração escrita do emitente. E foi essa causa a razão do não pagamento e de modo algum influi no crédito do título que a lei lhe quis conferir, sendo certo que na data de recebimento da declaração feita pelo emitente aí findou o ciclo da vida do título.
Assim, houve falsificação da declaração aposta na carta, que, recebida pelo banco, impediu o pagamento do cheque. Deste modo o crime de falsificação integra-se no n.º 1, alínea b), e não no n.º 2 do artigo 228.º em causa, como tem sido o entendimento desta Relação em vários dos seus arestos.» Sobre a mesma questão, este Supremo Tribunal pronunciou-se no sentido:
a) Do acórdão fundamento (Acórdãos de 29 de Novembro de 1989 e 2 de Maio de 1990, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, n.os 391, p. 277, e 397, p. 322, respectivamente, e de 14 de Maio de 1997, no processo 36/96, 3.ª Secção);
b) Do acórdão recorrido (Acórdãos de 26 de Março de 1992, 30 de Setembro de 1992, 28 de Outubro de 1992, 25 de Março de 1993, 27 de Outubro de 1993 e 30 de Novembro de 1993, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, n.os 415, p. 283, 419, p. 476, 420, p. 298, 425, p. 310, 430, p. 272, e 431, p.
280, respectivamente);
c) De que se verifica, apenas, um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 24.º do Decreto 13 004 (Acórdãos de 23 de Outubro de 1991, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 410, p. 382, e na Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, 1991, t. IV, p. 43, e de 7 de Julho de 1993, no processo 43 127, 3.ª Secção);
d) De que se verifica um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 313.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 (Acórdão de 3 de Maio de 1989, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 387, p. 277).
I - Do crime de falsificação de documentos
Código Penal de 1982:
«Artigo 228.º
[...]
1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado, ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo:a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outrem para elaborar um documento falso;
b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante;
c) Usar um documento a que se referem as alíneas anteriores falsificado ou fabricado por terceiros;
d) Intercalar documento em protocolo, registo ou livro oficial sem cumprir as formalidades legais;
será punido com prisão até 2 anos e multa até 60 dias.
2 - Se os factos referidos nas alíneas a) a c) do número anterior disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a letra de câmbio, a documento comercial transmissível por endosso ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 244.º, a pena será de prisão de 1 a 4 anos e multa até 90 dias.
3 - Se os factos referidos nos números anteriores forem cometidos por funcionário, no exercício abusivo das suas funções, a pena será de 1 a 6 anos e multa até 120 dias.
4 - Nos casos de pequena gravidade, o tribunal pode aplicar tão-só a multa até 60 dias na hipótese do n.º 1, até 90 dias na hipótese do n.º 2 e até ao seu máximo legal na hipótese do n.º 3 deste artigo.
5 - A tentativa é punível.
Artigo 229.º
[...]
1 - Entende-se por documento a declaração compreendida num escrito, inteligível para a generalidade ou um certo círculo de pessoas que, permitindo reconhecer o seu emitente, é idónea a provar um facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente.2 - À declaração corporizada no escrito é equiparada a registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico.
3 - A documento é igualmente equiparável o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar um facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.» 1 - Contrariamente à civilística [artigo 362.º do Código Civil (CC)] - em que a tónica é colocada na estrutura representativa do documento, na sua autoria humana e no nexo teológico existente entre esta e aquela («qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto») -, a inovadora definição do artigo 229.º, n.º 1, do CP de 1982 não diverge, essencialmente, do conceito tradicional de documento (v. José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, 1984, p. 106, e Helena Moniz, O Crime de Falsificação de Documentos, Almedina, 1993, pp.
154 e segs.). Com efeito, a forma escrita da declaração (a que se equipara, no n.º 2 do mesmo preceito, a registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico), a destinação e a idoneidade probatórias bem como o carácter juridicamente relevante dos factos a provar constituem, todos eles, conjugadamente, requisitos essenciais do conceito legal em análise que consagra, inequivocamente («compreendida» ou «corporizada»), a teoria da incorporação da declaração.
1.1 - A declaração é a expressão de um pensamento humano - tal como foi concebida por Broadman, segundo Malinverni in Enciclopédia del Diritto, Giuffrè Editore, 1966, vol. XIII, p. 624 - de natureza cognoscitiva [no conceito, não cabem, portanto, as meras manifestações de sentimentos, emoções, afectos e sensações (cf. Malinverni, ob. cit. e loc. cit.)], que, como acto, pode ser de vontade - «se o declarante prossegue um dado efeito que se traduz na criação, modificação ou extinção de uma relação jurídica, de um direito subjectivo ou de um status, enquanto reconhecido validamente pela lei» - ou de ciência - «manifestação de uma cognição, representação ou convencimento próprio em ordem a uma dada situação» (cf. Messineo, citado por J. Gonçalves Sampaio in A Prova por Documentos Particulares, Almedina, 1987, p. 51, n. 1). A inteligibilidade do seu conteúdo e a recognoscibilidade do seu autor são requisitos essenciais que não suscitam grandes dúvidas e que, no caso, não justificam maiores desenvolvimentos.
1.2 - Sobre a idoneidade e destinação probatórias do documento, relativamente a facto juridicamente relevante, cumpre referir que a destinação não tem de ser intencional ou imediata e que quer esta quer aquela quer ainda a própria relevância jurídica do documento devem apresentar-se - quando consideradas conjugadamente e não, apenas, cada uma de per si, isoladamente - como verosímeis (cf. Malinverni, ob. cit., pp. 634-635).
Estes requisitos afastariam, definitivamente, qualquer dúvida (que não se conhece, note-se) sobre a especial capacidade do documento que, no tráfico jurídico, assume uma relevância tal que justifica a sua protecção penal: a sua capacidade probatória.
Partindo das distinções de Goldschmidt (v. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 1950, p. 362) e Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1956, I, pp. 211-212), entre a força probatória formal e a material (respeitantes, a primeira, à autenticidade do documento e, a segunda, ao seu conteúdo, às declarações nele exaradas), e de Carnelutti, entre a força probatória próxima e a remota (ou da prova que é directamente deduzida do documento e da que só indirectamente deste transluz), Cavaleiro Ferreira sintetiza: «A capacidade probatória próxima é a do próprio documento, e compreende a força probatória formal e material, isto é, a materialidade dos actos e declarações referidos no conteúdo do documento; a capacidade probatória remota é a da própria declaração, enquanto acto, como testemunho ou confissão, e abrange a veracidade do conteúdo daquelas declarações» («Prova documental e prova indiciária em processo penal», in Scientia Iuridica, Março-Abril de 1968, t. 17, n.º 90, pp. 289-290).
A razão por que os documentos assumem tão grande importância no tráfico jurídico-probatório decorre, nas palavras de Vaz Serra, citando Ferrucci, «da circunstância de eles servirem para 'conservar e reproduzir uma determinada representação de um facto fixado na presença deste e, assim, em certo sentido, objectivada'. Daí a sua especial força probatória, que é muita vezes plena, e o representarem eles 'um elemento de segurança que nenhum outro meio de prova é capaz de fornecer a priori. Todos os outros meios de prova, na verdade, tendem a dar uma representação a posteriori dos factos investigados; são por isso mesmo baseados na memória e, portanto, numa valoração mais ou menos arbitrária e, em todo o caso, tipicamente subjectiva, de acontecimentos do passado, ainda que próximo'» («Provas - Direito probatório material», in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 111, p. 70, n. 509).
1.3 - Fixando o conceito de documento e referindo-se, depois, entre outros, aos de «identificação» (que também define, em termos amplos, no artigo 235.º, n.º 3) e ao «autêntico ou com igual força» (artigo 228.º, n.º 2), o CP de 1982, rigorosamente, não contém uma classificação própria de documentos.
Pode entender-se, por isso, que acolhe, além do mais, a estabelecida no artigo 362.º, n.º 1, do Código Civil (CC), para os documentos escritos, em função da sua proveniência [autênticos, os exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública (cf. n.º 2, 1.ª parte), e particulares, todos os outros (cf.
n.º 2, 2.ª parte), os quais, quando confirmados perante o notário, nos termos prescritos pelas leis notariais, são havidos por autenticados (cf. n.º 3)] e com vista à definição da sua força probatória (cf. artigos 371.º, 376.º e 377.º também do CC).
[Consagrando a velha máxima «scripta publica probant se ipsa», o CC reserva a presunção de autenticidade para os documentos provenientes da autoridade ou oficial públicos, quando estiverem subscritos pelo autor com assinatura reconhecida por notário ou com o selo do respectivo serviço (cf. artigo 370.º, n.º 1). Porém, a autenticidade, no sentido de genuinidade ou veracidade formal (ou, ainda, de legitimidade, como preferem Rodriguez Devesa/Serrano Gomez, Derecho Penal Español, Parte Especial, 18.ª ed., Dykinson, 1995, p. 979), em si mesma, não é qualidade privativa dos documentos legalmente classificados, entre nós, de «autênticos» («públicos», no direito alemão, italiano e espanhol); genuíno é, afinal, todo o documento cujo autor é a pessoa que nele figura como tal (coincidência entre autor real e aparente), quer seja exarado nos termos da 1.ª parte (v., também, artigo 369.º), quer seja dos compreendidos na 2.ª parte, ambas do n.º 2 do artigo 362.º] Das muitas classificações doutrinais (v., v. g., Galvão Teles, Manual dos Contratos em Geral, 3.ª ed., 1965, n.os 60 e 61, e Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Coimbra, 1939, vol. XIII, n.º 2083), a proposta por Goldschmidt e Carnelutti - entre documentos dispositivos ou constitutivos e narrativos ou informativos, consoante contêm, respectivamente, uma declaração de vontade ou uma declaração de ciência - é perfilhada pela generalidade dos nossos autores (cf. Cunha Gonçalves, ob. cit. e loc. cit., Alberto dos Reis, ob. cit. e vol. cit., pp. 354-355, Manuel de Andrade, ob. cit., p. 209, Vaz Serra, «Provas», cit., p. 74, e Cavaleiro Ferreira, «Depósito bancário. Simulação. Falsificação. Burla», in Scientia Iuridica, t. XIX, n.os 103-104, Abril-Junho de 1970, p. 298, e «Abuso de confiança, peculato, falsificação e furto de documento, descaminho - Problemas de autoria material e de autoria moral, de continuação criminosa, de prescrição e de concurso», in Direito e Justiça, vol. IV, 1989-1990, p. 259).
2 - O objecto do crime de falsificação em apreço é, precisamente, o documento enquanto meio de prova de facto juridicamente relevante, isto é, de facto susceptível de desencadear consequências jurídicas ou, na definição de Liszt, que cria, modifica ou extingue uma relação jurídica.
Quanto ao bem jurídico tutelado pela incriminação (não sendo possível, por óbvias razões de ordem prática, ir mais além, num tema que, pela importância de que se reveste, tem merecido profunda atenção de todos os autores - cf., designadamente, Figueiredo Dias, «Os novos rumos da política criminal», in Revista da Ordem dos Advogados, ano 43, 1983, pp. 11 e segs., Costa Andrade, «Contributo para o conceito de contra-ordenação», in Revista de Direito e Economia, ano VI-VII, 1980-1981, pp. 93 e segs., e Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra Editora, 1991, pp. 42 e segs., Faria Costa, O Perigo em Direito Penal, Coimbra Editora, 1991, pp. 182 e segs., Conceição Cunha, Constituição e Crime, UCP, Porto, 1995, pp. 29 e segs., e Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra Editora, 1995, pp. 259 e segs. -, consigna-se, tão-somente, que o bem jurídico se entende como «unidade de aspectos ônticos e axiológicos, através da qual se exprime o interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso valioso», tal como o define Figueiredo Dias, «Os novos rumos», cit., p. 15), ele não é tanto a fé pública dos documentos (v., entre nós, Luís Osório, Notas ao Código Penal Português, França & Arménio, Coimbra, 1917, pp. 432, 436, 438 e 442, Beleza dos Santos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 70.º, p. 257, Ferrer Correia e Eduardo Correia, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 86.º, p. 84, e Cavaleiro Ferreira, Obra Dispersa, I, 1933-1959, UCP, p. 163) - a qual, ao menos na sua acepção mais corrente, parece configurar-se mais como um seu atributo material e, ainda assim, não de todos mas, apenas, de alguns (os autênticos e os autenticados) -, mas, antes, «a verdade intrínseca do documento enquanto tal» (cf. F. Dias e Costa Andrade «O legislador de 1982 optou pela descriminalização do crime patrimonial de simulação», Colectânea de Jurisprudência, ano VIII, t.
III, p. 23) ou «a verdade da prova documental enquanto meio que consente a formulação de um juízo exacto, relativamente a factos que possam apresentar relevância jurídica» (cf. Malinverni, ob. cit., pp. 632-633).
4 - A falsificação, na definição mais corrente e adoptada, entre outros, por Mirto, Sotgiu, Antolisei (segundo Lebre de Freitas, ob. cit., p. 103), Cavaleiro Ferreira (cf. Obra Dispersa, vol. cit., p. 163) e Beleza dos Santos (in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 68.º, p. 374), consiste na alteração, adulteração ou viciação da verdade - inmutatio veri [segundo informa Cuello Calón (Derecho Penal, t. II, Parte Especial, 7.ª ed., Bosch, Barcelona, 1949, p. 224, n. 2), na VIII Conferência Internacional para a Unificação do Direito Penal, Bruxelas, Julho de 1947, entre os vários textos recomendados, figurava a definição da falsidade documental, também, como «alteração da verdade cometida com consciência de causar um prejuízo num documento destinado ou adequado a provar um direito ou um facto que origine consequências jurídicas» (sublinhámos)]. Porém, analisando-se numa relação de conformidade entre a realidade e a sua representação (adaequatio intellectus et rei, conformitas intellectus cognoscentis cum re cognita, na definição de Isaac Israelli, perfilhada por São Tomás de Aquino, segundo Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, Ática, 1961, p. 369, n. 1), a verdade é inalterável. A falsidade não será, pois, a verdade alterada, mas, sim, a não-verdade (o seu contrário, como viria a reconhecer Cavaleiro Ferreira, «Depósito bancário», cit., 1970, p. 297), ou seja, a relação de desconformidade entre a realidade e a sua representação. Falsificar consistirá, portanto, em, colocando no lugar da realidade uma aparência diversa ou afirmando que é o que não é, ou que não é o que é, determinar um juízo ou representação que não corresponde ou não se adequa à própria realidade (não é outro o giudisio sbagliato a que se refere Malinverni, ob. cit., p. 633).
Na falsificação documental distingue-se a material (suposição total ou fabrico de documento antes inexistente, não escrito ou criado pela pessoa que nele se declarou havê-lo feito, ou viciação - por supressão e ou aditamento - dos termos de um preexistente) da ideológica (desconformidade entre o documento genuíno e o que ele documenta).
Helena Moniz toma a segunda em sentido amplo e, nela, distingue a falsidade intelectual propriamente dita («desconformidade entre o documento, no sentido de declaração documentada, e a declaração») e a falsidade em documento («o documentado, embora conforme com a declaração, incorpora, porém, um facto falso juridicamente relevante, pois o facto declarado não corresponde à realidade»), considerando que, enquanto a da alínea a) contempla a primeira - além da material -, a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º respeita, exclusivamente, à segunda (ob. cit., pp. 227-230).
Já Figueiredo Dias entende que a falsa declaração em documento regular não constitui falsificação de documento e, por essa razão, na Comissão de Revisão do CP de 1982 propôs a eliminação da alínea b) do artigo submetido à apreciação sob o n.º x22, alínea cuja redacção era idêntica à da alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º do CP de 1982 (cf. Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, acta 26, pp.
297-298) [proposta que, aliás, não fez vencimento - cf. acta 27, p. 302, artigo 257.º, n.º 1, alínea b), do projecto, p. 625, todas da última obra referenciada, e artigo 256.º, n.º 1, alínea b), do CP de 1995], em coerência com o que, com Costa Andrade, havia sustentado a propósito da verdade protegida pelo crime de falsificação de documentos: «Em primeiro lugar, a verdade no que toca à autenticidade e genuinidade da sua origem e proveniência, que será frustrada com a chamada falsidade material. [...] Em segundo lugar, a verdade necessária a função probatória específica do documento, isto é, a correspondência entre o documento e o que é documentado, independentemente da verdade, coerência, ou lógica no interior das expressões da vida que constituem o conteúdo ou objecto do documento.
E fala-se a este propósito da falsidade intelectual ou ideológica» («O legislador de 1982 optou pela descriminalização do crime patrimonial de simulação», Colectânea de Jurisprudência, ano VIII, t. III, p. 23). Por outro lado, o mesmo autor parece não admitir que a previsão da alínea a) do n.º 1 do citado artigo x22 («fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso») - logo, também, a da alínea a) do artigo 228.º, n.º 1, do CP de 1982, tenha a virtualidade de - contra o sustentado por Helena Moniz - abranger a falsidade intelectual, como se infere da sua advertência para a necessidade de, caso fosse eliminada a alínea b) do n.º 1, se indagar, então, «que falsidade intelectual» haveria de consagrar o Código (Código Penal - Actas, cit., p. 297).
Entre os anotadores, Sá Pereira defende que a alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º do CP de 1982 «abrange apenas a falsidade intelectual verdadeira e própria - desconformidade entre o documento e a declaração - sem se confundir com a simulação» (Código Penal, Livros Horizonte, 1988, p. 270, anotação 10.ª), Leal Henriques e Simas Santos (O Código Penal de 1982, Rei dos Livros, 1986, vol. 3, p. 147) parecem subscrever a interpretação do Ministério Público, Lisboa [de acordo com a qual, se bem a entendemos, a alínea b) respeita à falsidade ideológica em sentido amplo, abrangendo os casos que Helena Moniz classifica de falsidade intelectual própria e de falsidade em documento], e Maia Gonçalves (Código, cit., p. 489, anotação 4.ª) afirma que, na mesma alínea b), se prevê a «falsificação intelectual» ou «falsidade intelectual ou ideológica», que se verifica «quando o documento não reproduz com verdade aquilo que se destina a comprovar».
Na jurisprudência, prevalece a interpretação da referida alínea b), no sentido de que no seu âmbito cabem, efectivamente, quer os casos de desconformidade entre a declaração documentada e a realmente produzida, quer aqueles em que o documento, embora conforme com a declaração produzida, incorpora um facto que, sendo juridicamente relevante, não corresponde à realidade.
Visto os tipos de falsificação documental, pode já constatar-se que os documentos dispositivos, porque apenas representam uma declaração de vontade do seu autor (logo, uma declaração que, por não ser, por sua vez, representativa de um facto, não correspondendo à vontade real, é uma declaração de vontade falsa e não de um facto falso, como acentuam os autores italianos, que, com base nessa distinção, excluem a simulação do âmbito da falsa documentação indirecta, prevista e punida em disposição semelhante à do artigo 233.º, n.º 2, do nosso CP de 1982, segundo Helena Moniz, ob. cit., p. 198, n. 238), só podem ser objecto de falsificação material, enquanto os narrativos, consubstanciando a narração, atestação ou certificação de facto(s), são passíveis de qualquer daquelas duas modalidades de falsificação - neste sentido, Cavaleiro Ferreira, «Depósito bancário», cit., pp. 298-299, e demais autores aí citados.
A propósito, ainda, da falsificação ideológica - na sua terminologia -, Helena Moniz adverte para a provável raridade da sua prática por particulares.
Com efeito, a respectiva incriminação pressupõe a violação, pelo agente, do dever jurídico (que não simplesmente moral) de dizer a verdade. «Ora, este dever jurídico só se verifica se estiver em causa algum facto, ou relato de facto, juridicamente relevante, cuja falsidade por si só seja susceptível de vir a causar um perigo de lesão do bem jurídico em causa; quando tal acontece (e só acontece quando o documento particular, simultaneamente, é relevante como meio de prova de um direito, ou relação jurídica, e o facto é juridicamente relevante, como vimos) é que o particular deverá ser punido por falsidade em documento.» Acresce, no caso da falsificação intelectual, que, «tendo que se verificar uma divergência entre a declaração e o documentado (não se verificando uma divergência entre a declaração e a realidade), o particular só será agente do crime quando é ele próprio que redige, documenta, o facto» (ob. cit., p. 226).
5 - Face ao que dispunha o artigo 216.º do CP de 1886 («Será condenado a prisão maior de dois a oito anos aquele que cometer, por quaisquer dos modos abaixo declarados, falsificação que prejudique, ou possa por sua natureza prejudicar, terceira pessoa ou o Estado») e não obstante a posição assumida por Beleza dos Santos («Daqui se conclui que a omissão nos artigos 216.º, 217.º e 218.º de qualquer referência à intenção de prejudicar não quer dizer que ela não seja essencial para o crime, mas unicamente que ela se presume», «O crime de falsificação de títulos à ordem», in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 60.º, p. 35), parece evidente que a intenção de prejudicar [fala-se, então, de um dolo específico, isto é, de um dolo que, para além daqueles elementos gerais (o intelectual, o volitivo e o emocional), integra, também, no mesmo plano de essencialidade, um certo móbil do agente ou a sua especial intenção de, através da realização do facto-ilícito objectivo, prosseguir um determinado fim ulterior - v.
Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, I, 1985, p. 187, e Beleza dos Santos, «Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúria», in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 92.º, pp.
192-193], precisamente, porque não constava da descrição típica e porque a regra é a da irrelevância dos fins ou motivos do agente (v. Maia Gonçalves, Código Penal Português, Almedina, 5.ª ed., 1990, p. 95, e autores aí citados), não era elemento essencial do crime.
No artigo 228.º, n.º 1, do CP de 1982, pelo contrário, é expressa a exigência da «intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado» (recuperada do artigo 216.º do CP de 1852: «intenção de prejudicar a outra pessoa ou ao Estado») «ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo».
O resultado visado pelo agente (o prejuízo e ou o benefício referidos), porém, na medida em que não integra a factualidade típica, não constitui pressuposto da consumação do crime. [Por isso, porque, sendo essencial que o agente persiga um certo resultado, já não é essencial que este se produza, efectivamente - o que significa que o preenchimento do tipo subjectivo reclama a verificação cumulativa de mais elementos do que o preenchimento do tipo objectivo -, este crime classifica-se como de intenção ou de tendência interna transcendente (cf. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, trad. de Mir Puig e Muñoz Conde, Bosch, Barcelona, 1981, I, pp.
436-437).] Todavia, embora indiferente para a consumação, a circunstância da efectiva produção ou não produção daquele(s) resultado(s) não deixa de ser relevante para efeitos de determinação da pena.
Por outro lado, a falsificação documental, ainda que realizada com a intenção típica, não será punível se o documento falso for, objectivamente, insusceptível de causar prejuízo a «outrem ou ao Estado». («Non punitur falsitas in scriptura quae non solum non nociut sec nec erat apta nocere» - neste sentido, Beleza dos Santos, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 60.º, p. 34, e Antolisei, segundo Helena Moniz, ob. cit., p.
44, n. 5, que se refere incluídas na falsificação inócua não só as «situações de falsificação grosseira» - a imediata e facilmente regnoscível - como também «todos aqueles casos em que a falsificação só por si não é susceptível de prejudicar quem quer que seja».)
II - Do cheque
A Convenção, assinada em 19 de Março de 1931, em Genebra, de que a Lei Uniforme Relativa ao Cheque (LUC) constitui o anexo I - aprovada pelo Decreto-Lei 23 721, de 29 de Março de 1934, e confirmada e ratificada, com anexos e protocolo, por carta de 10 de Maio de 1934 -, entrou em vigor, em Portugal, 90 dias após 9 de Junho de 1934, data em que esta, com os instrumentos de ratificação, foi depositada no Secretariado da Sociedade das Nações (artigos 4.º e 7.º da Convenção), unicamente, com a declaração (produzida ao abrigo do disposto no artigo 10.º, 1.º parágrafo, da Convenção) seguinte: «Esta ratificação é feita por Portugal sob reserva de que as disposições da Convenção não se aplicam ao território colonial português» (v.Eduardo Lucas Coelho, Problemas Penais dos Cheques sem Cobertura, Petrony, Lisboa, 1979, pp. 149-150).
Findava, assim, um processo de cerca de 50 anos (no relatório da sessão do Instituto de Direito Internacional que teve lugar em Oxford, em 1880, já se fixava, como objectivo que se impunha prosseguir, uma legislação uniforme para «as letras de câmbio e outros valores negociáveis») de cujos passos mais importantes se destacam as sessões de Turim, 1882, Munique, 1883, Bruxelas, 1885, e Lausana, 1927, do Instituto de Direito Internacional, os Congressos Internacionais de Direito Comercial (Anvers, 1885, e Bruxelas, 1888) e de Direito Comparado (Paris, 1900), das Câmaras de Comércio e Associações Comerciais e Industriais (Liège, 1905, Milão, 1906, Praga, 1908, Boston, 1912, e Paris, 1914), da International Law Association (Londres, 1910, e Buenos Aires, 1922) e da Câmara de Comércio International (Bruxelas, 1925, e Estocolmo, 1927) e, finalmente, a Convenção da Haia, 2.ª Sessão, 1912 (v. Jacques Bouteron, Le Statut International du Chèque, Dalloz, 1934, pp. 3-81).
Decisiva, no que respeita à emancipação do cheque face à letra de câmbio e outros títulos à ordem, a Convenção da Haia interessa-nos sobremaneira porque, nas suas resoluções, se inspiraram quer o Decreto 13 004, de 12 de Janeiro de 1927 (entre nós, a primeira ordenação sistemática e que se quis completa do regime jurídico do cheque), quer o projecto que, elaborado pelo comité de peritos da Sociedade das Nações, constitui a principal base de trabalho da Conferência de Genebra.
1 - Na definição de Giorgio de Semo (cit. por Ferrer Correia e António Caeiro in Revista de Direito e Economia, n.º 4, 1978, p. 47), «o cheque é um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis: ordem de pagar à vista a soma nele inscrita».
A existência, no banco, de fundos à disposição do sacador (provisão) e a convenção expressa ou tácita segundo a qual este tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque (contrato de cheque) são pressupostos, não de validade do título, como cheque - que se mantém mesmo na falta daqueles [cf. artigo 3.º (2.ª parte) da LUC] -, mas de uma emissão regular.
Sobre a natureza jurídica do cheque não há consenso: uns vêem-no como contrato a favor de terceiro, outro como mandato, e há quem entenda que a sua transmissão envolve uma cessão de crédito (v. Sofia Galvão, Contrato de Cheque, Lex, Lisboa, 1992, Ferrer Correia e António Caeiro, in Revista de Direito e Economia, cit., pp. 458 e segs., Lobo d'Ávila Lima, Do Cheque, Livraria Profissional, pp. 23 e segs., e Manuel Gonçalves Pereira, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 71, pp. 356 e segs.).
Por agora, importa, apenas, sublinhar que, quer na Convenção da Haia quer na de Genebra, se estabeleceu acordo no sentido de a lei uniforme não tomar posição sobre tão polémica questão. Essa a razão por que, desde logo, se renunciou à formulação do respectivo conceito jurídico e se definiu o cheque mediante a mera enunciação dos seus elementos essenciais - cf.
artigos 1.º das resoluções e da LUC. [Note-se que a palavra «mandato» foi introduzida no n.º 2 do artigo 1.º da LUC em substituição de «ordem» - constante do texto apresentado pelos peritos - apenas para (nos termos da proposta de emenda que veio a ser aprovada) manter a simetria com a estipulação correspondente do artigo 1.º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças (LULL), e com o mesmo sentido com que fora ali utilizada, ou seja, como puseram em relevo os delegados de Itália e dos Países Baixos, o estritamente prático ou vulgar e não o jurídico; por isso mesmo, porque «mandato» era introduzido naquela disposição da LUC como palavra juridicamente neutra e porque a inglesa «order» também o era, concluiu-se pela desnecessidade de proceder à substituição da «inconditional order» constante do texto inglês. No relatório ficaria, aliás, consignado que, por «mandat» estar empregue «dans son sens vulgaire», «ne préjugeait en rien la nature juridique exacte du chèque» - cf. J. Bouteron, Statut, cit., pp. 219-221.] 1.1 - Na generalidade dos casos, o contrato de cheque é um contrato de adesão que se celebra também em regra, tacitamente, através da simples requisição de cheque(s), por um lado, e da sua entrega, pelo banco, ao requisitante, por outro.
No exercício dos direitos em cumprimentos das obrigações derivados do contrato, as partes devem proceder de boa fé, por força do disposto no artigo 762.º, n.º 2, do CC, ou seja, com lealdade, honestidade, fidelidade e confiança (fala-se, então, de um «dever de protecção» baseado na confiança, num dever mútuo de não prejudicar a contraparte ou numa «recíproca obrigação de diligência» - cf. Sofia Galvão, ob. cit., p. 44), pelo que (para além do mais que não nos parece oportuno, ao menos por agora, destacar) o cliente deverá aguardar os cheques com cuidado e dar imediato conhecimento ao banco da sua perda ou desapossamento ilícito (cf. os autores citados por Sofia Galvão, ob. cit. e loc. cit., n. 117 e 118, e p. 45, n.
122 e 124 a 127, Lobo d'Ávila Pinto, ob. cit., p. 126, e José Maria Pires, Direito Bancário, II, p. 231).
1.2 - Da revogação do cheque e da oposição ao pagamento.
1.2.1 - O artigo 17.º das resoluções da Haia estipulava que «a revogação do mandato contido no cheque só produz efeito depois do termo do prazo de apresentação» e que, «se não houver revogação, o sacado conserva o direito de pagar mesmo depois de findo o prazo de apresentação»; para além disso, regulava os efeitos do aviso, ao sacado, pelo sacador ou portador, sobre a perda ou a aquisição, por terceiro, na sequência de um acto fraudulento.
1.2.1.1 - Na discussão sobre a questão da revogação, o principal protagonismo foi assumido pelo delegado austríaco, Hammerschlag - na defesa da irrevogabilidade, sem excepção, durante o prazo da apresentação -, e pelo húngaro, Sichermann - pugnando pela admissibilidade da revogação com efeitos imediatos, logo que recebida pelo sacado, mas sem prejuízo da validade do cheque e do direito de regresso do portador contra o sacador e endossantes.
Em prol da sua tese, Hammerschlag invocou, essencialmente, razões de ordem prática: admitir a revogação ilimitada seria, em síntese, uma verdadeira catástrofe para o uso do cheque, na medida em que deixaria o portador, que já não tem acção directa contra o sacado, numa posição de total insegurança. À objecção de que a proibição de revogação, por falta de sanção (não prevista nas leis austríaca e alemã), não viria a ser observada - porque os bancos, com o receio de perder um cliente, acabariam por se conformar com uma revogação ilegal -, respondeu que sempre haverá sacados que compreenderão que esse receio não justifica que cometam uma acção ilegal.
Sichermann, para quem a segurança do portador não passa de uma «auréole fausse» - afinal, o sacador pode fazer «desaparecer» a provisão por outros modos -, entendia que, especialmente no caso de «perde ou vol», os interesses do banqueiro e do sacador eram mais dignos de protecção - até porque a experiência revelava como praticante inexistentes os casos de má fé na revogação - e acusava de contraditório um sistema (como o alemão) que, estabelecendo a irrevogabilidade do cheque, no prazo de apresentação, não conferisse ao portador o direito de accionar o sacado que se conformasse com uma revogação ilegal.
1.2.1.2 - A discussão sobre a questão da oposição ao pagamento foi introduzida por Sichermann, que, rematando uma exposição crítica sobre a natureza e consequências da medida a que França se reservava o direito de recorrer («É um simples escrito particular, um aviso ao portador, seja ou não o sacador alertando o sacado para a perda, 'vol', etc., e proibindo-o de pagar ao terceiro portador. [...] O aviso tem por efeito imediato impedir, obstar ao pagamento. Deste efeito principal da oposição resulta que esta é, no fundo, idêntica à revogação ou, pelo menos, 'irmã gémea' talvez mais perigosa porque dá a possibilidade de o pagamento ser impedido não apenas por uma pessoa de confiança, como é o sacador, mas por qualquer um completamente desconhecido. Ora, se se imaginar que a lei uniforme vai limitar o efeito da revogação ao tempo posterior ao termo do prazo de apresentação, qual será o resultado de tudo isso? Em nenhum lado a revogação terá efeito imediato, mas, em França, intervirá a oposição com um efeito imediato e inteiramente análogo. Uma tal solução não pode considerar-se justa.»), concluía que não havia outro remédio senão aceitar a revogação com efeito imediato ou a oposição.
Concordando com os argumentos de ordem prática de Sichermann, Schanzer (Itália) declarou que o seu país pedia a revogabilidade, pelo menos, em caso de perda, salvo se a solução fosse deixada às legislações nacionais.
Fishel (Alemanha), pronunciou-se a favor da irrevogabilidade no prazo de apresentação, chamou a atenção não só para o facto de não haver justificação para que se legislasse, unicamente, para os casos excepcionais (como eram os de perda ou «vol»), em que parecia útil admitir a contra-ordem de pagamento, como também para a circunstância de, cabendo o direito de revogação, mesmo na tese de Sichermann, apenas, ao sacador, não fazer sentido dar a este o que não se pode ou não se quer dar aos cinco ou seis endossantes seguintes; a revogabilidade, enfim, não se justifica nem é necessária, «tanto mais que, se o sacado recebe um aviso do sacador ou de um endossante, isso tem muito peso, e nunca ouvi dizer que em casos desta natureza se tenham produzido danos devido a negligência dos sacados».
Carton de Wiart (Bélgica), frisando que, em caso de perda ou «vol», era geralmente admitido um aviso ao banqueiro para o convidar a não pagar o cheque, foi ainda mais claro: «Este aviso não é propriamente uma revogação mas um alerta, um convite à prudência do sacado, para que este não efectue o pagamento ao portador de má fé» (o que inculcava, como viria a concluir o comité, que, no caso de ter sido avisado, o sacado que pagasse o cheque só ficaria validamente liberado se a pessoa que o apresentou tivesse provado a sua boa fé). E mais à frente: «Por conseguinte, um tal aviso daria, de facto, quase tantas garantias como dava a revogação e permitia afastar os inconvenientes da irrevogabilidade ilimitada.» Com base nestes considerandos e fazendo vencimento, ainda, a opinião de Ernest-Picard (França) de que, por terem carácter profissional, os riscos da perda ou «vol» deviam ser suportados pelo banqueiro, o comité iria, de conciliação em conciliação, por fim chegar à redacção do 2.º parágrafo do artigo 17.º das resoluções.
(Cf. J. Bouteron, Statut, cit., pp. 124-132.) 1.2.2 - Os textos dos artigos 17.º e 31.º (este respeitava, ainda, aos casos de perda do cheque) das resoluções da Haia não foram adoptados pela comissão de peritos, que se limitou a recomendar à conferência, em Genebra, «que os Estados tomem medidas de ordem civil para impedir a revogação do cheque durante o prazo de apresentação» e «que a possibilidade de revogar o cheque após o termo do prazo de apresentação seja reservada à legislação de cada um dos Estados».
As propostas de emenda foram várias e a discussão longa.
1.2.2.1 - Considerando que, no domínio da revogação, qualquer concessão poderia lançar a confusão na sua legislação interna, os delegados dos países em que vigorava, por regra, o princípio da livre revogabilidade (Inglaterra, Finlândia, Suécia e Dinamarca) e o da mais ampla irrevogabilidade (França) - não sem que o delegado finlandês dirigisse duras críticas à tese da irrevogabilidade relativa que vigorava no direito alemão e aparecia com apoio maioritário (do seu ponto de vista, a irrevogabilidade - juridicamente admissível se se reconhecer ao portador o direito de agir, directamente, contra o sacado - carece de lógica se só tem como único fundamento, jurídico e económico, o direito de regresso do portador contra o sacador; trata-se, aliás, de uma pretensa irrevogabilidade uma vez que o sacado sempre poderá recusar o pagamento sem incorrer na obrigação de pagar perdas e danos e sem se expor a outras consequências desagradáveis) e sem que o inglês expusesse as razões do carácter excepcional da revogação, quer na Grã-Bretanha quer nos países nórdicos (rigidez de princípios dos britânicos e escandinavos e medidas concretas que desencorajam o abuso de direito de revogação - para além da perda de reputação, o sacador que revoga um cheque, sem motivo válido, pode ser perseguido pelo portador, mediante processo expedito, e será convidado pelo próprio banco a retirar a sua conta) - limitaram-se a sugerir que, no caso da matéria não ser deixada às legislações dos diferentes países, como constava do texto proposto pelos peritos, se incluísse uma reserva, reconhecendo, às Altas Partes Contratantes, a faculdade ou de admitir «a revogação do cheque, mesmo durante o prazo de apresentação» (delegado sueco), ou de «interditar a revogação, mesmo depois de findo o prazo de apresentação, no que respeita a cheques pagáveis no seu território» (delegado francês).
Em maioria, coube, naturalmente, aos defensores de teses intermédias o papel decisivo na definição do texto a consagrar na LUC. Das várias emendas apresentadas, todas semelhantes, foi decidido que os debates e a votação se centrariam na italiana: «Em todos os outros casos [em que o cheque não é enviado directamente ao sacado, note-se] a revogação só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação. Se não tiver havido revogação, o sacado pode pagar mesmo depois de findo o prazo.» Em defesa da sua proposta - que adoptava o princípio da irrevogabilidade tal como vigorava no sistema alemão -, o delegado italiano (ressalvando que viesse a decidir-se em matéria de «perde ou vol») alegou, essencialmente, que aquela forma era a que se lhe afigurava preferível para reforçar a segurança do cheque. Em seu apoio vieram, designadamente, os delegados austríaco, jugoslavo e romeno e o representante da Câmara de Comércio Internacional, todos assegurando ser aquela, efectivamente, a melhor via para a credibilização do cheque como meio de pagamento; no mesmo sentido, o delegado alemão justificou, ainda, a limitação da irrevogabilidade ao prazo de apresentação, pela necessidade (prática) de evitar que tanto a circulação do cheque como a obrigação do sacador se mantenham por tempo indefinido.
Depois de o delegado polaco ter chamado a atenção para o carácter mais moral que jurídico da não revogabilidade durante o prazo de apresentação (porque o sacado, ainda que tenha o direito de pagar o cheque, apesar da revogação, na vida real, nunca o fará para não perder um cliente) e de o austríaco ter respondido que ela garante, em primeira linha, o princípio da boa fé, o delegado da Checoslováquia fez saber que, no seu país, o sacado que recusa pagar o cheque, ilicitamente revogado pelo sacador, torna-se, de lege data, responsável pelas perdas e danos causados ao portador (isto porque, esclareceu, a proibição legal da revogação faz parte de um sistema completo de regras tendente a manter o carácter económico do cheque; daí que não só a revogação pelo sacador, antes de findo o prazo de apresentação, mas também a recusa de pagamento pelo sacado, por se ter conformado com aquela, infringindo a lei, sejam, ambas, actos ilícitos) e que, por essa razão, apoiava a proposta do delegado português, no sentido de, à primeira frase da italiana, se aditar: «Durante o prazo de apresentação o sacado não pode recusar o pagamento com fundamento na referida revogação, sob pena de responder por perdas e danos.» Objectou, de imediato, o delegado polaco, que «considerava inútil prever, na lei uniforme, que o sacado que recusasse o pagamento de um cheque ilicitamente revogado poderia ser perseguido pelo portador, por perdas e danos». Na sua opinião, duas ordens de razões se opunham a uma tal disposição: «por um lado, estabelecendo uma responsabilidade do sacado, neste caso, a Conferência entraria em contradição com o princípio segundo o qual este 'n'est jamais tenu envers le porteur', princípio que está na base de muitas disposições da lei uniforme e, especialmente, da que estipula que o cheque não pode ser aceite; por outro, ela invadiria o domínio do direito comum, em matéria de perdas e danos, o que não parece desejável, dada a grande diversidade das legislações particulares a este respeito».
Em novas intervenções, o delegado italiano sustentou ser «preferível deixar a sanção sob o império do direito comum, porque há que ter em conta exigências de ordem sistemática no que concerne às relações entre o direito penal e o direito comum», declarando, por fim, o português dar a sua adesão a estas observações, não sem, todavia, explicar que «sa proposition s'inspirait de deux considérations: prévoir l'hipothèse d'une situation juridique grave de conséquences et assurer effectivement la protection de la personne du porteur».
Na hora de votar, a Conferência aprovou a emenda italiana e as reservas das delegações nórdicas e francesa. Estes textos, ligeiramente alterados, quanto à forma, pelo comité de redacção, tornaram-se o artigo 32.º da LUC e o 1.º parágrafo do artigo 16.º do anexo II.
(Cf., J. Bouteron, Le Statut, cit., pp. 417-434.) 1.2.2.2 - No que concerne aos casos de perda ou «vol» (palavra que, na interpretação do delegado italiano, abrange todo o delito que provocou ou acompanhou a emissão do cheque) - matéria em que, como dissemos, os peritos não tinham retomado os textos dos artigos 17.º, 2.º parágrafo, e 31.º das resoluções da Haia -, a Conferência decidiu adoptar a reserva proposta pela delegação polaca e rejeitar qualquer solução distinta das que haviam sido precedentemente admitidas para a letra e constituíam os artigos 16.º, 2.º parágrafo, e 40.º, 3.º parágrafo, da LULL. (Na verdade, destas duas regras, apenas a primeira - protegendo o adquirente de boa fé de um título de que outrem fora, por qualquer maneira, desapossado - viria a ser consagrada na LUC, mais precisamente, no seu artigo 21.º) Daí que se tenha exarado no relatório: «Propusemos que se regulasse a situação, em caso de 'perda ou vol'. Pusemos em destaque que em tal caso o sacador ou um portador devia ser autorizado a opor-se ao pagamento mediante bloqueio da conta enquanto a questão não fosse esclarecida em processo judicial sumário. As divergências constatadas em matéria de 'procédure' impediram a unificação visada segundo aqueles princípios.» (Cf. J. Bouteron, Le Statut, cit., pp.
435-442.) 3 - Decreto 13 004:
«Artigo 14.º
[...]
A revogação do mandato de pagamento, conferido por via do cheque ao sacado, só obriga este depois de findo o competente prazo de apresentação estabelecido no artigo 12.º do presente decreto com força de lei.No decurso do mesmo prazo o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação.
§ único. Se porém o sacador, ou o portador, tiver avisado o sacado de que o cheque se perdeu, ou se encontra na posse de terceiro em consequência de um facto fraudulento, o sacado só pode pagar o cheque ao seu detentor se este provar que este o adquiriu por meios legítimos.» Resoluções da Conferência da Haia, 1912 (texto francês) - artigo 17.º:
«La révocation du mandat contenu dans le chèque n'a d'effet qu'après l'expiration du délai de présentation.
Si le tireur ou le porteur a donné avis au tiré que le chèque a été perdu ou acquis par un tiers à la suite d'un acte frauduleux, le tiré qui paie le chèque n'est valablement libéré qui si le détenteur du chèque prouve qu'il l'a acquis d'une manière légitime.
S'il n'y a pas révocation, le tiré conserve de droit de payer même après l'expiration du delai.» Convenção de Genebra, de 19 de Março de 1931:
Anexo I (Lei Uniforme Relativa ao Cheque):
«Artigo 32.º
A revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação.Se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo.» Anexo II:
«Artigo 16.º
Qualquer das Altas Partes Contratantes, por derrogação do artigo 32.º da lei uniforme, reserva-se a faculdade de, no que respeita aos cheques pagáveis no seu território:a) Admitir a revogação do cheque mesmo antes de expirado o prazo de apresentação;
b) Proibir a revogação do cheque mesmo depois de expirado o prazo de apresentação.
Qualquer das Altas Partes Contratantes tem, além disso, a faculdade de determinar as medidas a tomar em caso de perda ou roubo de um cheque e de regular os seus efeitos jurídicos.» Como é evidente, no essencial, a 1.ª parte do corpo do artigo 14.º do Decreto 13 004 e o seu § único reproduzem, respectivamente, o 1.º e o 2.º parágrafos do artigo 17.º das resoluções da Haia, enquanto o artigo 32.º da LUC reproduz, no 1.º parágrafo, a 1.ª parte do corpo daquele artigo 14.º e, no 2.º parágrafo, o 3.º do citado artigo 17.º Já no que respeita à 2.ª parte do corpo do artigo 14.º do referido decreto, ela não corresponde a qualquer das normas das resoluções. [Com efeito, nestas, inexiste referência expressa a qualquer acção de perdas e danos do portador contra o sacado, por este ter recusado o pagamento, durante o prazo de apresentação e com fundamento na revogação do cheque pelo sacador, e, do nosso ponto de vista, não pode pretender-se que, no artigo 21.º («a questão de saber se o portador de um cheque tem direitos especiais sobre a provisão e o direito de agir em justiça contra o sacado fica fora da regulamentação internacional»), tal acção esteja, implicitamente, contemplada, já que «o direito de agir em justiça», aí aludido, será, única e exclusivamente, aquele que se funda nos «direitos especiais do portador sobre a provisão».] Como, aliás, também não corresponde a qualquer das normas da LUC e não cabe na previsão do 1.º parágrafo do artigo 19.º do anexo II da Convenção de Genebra [«A lei uniforme não abrange a questão de saber se o portador tem direitos especiais sobre a provisão e quais são as consequências desses direitos» (sublinhámos)]. Efectivamente, este último preceito teve origem no projecto dos peritos que propunha, como dispositivo a integrar na lei uniforme, uma norma que reproduzia, praticamente na íntegra, o texto do artigo 21.º das resoluções (a diferença era irrelevante: onde neste último se lê «fica fora da regulamentação internacional» o referido projecto dizia «fica fora do presente regulamento»). Porém, a Conferência decidiu incluir tal disposição, não na LUC, mas, sim, na convenção anexa, com outra redacção (a resultante da fusão das propostas de emenda francesa e italiana), por forma a alargar o seu âmbito a todas as consequências decorrentes dos direitos especiais do portador sobre a provisão, já que, como frisou o delegado de França, com a questão da provisão, se prendia não somente o direito de agir em justiça directamente contra o sacado, mas também o de exigir um pagamento parcial com o limite máximo correspondente ao da provisão existente - cf. J. Bouteron, Le Statut, cit., pp.
636-640, sendo nosso o sublinhado. Ou seja: mesmo alargado o âmbito da previsão, esta só contempla consequências que se prendem com os direitos especiais do portador sobre a provisão. Ora, a acção de perdas e danos em apreço, manifestamente, não tem como fundamento - nem tem mesmo nada a ver - a circunstância de o portador ter ou não ter direitos especiais sobre a provisão.
3.1 - Por efeito da entrada em vigor da LUC, resultou revogado o artigo 14.º do Decreto 13 004? Em relação à 1.ª parte do corpo do preceito, ninguém tem dúvidas de que ela cessou vigência em favor do artigo 32.º da LUC. Quanto à 2.ª e ao § único, as opiniões divergem.
Assim:
«Do anexo II resulta que há questões de direito, ligadas com o regime das letras, a que a Convenção quis considerar-se estranha; outras, que não estão completamente reguladas, deixando-se a cada Estado a faculdade de integrar o seu regime, e outras, que podem ser reguladas de modo diferente daquele que o foram na lei uniforme, se oportunamente se houverem feito ou vierem a fazer as necessárias reservas. [...] As leis uniformes estão em vigor e o regime das letras, livranças e cheques integra-se pelos processos de integração do direito interno. Pode até suceder, e realmente sucede, que uma das partes desse direito existisse já e não constituísse portanto a matéria uma lacuna. Quando assim for, é evidente que esse direito não foi revogado pelas leis uniformes e continua em vigor; quando se estiver em presença de lacunas, preenchem-se, como se disse, pelos processos de integração do direito interno» (Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 68.º, p.
360).
No Acórdão deste Supremo Tribunal de 22 de Outubro de 1943 - no Boletim Oficial, ano III, p. 409 - decidiu-se: «Desde que a disposição especial da alínea 2.ª do artigo 14.º do Decreto 13 004 com a publicação da Lei Uniforme perdeu a sua eficiência e não pode considerar-se em vigor por contrário aos princípios fundamentais da mesma lei nos países que, como o nosso, não regularam o instituto da provisão, é pelas prescrições do Código Civil que tem de apurar-se a responsabilidade do sacado em face do portador do cheque. O sacado, mandatário [...] só no caso de exceder os poderes que lhe são confiados ou de haver praticado actos contrários ao fim do mandato, incorre em responsabilidade para com terceiros (artigo 1338.º do mesmo Código) e o portador do cheque é terceiro na relação jurídica entre o sacador e o sacado.» No Instituto da Conferência da Ordem dos Advogados (cf. Revista da Ordem dos Advogados, ano 6.º, n.os 1 e 2, (pp. 439 e segs.), na discussão do relatório apresentado por Adelino da Palma Carlos sobre o acórdão acabado de referir, desenharam-se, nitidamente, duas correntes: uma - Inocêncio Galvão Teles, Mário de Castro, Tito Arantes e Manuel Casanova -, sustentando que, não apenas o artigo 14.º, mas todas as disposições do Decreto 13 004, foram revogadas pela LUC, uma vez que: 1) «Quando uma lei posterior vem regular uma matéria que estava anteriormente regida por outra legislação, esta fica total e tacitamente revogada»; 2) «O Estado Português não poderia substituir o artigo 16.º do anexo II da Lei Uniforme pelo artigo 14.º do Decreto 13 004, sem o participar aos outros Estados»; 3) «A expressão do citado artigo 16.º do anexo 'Qualquer das Altas Partes Contratantes reserva-se o direito de [...]' não pode ter o alcance de remeter a regulamentação desses casos para a legislação interna»; outra - Adelino da Palma Carlos, Paulo Cunha, Cancela de Abreu, Carlos Pereira e Vasco de Almeida e Silva -, defendendo que o citado artigo 14.º do Decreto 13 004 não foi revogado pela LUC pelas seguintes razões: 1.ª «Uma lei que contém preceitos conciliáveis com as leis posteriores não pode considerar-se tacitamente revogada por estas»; 2.ª «O próprio anexo II à Lei Uniforme, nos seus artigos 16.º e 32.º, deixa a liberdade de revogação do cheque ao sabor da lei interna de cada Estado»; 3.ª «No ponto em questão, em virtude dos citados artigos 16.º e 32.º do anexo referido, continua em vigor a legislação anteriormente vigente - que não é senão um desenvolvimento dos preceitos da Lei Uniforme»; 4.ª «Sendo a Lei Uniforme uma lei internacional, só se deve considerar revogada por ela a lei interna nos pontos em que haja incompatibilidade entre ambas.» Barbosa de Magalhães, que presidia à sessão, vincou bem que - não obstante haver acordo no sentido de que o banqueiro não pode recusar o pagamento dentro do prazo de apresentação - não se chegara a uma solução definitiva sobre se sim ou não estava revogado o artigo 14.º do Decreto 13 004, e acrescentou que teria corroborado a solução apresentada pelo relator (o sacado que recusa o pagamento, durante o prazo de apresentação, conformando-se com a revogação ordenada pelo sacador, pratica um acto ilícito e responde, assim, por perdas e danos, perante o portador), «mas baseando-se na natureza jurídica do cheque, cuja emissão equivale a um verdadeiro pagamento».
Em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Dezembro de 1977 - que perfilha, integralmente, a solução daquele já citado de 22 de Outubro de 1943 -, na Revista de Direito e Economia, n.º 4, 1978, Ferrer Correia e António Caeiro defendem a tese de que o artigo 14.º do Decreto 13 004 está revogado pela LUC. (« É manifesta a diferença existente entre a norma contida no corpo do artigo 14.º do Decreto 13 004 e o artigo 32.º da LU onde apenas se estabelece que: 'A revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação.' A diferença consiste no facto de a LU não impor ao sacado a obrigação de pagar o cheque no decurso do prazo de apresentação, sob pena de responder por perdas e danos para com o portador. Estamos, pois, em presença de duas regulamentações assaz diferentes da matéria, que se inspiram em concepções claramente antagónicas. Na base do artigo 14.º do Decreto 13 004 está a ideia de que, no direito geral do cheque, o sacado responde para com o portador. Diversamente, o artigo 32.º da LU tem subjacente o princípio - que, de resto, informa toda a lei - segundo o qual o sacado não responde, salvo perante o emitente. Trata-se, portanto, de duas regulamentações e duas concepções inconciliáveis acerca da posição do sacado perante o portador do cheque, pelo que tem de entender-se que a segunda em data revogou a anterior. [...] Como dizem BaumbachHefermehl, a 1.ª frase do artigo 32.º [...] significa apenas que o sacado não está obrigado a obedecer à ordem da revogação, não que não possa observá-la. [...] Em resumo: se pagar, pagará bem, mas nada obriga a fazê-lo. [...] Bem diferente, como vimos, é a doutrina que dimana da 2.ª parte do corpo do artigo 14.º [...] Aqui sim, existe uma proibição legal dirigida ao sacado de obedecer à ordem de revogação durante o prazo de apresentação do cheque, sob pena de responder perante o portador por perdas e danos. Ora, uma tal regra - e repetimos - é frontalmente contrária ao sistema da LU, e designadamente ao disposto no artigo 32.º, que assenta na ideia da não vinculação do sacado perante o portador. Essa mesma oposição foi posta em relevo na discussão da LU, quando foi recusada uma proposta do delegado português, Prof. Caeiro da Mata, proposta que visava o acrescentamento do seguinte texto: 'Durante o prazo de apresentação, o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na revogação.' Nas palavras do delegado da Finlândia, a adopção do princípio da irrevogabilidade do cheque só poderia admitir-se juridicamente se se reconhecesse ao portador uma acção directa contra o sacado, como acontecia no direito francês, mas seria ilógico adoptar aquele princípio nos sistemas cuja única base jurídica e económica consistia no direito de regresso do portador contra o sacador, como era o caso do direito alemão - e como veio a ser a orientação que prevaleceu na LU. Por outra via, é certo e seguro que Portugal não formulou qualquer reserva em relação ao dispositivo da LU, designadamente no tocante ao referido artigo 32.º [...] Aliás, entre as reservas consentidas aos Estados pelo artigo 16.º do anexo II da Convenção, pelo que toca à regra do artigo 32.º da LU, não figurava a que consistiria em se estabelecer que, no caso de recusa de pagamento durante o prazo de apresentação, o sacado responde perante o portador do cheque. Sinal certo de que tal regulamentação nem sequer foi encarada em Genebra como desvio admissível, no âmbito das leis internas das Altas Partes Contratantes, dos princípios básicos da LU. [...]») (Cf. pp. 466-468.) Em «A revogação do cheque» (in O Direito, ano 100.º, 1968, fasc. n.º 4, Out./Dez., pp. 450 e segs.), Filinto Elísio, colocando-se, exactamente, perante a questão que nos ocupa [«Há matérias que a Lei Uniforme não contempla, designadamente a repressão penal, e nessas ainda está em vigor o Decreto 13 004. Mas a revogação havia sido objecto de tratamento especial no artigo 14.º, e a Lei Uniforme refere-se ao mesmo assunto no artigo 32.º Estará o artigo 14.º revogado? Quanto ao corpo do artigo, parece não haver dúvidas, dados os princípios da revogação. O corpo do artigo tem duas partes: quanto à primeira não deve considerar-se em vigor por haver preceito da Lei Uniforme que directamente contempla a mesma matéria;
quanto à segunda, impõe-se a mesma conclusão, por conter princípios incompatíveis com a Lei Uniforme. Foi este o pensamento do Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 22 de Outubro de 1943: [...] Já o § único do artigo 14.º não tem paralelo em qualquer disposição da Lei Uniforme. [...] É significativo que a Lei Uniforme não tivesse previsto a hipótese de desapossamento ilegítimo do cheque, como o fez o § único do artigo 14.º do decreto, e se limitasse a sancionar a irrevogabilidade nos termos do seu artigo 32.º Duas razões avolumam o significado dessa omissão: a) A fonte directa do artigo 32.º da Lei Uniforme foi o artigo 17.º das Resoluções da Haia, donde também constava a doutrina que veio a inspirar o § único do artigo 14.º do decreto. A primeira parte é tirada quase literalmente da primeira parte do artigo 17.º das Resoluções, assim como a segunda parte daquela é a cópia da última parte deste. A parte intercalar do artigo 17.º não aparece na Lei Uniforme e foi reproduzida textualmente no § único do artigo 14.º do decreto pelo legislador de 1927. É, pois, em relação à fonte uma omissão demasiado ostensiva. b) É estranho que a irrevogabilidade da Lei Uniforme não tivesse atendido às justas causas da revogação. (Cf. pp. 475-477.)], depois de assentar em que o contrato de cheque é «um contrato de prestação de serviços sob a forma de mandato - sob o ângulo das relações sacador-sacado» (p. 490), e em que, por isso, pela natureza jurídica do contrato em que se funda, «o cheque é sempre revogável pelo sacador, quer no decurso do prazo de apresentação a pagamento quer depois dele» (p.
497), passa, então, à interpretação do disposto no artigo 32.º da LUC (que «parece abalar a lógica da doutrina condenando a tese da sua revogabilidade no prazo de apresentação» (p. 497). Assim (pp. 498-501), depois de destacar que, no sistema anglo-americano, o cheque revogado é anulado como título, e que a proposta do delegado português à Convenção de Genebra (relativamente ao já citado aditamento à proposta italiana, responsabilizando o sacado por perdas e danos, perante o portador), suscitou a oposição do delegado polaco - que argumentou, além do mais, estar aquela «em contradição com o princípio fundamental segundo o qual o sacado não é directamente responsável perante o portador» - e de outros [«dizendo o da Finlândia (segundo o relato de Jacques Bouteron): 'L'adoption d'un tel principe ne saurait être juridiquement admise que si l'on reconaissait au porteur une action directe envers le tiré, comme en droit français [...]'»], e acabou por ser rejeitada (o que, para o autor, significa que a «Convenção não responsabilizou o sacado por obedecer à ordem de revogação durante o prazo de apresentação, e não é assim a Lei Uniforme, que consagra a irresponsabilidade do banqueiro perante o portador, que pode inspirar tal conclusão»), Filinto Elísio (apoiando-se também nas razões que, na Conferência, ditaram a rejeição da proposta do delegado italiano de que, em vez da revogação do cheque, no artigo 32.º, se dissesse revogação do mandato de pagar o cheque) entende que «o que o artigo 32.º quer dizer é que, mal-grado a revogação, o cheque continua a ser cheque como título, isto é, a revogação não anula o cheque, e o portador pode protestá-lo, pode accionar os co-obrigados, numa palavra, continua a beneficiar de todas as potencialidades jurídicas inerentes ao cheque, mas não passará a ter mais uma - que nunca teve -, transformar o sacado em mais um co-obrigado que nunca foi». E reafirma: «A revogação do cheque dentro do comando do artigo 32.º não tira nem dá quaisquer direitos ao portador; estranho seria, portanto, que este viesse a adquirir com a revogação direitos que antes não possuía.» Finalmente, depois de considerar a responsabilidade do sacador perante o portador, no caso de revogação [«Se não há justa causa - de que tem por exemplos clássicos, designadamente, a perda, o roubo ou outra forma fraudulenta de desapossamento do título -, o sacador é responsável; se ela existe, dirime essa responsabilidade. Mas o sacado em nenhuma hipótese é responsável, quer haja ou não justa causa. Ele está ao serviço do sacador, único protagonista que conhece e com quem contratou, e enquanto não houver preceito a responsabilizá-lo não pode sofrer as consequências desfavoráveis de qualquer acto impensado do sacador» (sublinhámos)], conclui: «Em resumo: o artigo 32.º respeita ao cheque como título cambiário que subsiste e resiste incólume a quaisquer revogações emanadas do emitente; nem o artigo 32.º nem a Lei Uniforme em geral visam as relações internas entre o sacador e o sacado; o contrato de cheque envolve um mandato sem representação; esse mandato, desde que há cheques emitidos, só deve ser revogado se houver justa causa (n.º 2 do artigo 1170.º do Código Civil); quer haja ou não justa causa, o sacado tem de obedecer às instruções do sacador; o portador não tem quaisquer direitos contra o sacado, quer no âmbito do direito cambiário quer fora dele; o § único do artigo 14.º do Decreto 13 004 está em vigor e contém uma afloração do mesmo princípio da justa causa que o Código Civil de 1966 veio consagrar expressamente no referido n.º 2 do artigo 1170.º» 3.1.1 - Do nosso ponto de vista, a 2.ª parte do corpo do artigo 14.º do Decreto 13 004 não foi revogada pelas razões que passamos a expor, ao mesmo tempo que procuramos refutar os argumentos da orientação contrária.
Assim:
É certo que a LUC assenta na concepção germânica de que, sendo o portador e o sacado estranhos, em relação, respectivamente, ao contrato de cheque e à relação cambiária, o primeiro não tem qualquer acção directa contra o segundo com base naquele contrato ou nesta relação.
Mas, não é menos certo, a acção de perdas e danos a que alude o preceito em análise não tem como fundamento a violação do contrato de cheque nem o incumprimento de qualquer obrigação cambiária do sacado. Ou seja: nem o sacado é demandado como obrigado cambiário nem o fundamento da sua responsabilidade reside na violação de uma relação jurídica que, entre ele e o portador, já estivesse estabelecida antes de se produzir o facto gerador da responsabilidade.
Logo, a referida acção não colide em nada com o princípio de que o sacado não responde perante o portador, nem como obrigado cambiário, nem por incumprimento do contrato de cheque.
De qualquer modo, diz-se, tal solução é contrária «aos princípios fundamentais» da LUC. Não sendo aquele a que acabámos de nos referir, talvez se esteja apelando ao princípio da irrevogabilidade do cheque, durante o período de apresentação. Todavia, sendo inquestionável que a consagração de tal princípio, no artigo 32.º da LUC, se destina, exclusivamente, à protecção do portador, não se vê como é que uma norma que reforça essa mesma protecção pode contrariar aquele princípio.
Não se afigura exacta a afirmação de que o artigo 14.º do decreto e o artigo 32.º da LUC consubstanciam «duas regulamentações assaz diferentes da matéria, que se inspiram em concepções claramente antagónicas», porque na base do primeiro «está a ideia de que, no direito geral do cheque, o sacado responde para com o portador», enquanto o segundo «tem subjacente o princípio - que, de resto, informa toda a lei - segundo o qual o sacado não responde, salvo perante o emitente».
Com efeito, se é incontestável, por um lado, que o Decreto 13 004 foi elaborado sobre e em conformidade com o essencial das resoluções da Haia - que, aliás, amiúde, reproduz textualmente - e que o seu artigo 14.º (referimo-nos, agora, naturalmente, apenas, à 1.ª parte do corpo do artigo e ao seu § único) contém, decalcada, a solução vertida no artigo 17.º das resoluções e, por outro, que estas, na sua globalidade, também se inspiram na ideia de que o portador não tem, contra o sacado, uma acção directa fundada numa relação jurídica previamente estabelecida entre ambos, como, aliás, resulta claro das já referidas intervenções de Hammerschlag e Sichermann, a propósito daquele artigo 17.º [também na discussão sobre a matéria do artigo 21.º, Hammerschlag voltou a frisar que a lei do seu país não dava ao portador do cheque uma acção directa contra o sacado, por razões de ordem jurídica (o sacador serve-se do cheque para efectuar um pagamento por intermédio do sacado, que é seu mandatário, o que significa que a entrega do cheque ao tomador não é considerado uma cessão de créditos; não existindo, como não existe, qualquer relação jurídica prévia entre o portador e o sacado, só o aceite do cheque por este último poderia dar ao portador uma acção directa contra o sacado fundada na existência de uma relação jurídica entre ambos; na falta de aceite, o direito que poderia reconhecer-se ao portador contra o sacado seria sempre um direito derivado, fundado na relação jurídica entre sacado e sacador, para cujo exercício, com conhecimento de causa, o portador sempre necessitaria do concurso do sacador, pelo que parece mais lógico que, no caso de não pagamento, o portador introduza a acção directamente contra o sacador) e de ordem prática (para evitar expor os banqueiros ao risco excessivo de acções temerárias dos portadores a que tivessem recusado o pagamento e para não gerar a ideia errada de que a segurança do cheque depende mais das qualidades do sacado do que do sacador) - cf. J. Bouteron, Statut, cit., pp.
143-144], então o que se impõe concluir é, precisamente, que o artigo 14.º (1.ª parte do corpo e § único) do Decreto 13 004 e o artigo 32.º da LUC assentam, não em concepções distintas, mas na mesma ideia básica de que não existe uma relação jurídica prévia entre o tomador e o sacado que possa fundar uma acção directa daquele contra este.
Dir-se-á, porém, que é justamente levando em conta, também, a 2.ª parte do corpo do artigo 14.º do Decreto 13 004 que se torna evidente a aludida inconciliabilidade de concepções e regulamentações, tanto mais quanto é verdade que a lei alemã não previa qualquer sanção para o sacado que, no prazo de apresentação, recusasse o pagamento com fundamento na ordem de revogação.
Sem razão.
A solução da 2.ª parte do corpo do citado artigo 14.º não é imposta pelo regime geral do cheque (porque, repete-se, de acordo com este, não há, entre portador e sacado, uma relação jurídica prévia respeitante ao cheque), mas, sim, pelos princípios do direito comum, mais concretamente, da responsabilidade civil extracontratual. Sendo uma solução de direito comum para uma questão de direito comum, a norma daquele segmento normativo, materialmente, é, também ela, do direito comum, logo, a sua vigência só poderia ser afectada pela entrada em vigor da LUC se esta passasse a considerar lícita e eficaz a revogação do cheque, no prazo de apresentação, ou se, continuando a ferir esta de ineficácia, a questão da sanção ao sacado - por se conformar com ela - fosse contemplada ou na própria LUC ou no anexo II. Ora, por um lado, o artigo 32.º da LUC diz, fundamentalmente, o mesmo que a 1.ª parte do corpo do artigo 14.º do Decreto 13 004, e, por outro, nenhuma disposição da LUC e do anexo II se refere a tal matéria. O que, naturalmente, não acontece por acaso. Na verdade, foi visível a preocupação da Convenção em não ultrapassar os limites estritos do direito do cheque ou, noutra perspectiva, em não invadir competências do direito comum ou de outra legislação especial. Por isso, desde logo, a recomendação dos peritos para que se reservasse aos Estados a faculdade de tomar medidas «de ordem civil para impedir a revogação do cheque» - v., supra, n.º 1.2.2 - e, também, v. g., a decisão da Convenção - por esse único motivo em que, expressamente, se fundou - de não tratar quer da revogabilidade do cheque enviado directamente ao sacado, para ser, depois, remetido ou pago ao beneficiário, quer dos efeitos da falência do sacador - cf. J. Bouteron, Le Statut, cit., p. 1048. Daí, ainda, que uma das razões invocadas pelo delegado polaco para justificar a sua opinião de que era inútil (apenas inútil, note-se) que a LUC previsse a acção de perdas e danos contra o sacado, nos termos da proposta de aditamento portuguesa, tenha sido, nada mais, nada menos, a de que uma tal previsão invadiria o domínio do direito comum, em matéria de perdas e danos.
Ora, se a Convenção deliberadamente se absteve de tratar de tal questão e se o fez para não invadir o direito comum de cada um dos países contratantes, é manifesto que não pode sustentar-se, razoavelmente, que a LUC, consagrando, no artigo 32.º, o princípio da irrevogabilidade no prazo de apresentação, consagra, também, a solução do direito interno de um desses países contratantes - a Alemanha - de não sancionar o sacado, que, não obstante, se conforma com a revogação.
Já a tese do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Outubro de 1943, de que «a disposição especial da alínea 2.ª do artigo 14.º do Decreto 13 004 com a publicação da Lei Uniforme perdeu a sua eficiência e não pode considerar-se em vigor por contrária aos princípios fundamentais da mesma lei nos países que, como o nosso, não regularam o instituto da provisão», pressupõe, claramente, que a acção de perdas e danos prevista naquele preceito se inclui entre as referidas no artigo 19.º do anexo II da Convenção. Porém, nem esse pressuposto se verifica - v., supra, n.º 3 - nem a acção prevista na 2.ª parte do corpo do citado artigo 14.º se justifica pela preexistência de um qualquer direito do portador sobre a provisão, mas, apenas, porque sofre danos por efeito directo de um acto ilícito do sacado.
Logo, a vigência daquele dispositivo nunca esteve dependente da circunstância de Portugal fazer ou não fazer uso da reserva do artigo 19.º do anexo II da Convenção.
Deve, aliás, sublinhar-se que Portugal aceitou, sempre, o princípio de que o sacado não é obrigado cambiário, como decorre, v. g., da intervenção do nosso delegado a propósito da questão do pagamento parcial do cheque («M.
da Matta fez notar que, em caso de inexistência ou de insuficiência de provisão, não há relação jurídica entre o portador e o sacado que possa justificar a pretensão daquele a obter deste um pagamento parcial» - cf. J.
Bouteron, Le Statut, cit., p. 453) e da própria resposta do Governo ao questionário elaborado em execução da recomendação V da Acta Final da Conferência, transcrita a pp. 968-970 de Le Statut, cit. O que, porém, sempre entendeu é que, sendo conveniente que a LUC contivesse uma norma idêntica à da 2.ª parte do corpo do artigo 14.º do Decreto 13 004, esta não colidia com aquele princípio, como flui da mesma resposta governamental ao referido questionário. Por isso, não será lícito admitir, nem por um momento, que a nossa proposta de aditamento ao texto que viria a ser o do artigo 32.º da LUC traduzia um entendimento próximo do sistema francês quanto aos direitos do portador sobre a provisão.
Por outro lado, a afirmação de que o sacado é livre de se conformar ou não com a revogação ou que, «se pagar, pagará bem, mas nada obriga a fazê-lo», tudo para se significar que ela actua de acordo com a lei se não acata a ordem de revogação, mas também não a infringe se se conformar com esta, constitui, ao que nos parece, uma negação da evidência.
Efectivamente, se a lei prescreve a ineficácia da revogação, para impedir que, com base nela, seja recusado o pagamento, e se o sacado, frustrando o comando legal, confere eficácia a essa mesma revogação, recusando o pagamento com fundamento nela, não há margem para outra conclusão que não seja a de que o sacado viola, abertamente, a lei. E tanto isto é irrecusável que, já na Haia, Hammerschlag - que, convém ter presente, pugnava por que as resoluções consagrassem o princípio da irrevogabilidade do sistema germânico -, respondendo à acusação de ineficácia de uma proibição da revogação sem sanção, não hesitava em afirmar que, com ou sem sanção, a revogação contra a proibição era ilegal e que, acatando aquela, o sacado cometia uma acção ilegal (v., supra, n.º 1.2.1).
De qualquer modo, a defesa da licitude da aludida conduta do sacado sempre se teria esboroado, completamente, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 459/91, dado o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), na redacção originária, e artigo 11.º, n.º 1, alínea b), na redacção dada pelo Decreto-Lei 326/97, de 19 de Novembro.
É óbvio que o argumento que se ergue sobre o facto de não ter vingado, em Genebra, a proposta portuguesa que visava a inclusão, no artigo 32.º da LUC, de uma previsão idêntica à contida na 2.ª parte do corpo do artigo 14.º do Decreto 13 004 só terá o valor que se lhe vê atribuído se a determinante desse facto tiver sido, realmente, a circunstância de tal previsão afrontar, intoleravelmente, o princípio de que, com base no contrato de cheque ou na relação cambiária, o sacado não responde perante o portador.
Ora a verdade é que não foi isso que aconteceu.
É certo que o delegado polaco, entre as razões que alinhou para justificar a inutilidade do aditamento proposto, disse que, se se estabelecesse tal responsabilidade do sacado, a Conferência entraria em contradição com aquele princípio, mas não é menos certo que, significativamente, nesse ponto, não colheu apoio de qualquer outro delegado (face ao relato de J.
Bouteron, em Le Statut, cit., pp. 417-434, não pode dizer-se, como o faz Filinto Elísio - que, expressamente, se reporta à mesma fonte -, que «outros delegados tomaram posição idêntica», designadamente o da Finlândia.
Com efeito, ali, a propósito da discussão sobre a proposta portuguesa, apenas se referem intervenções dos delegados checoslovaco, polaco, italiano e português - sendo que o primeiro a apoiou e o terceiro, subscrevendo o outro argumento polaco de que se tratava de matéria de direito comum, e só esse, sugeriu que as sanções fossem deixadas ao direito comum de cada país, enquanto o português declarou aderir às observações do italiano, e só a essas; quanto ao delegado da Finlândia, ele teve, efectivamente, uma intervenção muito crítica, mas o seu alvo não foi a proposta de Portugal, que não mencionou, mas o próprio sistema alemão da irrevogabilidade), seguramente, porque, sobretudo após a citada exposição do delegado da Checoslováquia, foi entendido pela generalidade que também a acção de perdas e danos visada na nossa proposta era de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito e, portanto, não pressupunha a existência de uma relação jurídica prévia entre tomador e sacado.
De qualquer forma, o que é claro é que a proposta de Portugal foi abandonada e a Convenção se absteve, deliberadamente, de legislar sobre matéria de eventuais sanções ao sacado, quer na LUC, quer no anexo II, pela razão decisiva de que se formou consenso em que tal matéria pertencia ao direito comum e que ao império deste devia, sem mais, continuar submetida.
Não pode, pois, ver-se, na referida «omissão legislativa» - como vêem Ferrer Correia e António Caeiro (ob. cit., p. 468) -, o «sinal certo de que tal regulamentação nem sequer foi encarada em Genebra como desvio admissível, no âmbito das leis internas das Altas Partes Contratantes, dos princípios básicos da LU». Aliás, pela mesma ordem de ideias, teria de concluir-se que também tinham sido revogados - e, na verdade, não foram - os artigos 23.º e 24.º do Decreto 13 004, uma vez que nem a LUC nem o anexo II contêm menção à protecção penal do cheque.
Em suma: tratando-se de uma norma, materialmente, do direito comum - responsabilidade civil extracontratual -, sobre matéria que a Convenção se absteve de tratar, precisamente, para a deixar sob o império exclusivo do direito comum, a 2.ª parte do corpo do artigo 14.º do Decreto 13 004 não resultou revogada por efeito da entrada em vigor da LUC.
3.1.2 - E quais foram os efeitos da entrada em vigor da LUC sobre o § único do artigo 14.º do Decreto 13 004? Vejamos:
O artigo 17.º das resoluções da Haia, consagrando o princípio da irrevogabilidade absoluta no prazo de apresentação, privava a revogação de eficácia, nesse período, mesmo que fundada em perda ou «vol». Porém, admitia um aviso ao sacado, comunicando qualquer dessas ocorrências, aviso que, na prática, tinha o efeito de uma proibição de pagamento imediatamente eficaz.
Em Genebra, após algumas intervenções iniciais no sentido de marcar a distinção entre a revogação do cheque e a oposição ao seu pagamento - das quais se destacou a do delegado belga («Com efeito, enquanto só o sacador pode revogar o cheque, a oposição pode ser feita tanto pelo portador como pelo sacador [...]. Quanto aos efeitos a diferença não é menos fundamental. A revogação é um acto definitivo: o mandato é retirado. Os efeitos da oposição, pelo contrário, são essencialmente temporários e provisórios: o portador que recupera o cheque a cujo pagamento tinha feito oposição, apresentá-lo-á e já não terá razão para invocar a oposição. A revogação é, por conseguinte, a interdição de pagar o cheque; a oposição é a suspensão do pagamento») -, a discussão girou à volta das propostas de emenda italiana («O direito de fazer oposição ao pagamento do cheque pode ser exercido, somente, nos casos de perda ou 'vol' do título. O sacado não pode prevalecer-se de qualquer outra oposição para recusar o pagamento do título. Todavia, não deve restituir ao sacador os fundos correspondentes ao montante indicado no cheque. Se o sacador ou o portador informarem o sacado que o cheque se perdeu ou foi 'volé', este fica validamente liberado se pagar o cheque ao seu detentor que prove tê-lo adquirido de boa fé») e polaca («Cada uma das Partes Contratantes tem a faculdade de regular as medidas a tomar em caso de perda ou 'vol' do cheque e de determinar os seus efeitos jurídicos»).
Apesar da argumentação de Gianinni (Itália) - se o portador merecia ser protegido contra a revogação, também não seria justo recusar toda a protecção ao sacador em caso de má fé do portador, pelo que se impunha que, nos casos de perda ou «vol», se dessem ao sacador todos os meios para se defender rápida e seguramente - e da proposta do delegado português («O direito de oposição ao pagamento do cheque pode ser exercido pelo sacador ou pelo portador, somente, no caso de perda do título e nos casos em que este se encontra na posse de um terceiro de uma maneira criminalmente ilícita»), que, ainda assim, não deixou de salientar que tais casos são aqueles em que mais se justificava a própria revogação (razão por que lhe parecia impossível que pudessem acabar remetidos para a convenção anexa), era a emenda polaca que ia concitando mais apoio.
Daí que, após terem usado da palavra os delegados da Polónia (fazendo notar que a proposta italiana tinha o inconveniente de permitir, por um lado, a revogação sob o pretexto de perda ou «vol» e, por outro, o bloqueio da provisão do cheque por tempo indefinido), da Alemanha (igualmente contra a proposta italiana, além do mais, por entender que as questões da revogação e da oposição ao pagamento, sendo distintas, deviam ser tratadas separadamente e porque o direito de oposição, tal como era definido no n.º 3 daquela proposta era, pura e simplesmente, desconhecido na Alemanha e em muitos outros países), da Jugoslávia e da Áustria (referindo que, nos seus países e outros, aquele que perdeu o cheque ou foi dele, ilicitamente, desapossado dispõe da faculdade de requerer a sua «amortização») e, uma vez mais, o da Bélgica (sustentando que não só tudo o que respeitava às formas de oposição mas também tudo o que se relacionava com os procedimentos a seguir em caso de perda de efeito - processos de amortização ou outros - devia ser remetido para as legislações nacionais), a Convenção, constatando ser impossível a unificação, em virtude da diversidade dos direitos nacionais sobre a questão, decidiu adoptar a reserva da iniciativa polaca, que, assim, viria a ser consagrada no último parágrafo do artigo 16.º do anexo II.
Está, agora, em causa, portanto, matéria própria do direito do cheque que só não foi regulada na LUC por a diversidade de formas de oposição e respectivos procedimentos ser de tal forma profunda que inviabilizou a unificação, mas que, no entanto, foi objecto de reserva. Quais as consequências dessa reserva relativamente às normas de direito interno que antes vigoravam em tal domínio como entre nós o § único do artigo 14.º do Decreto 13 004? A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969 (que não nos vincula), define reserva como «declaração unilateral, qualquer que seja a sua redacção ou denominação, feita por um Estado ao assinar, ratificar ou aceitar um tratado, ou a ele aderir, com o objectivo de excluir ou modificar os efeitos jurídicos de certas disposições do tratado na sua aplicação a esse Estado» [artigo 1.º, alínea d)], definição que é, também, a de Jorge Miranda (Direito Internacional Público - Apontamentos das Lições ao 2.º Ano Jurídico, FDUL, 1995, I, p. 97) e de Gonçalves Pereira e Fausto Quadros (Manual de Direito Internacional Público, Almedina, Coimbra, 3.ª ed., 1997, p. 231). Mais amplo, o conceito de Charles Rousseau: «uma declaração feita por um Estado parte de um tratado indicando que esse Estado decide excluir uma disposição do Tratado, modificar o seu alcance ou atribuir-lhe um sentido determinado» (apud Silva Cunha, Direito Internacional Público, CLB, Lisboa, 1981, pp. 174-175). E, seguramente, ainda mais amplo, aquele por que se orientou a Convenção de Genebra, como facilmente se infere do teor dos artigos 1.º a 30.º do anexo II [embora nem sempre tenha sido utilizada a expressão «qualquer das Altas Partes Contratantes 'reserva-se a faculdade'» (que se lê nos artigos 4.º, 7.º, 8.º, 10.º, 11.º, 12.º, 14.º, 1.º e 2.º parágrafos, 16.º, 1.º parágrafo, 18.º, 20.º, 21.º, 1.º parágrafo, e 24.º) ou «reserva-se o direito» (como nos artigos 9.º e 30.º), parece incontestável que as expressões «pode prescrever» (do artigo 1.º), «tem a faculdade de» (dos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º, 13.º, 14.º, 3.º parágrafo, 15.º, 16.º, 2.º parágrafo, 17.º, 21.º, 2.º parágrafo, 22.º, 23.º, 26.º, 2.º §, 27.º e 28.º), «tem a liberdade de decidir» (do artigo 25.º) ou «compete» (dos artigos 26.º, 1.º parágrafo, e 29.º) têm o mesmo sentido. Distinta mesmo, só a redacção do artigo 19.º, que, todavia, resultou da fusão de duas propostas de emenda (francesa e italiana) que visaram, com êxito, a eliminação do texto da LUC, de uma disposição idêntica ao artigo 21.º das resoluções da Haia, constante do projecto dos peritos, e a sua substituição por «uma reserva na convenção anexa»] e do próprio artigo 1.º da Convenção [«As Altas Partes Contratantes obrigam-se a adoptar nos territórios respectivos, quer num dos textos originais, quer nas suas línguas nacionais, a lei uniforme que constitui o anexo I da presente Convenção. Esta obrigação poderá ficar subordinada a certas reservas, que deverão eventualmente ser formuladas por cada uma das Altas Partes Contratantes no momento da sua ratificação ou adesão.
Estas reservas deverão ser escolhidas entre as mencionadas no anexo II da presente Convenção» (sublinhámos)].
Ora, se, para legislar sobre matéria das reservas, as Partes Contratantes têm de formular, imprescindivelmente, a correspondente declaração, nos termos previstos pela Convenção, a falta de qualquer declaração de reserva, por parte de uma delas, só pode ter uma consequência: nesse país, com a entrada em vigor da LUC, ficaram revogadas todas as normas que, antes, disciplinavam as matérias próprias do direito do cheque que são reguladas por aquela ou que se incluem em qualquer das reservas dos artigos 1.º a 30.º do anexo II.
Assim sendo, como Portugal nunca fez qualquer declaração de reserva, o § único do artigo 14.º do Decreto 13 004, porque disciplinava matéria própria do direito do cheque incluída na reserva do artigo 16.º do anexo II, cessou a sua vigência, no momento em que, no nosso país, entrou em vigor a LUC.
Resumindo: ao iniciar-se a vigência da LUC em Portugal, deixaram de vigorar a 1.ª parte do corpo do artigo 14.º do Decreto 13 004 e o seu § único; a 2.ª parte do corpo do artigo, pelo contrário, continuou em vigor.
III - Conclusão
Depois de, regularmente, ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador, por escrito, solicitou ao banco sacado que o não pagasse porque se lhe tinha extraviado. Por essa razão, quando o tomador/portador lhe apresentou o cheque, para pagamento, dentro do respectivo prazo legal, o sacado recusou pagá-lo, lançando a correspondente declaração, com a menção «extraviado», no verso do título.Na realidade, como o sacador sabia perfeitamente, o cheque nunca se extraviara.
1 - Pergunta-se:
a) Ao alegar, mentirosamente, na comunicação escrita ao banco sacado, que o cheque se extraviara, o sacador cometeu um crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do CP de 1982? b) E o banco sacado, ao lançar, no verso do cheque, a declaração de recusa nos termos referidos, faz constar, do título, o mesmo facto falso? E, se assim foi, o sacador cometeu, por isso, um crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.os 1, alínea b), e 2? Começaremos pela dupla questão formulada na alínea b).
1.1 - O caso é, claramente, o de uma contra-ordem de pagamento ou revogação do cheque, com fundamento em alegado extravio, com a qual o banco sacado se conformou, recusando o pagamento ao tomador, no prazo de apresentação.
Logo, o sentido da declaração do sacado, mais ou menos imperfeitamente expressa no verso do cheque, só pode ser: recusado o pagamento em virtude de o sacador ter revogado o cheque com a alegação de que estava extraviado.
Já se vê, portanto, que o que o sacado afirma não é propriamente que o cheque se extraviou, mas, sim, que o sacador lhe comunicou que isso tinha acontecido. Ora, na realidade, foi essa, exactamente, a comunicação que lhe foi feita pelo sacador.
Mas, se assim é, se o declarado coincide com o realmente acontecido, então, da declaração do sacado não consta nenhum facto falso e, portanto, pelo facto de este a ter exarado no verso do título, o sacador não cometeu o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.os 1, alínea b), e 2.
1.2 - A carta que o sacador remeteu ao banco sacado é, atenta a distinção referida em I, n.º 1.3, um documento particular.
A invocação do extravio, contida em tal documento, consubstancia a descrição ou relato da ocorrência de um facto, na realidade, inexistente.
Estamos perante um falso facto, juridicamente relevante, isto é, que faz nascer, modificar ou extinguir uma relação jurídica, ou, mais genericamente, que tem consequências jurídicas? 1.2.1 - Lei Uniforme Relativa ao Cheque:
«Artigo 21.º
Quando uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de um cheque, o detentor a cujas mãos ele foi parar - quer se trate de um cheque ao portador, quer se trate de um cheque endossável em relação ao qual o detentor justifique o seu direito pela forma indicada no artigo 19.º - não é obrigado a restituí-lo, a não ser que o tenha adquirido de má fé, ou que, adquirindo-o, tenha cometido uma falta grave.» Como flui deste preceito, o extravio do cheque não é causa de extinção ou modificação dos direitos e obrigações dos que, antes, eram subscritores cambiários, nem, por si, faz nascer qualquer direito ou obrigação para quem quer que seja.Mas, dir-se-á, na medida em que não fica excluída a possibilidade de o título vir a ser adquirido, posteriormente, a non domino, o extravio terá, pelo menos, determinado a extinção do direito de propriedade daquele a quem se extraviou. Não é assim. Tal direito subsiste, apesar e para além do extravio, podendo o desapossado requerer, judicialmente, a sua reforma (artigo 1072.º do Código de Processo Civil) e reivindicá-lo do terceiro em cujas mãos aparecer (cf. Pinto Coelho, apud Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Cheques, 2.ª ed., Atlântida Editora, Coimbra, 1977, p. 99).
É certo, porém, que a reivindicação não conduzirá, necessariamente, à recuperação do título, já que, se o tiver adquirido de boa fé, o actual detentor não está obrigado a restituí-lo. Mas, mesmo nesse caso, a não recuperação do cheque não é consequência da extinção ou modificação do conteúdo do direito do desapossado que tenha sido efeito directo do extravio.
Na verdade, o direito daquele a quem o cheque se extraviou é sempre o mesmo, quer o actual detentor o tenha adquirido de boa fé ou com má fé ou culpa grave. O que é distinta é a eficácia da tutela que lhe é, legalmente, conferida, numa situação e noutra, ou seja, no confronto com a protecção da posse do adquirente de má fé ou com culpa grave ou com a do adquirente de boa fé: no primeiro caso, a lei dá total prevalência ao seu direito; no segundo, porém, privilegia, antes, o do actual detentor. Porquê? Talvez, também, por se partir do princípio de que o desapossado poderia mais facilmente evitar o extravio do que o adquirente impedir a aquisição a non domino; seguramente, porque, atentas as condições de transmissibilidade do cheque, não se mostra curial fazer depender a protecção do adquirente da verificação de um facto negativo - não ter sido roubado ou não se ter extraviado ao proprietário (neste sentido, Vaz Serra, «Títulos de crédito», Boletim do Ministério da Justiça, n.º 61, p. 130). De qualquer modo, o que interessa reter é que o que impede o desapossado de recuperar o cheque é a inexistência do dever legal de o restituir, por parte do detentor que o adquiriu de boa fé, e não o facto do extravio (que só de forma mediata ou indirecta se relaciona com tal impedimento).
No âmbito que temos vindo a considerar, o extravio não se projecta, portanto, como facto juridicamente relevante.
Assumirá essa relevância no domínio da revogação do cheque ou da oposição ao pagamento? A resposta, na sequência lógica do anteriormente exposto, é negativa.
Com efeito:
Por um lado, durante o prazo de apresentação, a irrevogabilidade do cheque é absoluta; portanto, não admite excepções, nem mesmo em casos de verificação de «justa causa», como, v. g., o extravio e o desapossamento ilícito. Por outro, após o prazo de apresentação, é absolutamente eficaz, independentemente de ter ou não ter justificação. O direito à revogação não nasce, assim, por efeito directo do extravio.
No que respeita à oposição ao pagamento, nem pode pôr-se a questão da relevância jurídica do extravio porque, como oportunamente concluímos, o § único do artigo 14.º do Decreto 13 004 foi revogado com a entrada em vigor da LUC.
1.2.2 - Se assim é, se o extravio do cheque, em si e só por si, não tem consequência jurídica, então, o relato falso da sua ocorrência não basta para integrar a alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º do CP de 1982.
Logo, porque do documento que enviou ao sacado o sacador não fez constar, falsamente, facto juridicamente relevante, não cometeu ele o crime previsto e punido pelos citados preceitos legais.
[Será desnecessário acentuar que, não podendo, pelas razões expostas, colocar-se a questão da relevância jurídica do extravio, relativamente à oposição ao pagamento, a conclusão pela inexistência do crime era, também, a única a que se chegaria se a comunicação do sacador, ao sacado, fosse entendida, não como revogação do cheque, mas, apenas, como simples aviso, nos termos e para os efeitos do que dispunha o § único do artigo 14.º do Decreto 13 004.
E porque a integração do tipo legal de crime já está excluída, não interessa prosseguir na indagação sobre se a falsa declaração de extravio era ou não susceptível de causar prejuízo a outrem ou ao Estado ou de proporcionar um benefício ilegítimo ao sacador ou a terceiro, embora, face à irrevogabilidade absoluta do cheque, durante o prazo de apresentação, pareça, prima facie, que nenhum prejuízo poderia causar ao tomador/portador (ao sacado, não era lícito recusar-lhe o pagamento, com base na revogação e, pela mesma razão, em eventual acção que dirigisse contra o sacador, este também não poderia prevalecer-se dela para se eximir às suas responsabilidades) nem ao sacado (dado que este só estava legalmente obrigado a ignorá-la, no referido período); quanto ao benefício para o sacador ou terceiro, resultante do não pagamento, a declaração falsa não o podia proporcionar porque, repete-se, com fundamento nela, o pagamento não podia ser recusado.] 2 - Assente que a resposta à questão controvertida, tal como a formulámos inicialmente, é inteiramente negativa, resta fixar jurisprudência nesse sentido e, porque esta é eficaz no processo em que foi interposto o presente recurso, revogar o acórdão recorrido, para que a Relação do Porto o substitua por outro conforme àquela.
Termos em que acordam em revogar o acórdão recorrido, o qual deve ser substituído por outro, a proferir pelo Tribunal da Relação do Porto, em conformidade com a jurisprudência que ora se fixa, nos termos seguintes:
Se, na vigência do CP de 1982, mas antes do início da do Decreto-Lei 454/91, depois de ter preenchido, assinado e entregue o cheque ao tomador, o sacador solicita, por escrito, ao banco sacado que não o pague porque se extraviou (o que sabe não corresponder à realidade) e se, por isso, quando o tomador/portador lhe apresenta o cheque, dentro do prazo legal de apresentação, o sacado recusa o pagamento e, no verso do título, lança a declaração de que o cheque não foi pago por aquele motivo, o sacador não comete o crime previsto e punido pelo artigo 228.º, n.os 1, alínea b), e 2, nem o previsto e punido pelo artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do CP de 1982.
Sem custas.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2000. - Emanuel Leonardo Dias - Bernardo Guimarães Fisher de Sá Nogueira (votei a conclusão) - Virgílio António da Fonseca Oliveira - José Damião Mariano Pereira - Norberto José Araújo de Brito Câmara - António Gomes Lourenço Martins - Luís Flores Ribeiro (renovando a posição assumida no Acórdão de 14 de Maio de 1997) - António Luís Sequeira Guimarães - Hugo Afonso dos Santos Lopes (vencido, continuo a entender que a melhor jurisprudência é a do acórdão recorrido, como sempre defendi enquanto desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra) - Armando Acácio Gomes Leandro - Dionísio Manuel Dinis Alves - Sebastião Duarte Vasconcelos da Costa Pereira - Florindo Pires Salpico - António Correia de Abranches Martins (vencido nos termos da declaração do ilustre conselheiro Hugo Lopes) - (Tem voto de conformidade do Exmo.
Conselheiro Dr. Guimarães Dias, que não assina por, neste momento, não se encontrar presente - Leonardo Dias.)