I
1 - O Presidente da Assembleia da República requereu em 23 de Agosto de 1988, ao abrigo da versão então em vigor do artigo 281.º, n.º 1, da Constituição, a apreciação e declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da alínea c) do n.º 4 do artigo 24.º do Decreto-Lei 267/80, de 8 de Agosto (Lei Eleitoral para a Assembleia Regional dos Açores), e do artigo 9.º do Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril (diploma que aprovou o Estatuto Provisório da Região Autónoma da Madeira), com fundamento na violação do princípio ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição. Manifestou expressamente a sua anuência com o parecer subscrito por um assessor jurídico da Assembleia da República (parecer/informação n.º 25/V), o qual, por seu turno, apreciou um outro parecer elaborado pela Comissão Nacional de Eleições (CNE) em 22 de Julho do mesmo ano, no qual se solicitava que fosse requerida a declaração de inconstitucionalidade de tais normas.Este requerimento do Presidente da Assembleia da República vem instruído com os citados parecer/informação n.º 25/V e parecer da Comissão Nacional de Eleições e ainda com uma informação do director-geral do Secretariado Técnico dos Assuntos para o Processo Eleitoral (STAPE) sobre este último, em que se expressa concordância com o respectivo teor.
2 - O Presidente da Assembleia da República assume expressamente a fundamentação constante do parecer/informação n.º 25/V, através da aposição nele de um despacho de concordância datado de 22 de Agosto de 1988.
Impõe-se, por isso, destacar a fundamentação do pedido de apreciação e declaração de inconstitucionalidade relativamente a cada uma das normas.
No que toca à alínea c) do n.º 4 do artigo 24.º do Decreto-Lei 267/80, é alegado o seguinte:
A Comissão Nacional de Eleições partiu da verificação de que a Resolução 68/82, de 22 de Abril, do Conselho da Revolução declarou a inconstitucionalidade parcial, com força obrigatória geral, do artigo 4.º da mesma Lei Eleitoral para a Assembleia Regional dos Açores, relativamente à exigência de que os elegíveis para este órgão residissem habitualmente na Região por mais de dois anos, visto que tal artigo da lei não se contentava com limitar «a elegibilidade para a Assembleia Regional aos cidadãos portugueses eleitores com residência na Região». Considerou, por isso, a Comissão Nacional de Eleições que teria deixado de ser aplicável a norma instrumental que exigia que constasse do processo de apresentação de candidaturas um «atestado de residência de cada um dos candidatos comprovativo da residência habitual na Região há mais de dois anos»;
O assessor jurídico da Assembleia da República fez notar que do novo Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei 9/87, de 26 de Março, consta já uma norma que considera elegíveis para a Assembleia Regional dos Açores os cidadãos portugueses eleitores, salvas as restrições que a lei estabelecer, desde que tenham residência habitual na Região (artigo 13.º). Mas, face à anterior solução legislativa, considerou que da declaração de inconstitucionalidade de 1982 decorre «forçosamente» a inconstitucionalidade da norma questionada pela Comissão Nacional de Eleições, parecendo-lhe, eventualmente, redundante uma declaração de inconstitucionalidade autónoma desse preceito, a não se entender que o mesmo estaria já revogado implicitamente pelo citado artigo 13.º do citado Estatuto Político-Administrativo. Acabou, porém, por considerar necessária a declaração de inconstitucionalidade desta norma instrumental, manifestando, em última análise, acordo com a posição da Comissão Nacional de Eleições.
Relativamente ao artigo 9.º do Decreto-Lei 318-D/76, afirma-se o seguinte:
A Comissão Nacional de Eleições verificou que da Lei Eleitoral para a Assembleia Regional da Madeira (aprovada pela Lei 40/80, de 8 de Agosto) não consta qualquer norma sobre capacidade eleitoral passiva, encontrando-se apenas no Estatuto Provisório da Região Autónoma respectiva a norma que estabelece a elegibilidade dos cidadãos portugueses eleitores residentes habitualmente no território da Região há mais de um ano, salvas as restrições que a lei estabelecer. Por identidade de razão com a solução encontrada quanto à norma paralela dos Açores, deve considerar-se inconstitucional a exigência de que a residência habitual se prolongue por mais de um ano, a qual ofende o artigo 18.º, n.º 2, da lei fundamental;
O parecer 11/82 da Comissão Constitucional é «assaz convincente» quanto à desconformidade da exigência de certo tempo de duração para a residência habitual na Região relativamente à lei fundamental. O direito de ser investido em funções públicas como deputado regional é um direito fundamental de natureza política, só podendo ser restringido por lei e nos casos expressamente previstos na Constituição, isto por força do seu artigo 18.º, n.º 2. Acontece que a Constituição não contempla quaisquer restrições à elegibilidade para as assembleias regionais nem consente que se estabeleçam discriminações ou privilégios por motivos de ordem territorial ou de residência;
Nesta conformidade, impõe-se igualmente a declaração da inconstitucionalidade da exigência de duração de residência durante certo período, enquanto condição de elegibilidade como deputado da Assembleia Regional da Madeira.
3 - Notificado o Primeiro-Ministro para se pronunciar, querendo, sobre o pedido formulado, ao abrigo do artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio este, em nome do Governo, oferecer o merecimento dos autos (ofício a fl. 20).
II
4 - Nada obsta a que se entre no conhecimento dos pedidos formulados por quem tem legitimidade para o fazer.Cumpre, por outro lado, deixar afirmado que a 2.ª revisão constitucional, constante da Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho, não trouxe modificações que se reflictam nos termos das questões de constitucionalidade suscitadas pelo Presidente da Assembleia da República, havendo a notar apenas que foi aditado o artigo 50.º um n.º 3, «norma geral legitimadora da fixação de inelegibilidades», a qual visou colmatar «uma melindrosa lacuna» (José Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional, Lisboa, 1989, p. 50).
Abordar-se-ão em seguida cada uma das questões de constitucionalidade submetidas a este órgão.
5 - Questão da alegada inconstitucionalidade da alínea c) do n.º 4 do artigo 24.º do Decreto-Lei 267/80, de 8 de Agosto (Lei Eleitoral para a Assembleia Regional dos Açores):
5.1 - Conforme consta do parecer/informação n.º 25/V e do parecer da Comissão Nacional de Eleições, o Conselho da Revolução declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade parcial do artigo 4.º do Decreto-Lei 267/80 nos seguintes termos:
Ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 146.º e no n.º 1 do artigo 281.º da Constituição, o Conselho da Revolução, a solicitação do Presidente da Assembleia da República e precedendo parecer da Comissão Constitucional, resolve:
.........................................................................................................................
b) Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade parcial do artigo 4.º do Decreto-Lei 267/80, ou seja, na medida em que, não se contentando com limitar a elegibilidade para a Assembleia Regional aos cidadãos portugueses eleitores com residência na Região, exige ainda que essa residência se prolongue habitualmente por mais de dois anos, e isso por infringir o princípio constante do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição. [Resolução 68/82, de 7 de Abril de 1982, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 93, de 22 de Abril de 1982.] 5.2 - Tendo deixado de vigorar na ordem jurídica a norma que impunha como pressuposto da elegibilidade para a Assembleia Regional (hoje, após a 2.ª revisão constitucional, Assembleia Legislativa Regional) dos Açores a residência na Região dos cidadãos portugueses eleitores, com carácter de habitualidade, por mais de dois anos, deve reconhecer-se que a norma instrumental que dispunha sobre a prova deste requisito perdeu o seu sentido útil, na medida em que ficou privada de campo de aplicação:
4 - Cada lista é instruída com os seguintes documentos:
a) .....................................................................................................................
b) .....................................................................................................................
c) Atestado de residência de cada um dos candidatos comprovativo da residência habitual na Região há mais de dois anos. (Artigo 24.º do Decreto-Lei 267/80, de 8 de Agosto.] É, assim, inteiramente pertinente o raciocínio que o director-geral do Secretariado Técnico dos Assuntos para o Processo Eleitoral faz na informação junta a fl. 12 dos autos: tendo sido inconstitucionalizada a norma substancial (artigo 4.º do Decreto-Lei 267/80), «como consequência disso, a norma instrumental - alínea c) do n.º 4 do artigo 24.º do mesmo diploma-, exigindo, para aquele efeito, atestado de residência por mais de dois anos, deve seguir o mesmo caminho, como é óbvio».
Muito embora um segmento do artigo 4.º haja sido declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, em 1982 e tenha, entretanto, passado a vigorar o artigo 13.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores de 1987, não parecem justificar-se os receios, manifestados no parecer/informação n.º 25/V, de que poderia ser redundante a declaração de inconstitucionalidade da norma instrumental ou até que esta estaria já implicitamente revogada pela lei posterior. É que são distintos o plano substantivo ou substancial em que se situa o segmento da norma já declarada inconstitucional, bem como o segmento subsistente até 1987 (e depois substituído por outra norma), e o plano processual, em que surge a norma instrumental da alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do Decreto-Lei 267/80.
5.3 - Considera-se, por isso, justificar-se plenamente a declaração da inconstitucionalidade da norma instrumental, a qual é directa consequência da outra declaração de inconstitucionalidade que teve por objecto o referido segmento do artigo 4.º do Decreto-Lei 267/80.
6 - Questão da invocada inconstitucionalidade do artigo 9.º do Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril (Estatuto Provisório da Região Autónoma da Madeira):
6.1 - Dispõe o artigo 6.º deste diploma que a Assembleia Regional da Madeira é composta por deputados regionais, eleitos mediante sufrágio universal, directo e secreto, de harmonia com o princípio da representação proporcional e por círculos eleitorais. O artigo 7.º estabelece o número e delimitação dos círculos eleitorais e o modo de calcular o número de deputados eleitos por cada círculo. O artigo 8.º estabelece quem é eleitor na Região Autónoma da Madeira («serão eleitores os cidadãos portugueses inscritos no recenseamento eleitoral na área do respectivo círculo»). Finalmente, surge o artigo 9.º, relativamente ao qual se pede a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de um dos respectivos segmentos normativos:
Serão elegíveis os cidadãos portugueses eleitores, salvas as restrições que a lei estabelecer, desde que tenham residência habitual no território da Região há mais de um ano.
Importa desde já reconhecer que este artigo tem uma redacção semelhante à do artigo 4.º do Decreto-Lei 267/80, de 8 de Agosto, muito embora neste último não se faça qualquer referência às restrições à capacidade eleitoral passiva estabelecidas pela lei e, por outro lado, se exigisse (no segmento inconstitucionalizado) que a residência habitual se prolongasse por dois anos, em vez de um ano. Estas diferenças de redacção são manifestamente irrelevantes para o presente processo, impondo-se analisar se se considera justificada a doutrina acolhida então pelo Conselho da Revolução e que teve por base o parecer 11/82 da Comissão Constitucional, relativo à Região Autónoma dos Açores.
6.2 - Neste parecer da Comissão Constitucional acentuava-se a natureza das regiões autónomas enquanto pessoas colectivas territoriais ou de base territorial, as quais exercem não só funções administrativas, mas ainda funções da natureza política, por delegação do poder central. Punha-se igualmente em destaque a importância do território geograficamente delimitado de cada um dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e do seu elemento humano, os habitantes respectivos. Transcrevia-se, em abono dessa análise, um passo de uma obra do constitucionalista italiano Elio Gizzi, onde se afirma, relativamente às colectividades regionais italianas, que a «pertença de um indivíduo à região ocorre desde que o interessado faça parte da população residente, isto é, desde que tenha a morada habitual numa das comunas compreendidas no território regional» (Pareceres da Comissão Constitucional, 19.º vol., Lisboa, 1984, p. 64). E, depois de se historiarem os trabalhos da Assembleia Constituinte sobre o que viria a ser o artigo 233.º da Constituição, concluía-se que subsistia «irrefutada a delimitação que, de acordo com o sistema constitucional, se fez do eleitorado regional» (ob. cit., p. 67), transcrevendo-se um passo do comentário de Gomes Canotilho e Vital Moreira, no sentido de que a Constituição não define o colégio eleitoral regional, nem o âmbito da representação política da assembleia regional, mas de que sempre seria desnecessário fazê-lo, porque a assembleia «representa, a nível regional, os cidadãos da região autónoma e, sendo esta uma pessoa colectiva territorial infra-estadual, os cidadãos da região autónoma são os cidadãos aí residentes. O colégio eleitoral é, portanto, constituído pelos cidadãos recenseados nas freguesias das regiões autónomas» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.ª ed., Coimbra, 1978, p. 430; o mesmo passo mantém-se no 2.º vol. da 2.ª ed. da obra, a pp. 374-375).
Nesta linha de pensamento, a Comissão Constitucional considerou que violava a lei fundamental a norma do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei 267/80, na medida em que fazia incluir no colégio eleitoral regional, além dos cidadãos recenseados na Região, os cidadãos inscritos no recenseamento eleitoral no restante território nacional e no estrangeiro, desde que naturais da Região. É que tal norma violava o princípio da soberania popular, «que, no caso, impunha que só o elemento humano da região, isto é, os que nela residem, pudesse escolher os seus representantes na assembleia regional» (ob. cit., p. 68).
6.3 - Passando a observar a norma sobre capacidade eleitoral passiva da Lei Eleitoral para a Assembleia Regional dos Açores, fazia-se notar no mesmo parecer que o direito de ser investido em funções públicas, de carácter electivo ou não, era um direito fundamental de natureza política, que só podia ser restringido por lei e nos casos expressamente previstos na Constituição. Em tal norma deveriam distinguir-se dois incisos: um, em que se exigia, como pressuposto de elegibilidade, a residência na Região, e outro, em que se exigia ainda, como pressuposto de elegibilidade, que tal residência se protelasse com carácter habitual por mais de dois anos.
No primeiro inciso não descobriu a Comissão Constitucional qualquer limitação ao direito fundamental de poder ser eleito como deputado regional:
Os eleitores, já se viu, terão de ser os residentes na Região. Dizendo-se aí que os elegíveis provêm dos residentes, é dizer, dos eleitores, está-se a afirmar uma regra de direito eleitoral constitucionalmente reconhecida. A referência à residência não é uma restrição; decorre da necessidade de definir o elegível natural. [Pareceres, cit., 19.º vol., p. 94.] Já no segundo inciso haveria, segundo o mesmo parecer, uma restrição inconstitucional:
Porque impossível, ex vi do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, o estabelecimento de restrições aos direitos, liberdades e garantias nela não expressamente mencionados, infere-se que a inelegibilidade decorrente do facto de se não residir na Região Autónoma dos Açores há mais de dois anos é contrária à lei fundamental, já que nesta nada tal autoriza.
Nesta perspectiva, o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição reprova de imediato a desigualdade criada na Região Autónoma dos Açores entre os aí residentes há mais de dois anos e há menos tempo.[Ob. cit., pp. 94-95.] 6.4 - Foi com base neste parecer da Comissão Constitucional que foi publicada a Resolução 68/82 do Conselho da Revolução, acima transcrita.
6.5 - Por ocasião das eleições para a Assembleia Regional dos Açores em 9 de Outubro de 1988 teve ocasião o Tribunal Constitucional de reexaminar a doutrina do parecer 11/82 da Comissão Constitucional num recurso de contencioso de apresentação de candidaturas àquele órgão.
Sucedeu que uma das forças concorrentes impugnou a admissão de um candidato de outra lista por este não ter residência habitual na Região dos Açores, uma vez que desempenhava há mais de dois anos funções de assessor junto de um órgão de soberania com sede em Lisboa, em comissão de serviço, detendo a qualidade funcional de técnico superior do quadro da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros. O Tribunal de Ponta Delgada rejeitou a impugnação, considerando inconstitucional a norma do artigo 13.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, na parte em que impunha, como requisito da capacidade eleitoral passiva, a residência habitual na Região. Esta decisão foi confirmada pelo Acórdão 189/88 do Tribunal Constitucional (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 232, de 7 de Outubro de 1988). Aí se escreveu:
Ora, de harmonia com o disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 267/80, «são eleitores da Assembleia Regional os cidadãos inscritos no recenseamento eleitoral no território nacional».
Assim sendo, o facto de o candidato em causa dispor de residência na Região Autónoma dos Açores (não importa qual o tempo da sua duração, nem a sua habitualidade, reconhecendo, aliás, o Código Civil, no seu artigo 82.º, ao lado da residência habitual, a residência ocasional) - e este requisito da apresentação de candidaturas não foi, nesta parte, infirmado pela recorrente, que apenas questionou a existência de uma residência habitual - constitui, no plano que se vem considerando, elemento decisivo para servir de suporte à existência de capacidade eleitoral passiva.
E, a esta luz, deve ter-se por ajustada a recusa de aplicação de parte da norma do artigo 13.º da Lei 30/80, na redacção da Lei 9/87, por aí se impor uma restrição constitucionalmente não consentida, por razões idênticas às que serviram de suporte ao parecer 11/82 da Comissão Constitucional, ao direito fundamental a ser eleito a quem é eleitor. Na verdade, por mais relevante que se tenha, jurídico-constitucionalmente, um requisito de conexão entre um candidato e a respectiva região autónoma, sempre, porém, terá de se considerar excessiva a exigência qualificada de uma residência habitual, a qual, além do mais, sempre poderá suscitar graves dificuldades no plano da sua densificação conceitual e da prova necessária, dificuldades acrescidas em processos com a natureza de que se revestem os processos eleitorais. [P.
9287.] 6.6 - Importa dilucidar, sucessivamente, duas questões: a primeira versa sobre a constitucionalidade da exigência de uma residência habitual, como condição de elegibilidade como deputado a uma assembleia legislativa regional; a segunda tem por objecto a questão de saber se a lei eleitoral pode exigir que a residência habitual se prolongue por certo período mínimo, um ano, neste caso concreto.
Invertendo a ordem das questões, dir-se-á de imediato que se considera constitucionalmente ilegítima a exigência de que a residência habitual se prolongue por certo tempo, seja esse período de três ou seis meses, um ano, dois anos ou mais. Valem por inteiro neste domínio as razões constantes do parecer 11/82 da Comissão Constitucional. Tratando-se de um direito fundamental de participação política, o direito de ser eleito deputado a uma assembleia legislativa regional só pode ser restringido nos termos da lei, nos casos expressamente previstos na Constituição (artigo 18.º, n.º 2, desta última), nomeadamente nos termos do disposto hoje no n.º 3 do artigo 50.º da lei fundamental (preceito aditado pela Lei Constitucional 1/89, de 8 de Julho):
No acesso a cargos electivos a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respectivos cargos.
Na linha do que se escreveu no citado parecer 11/82, bem pode repetir-se que a inelegibilidade decorrente do facto de se não residir na Região Autónoma da Madeira há mais de um ano «é contrária à lei fundamental, já que nesta nada tal autoriza» (Pareceres, cit., 19.º vol., p. 95). Nessa perspectiva, os artigos 18.º, n.º 2, e 50.º, n.º 3, da Constituição reprovam, manifestamente e de forma imediata, que, assim, seja criada uma desigualdade entre os residentes há mais de um ano e há menos tempo.
6.7 - Já quanto à primeira questão, a resposta a dar diverge da que foi avançada em 1982 pela Comissão Constitucional e acolhida em 1988 pelo Tribunal Constitucional no citado Acórdão 189/88.
Na verdade, entende-se que não é uma exigência excessiva a que condiciona a capacidade eleitoral passiva à residência habitual na região autónoma respectiva.
Explicar-se-ão de seguida as razões de tal juízo.
A primeira condição para ser elegível para a assembleia legislativa regional é a de ser eleitor na própria região. Já vimos que são eleitores desta assembleia legislativa regional os «cidadãos portugueses inscritos no recenseamento eleitoral na área do respectivo círculo» [artigo 8.º do Estatuto Provisório da Região Autónoma da Madeira (Decreto-Lei 318-D/76)].
Ora a inscrição de um eleitor no recenseamento é feita, nos termos da legislação aplicável na matéria, «no local de funcionamento da entidade recenseadora da unidade geográfica da sua residência habitual» (artigo 10.º, n.º 1, da Lei 69/78, de 3 de Novembro). A unidade geográfica em causa é, no continente e nas regiões autónomas, a freguesia [artigo 9.º, n.º 1, alínea a), da mesma Lei 69/78].
Todavia, tem de reconhecer-se que o Estatuto Provisório da Região Autónoma da Madeira atribui capacidade eleitoral passiva a cidadãos portugueses eleitores recenseados em qualquer freguesia do território nacional (e, portanto, não só naquela região autónoma em concreto), desde que tenham residência habitual na Região há mais de um ano. Admitido como pacífico que é inconstitucional a restrição de exigência de um período mínimo de residência habitual, já não se considera constitucionalmente ilegítima a exigência de residência habitual, a qual não gera qualquer desigualdade com os candidatos recenseados em qualquer freguesia da Região Autónoma da Madeira [isto, claro, enquanto se mantiver a solução da actual Lei do Recenseamento Eleitoral, de exigir a residência habitual numa freguesia para inscrição no respectivo caderno de recenseamento (citados artigos 9.º e 10.º da Lei 69/78); a constitucionalidade dessa solução não foi, de resto, posta em causa pela Comissão Constitucional (cf. parecer 20/78, in Pareceres, cit., vol. 6.º, 1979, p. 128)].
6.8 - O conceito de residência habitual reveste-se de grande importância no direito português contemporâneo. Enquanto no Código Civil de 1867 se chamava domicílio ao lagar onde o cidadão tinha a sua residência permanente (artigo 41.º) - sendo certo que o domício eleitoral era, no domínio da Constituição de 1911, o da residência do cidadão por um período mínimo de seis meses (Lei Eleitoral de 3 de Julho de 1913, artigo 16.º) - o domicílio determina-se, no domínio do actual Código Civil, pela residência habitual da pessoa, em primeira linha (artigo 82.º, n.º 1). A residência habitual não se confunde, nem com a residência permanente, a qual releva, por exemplo, em matéria de direito do arrendamento [artigo 1093.º, n.º 1, alínea i), do Código Civil, cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., 1986, pp. 549-550], nem com a residência ocasional, nem ainda com o paradeiro [«na falta de residência habitual, considera-se domiciliada no lugar da sua residência ocasional ou, se esta não puder ser determinada, no lugar onde se encontrar» (artigo 82.º, n.º 2, do Código Civil)]. O próprio Código Civil admite que a pessoa tenha mais de um domicílio voluntário, «se residir alternadamente em diversos lugares» (artigo 82.º, n.º 1, segunda parte). Por outro lado, deixou de se fazer referência no novo Código Civil à morada.
Não é forçoso que a lei civil, a lei fiscal ou a lei eleitoral tenham de acolher a mesma noção de residência ou de domicílio, atendendo às finalidades diversas prosseguidas por cada uma delas. Não se afigura, porém, constitucionalmente ilegítimo que, em matéria eleitoral, se acolha, para efeitos de recenseamento e para efeitos de apresentação de candidaturas a cargos electivos em pessoas colectivas de base territorial, a noção de residência habitual. Bem pode dizer-se que a esmagadora maioria das pessoas dispõe de uma única residência habitual, local onde a pessoa costuma permanecer e residir, onde vive com estabilidade e onde tem organizada a sua economia doméstica. Tal noção corresponderá à de residência efectiva que aparecia na legislação de recenseamento do regime deposto em 1974.
No plano constitucional, acha-se estabelecido, em matéria de recenseamento, que este é oficioso, obrigatório, permanente e único para todas as eleições por sufrágio directo e universal (artigo 116.º, n.º 2). No plano da lei ordinária, o recenseamento só é voluntário para os cidadãos eleitores residentes no território de Macau e no estrangeiro. Quando o recenseamento é obrigatório, isto é, quando os cidadãos eleitores residem habitualmente no território nacional, estes têm o direito e o dever de promover a sua inscrição no recenseamento e a própria entidade recenseadora pode fazer oficiosamente a respectiva inscrição (artigo 4.º, n.os 2 e 3, da Lei 68/78, tendo o n.º 3 sido aditado pelo artigo 1.º da Lei 81/88, de 20 de Julho), bem como operar a transferência de inscrição dos eleitores que hajam mudado a sua residência habitual (artigos 26.º e 31.º da Lei do Recenseamento Eleitoral). Deve notar-se que as alterações de 1988 em matéria de recenseamento acolheram parcialmente as propostas contidas no projecto de código eleitoral de 1987, onde se previa «que, quando o eleitor se encontre inscrito no recenseamento em circunscrição diversa daquela onde habitualmente reside, a comissão recenseadora ou qualquer delegado de partido político nela representado requeira ao tribunal que ordene a transferência ou a eliminação da inscrição, consoante os casos» (Relatório do Projecto, separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 364, pp. 19-20, com referência aos artigos 77.º a 81.º). Deve notar-se que este projecto mantinha a regra de que os eleitores são inscritos no local de funcionamento da entidade recenseadora correspondente à circunscrição da sua residência, esclarecendo-se que o «domicílio obrigatório determinado por lei não é considerado residência habitual» (artigo 50.º, n.º 2).
Acentue-se que, sendo Portugal um país de emigração, o conceito de residência não permite, só por si, conferir o direito de sufrágio aos emigrantes que, embora mantenham, em regra, residência no território nacional, residem habitualmente no país estrangeiro onde trabalham.
6.9 - A exigência de que sejam elegíveis os cidadãos eleitores que tenham residência habitual na Região Autónoma da Madeira corresponde, tendencialmente, ao princípio geral de direito eleitoral de que a capacidade eleitoral passiva depende da capacidade eleitoral activa, de que só é elegível quem é eleitor (cf. Jorge Miranda, «O direito eleitoral na Constituição», in Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., 1978, p. 473). Diz-se que a correspondência é tendencial porque se admite, como já se referiu, que possam apresentar-se ao sufrágio como candidatos a deputados regionais cidadãos que estejam indevidamente recenseados fora da respectiva região autónoma, visto que aí residem habitualmente, ou que não tiveram oportunidade temporal de transferir a sua inscrição no recenseamento.
Na verdade, nos termos da Constituição vigente, as regiões autónomas são entidades públicas territoriais ou de base territorial, sendo a colectividade que lhes serve de substrato pessoal constituída por todos os cidadãos portugueses que aí residam, independentemente do seu lugar de nascimento. Não existe uma «subcidadania» regional determinada pelo lugar de origem (nascimento na respectiva região autónoma).
Ora, sendo o recenseamento organizado com base na residência habitual numa circunscrição administrativa (a freguesia), é compatível com a lei constitucional a concessão de capacidade eleitoral passiva aos cidadãos eleitores recenseados que tenham residência habitual na região (ainda que não estejam recenseados em freguesia da região autónoma, embora devendo aí estar recenseados). Mais exigente era a solução constante do artigo 14.º do projecto de código eleitoral, na medida em que impunha rigidamente o princípio de coincidência entre eleitores e elegíveis:
São elegíveis para as assembleias regionais dos Açores e da Madeira os cidadãos portugueses eleitores das respectivas assembleias regionais.
Nega-se, por isso, que se verifique na exigência de residência habitual na região autónoma para determinação da capacidade eleitoral passiva em causa uma qualquer restrição inconstitucional, uma exigência excessiva ou desnecessária. Existe tão-somente uma solução que tutela o princípio de igualdade entre os cidadãos residentes habitualmente na respectiva região autónoma e se adequa à concepção de região autónoma no ordenamento constitucional (artigo 227.º, n.os 1 e 2). Aceitar solução diferente implicaria a inconstitucionalidade do artigo 10.º da própria Lei do Recenseamento Eleitoral vigente.
Parafraseando o que se escreveu no parecer 11/82 da Comissão Constitucional, a referência à residência habitual não é uma restrição, antes decorre da necessidade de definir o elegível natural, face ao eleitor regional.
III
7 - Nos termos expostos, decide o Tribunal Constitucional:a) Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade consequencial da norma da alínea c) do n.º 4 do artigo 24.º do Decreto-Lei 267/80, de 8 de Agosto;
b) Declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 50.º, n.º 3, e 18.º, n.º 2, da Constituição, da norma do artigo 9.º do Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril, na parte em que, além da residência habitual que é exigida no território da Região, exige ainda que esta dure há mais de um ano.
Lisboa, 23 de Abril de 1990. - Armindo Ribeiro Mendes - Bravo Serra - Mário de Brito - Vítor Nunes de Almeida - Alberto Tavares da Costa - Fernando Alves Correia - Messias Bento (vencido, em parte, nos termos da declaração de voto junta) - Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - Antero Alves Monteiro Dinis (vencido, em parte, nos termos da declaração de voto que junto) - António Vitorino (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) - José Manuel Cardoso da Costa [embora tenha votado o parecer 11/82 da Comissão Constitucional e o Acórdão 189/88 deste Tribunal, revista agora a questão da exigência da «habitualidade» da residência como requisito de elegibilidade para a assembleia regional, acabei, afinal, por convencer-me de que essa exigência, só por si (isto é, desde que não ligada a uma certa duração), não pode dizer-se contrária à Constituição, por violação do direito de candidatura. Consideração decisiva para tanto foi a de a mesma exigência se fazer na própria lei do recenseamento eleitoral.
Como no acórdão se dá conta, e assim, logo por aí, condicionar o direito de sufrágio] - (tem voto de conformidade do Exmo. Sr. Conselheiro Luís Nunes de Almeida, que não assina por não estar presente) - Armindo Ribeiro Mendes.
Declaração de voto
Em meu entender, a norma do artigo 9.º do Decreto-Lei 318-B/76, de 30 de Abril, é inconstitucional, na parte em que exige que para serem elegíveis para a Assembleia Regional da Madeira os cidadãos portugueses eleitores aí tenham residência habitual há mais de um ano, não se contentando, pois, com o simples facto de eles aí terem residência.As razões do meu voto são as seguintes:
1 - Decorre do artigo 9.º que a primeira condição para ser elegível para a Assembleia Regional da Madeira é ser eleitor, o que significa que a capacidade eleitoral passiva se acha vinculada à capacidade eleitoral activa: só pode ser eleito quem for eleitor.
É este um princípio que a própria Constituição consagra para as eleições presidenciais e legislativas (cf. artigos 125.º e 153.º da Constituição da República Portuguesa) e que, por isso mesmo, certa doutrina considera dever ser aplicável às eleições regionais e às eleições autárquicas (cf. Jorge Miranda, «O direito eleitoral na Constituição», in Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., Lisboa, 1978, p. 473).
Se para ser elegível para a Assembleia Regional é necessário ser eleitor, então elegíveis são apenas cidadãos residentes na Região.
A propósito do colégio eleitoral regional, escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira:
[...] A Constituição não define o colégio eleitoral regional nem o âmbito de representação política da assembleia regional. Mas não precisava de dizê-lo: a assembleia representa, a nível regional, os cidadãos da região autónoma e, sendo esta uma pessoa colectiva territorial infra-estadual, os cidadãos da região autónoma são os cidadãos aí residentes. O colégio eleitoral é, portanto, constituído pelos cidadãos recenseados nas freguesias da região autónoma.
[Cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., Coimbra, 1985, pp. 374 e 375.] 2 - Quando a lei requer que para se poder ser eleito para a Assembleia Regional se tenha residência na Região, faz ela uma exigência que a Constituição consente: estando em causa a eleição para a assembleia legislativa de uma pessoa colectiva territorial, razoável é que só possam ser eleitos para ela aqueles que, de algum modo, «pertençam» à respectiva comunidade regional.
Ora, só pode ser havido como pertencendo de alguma maneira à comunidade da Região quem aí tiver residência.
Ter residência na Região é, na verdade, ter uma qualquer ligação com a comunidade que aí vive; é não ser um estranho ou um forasteiro - alguém que está simplesmente de passagem.
Como ponderou a Comissão Constitucional a propósito do já citado artigo 4.º do Decreto-Lei 267/80, «a referência à residência não é uma restrição;
decorre da necessidade de definir o elegível natural» (Pareceres da Comissão Constitucional, 19.º vol., p. 94).
3 - Já, porém, quando a lei exige, como pressuposto de elegibilidade, que a residência na Região seja uma residência habitual há mais de um ano, se faz uma exigência excessiva. Num tal caso, a lei faz apelo a um critério - o da residência habitual da Região há mais de um ano - que, não sendo razoável como modo de definir o universo eleitoral passivo, introduz uma restrição no direito à candidatura.
E isso é assim - como este Tribunal pôs em destaque no Acórdão 189/88, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 7 de Outubro de 1988, tirado a propósito do artigo 13.º da Lei 39/80, de 5 de Agosto, na redacção da Lei 9/87, de 26 de Março - «por mais relevante que se tenha, jurídico-constitucionalmente, um requisito de conexão entre um candidato e a respectiva região autónoma».
Foi por isso que o Conselho da Revolução, precedendo parecer da Comissão Constitucional, veio a declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade parcial do artigo 4.º do Decreto-Lei 267/80, de 8 de Agosto, «na medida em que, não se contentando com limitar a elegibilidade para a Assembleia Regional aos cidadãos portugueses eleitores com residência na Região, exige ainda que essa residência se prolongue habitualmente por mais de dois anos» (cf. Resolução 68/82, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 22 de Abril de 1982).
E essa foi também a razão que levou o Tribunal Constitucional, no seu já citado Acórdão 189/88, a julgar inconstitucional a norma do artigo 13.º da Lei 39/80, de 5 de Agosto, na redacção da Lei 9/87, de 26 de Março (Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores), que dispõe serem «elegíveis os cidadãos portugueses eleitores, salvas as restrições que a lei estabelecer, desde que tenham residência habitual na Região».
4 - A exigência legal de se ter residência habitual na Região há mais de um ano para aí se poder ser candidato a deputado regional é, pois, uma exigência constitucionalmente ilegítima.
«O poder poético pertence ao povo» (cf. artigo 111.º da Constituição), que o exerce, desde logo, «através do sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico» (cf. artigo 10.º, n.º 1).
Como «todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do País, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos» (cf. artigo 48.º, n.º 1), todos eles, desde que maiores de 18 anos, têm direito de sufrágio, «ressalvadas as incapacidades previstas na lei geral» (cf. artigo 49.º, n.º 1).
O sufrágio é, pois, em princípio, universal. E, em princípio também, o direito de sufrágio activo e o direito de sufrágio passivo haverão de coincidir, ao menos tendencialmente.
«Todos os cidadãos têm o direito de acesso, em condições de igualdade e liberdade, aos cargos públicos» (cf. n.º 1 do artigo 50.º), sendo que «ninguém pode ser prejudicado na sua colocação, no seu emprego ou nos benefícios sociais a que tenha direito em virtude do exercício de direitos políticos ou do desempenho de cargos públicos» (cf. n.º 2 do artigo 50.º).
Decorre daqui, como este Tribunal já sublinhou, que «o direito de sufrágio passivo é verdadeiro direito subjectivo público: o Estado deverá, nomeadamente, garantir o direito à candidatura, segundo os princípios do sufrágio universal, livre e pessoal e o direito à manutenção e exercício, sem prejuízo pessoal, do mandato» (cf. Acórdão 602/89).
Do dever, que impende sobre o Estado, de garantir na medida máxima possível a realização do direito de sufrágio promana o carácter excepcional das restrições (cf. artigo 18.º, n.º 2). «No acesso a cargos electivos a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respectivos cargos», prescreve o n.º 3 do artigo 50.º 5 - Pois bem: exigir-se que se tenha residência habitual na Região há mais de um ano para se poder ser candidato a deputado regional é restringir a capacidade eleitoral passiva de um modo tal que não pode justificar-se com a necessidade de garantir a liberdade de escolha dos eleitores (ou seja, com o objectivo de prevenir a metus publicae potestatis ou a captatio benevolentiae) nem com a necessidade de garantir a isenção e independência do exercício do respectivo cargo. É, em suma, fazer uma exigência excessiva, porque desnecessária. É, por outras palavras, impor uma restrição não consentida pelo n.º 3 do artigo 50.º e, assim, em contradição com o que dispõe o n.º 2 do artigo 18.º - Messias Bento.
Declaração de voto
Votei vencida quanto à não declaração de inconstitucionalidade do requisito «residência» a que se refere a norma contida no artigo 9.º do Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril (Estatuto Provisório da Região Autónoma da Madeira).Desde logo, porque a Constituição não estabelece qualquer princípio de correspondência concreta entre a capacidade eleitoral activa e a capacidade eleitoral passiva. A correspondência entre a capacidade para ser eleitor e para ser eleito é uma correspondência meramente abstracta, não valendo, constitucionalmente, a afirmação de que só pode ser eleito para determinado órgão quem for eleitor para o mesmo órgão.
O princípio da mera correspondência abstracta tem uma clara expressão na organização do sufrágio ao nível das autarquias: qualquer cidadão português pode votar em Vila Real e candidatar-se ao Município de Lisboa, por exemplo.
Poder-se-ia afirmar que, considerado aquele princípio na sua simplificada formulação e dispensada uma leitura «sistemática» dos preceitos constitucionais, se deixaria de fora um conjunto de valores também constitucionalmente afirmados. No caso em apreço seria possível argumentar-se que a defesa constitucional da autonomia política das regiões autónomas tem como desiderato o condicionamento da capacidade eleitoral passiva à residência na região. Só assim estaria preservada a comunidade política cujos interesses vão ser representados pelos órgãos a eleger. A residência seria um limite imanente, não uma restrição ao direito de ser eleito.
Em nosso entender, esse argumento não procede.
Em primeiro lugar, o que é decisivo para a autonomia é a delimitação do universo dos eleitores, e não do universo dos eleitos.
A eleição resulta de uma convergência de actos de vontade dos residentes. Só estes podem determinar quem representa os seus interesses, ponderar o nível de identificação do candidato com a comunidade política. Nesta perspectiva, pode mesmo afirmar-se que o critério da residência, ao invés de defender a autonomia, a limita, na medida em que restringe o universo de escolha dos mais interessados em preservá-la.
A defesa da autonomia é assegurada, assim, no próprio exercício de sufrágio.
Salvaguardadas neste as condições de liberdade e universalidade, o candidato «estranho ao meio» só pode ter uma sanção política: não é eleito ou não volta a ser eleito. É um juízo que apenas respeita ao âmbito do mercado político.
Mas não é o intérprete da lei fundamental que, hipertrofiando o zelo da autonomia, a pode fazer valer através de uma «profilaxia jurídica» que restringe um direito fundamental.
O direito de sufrágio passivo beneficia da especial densidade normativa dos preceitos constitucionais que o consagram (artigos 48.º, n.º 1, 49.º e 50.º da Constituição da República Portuguesa). São preceitos sobre direitos fundamentais, vocacionados a uma plena eficácia.
A especial força vinculativa daquelas normas é patente no artigo 18.º da Constituição. Nos termos do seu n.º 2, «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
O princípio da excepcionalidade das restrições dos direitos fundamentais ali consagrado não significa apenas a proibição da afectação do núcleo essencial dos respectivos preceitos. Significa também a proibição desnecessária.
Como diz Vieira de Andrade, «o poder de restrição é um poder excepcional, não apenas porque necessita de ser autorizado, mas também porque não se justifica, em regra, como regra. O legislador tem, por isso, de se basear num outro valor constitucional que imponha o sacrifício do direito fundamental. Se esse valor não existir ou não exigir tanto quanto o legislador alega, então a restrição não é legítima.» (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, p. 239.) E referem Gomes Canotilho e Vital Moreira: «Torna-se necessário que o interesse cuja salvaguarda se invoca para restringir um dos direitos, liberdades e garantias tenha no texto constitucional suficiente e adequada expressão [...] deve entender-se que nem todos os interesses constitucionalmente garantidos são adequados, sobretudo quando se trata de cláusulas demasiado vagas para suportarem qualquer confronto consistente com os direitos, liberdades e garantias.» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., vol. I, Coimbra, 1984, p.170.) Confrontemos de novo o direito de sufrágio passivo e a autonomia regional.
O direito de sufrágio passivo traduz-se, em primeiro lugar, numa posição jurídica subjectiva fundamental, mas ultrapassa a sua dimensão isolada de direito individual: a sua realização é a garantia do processo de comunicação em que se traduz o sufrágio, é, afinal, a garantia do princípio democrático.
A autonomia regional, conforme resulta dos artigos 227.º e seguintes da Constituição, não se traduz na atribuição de posições jurídicas subjectivas fundamentais. A dimensão da autonomia é uma dimensão institucional-política.
Como diria Dworkin, não é um direito (right), mas uma política (policy).
É a vontade manifestada no sufrágio que serve à defesa da autonomia. Só o processo de escolha política pode sancionar os candidatos que não se identificam com os interesses da sociedade política em causa. Em democracia, como diz Popper, o dia das eleições é um dia de julgamento.
A inadmissibilidade de restringir o direito de sufrágio passivo mediante a introdução do requisito da residência e dos qualificativos da sua habitualidade e duração há mais de um ano encontra ainda apoio constitucional na norma contida no artigo 50.º, n.º 3, da Constituição, introduzida pela Lei Constitucional 1/89. O programa limitativo do seu enunciado não se compadece com uma qualquer restrição da capacidade eleitoral passiva. E isto para já não falar da liberdade de fixação de residência (artigo 44.º da Constituição da República Portuguesa), que, eventualmente funcionalizada em vista da realização daquele direito, seria indirectamente restringida. - Maria da Assunção Esteves.
Declaração de voto
1 - O Tribunal Constitucional, pelo seu Acórdão 189/88 (Diário da República, 2.ª série, de 7 de Outubro de 1988), de que o signatário da presente declaração de voto foi relator, julgou inconstitucional a norma do artigo 13.º da Lei 39/80, de 5 de Agosto, na redacção da Lei 9/87, de 26 de Março (Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores), segundo a qual «são elegíveis os cidadãos portugueses eleitores, salvas as restrições que a lei estabelecer, desde que tenham residência habitual na Região».Para tanto ateve-se o referido aresto à consideração de que se impunha naquele normativo uma restrição constitucionalmente não consentida, porquanto, «por mais relevante que se tenha, jurídico-constitucionalmente, um requisito de conexão entre um candidato e a respectiva região autónoma, sempre, porém, terá de se considerar excessiva a exigência qualificada de uma residência habitual, a qual, além do mais, sempre poderá suscitar graves dificuldades no plano da sua densificação conceitual [...]».
Continua a perfilhar-se este entendimento e, como consequência da sua aplicação à hipótese posta no presente processo, votei no sentido de a norma do artigo 9.º do Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril, ser inconstitucional, na parte em que exige, como requisito da capacidade eleitoral passiva dos candidatos à Assembleia Regional da Madeira, a residência habitual há mais de um ano, quando o limite impositivo da lei não poderia ultrapassar a mera residência na área territorial da Região.
2 - Como é sabido, a capacidade eleitoral passiva depende da capacidade eleitoral activa - só é elegível quem é eleitor. Este princípio, inúmeras vezes acentuado na jurisprudência deste Tribunal [cf., por todos, o Acórdão 4/84 (Diário da República, 2.ª série, de 30 de Abril de 1984)], acha-se consagrado na Constituição (artigos 125.º e 153.º da Constituição), devendo, como sustenta alguma doutrina, ser aplicável às eleições regionais e autárquicas (cf.
Jorge Miranda, «O direito eleitoral na Constituição», in Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., pp. 461 e segs.).
Deste modo, tendo presente que o colégio eleitoral regional é constituído pelos cidadãos recenseados nas freguesias (cf. artigo 8.º do Decreto-Lei 318-D/76), então o universo dos elegíveis corresponde ao universo dos residentes na Região.
A residência representa o elemento definidor da ligação humana, social e cultural à pessoa colectiva territorial infra-estadual que é a Região Autónoma, não traduzindo, enquanto tal - dela decorre, aliás, a definição do elegível natural -, qualquer limitação ou restrição constitucionalmente proibida.
Mas o mesmo não se poderá já afirmar quando se qualifica o conceito de residência, que poderá, aliás, ser uma mera residência ocasional (artigo 82.º do Código Civil), introduzindo-lhe factores agravativos (residência habitual há mais de um ano), que são, simultaneamente, restrições à capacidade eleitoral passiva, não consentidas pelo artigo 50.º, n.º 3, da Constituição. - Antero Alves Monteiro Dinis.
Declaração de voto
Votei o projecto de acórdão inicialmente apresentado pelo relator, que declarava a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, quer da exigência de habitualidade da residência na região, quer do requisito de que tal residência habitual o devesse ser por mais de um ano, para efeitos de delimitação do universo de cidadãos elegíveis para as Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da Madeira, na sequência, aliás, do entendimento que perfilho quanto ao sentido da jurisprudência da Comissão Constitucional citada no aresto e do Acórdão 189/88 do Tribunal Constitucional (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 7 de Outubro de 1988).Em meu entender, o critério constitucionalmente relevante na definição de tal universo é o que decorre da natureza da representação da comunidade política constituída por cada região autónoma, em virtude de, nos termos constitucionais, as regiões constituírem pessoas colectivas de direito público de base territorial, dotadas de autonomia política e legislativa.
Esta autonomia exprime-se, entre outros aspectos, na existência de órgãos de governo próprio, sendo a assembleia regional (assembleia legislativa regional após a revisão constitucional de 1989) o órgão representativo eleito por sufrágio directo e universal, no quadro da realização do princípio da participação democrática dos cidadãos e tendo em vista a promoção e a defesa dos interesses regionais.
Neste quadro, o legislador, quer na definição do universo de cidadãos eleitores, quer na definição do universo dos elegíveis, deve, pois, ater-se, em sede de restrições da capacidade eleitoral activa e da capacidade eleitoral passiva, aos critérios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade, por forma a preencher os requisitos considerados mínimos de pertença ou identificação com a comunidade política cuja representação se pretende assegurar.
Pelo que, sem embargo da liberdade de conformação que assiste ao legislador, um julgamento da conformidade constitucional das soluções adoptadas na definição dos cidadãos elegíveis para as assembleias legislativas regionais deverá quedar-se pela identificação daqueles requisitos mínimos que garantam uma efectiva relação de identificação com a comunidade política a representar, devendo afastar-se todos aqueles outros que não se mostrem estritamente indispensáveis à conformação dessa necessária identidade de interesses entre representantes e representados.
A esta luz, a exigência de residência habitual há mais de um ano na Região não me parece admissível, porquanto estabelece requisitos excessivos e consequencia restrições não necessárias a uma rigorosa definição dos titulares de capacidade eleitoral passiva. O que, aliás, é reconhecido pelo próprio acórdão, quando considera inconstitucional o requisito de perdurabilidade da residência na região há mais de um ano. A minha divergência diz apenas respeito à exigência legal, que o aresto não censura, segundo a qual a residência na região, para efeitos de titularidade de capacidade eleitoral passiva, deve ser habitual.
Desde logo, porque a Constituição não confere, ela própria, elementos interpretativos do que para estes efeitos se deva entender por residência habitual. Subsequentemente, porque tomar de empréstimo de outros ramos do direito um conceito de residência habitual não se afigura tarefa isenta de dificuldades, como o demonstra o quadro interpretativo traçado pelo próprio acórdão a tal respeito. E, finalmente, porque, embora aceitando que o requisito de residência na região, por si só, não representa uma exigência excessiva na definição do universo dos elegíveis, já que o nela ter residência operará como indício relevante de um sentimento de pertença à comunidade política que se vai ser chamado a representar, para tal é irrelevante que a residência seja habitual ou meramente ocasional, até porque a delimitação de fronteiras entre uma e outra nem sempre flui com elucidativa nitidez.
É bem certo que a legislação referente ao recenseamento, ou seja, à definição do universo de titulares de capacidade eleitoral activa, postula a exigência de residência habitual na região para efeitos de inscrição nos correspondentes cadernos eleitorais. Mas tal exigência funda-se, em meu entender, na ideia, constitucionalmente legítima, de que a pertença à comunidade política deve ser bem mais intensa na definição do universo daqueles que elegem e cujos interesses vão ser representados do que na daqueles que são chamados a protagonizar essa função de representação. A que acresce que a própria exigência de residência habitual no âmbito da legislação sobre recenseamento não se encontra de igual modo isenta de dificuldades interpretativas quanto ao requisito de habitualidade como condição para a correspondente inscrição nos cadernos eleitorais.
O acórdão, aliás, partindo da relevância desse requisito de habitualidade da residência para efeitos de inscrição nos cadernos eleitorais, além de não pode afirmar que tal requisito, em sede de recenseamento, constitui uma decorrência inelutável dos preceitos constitucionais pertinentes, acaba por neutralizar a relevância do paralelismo estabelecido quando reconhece expressamente que podem ser elegíveis para as assembleias legislativas regionais os cidadãos eleitores recenseados no território nacional (por exemplo, os recenseados nas freguesias do continente) que tenham residência habitual na região. Ou seja, acaba-se por concluir que são elegíveis os eleitores que, à luz da lei do recenseamento, porque têm residência habitual na região, nesta deveriam estar recenseados, mas, de facto, o não estão.
Daí que tenha entendido que a residência meramente ocasional representasse o limite máximo susceptível de ser exigido por lei como critério definitório dos titulares de capacidade eleitoral passiva nas eleições para as Assembleias Legislativas Regionais dos Açores e da Madeira. - António Vitorino.