1 - O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora vem, de acordo com o disposto no artigo 437.º do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos e com os seguintes fundamentos:
Na impugnação judicial que intentou no Tribunal do Trabalho de Santarém (processo 164/2002, do 1.º Juízo), o Banco BPI, S. A., pretendia que fosse revogada a decisão do delegado de Santarém do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho que o condenara na coima de 1820000$00, pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 10.º, n.º 1, e 11.º, n.º 3, do Decreto-Lei 421/83, de 2 de Dezembro (redacção do Decreto-Lei 389/91, de 16 de Outubro, e dos artigos 9.º, n.º 1, da Lei 116/99, de 4 de Agosto, e 14.º da Lei 118/99, de 11 de Agosto), e das cláusulas 52.ª, n.º 1, e 98.ª, n.º 1, alínea a), do acordo colectivo do trabalho para o sector bancário (Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª série, n.º 31/90, de 22 de Agosto).
Julgado improcedente o recurso e mantida a decisão da autoridade administrativa, a arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, pedindo a anulação da decisão do Tribunal do Trabalho de Santarém, e suscitou a questão da sua extinção, alegadamente operada na sequência da fusão, titulada por escritura pública lavrada em 19 de Dezembro de 2002, do Banco BPI, S. A., no BPI, SGPS, com a consequente transmissão do património da sociedade incorporada em favor da sociedade incorporante, que adoptou a denominação de Banco BPI, S. A.; por outro lado, o registo da referida fusão foi efectuado por inscrição na Conservatória do Registo Comercial do Porto, determinando a extinção da arguida, nos termos do artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais (CSC), o que, na tese da recorrente, determinou a extinção do procedimento pela contra-ordenação.
O Tribunal da Relação de Évora, por Acórdão de 27 de Maio de 2003 (acórdão recorrido), transitado em julgado em 17 de Junho de 2003, apreciando tal questão, concluiu que, no âmbito contra-ordenacional, a extinção de uma sociedade extingue também o procedimento relativo a factos que lhe sejam imputados, equiparando, para tais efeitos, a extinção jurídica de uma pessoa colectiva, operada de acordo com o preceituado no citado artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, à morte da pessoa física.
Porém, por Acórdão de 31 de Janeiro de 2002, transitado em julgado (acórdão fundamento), publicado um Colectânea de Jurisprudência, ano XXVII, t. I, a pp.
62-64, proferido sobre recurso interposto pelo Banco Comercial Português, S.
A., o Tribunal da Relação de Coimbra, pronunciando-se sobre a questão de saber se a fusão operada por incorporação, no recorrente, do Banco Português do Atlântico, determinava a extinção da responsabilidade criminal e de procedimentos contra-ordenacionais contra este último instaurados, pela prática (anterior a tal fusão) da infracção prevista e punida nos artigos 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei 421/83, de 2 de Dezembro, e 7.º, n.º 4, alínea d), e 9.º, n.º 1, alínea d), ambos da Lei 116/99, de 4 de Agosto, decidiu que, não estando determinado por via normativa que tal extinção conduza à extinção da responsabilidade contra-ordenacional da sociedade infractora, é a sua sucessora responsável, conforme determina a alínea a) do artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais.
O magistrado recorrente terminou a sua motivação formulando as seguintes conclusões:
1.ª À luz do disposto na alínea a) do artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais, a extinção das sociedades fundidas implica a transmissão para a sociedade incorporante, ou para a nova sociedade emergente da fusão, de todos os direitos e obrigações da(s) sociedade(s) extinta(s), incluindo a contra-ordenacional;
2.ª Daí decorre que, praticada por esta uma infracção da aludida natureza, aquela torna-se por ela responsável, como se a infracção tivesse por si sido cometida;
3.ª O princípio da intransmissibilidade das penas que enforma o direito penal não pode ser transposto, em toda a sua plenitude, para o direito contra-ordenacional, máxime quando em causa está a responsabilidade de pessoa colectiva. Na verdade, 4.ª No primeiro, à punição subjaz uma culpa concreta do agente, decorrente da possibilidade de determinação da vontade que é exclusiva do ser humano;
5.ª Enquanto no segundo, para suporte da sanção, pela especificidade própria da pessoa colectiva, a lei ficcionou uma culpa, não decalcada daquela;
6.ª Daí que possa afirmar-se que a morte física do agente não é equiparável, neste concreto domínio, à dissolução da pessoa colectiva;
7.ª O acórdão recorrido violou, assim, por erro de interpretação, o disposto na alínea a) do artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais e o preceituado nos artigos 127.º e 128.º, n.º 1, do Código Penal, inaplicáveis ao caso concreto, na interpretação que deles fez.
Pede, em face ao alegado, que seja fixada jurisprudência no sentido de que, «cometido um ilícito contra-ordenacional por uma sociedade que vem a ser incorporada numa outra, por fusão, transmitem-se para a sociedade incorporante todas as responsabilidades da sociedade incorporada, incluindo a decorrente daquela ilicitude».
A sociedade arguida no acórdão recorrido respondeu à motivação entendendo que deve ser negado provimento ao recurso e fixada jurisprudência no sentido em que decidiu o acórdão recorrido.
2 - A Secção, em conferência, por Acórdão de 21 de Janeiro de 2004, julgou verificados os pressupostos do recurso extraordinário e a oposição de julgados, determinando o prosseguimento do recurso.
Efectivamente, ambas as decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação, não admitiam recurso ordinário e transitaram em julgado, tendo decidido em sentido oposto a mesma questão de direito.
Na verdade, enquanto o acórdão recorrido decidiu que a extinção de uma sociedade por fusão, nos termos do artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, determina a extinção da responsabilidade por contra-ordenação praticada anteriormente, o acórdão fundamento, por seu lado, decidiu que a fusão de uma sociedade não determina a extinção da responsabilidade contra-ordenacional, que se transmite para a sociedade sucessora, invocando a mesma alínea a) do artigo 112.º do referido Código.
Decidindo que se verificava a existência de oposição de julgados, como pressuposto e fundamento do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, foi determinado o prosseguimento do recurso.
3 - No prosseguimento do recurso, a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta apresentou alegações cuja fundamentação sintetizou pelo modo seguinte nas conclusões que formulou:
a) As normas e princípios constitucionais com relevo em matéria penal valem, em geral e na sua essência, no campo do ilícito de mera ordenação social;
b) A intransmissibilidade da «responsabilidade penal», a que se reporta a norma do n.º 3 do artigo 30.º da Constituição da República, abarca a responsabilidade contra-ordenacional;
c) As normas dos artigos 127.º e 128.º do Código Penal são aplicáveis à responsabilidade contra-ordenacional, por força do disposto no artigo 32.º do regime geral do ilícito de mera ordenação social (RGIMOS);
d) Sendo as pessoas colectivas passíveis de responsabilidade contra-ordenacional, o espírito do sistema leva a concluir que, verificando-se a extinção de uma pessoa colectiva em termos substantivamente paralelos à extinção da vida da pessoa individual, a responsabilidade contra-ordenacional extingue-se, nos termos das citadas disposições;
e) Sempre que esse substracto não se extinga, antes prossiga, porventura até se ampliando e reforçando as potencialidades de prosseguimento dos objectivos sociais, não se verifica o referido pressuposto substantivo da extinção da responsabilidade contra-ordenacional - a «morte» do ser social que é centro de imputação de responsabilidade;
f) Nos casos de dissolução e liquidação, contemplados nos artigos 141.º e seguintes, o substracto patrimonial e pessoal da sociedade desaparece com o termo da sua personalidade jurídica; termina um ciclo de vida, verifica-se a «morte» de uma realidade da ordem económico-social, traduzida num ente colectivo cujo objecto deixa de existir;
g) Diversamente, nos casos de fusão de sociedades, o substracto pessoal e patrimonial da sociedade incorporada, ou das sociedades fundidas, permanece, integrando o substracto da sociedade final;
h) Pelo que a extinção da sociedade incorporada ou das sociedades fundidas não corresponde à sua «morte». Pelo contrário, o seu substracto pessoal e patrimonial - com os inerentes interesses dos sócios, de credores e outros terceiros e do reflexo interesse público - continua, como parte integrante da sociedade final, numa expressão de crescimento/desenvolvimento/inovação;
i) A extinção de sociedade incorporada, por efeito de fusão, não pode equiparar-se à morte da pessoa singular para os efeitos de extinção da responsabilidade contra-ordenacional nos termos dos artigos 127.º e 128.º, ambos do Código Penal;
j) A extinção, consequência da fusão, da personalidade jurídica da sociedade incorporada ou das sociedades fundidas é uma mera exigência de técnica jurídica subjacente à personalidade jurídica das sociedades;
l) A personalidade jurídica não pode ser «abusada»;
m) E seria «abusada» no caso de se entender - por raciocínio formal derivado apenas da consideração isolada do conceito de personalidade jurídica - que, na fusão, a necessária extinção, por exigência técnico-jurídica, da personalidade jurídica da sociedade incorporada, ou das sociedades fundidas, importaria a irrelevância do respectivo substracto pessoal e patrimonial, que se mantém, enquanto suporte daquela responsabilidade;
n) O direito fundamental da não transmissão da responsabilidade contra-ordenacional não é aplicável em caso de fusão de sociedades. Esta desigualdade de tratamento, quer face às pessoas singulares quer relativamente às pessoas colectivas extintas por dissolução e liquidação, assenta em fundamentos suficientemente objectivos e razoáveis;
o) Entendimento diverso, no sentido de a «extinção» da sociedade incorporada determinar a extinção da responsabilidade por ilícito de mera ordenação social àquela imputado, sempre implicaria o risco de «abrir a porta» à fraude à lei.
Propõe, por conseguinte, que seja fixada jurisprudência no sentido de que «a responsabilidade contra-ordenacional - decorrente da prática de um ilícito de mera ordenação social por uma sociedade que, posteriormente, se extinguiu nos termos do artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, por ter sido, por fusão, incorporada noutra - não se extingue, respondendo por aquele ilícito a sociedade incorporante».
A sociedade arguida no processo em que foi proferido o acórdão recorrido apresentou também as suas alegações, formulando as seguintes conclusões:
1.ª A fusão, por incorporação, de uma sociedade comercial noutra, com a consequente transmissão do património da sociedade incorporada em favor da sociedade incorporante, após o registo da referida fusão na inscrição feita na competente conservatória do registo comercial, conduz à extinção da personalidade jurídica da sociedade incorporada ex vi do disposto no artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais;
2.ª Com a extinção da sociedade incorporada, extingue-se também a responsabilidade contra-ordenacional;
3.ª Nos termos do disposto no artigo 2.º do regime geral das contra-ordenações laborais, aprovado pela Lei 116/99, de 4 de Agosto, a estas contra-ordenações aplica-se subsidiariamente o regime geral das contra-ordenações que consta do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.os 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro;
4.ª De harmonia com o preceituado no artigo 32.º do citado Decreto-Lei 433/82, do Código Penal aplicam-se no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenacões;
5.ª Nos termos do artigo 127.º do Código Penal, a responsabilidade criminal extingue-se pela morte;
6.ª E nos termos do artigo 128.º do mesmo Código, a morte do agente extingue tanto o procedimento criminal como a pena ou a medida de segurança;
7.ª O princípio da não transmissibilidade da responsabilidade criminal ou contravencional, consagrado nas citadas disposições do Código Penal e no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição da República, aplica-se também no âmbito do direito contra-ordenacional ex vi do disposto nos supra-referidos artigos 2.º do regime aprovado pela Lei 116/99 e 32.º do Decreto-Lei 433/82;
8.ª O que quer dizer que, também nas contra-ordenações, a morte do agente (se se tratar de uma pessoa singular) ou a sua extinção (se se tratar de uma pessoa colectiva) tem como consequência a extinção da responsabilidade e do procedimento contra-ordenacionais;
9.ª O que bem se compreende por não haver contra-ordenação sem negligência, e a negligência, como elemento subjectivo da infracção, não poder separar-se da pessoa do agente;
10.ª Tendo-se extinguido o agente da infracção noticiada, nos termos supramencionados, extinguem-se também, e simultaneamente, a responsabilidade pela contra-ordenação a que o auto de notícia alude bem como o respectivo procedimento contra-ordenacional (citados artigos 30.º, n.º 3, da Constituição da República e 127.º e 128.º-C do Código Penal, aplicáveis por força do disposto nos artigos 2.º do regime aprovado pela Lei 116/99 e 32.º do Decreto-Lei 433/82, supra-referidos);
11.ª A condenação da sociedade incorporante conduziria sempre a uma situação em que a entidade jurídica condenada nem sequer havia sido acusada no processo, o que não deixa de ser contrário a princípios basilares do direito constitucional e criminal, pois consubstanciaria responsabilidade objectiva hoje irradicada do direito contra-ordenacional;
12.ª O artigo 112.º, alínea a), parte final, do Código das Sociedades Comerciais, quando estatui a transmissão de todos os «direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade», reporta-se apenas aos direitos e obrigações de natureza cível, e não penal ou contra-ordenacional;
13.ª O artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, quando interpretado no sentido defendido no acórdão fundamento, isto é, de que a responsabilidade por contra-ordenações imputadas à sociedade incorporada se transmite para a sociedade incorporante, é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 30.º, n.º 3, e 32.º, n.os 1, 5, 9 e 10, da Constituição da República Portuguesa;
14.ª Deve, pois, ser fixada jurisprudência no sentido de que: a extinção por fusão, por incorporação de uma sociedade comercial noutra sociedade comercial já existente, conforme o previsto no artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, extingue a personalidade jurídica da sociedade incorporada, o que implica a extinção da susceptibilidade de imputação de responsabilidade emergente da comissão por esta de facto integrador de ilicitude tipificada na lei à sociedade comercial incorporada e, consequentemente, a extinção do procedimento contra-ordenacional em que a sociedade comercial incorporada era arguida e a impossibilidade de a imputar à sociedade comercial incorporante, em virtude do princípio da intransmissibilidade das penas consagrado no artigo 30.º, n.º 3, da lei fundamental e do direito de defesa assegurados constitucionalmente nos artigos 30.º, n.os 1, 5, 9 e 10, e, por consequência, o artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, na interpretação feita no acórdão fundamento - a de que a responsabilidade contra-ordenacional é transmissível - é inconstitucional por violação das citadas disposições da Constituição.
4 - Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
O acórdão recorrido e o acórdão fundamento decidiram de modo divergente, no domínio da mesma legislação, a mesma questão de direito, que é a de saber se a extinção, por fusão, de uma sociedade comercial extingue a responsabilidade por contra-ordenação que a sociedade tenha anteriormente praticado.
O acórdão recorrido, como se referiu, argumentou que «a extinção jurídica de uma pessoa colectiva, operada de acordo com o artigo 112.º, alínea a), do Código das Sociedades Comerciais, não pode deixar de se equiparar à morte física de um ser humano» e, em consequência, decidiu que por esse facto se extingue a responsabilidade por contra-ordenação, enquanto o acórdão fundamento, em diverso, considerou que não têm aplicação os princípios da individualização e da intransmissibilidade, porque as pessoas colectivas não estão sujeitas ao ciclo biológico próprio dos seres humanos e o fenómeno «morte» não se adequa à sua especial natureza, nem lhe é equiparável a transformação que se opera numa sociedade comercial através do mecanismo da fusão, a personalidade da sociedade incorporada continuou e projectou-se na sociedade resultante da fusão, e a individualização da responsabilidade sancionatória tem como pressuposto a culpa individual.
Há, pois, conforme decidiu a Secção em conferência, oposição de julgados.
5 - O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, imposto pela evolução da dimensão histórica que influencia decisivamente a existência do homem e dos sentidos que lhe cumprem, pretendeu construir um modelo em que a protecção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reacções que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse prosseguida através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o «sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica», e desprovidas dos sinais que caracterizam as sanções de natureza penal.
A construção (criação) do direito de mera ordenação social foi, pois, muito elaborada a partir da verificação de que se mostrava inadequado reprimir a afectação de certos interesses administrativos com penas criminais, uma vez que, dada a natureza de tais interesses, não faria sentido falar-se em culpa fundada eticamente, mas apenas em censura social que exprima a ideia de uma advertência de que está ausente o pensamento de qualquer mácula ético-social.
Nesta perspectiva, «uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infracções correspondem reacções de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (cf. Eduardo Correia, «Direito penal e direito de mera ordenação social», in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp.
257-281; sobre a génese histórica do direito de mera ordenação social, cf.
Faria Costa, «A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social», in Revista de Direito e Economia, ano IX, n.os 1 e 2, Janeiro-Fevereiro de 1983, pp. 3-51).
O esvaziamento do conteúdo ético-social de uma advertência que apenas deva exprimir uma reacção social determinaria necessariamente a libertação das categorias e dos corolários formais do direito criminal, logo no que respeite ao princípio nulla poena sine judicio, com a aplicação das reacções que se traduzem em advertências a ser considerada como competência das autoridades administrativas.
Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social «a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos 'visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções' (Eberhardt Schmidt)». Trata-se, afinal, de «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência» (cf. Eduardo Correia, loc. cit.).
A descriminalização das reacções administrativas - categorias que assim são retiradas da competência do juiz, que não deve aplicar medidas que são materialmente administrativas - produziu também uma outra consequência que permitiu, em um tempo datado, contornar o «preconceito dogmático» sobre o princípio da individualização da responsabilidade criminal, inscrito na fórmula societas delinquere non potest, e que se traduziu no alargamento do universo dos agentes aos quais tais reacções poderiam ser impostas.
Com efeito, uma «censura puramente social» ou «advertência desprendida de todo o sentido ético» tanto pode referir-se a uma pessoa singular como a uma pessoa colectiva. Tanto no plano dos princípios como no que respeite à superação das dificuldades dogmáticas, a aplicação de reacções administrativas não suscita os mesmos problemas que a aplicação de sanções criminais e a consequente responsabilidade criminal das pessoas colectivas; mesmo em sistemas que mantinham o princípio da individualização da responsabilidade criminal, era admitida a responsabilidade das pessoas colectivas, susceptíveis de aplicação de reacções de natureza administrativa, como as de ordenação social (cf., numa perspectiva histórica de direito comparado, datada do princípio dos anos 80, M. A. Lopes Rocha, «A responsabilidade penal das pessoas colectivas - Novas perspectivas», in Ciclo de Estudos de Direito Penal Económico, Centro de Estudos Judiciários 1985, e na colectânea Direito Penal Económico - Textos Doutrinários, vol. I, Problemas Gerais, Coimbra, 1998, pp. 431 e segs.).
6 - O direito de mera ordenação social, passando da dimensão categorial e da elaboração dogmática para a realidade normativa, entrou no interior do sistema nacional com o Decreto-Lei 232/79, de 24 de Julho, em cujo preâmbulo se afirmam os princípios, as necessidades, a oportunidade política (verdadeiramente de política criminal - a «instante» necessidade «de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal») e a natureza das respostas.
«O direito de mera ordenação social é uma consequência da confluência de duas ordens de factores: a superação definitiva do modelo do Estado liberal, por um lado, e o conhecido movimento de descriminalização, por outro.
Independentemente dos pressupostos teóricos ou políticos e das constelações de valores que lhes presidem, todos os Estados contemporâneos foram chamados às tarefas de planificação, propulsão e conformação da vida económica e social.» «Nenhum Estado que promova a justiça social e que, portanto, desenvolve nesse sentido uma larga intervenção da Administração, pode atingir os fins que se propõe sem uma aparelhagem de ordenação social a que corresponde um ilícito e sanções próprias», sendo «normal» que as infracções às leis vigentes nos domínios em que existe uma vasta intervenção administrativa (economia, saúde, habitação, cultura e ambiente) «não atinjam relevo penal, antes configurem uma forma autónoma de ilicitude que reclame um quadro próprio de reacções sancionatórias e um novo tipo de processo».
Este «ordenamento sancionatório alternativo» pretendeu «libertar» o direito criminal «das infracções que prestam homenagem a dogmatismos morais ultrapassados e desajustados no quadro de sociedades democráticas e plurais, bem como do número inflacionário e incontrolável das infracções destinadas a assegurar a eficácia dos comandos normativos da Administração, cuja desobediência se não reveste da ressonância moral característica do direito penal», permitindo «reservar a intervenção do direito penal para a tutela dos valores ético-sociais fundamentais».
Não obstante não ter vingado de imediato por via da revogação pelo Decreto-Lei 411-A/79, de 1 de Outubro (por dificuldades práticas emergentes da inclusão em lei quadro de uma disposição com intensas repercussões práticas - o n.º 3 do artigo 1.º), a natureza do direito de mera ordenação social e as finalidades que enunciava mantiveram plena validade e actualidade na justificação do regime geral das contra-ordenações aprovado pelo Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro [regime geral do direito de mera ordenação social (RGDMOS)].
No preâmbulo deste diploma, com efeito, reafirma-se que «o aparecimento do direito das contra-ordenacões ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc. Tal característica, comum à generalidade dos Estados das modernas sociedades técnicas, ganha entre nós uma acentuação particular por força das profundas e conhecidas transformações dos últimos anos, que encontraram eco na lei fundamental de 1976.
A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções».
O legislador justificou, assim, a urgência de conferir efectividade ao direito de mera ordenação social, com uma configuração distinta e autónoma do direito penal, em resultado das transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-constitucional.
Com efeito, o direito das contra-ordenações recebeu reconhecimento na revisão constitucional de 1982, por via das referências explícitas que lhe foram feitas em matéria de reserva de competência legislativa da Assembleia da República - artigo 168.º, n.º 1, alínea d), e, na versão actual, no artigo 165.º, n.º 1, alínea d); por outro lado, também, em cumprimento da injunção político-criminal do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, o campo preferencial do ilícito de mera ordenação social aparece delimitado por referência a um princípio da subsidariedade do direito penal, segundo o qual «o direito criminal deve apenas ser utilizado como ultima ratio da política criminal, destinado a punir as ofensas intoleráveis aos valores ou interesses fundamentais à convivência humana, não sendo lícito recorrer a ele para sancionar infracções de não comprovada dignidade penal».
A autonomia do direito de mera ordenação social, por referência ao direito penal, afirmou-se, numa primeira fase, na construção de um regime geral, aos níveis dogmático, sancionatório e processual.
7 - O Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, foi objecto de uma profunda reformulação por via das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro.
Na respectiva exposição de motivos, o legislador, dando conta de que o ilícito de mera ordenação social, «consagrado a partir de 1979», assumiu «uma importância antes dificilmente imaginável», explicita a necessidade de levar a efeito a revisão do respectivo regime, referindo que, «a par do programa de descriminalização desde então gizado, com a inerente transformação em ordenações de muitas infracções anteriormente qualificadas como contravenções ou como crimes, se regista um crescente movimento de neopunição, com o alargamento notável das áreas de actividades que agora são objecto de ilícito de mera ordenação social e, do mesmo passo, com a fixação de coimas de montantes muito elevados e a cominação de sanções acessórias especialmente severas. Compreensivelmente, não pode o direito de mera ordenação social continuar a ser olhado como um direito de bagatelas penais».
«É nesta perspectiva que deve entender-se a presente reforma do regime geral das contra-ordenações, especialmente orientada para o efectivo reforço das garantias dos arguidos perante o crescente poder sancionatório da Administração. Por outro lado, cumpre acentuar a eficácia do sistema punitivo das contra-ordenações. Tão mais necessário quanto mais extenso o domínio de intervenção e a relevância daquele sistema na ordenação da vida comunitária. Por último, afigura-se adequado, no momento presente, proceder ao aperfeiçoamento da coerência interna do regime geral de mera ordenação social, bem como da coordenação deste com o disposto na legislação penal e processual penal.» Neste sentido, e com a finalidade de reforçar os direitos e garantias dos arguidos, estabeleceram-se regras que aproximaram o regime dos princípios e soluções próprias do direito penal e do processo penal: disposições sobre a atenuação das coimas e a alteração dos limites mínimos e máximos (artigos 13.º, n.º 2, 16.º, n.º 2, e 17.º), normas sobre o cúmulo jurídico em caso de concurso (artigo 19.º), clarificação dos pressupostos da aplicação de sanções acessórias (artigo 21.º-A), regras sobre suspensão e interrupção da prescrição (artigos 27.º-A e 30.º-A) e reforço dos direitos de audiência e defesa (artigos 50.º, 53.º, 58.º, 59.º, n.º 2, 68.º e 72.º-A).
A aproximação do ilícito de mera ordenação social aos institutos e figuras do direito e do processo penal foi, pois, determinada - é o próprio legislador a reconhecê-lo - pelo alargamento das áreas de intervenção do direito de mera ordenação social, em particular a «circuitos económicos e tecnológicos complexos», com «um considerável agravamento dos montantes das coimas e um alargamento do leque de sanções acessórias aplicáveis»: em consequência, «o legislador [procurou] equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do direito penal» (cf. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, «O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidariedade da intervenção penal», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7.º, Janeiro-Março de 1997, pp. 14 e segs.).
8 - O Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro (alterado substancialmente pelo Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro), estabeleceu, pois, o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contra-ordenações e às regras sobre o respectivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual).
No plano material, os artigos 1.º e 2.º dispõem sobre os princípios da tipicidade e da legalidade e proibição da rectroactividade: «constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima», e «só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática».
O artigo 7.º define os sujeitos passíveis de responsabilidade por contra-ordenação: tanto as pessoas singulares como as pessoas colectivas, bem como as associações sem personalidade jurídica n.º 1, sendo que «as pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções».
Há, assim, neste domínio de definição do universo pessoal, uma imediata equiparação, sem restrições ou necessidade de lei expressa, entre pessoas singulares e colectivas, e mesmo associações sem personalidade jurídica, que serão grupos ou comunidades de facto («quase-pessoas»), mas a que falta o elemento de individualidade jurídica que é próprio da atribuição da personalidade jurídica.
Na definição do regime substantivo das contra-ordenações, o diploma quadro estabelece disciplina própria relativamente a categorias da teoria geral do direito sancionatório, cuja matriz referencial é o direito penal e do qual, como se referiu, se aproximou (dolo, negligência, erro sobre a ilicitude, imputabilidade, formas, sanções, critérios para determinação da sanção, concurso de infracções, perda e prescrição).
Não estabelece, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal. É o que dispõe o artigo 32.º: «Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal.» 9 - O regime geral das contra-ordenações não contém disposições que traduzam, enquanto tal, um modelo autónomo no que respeite aos factos determinantes da extinção da responsabilidade.
Na verdade, apenas contendo disposições próprias sobre a prescrição (enquanto causa de extinção do procedimento e da coima - artigos 27.º e 29.º), não refere directamente outras causas de extinção da responsabilidade.
Por aproximação de matriz e pela consequente vocação subsidiária, o regime substantivo, no que se referia às causas de extinção, há-de encontrar-se nas normas do Código Penal.
Nos termos do artigo 127.º do Código Penal, a responsabilidade criminal extingue-se por morte, amnistia, perdão genérico e indulto, com os efeitos determinados relativamente a cada categoria nos n.os 1 a 4 do artigo 128.º, que são, assim, por força do artigo 32.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, as normas aplicáveis à extinção da responsabilidade por contra-ordenações.
A primeira causa de extinção da responsabilidade é a morte do agente, que extingue tanto o procedimento como a pena (coima) ou a medida de segurança (ou sanção acessória); a morte, como causa de extinção da coima e das sanções acessórias, está expressamente referida no artigo 90.º do regime jurídico de mera ordenação social.
Estabelece-se, assim, nos artigos 127.º e 128.º, n.º 1, do Código Penal (e também no artigo 90.º do regime jurídico de mera ordenação social) a concretização do princípio da individualidade e da intransmissibilidade das penas, inscrito como princípio fundamental no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição («a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão»), vindo já do Código Penal de 1886 (artigo 125.º, n.º 1) e igualmente com assento na Constituição de 1933 (artigo 12.º, n.º 8).
Enquanto causa de extinção da responsabilidade (procedimento, pena e coima), a morte a que a lei se refere significa o fim da vida física de uma pessoa; é o acontecimento, físico e da natureza, que faz terminar a vida e que constitui um momento inelutável da existência de cada indivíduo inerente à própria natureza do género humano. A morte que faz cessar a personalidade (artigo 68.º, n.º 1, do Código Civil: «a personalidade cessa com a morte») e que constitui causa de extinção da responsabilidade criminal (e por contra-ordenação) é um acontecimento, o momento e o culminar de um processo que só tem sentido, no plano jurídico e no da natureza quando se refira a uma pessoa física; a noção de morte, juridicamente relevante, assenta numa pré-compreensão biológica e antropológica.
E assim é considerada na unidade do sistema, desde logo como momento determinante da sucessão mortis causa, própria dos indivíduos.
E é assim também porque a responsabilidade criminal só tinha sentido em relação aos indivíduos, e foi em relação às pessoas singulares que se construiu o princípio da individualidade da responsabilidade criminal e da intransmissibilidade das penas.
10 - No entanto, o Código Penal de 1982 - instrumento de codificação que acolheu as modernas construções dogmáticas, especialmente relativas aos grandes princípios e aos institutos da parte geral - introduziu uma radical alteração no que respeita à posição problemática sobre a responsabilidade penal das pessoas colectivas (contemporânea da previsão da responsabilidade por contra-ordenações), ultrapassando o princípio (ou o dogma) com assento no Código Penal de 1886 de que só a pessoa física, individualmente considerada, podia ser agente de infracções criminais.
O artigo 11.º do Código Penal de 1982, com efeito, dispõe, no n.º 2, sobre o «carácter pessoal da responsabilidade», que, «salvo disposição em contrário, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal».
Afirma-se, deste modo, a regra (não o princípio) da individualidade da responsabilidade criminal, mas admitem-se excepções, que têm de resultar da lei e estão pensadas precisamente para a situação específica das pessoas colectivas.
O princípio da individualidade da responsabilidade criminal, tomado praticamente em dogma na transição do século XVIII para o século XIX - à luz, sobretudo, das chamadas «teorias da ficção» sobre a essência das pessoas morais -, passou a ser discutido a partir do Congresso Internacional de Direito Penal de Bucareste (1929), em nome da convicção de que as exigências programáticas da política criminal devem passar à frente dos preconceitos filosóficos, e se, em sede político-criminal, se concluir pela alta conveniência, mesmo imperiosa necessidade, de responsabilização das pessoas colectivas em direito penal secundário, não haverá então «razão dogmática» de princípio a impedir que sejam consideradas agentes possíveis dos tipos de ilícito respectivos (cf. Figueiredo Dias, «Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma do direito penal económico e social português», in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 116.º (1983-1984), pp. 263 e segs., e ano 117.º (1984-1985), pp. 7 e segs., e também na colectânea Direito Penal Económico e Europeu - Textos Doutrinários, vol. I, Problemas Gerais, Coimbra, 1998, pp. 35 e segs., designadamente as pp. 67 e 68).
Na verdade, refere Figueiredo Dias (ibidem) que, «se, em sede político-criminal, se conclui pela alta conveniência ou mesmo imperiosa necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em direito penal secundário, não vejo então razão dogmática de princípio a impedir que elas se considerem agentes possíveis dos tipos de ilícito respectivos. A tese contrária só pode louvar-se numa ontologificação e autonomização inadmissíveis do conceito de acção, a esquecer que a este conceito podem ser feitas pelo tipo de ilícito exigências normativas que o conformem como uma certa unidade de sentido social. E tão-pouco me parece impensável ver nas pessoas colectivas destinatárias possíveis do juízo de censura em que a culpa se traduz. Certo que, na acção como na culpa, se tem em vista um 'ser livre', como centro ético-social de imputação jurídico-penal, e aquele é o do homem individual.
Mas não deve esquecer-se que as organizações humano-sociais são, tanto como o próprio homem individual, 'obras da liberdade' ou 'realizações do ser livre'; pelo que parece aceitável que em certos domínios especiais e bem delimitados - de acordo com o que poderá chamar-se, seguindo Max Müller, o princípio da identidade da liberdade - ao homem individual possam substituir-se, como centros ético-sociais de imputacão jurídico-penal, as suas obras ou realizações colectivas e, assim, as pessoas colectivas, associações, agrupamentos ou corporações em que o ser livre se exprime. Que se torna necessário usar aqui um pensamento analógico, relativamente aos princípios do direito penal clássico - onde a máxima da responsabilidade individual deve continuar a valer sem limitações -, é evidente. Mas talvez agora já seja claro o erro que cometeria quem confundisse um tal pensamento analógico com uma utilização de 'ficções' que aqui não está em causa».
Aberto, do ponto de visa dogmático, o caminho para admitir uma responsabilidade das pessoas colectivas em direito penal secundário, o artigo 11.º, n.º 2, do Código Penal seguiu-o quando estabelece a possibilidade de a lei expressamente admitir a responsabilização para além das pessoas singulares; a concretização mais importante da admissibilidade da responsabilidade criminal das pessoas colectivas («a importante novidade», na assunção do preâmbulo) ocorreu logo com o Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, que definiu algumas infracções no domínio económico susceptíveis de ter como agentes pessoas colectivas.
11 - O quid agregador que dá sentido e consistência material à assimilação das construções do espírito e realizações colectivas (pessoas colectivas, agrupamentos e sociedades) do homem indivíduo, como centros ético-sociais de imputação jurídico-penal, está, assim, em um pensamento analógico relativamente aos princípios do direito penal clássico, reforçado porque também no direito das contra-ordenações se suscitam problemas análogos aos do direito penal, aceitando-se neste campo dogmático, sem discussão, a responsabilidade das pessoas colectivas.
O pensamento analógico como agregador, cimento de assimilação e factor de recompreensão das categorias dogmáticas há-de ter como referentes os critérios materiais da analogia como método de análise e tópicos de argumentação.
A convocação da analogia é característica de todos os tipos de pensamento, e com particular relevo no pensamento jurídico.
Foi no quadro da compreensão do direito como sistema racional que surgiu a fórmula analogia juris para enunciar explicitamente a racionalidade sistemática do direito ou da sua normatividade, embora como prática metódica antecedesse a palavra e a designação, desde o casuísmo decisório romano dos exempla à prática jurídico-decisória da common law.
Analogia é «proporção entre relações», a «similitude de relações», argumento retórico que conexiona o particular ao particular mediante a comparação, invocando a correspondência ou semelhança («analogia de atribuição»); o étimo ana-logos pensa a assimilação e a correspondência do distante ou diferente - «integração ou assimilação de qualidades diferentes numa unitária racionalidade».
Trata-se de uma «específica integração inteligível de entidades diversas» em que se verifiquem três características fundamentais: as entidades diversas não vêem reduzida pela analogia a sua diversidade, e subsistem não obstante a sua diferença; a inteligível integração deverá ser uma conclusão niveladora em termos de 'same level reasoning'; e exige-se um «fundamento específico de integração» a justificar a racionalidade da associação na diferenciação (cf. A.
Castanheira Neves, Metodologia Jurídica - Problemas Fundamentais, colecção «Studia Iuridica», pp. 241 e segs.).
No critério específico do juízo analógico, os casos são análogos quando os sentidos concretos puderem fundar-se numa conexão justificada pela intenção fundamental que os constitui; quando as intenções constitutivas forem, no fundo, as mesmas ou afins, e a solução jurídica de um é normativo-juridicamente adequada também para o outro no sentido de satisfazer as expectativas normativo-jurídicas da sua solução; solução pré-compreendida ou solução da hipótese da norma em referência pragmática à situação problemática (cf., idem, ibidem, pp. 253, 254 e 261).
12 - A aceitação dogmática da responsabilidade criminal (não excepcional, mas específica nos casos em que a lei o determinar) e da responsabilidade por contra-ordenações (geral) das pessoas colectivas - e mesmo de entes de facto na responsabilidade por contra-ordenações - introduz, necessariamente, uma novidade na leitura e na apreensão das categorias, dir-se-ia tradicionais, próprias do regime material do direito sancionatório matriz, pensadas eminente ou exclusivamente para a realidade antropológica que é o género humano, e não para criações do espírito, funcionalistas e instrumentais, como é a personalidade jurídica das pessoas colectivas (a personalidade colectiva ou, em expressão conceptualmente marcada, personalidade moral).
A (re)apreensão do sentido e a passagem (ou mesmo a validade da passagem) da substância do espaço natural das categorias normativas (material e física e próprias do indivíduo) para os modelos de criação jurídica supõe, pois, que possam determinar-se os fundamentos das (novas) realidades (que são um real construído), e a medida em que tais fundamentos convocam a aplicação das categorias que, por princípio, lhe não são destinadas.
Neste aspecto, como se salientou, a «morte», como categoria da natureza com relevância normativo-jurídica, é co-natural ao homem; as pessoas colectivas, como tal, não estão tocadas pelo momento da «morte», que faz cessar a personalidade da pessoa singular (artigo 68.º, n.º 1, do Código Civil);
as pessoas colectivas, neste sentido, não «morrem», embora, como entidades com existência determinada por actos de vontade de criação e de extinção, possam extinguir-se, deixando, então, de ser construções instrumentais do homem para agirem com centros autónomos de imputação de direitos e deveres.
Na concretização dos artigos 127.º e 128.º, n.º 1, do Código Penal, o que está traduzido não é mais do que a insusceptibilidade de transmissão da responsabilidade criminal (e por contra-ordenações), que constitui princípio constitucional: a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão.
A intransmissibilidade das penas, como princípio constitucional inscrito no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, significa que a responsabilidade se extingue com a morte do agente e não se transmite para familiares, parentes ou terceiros (sucessão), e que não há possibilidade de sub-rogação no cumprimento das penas (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., pp. 197 e 198).
A morte, que faz cessar a personalidade da pessoa singular, faz também, natural e necessariamente, extinguir a responsabilidade criminal e por contra-ordenações, porque esta é inerente à pessoa e à sua capacidade de acção, de vontade e de culpa e não pode transmitir-se para além da vida, como se transmitem para os sucessores responsabilidades de outra natureza que integrem o complexo dos direitos e deveres jurídicos de uma pessoa.
A responsabilidade criminal e por contra-ordenações acompanha, assim, a pessoa e não lhe sobrevive, porque é indissociável de cada pessoa na sua capacidade e personalidade como indivíduo. Na inseparabilidade de uma pessoa e da sua responsabilidade por um crime ou contra-ordenação, esta onera-a e acompanha-a, mas não permanece para além da pessoa.
A assimilação, a extensão ou a equiparação da noção de «morte», exclusiva, na natureza e na configuração directamente normativo-jurídica, das pessoas singulares, às formas de extinção das pessoas colectivas, para os efeitos de determinar a aplicabilidade (ou as dimensões relevantes de aplicabilidade) dos artigos 127.º e 128.º, n.º 1, do Código Penal e 90.º do RGDMOS, só poderá, pois, ter lugar se e enquanto puder compreender-se e ser pensada nos critérios e instrumentos metodológicos do pensamento analógico.
Há, por isso, que apelar à «similitude de relações» e à comparação, invocando a correspondência ou semelhança, e à assimilação de qualidades diferentes numa mesma racionalidade, que possa justificar, no plano normativo, a razão de associação na diferenciação - critérios metodológicos do same level reasoning próprios do pensamento analógico, que, como se salientou, constitui a fundamentação dogmática essencial da responsabilidade criminal das pessoas colectivas e da responsabilidade por contra-ordenações no que seja comparada ou regulada pelos princípios e disposições próprios do direito penal.
A morte da pessoa significa, na natureza das coisas, que nada de si permanece no espaço físico e de relação para além do momento da morte; a pessoa cessa a sua existência, sem que nada de si se separe e permaneça.
É que só os seres humanos percebem que são seres para a morte e que se movem nesse horizonte último que a morte representa, nas concepções religiosas e culturais, como rito de passagem - a passagem do mundo dos vivos para o mundo dos mortos (cf. José de Faria Costa, «O fim da vida e o direito penal, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, pp. 759 e segs., designadamente a p. 766).
A morte, relevante no sentido normativo e especificamente no campo penal, não é, como se salientou, pensável senão em relação aos seres humanos.
A extinção de uma pessoa colectiva, diversamente, por ser uma criação instrumental do direito, pode não determinar, por si mesma, que nada de si permaneça, continuando alguma substância afecta ao desempenho, ainda, sob uma outra perspectiva jurídico-funcional, das finalidades da pessoa colectiva que foram a sua razão de ser.
A pessoa colectiva ou a pessoa jurídica aparece no mundo da normatividade como «unidade organizatória» que é centro autónomo de imputação funcionalmente construído.
«A realidade material de interesses que [a] 'unidade organizatória' consubstancia, ao revestir a forma jurídica de pessoa colectiva, densifica-se ainda mais e surge-nos com sentido e vocação para uma função apelativa, conquanto instrumental. E instrumental porque insusceptível [...] de uma recondução a uma dimensão onto-antropológica, que acompanha, [...], um qualquer agir comunicacional de uma pessoa concreta. A possibilidade de se imputarem factos, juridicamente relevantes, à pessoa colectiva reduz a complexidade [...] e aumenta [...] o grau de eficiência e fluidez sistemática de todo o ordenamento jurídico.» [Cf. José de Faria Costa, «A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2.º (1999), pp. 537-559.] Por isso, o que releva essencialmente é a existência de um centro de imputação funcionalmente construído, que pode não desaparecer como realidade material de interesses ao lado da respectiva função instrumental e é, por isso, independente desta no caso de continuidade organizatória e de prossecução das respectivas finalidades.
Na ponderação metodológica e intervenção dos critérios da analogia, a similitude de relações e a comparação numa mesma racionalidade entre a morte da pessoa singular e as formas de extinção das pessoas colectivas só podem ser encontradas se e quando a existência, como construção jurídica instrumental, de uma pessoa colectiva cessar, não em perspectiva funcionalista estritamente jurídica mas cessação e desaparecimento de todos os elementos integrantes da pessoa colectiva, não apenas o suporte jurídico mas também o corpus e o respectivo substracto.
Dependerá da natureza das pessoas colectivas que estejam em causa, da respectiva finalidade e dos modos da sua realização.
Com efeito, só na medida em que possa ser encontrada na diferença entre pessoas singulares e colectivas uma mesma racionalidade, poderá ser equiparada a categoria do artigo 128.º, n.º 1, do Código Penal à extinção de uma pessoa colectiva.
13 - Para além de considerações genéricas para enquadramento do problema, não releva, porém, para a decisão da questão controvertida, o tema da extinção, em geral, das pessoas colectivas, uma vez que no caso estão em causa apenas sociedades comerciais, com regime próprio de constituição e extinção.
As sociedades comerciais gozam de personalidade jurídica e existem, como tais, a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras - artigo 5.º do CSC.
As sociedades dissolvem-se nos casos previstos no artigo 141.º do CSC, entrando a sociedade dissolvida em liquidação - artigos 146.º e seguintes do mesmo diploma.
Está em causa nas decisões em divergência uma situação de fusão de sociedades, cuja noção legal assenta na «reunião» de duas ou mais sociedades numa só - artigo 97.º, n.º 1, do CSC.
A fusão pode realizar-se mediante a transferência global do património de uma ou mais sociedades para outra e a atribuição aos sócios daquelas de partes, acções ou quotas destas - artigo 97.º, n.º 4, alínea a) - ou mediante a constituição de uma nova sociedade, para a qual se transferem globalmente os patrimónios das sociedades fundidas, sendo aos sócios destas atribuídas partes, acções ou quotas da nova sociedade artigo 97.º, n.º 4, alínea b), do CSC.
A fusão é outorgada por escritura pública, devendo a administração de qualquer das sociedades participantes na fusão, ou da nova sociedade, pedir a inscrição da fusão no registo comercial.
Dispõe, por seu lado, o artigo 112.º do CSC («Efeitos do registo»):
«Com a inscrição da fusão no registo comercial:
a) Extinguem-se as sociedades incorporadas ou, no caso de constituição de nova sociedade, todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante ou para a nova sociedade;
b) Os sócios das sociedades extintas tornam-se sócios da sociedade incorporante ou da nova sociedade.» Os efeitos da fusão têm sido discutidos na doutrina, desde as mais antigas comparações de natureza antropológica (as sociedades fundidas morrem tal como uma pessoa física) às mais modernas, comparando a fusão por incorporação a um fenómeno que seria assimilável ao que na natureza se verifica entre dois bens que se tornam compostos num só, numa sorte de participação de «compropriedade da substância nova» (cf. Raul Ventura, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais - Fusão, Cisão, Transformação de Sociedades, 1990, p. 229).
Para Raul Ventura (ibidem), a operação de fusão efectua-se entre sociedades que são pessoas jurídicas, sendo «natural que na construção jurídica da fusão sejam reflectidas concepções sobre a personalidade jurídica. A personalidade jurídica é um instrumento que os legisladores põem ao serviço dos interessados e sobre o qual se constroem pirâmides de interesses; enquanto assim acontecer, ela não pode ser esquecida, como também não pode ser abusada. Seria esquecida se, na aplicação prática, não fossem retiradas as suas consequências necessárias, o que sucederia, se - na [...] hipótese de fusão - se teimasse em conceber a operação, como se alterações do substrato pessoal e do substrato patrimonial das sociedades se processassem sem as pessoas jurídicas serem afectadas».
A doutrina tem, pois, trabalhado variadas concepções sobre a fusão de sociedades, no sentido da extinção da personalidade (teoria tradicional), como no sentido das teorias individuais, que consideram a fusão apenas como a perda da individualidade de cada uma das sociedades participantes na operação.
No entanto - di-lo a lei -, com a fusão extinguem-se as sociedades incorporadas, ou todas as sociedades fundidas. «Mas também não podem esquecer-se as finalidades dessas extinções; não se extingue tudo isso como um fim em si mesmo; extingue-se para substituir, extingue-se para renovar.
Certamente são aproveitados os elementos pessoais, patrimoniais e até imateriais das sociedades participantes que se extinguem, mas extinção não implica desaproveitamento.» (Idem, ibidem, pp. 230 e 231.) Existe sempre, pois, um elemento decisivamente relevante na comparação entre o real e a construção jurídica - que é, como construção ao serviço de interesses, meramente instrumental: os interessados, ao procederem à fusão, não têm intenção de morte, mas, sim, de melhor e longa vida para as sociedades e para a realização das finalidades com que foram constituídas.
Com efeito, na perspectiva da teoria económica, a fusão - e outras formas de concentração - pode gerar ganhos de eficiência significativos, que se traduzem em sinergias que permitem economias de escala, em não sinergias, como ganhos de eficiência que resultam da reorganização da produção, redução de custos administrativos, de pessoal e de outras despesas fixas, e no efeito de takeover, quando ocorre a substituição de uma administração menos capaz por outra mais competente (cf. Abel M. Mateus, «A teoria económica e as concentrações na perspectiva da política da concorrência», lição proferida na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, disponível em http://www.autoridadedaconcorrencia.pt, pp. 17 e 18). A fusão significa, pois, ao contrário da «morte», perspectiva de melhor e mais sustentada continuidade económica, por redução de riscos, obtenção de economias de escala e racionalização, obtenção de complementaridade tecnológica, redução da ameaça competitiva, superação de barreiras de ingresso no caso de internacionalização e benefício dos conhecimentos das empresas incorporadas (cf. Ivan António Pinheiro, «Incorporações e fusões:
lições do mundo corporativo para a agenda da reforma do Estado», disponível em http://rgod.adm.ufrgs.br/read13/artigo/artigo5.htm).
14 - As construções doutrinais em redor da natureza e efeitos da fusão de sociedades, como modelos teoréticos que prospectivam as soluções legais e aportam elementos relevantes na densificação de categorias, noções ou conceitos, constituem também elementos com dimensão interpretativa, na conjugação com outros instrumentos metodológicos de interpretação.
Nomeadamente, para além da letra da lei, a sua razão de ser, os lugares paralelos e a unidade do sistema.
A norma do artigo 112.º, alínea a), do CSC, no que respeite aos efeitos da fusão de sociedades, dispõe que a fusão («com o registo da fusão») extingue a sociedade incorporada ou todas as sociedades fundidas, transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporada ou para a nova sociedade.
Não qualifica ou determina que tipos ou espécies de direitos e obrigações se transmitem; a previsão abrange todos os direitos e obrigações que puderem ser transmitidos, sendo, por isso, à racionalidade de cada direito ou obrigação e ao respectivo regime que há-de ir buscar-se a respectiva delimitação.
Já se deixou avançado que a transmissão da responsabilidade por contra-ordenações, no caso de fusão de sociedades, não estando excluída pela natureza das coisas, também não está impedida pela dimensão relevante do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal (e, por aplicação derivada, por contra-ordenação), que está construído para as pessoas físicas.
O princípio tem aplicação quando puder dizer-se como é o caso da pessoa física - que nada fica de si mesma para além da morte e que, consequentemente, a transmissão da responsabilidade só poderia eventualmente ocorrer (sucessão) para outra pessoa física e juridicamente diversa; poderá dizer-se, em linguagem marcada num registo antejurídico, que a pessoa transporta, leva consigo, suporta, a responsabilidade sem que possa transferir um tal ónus para outrem.
Diverso é, porém, quer pela imediata configuração material quer pela racionalidade intrínseca ao princípio, o plano em que opera fusão das sociedades: aqui a sociedade que (instrumentalmente) se extingue, constituída por corpus (património) e sócios, permanece com todos estes elementos de substância que continua a transportar e a levar consigo para o novo «lugar jurídico» em que toda a sua substância (realidade material e pessoal) vai instalar-se.
Por isso, a doutrina e a jurisprudência têm considerado que, sendo parte numa causa uma pessoa colectiva que se extingue por fusão, não há lugar a habilitação, pois não há equiparação à morte da pessoa física: a pessoa colectiva continua a existir, posto que modificada, havendo apenas de operar-se a sua substituição no processo (cf., v. g., Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 3.º vol., p. 239, e Acórdão, deste Supremo Tribunal, de 26 de Março de 1980, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 295, p. 338).
Também o Tribunal Constitucional entende que, no caso de fusão de sociedades, «a situação da perda de personalidade jurídica das sociedades incorporadas não é assimilável à situação de 'morte' do agente, contemplada nos artigos 127.º e 128.º do Código Penal como causa de extinção da responsabilidade criminal, do procedimento criminal, das penas e das medidas de segurança»; pois que «a transmissão da responsabilidade contra-ordenacional à sociedade incorporante só formalmente é uma transmissão [...], registando o aproveitamento, no seio da sociedade incorporante, dos elementos pessoais, patrimoniais e imateriais da sociedade extinta», impondo-se a conclusão de que a esta situação é inaplicável a proibição constante do artigo 30.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (Acórdão 161/2004, de 17 de Março, processo 4/2004, e também os Acórdãos n.os 153/2004 e 160/2004).
Não existe, assim, neste primeiro momento de comparação, similitude de situações entre a categoria com pré-compreensão biológica e antropológica do artigo 128.º, n.º 1, do Código Penal e a extinção por fusão de uma sociedade comercial.
15 - As causas de extinção do procedimento e da pena no caso de extinção de pessoas colectivas têm, em alguns sistemas, um tratamento próprio, com a previsão específica dos efeitos da extinção da pessoa colectiva na responsabilidade criminal.
O Código Penal francês, no artigo 133.º, n.º 1, prevê que a dissolução da pessoa colectiva extingue, em princípio, a acção penal, sendo, por isso, de certo modo assimilada à morte do agente (cf. Laurent Moreillon, «La responsabilité pénale de l'entreprise», in Revue pénale suisse, t. 117, n.º 3, 1999, pp. 325 e segs.).
No direito belga, o CIC dispõe no artigo 20.º, alínea 2), do título preliminar, que a acção pública pode ser exercida posteriormente se a liquidação ou a extinção de uma sociedade teve por finalidade subtrair-se ao processo ou se a pessoa colectiva foi inculpada pelo juiz de instrução antes de cessar a personalidade jurídica; deste modo, se a fusão ou a cisão tiverem por finalidade subtrair a pessoa colectiva ao procedimento, a acção pública não se extinguirá (cf. Ch.
Vanderlinden, «La loi instaurant la responsabilité pénale des personnes morales et le droit pénal social», in Revue de droit pénal et de criminologie, ano 80.º, Junho de 2000, p. 660).
No sistema da common law, no caso de fusão de duas ou mais sociedades, considera-se que as sociedades objecto de fusão continuam a existir na nova sociedade ou na sociedade incorporante, não havendo qualquer motivo para não aplicar este mesmo princípio em matéria de responsabilidade penal. A solução do problema, de ordem pragmática e no plano da consideração material dos interesses em causa, deve ser guiada pela garantia de que a actuação instrumental através de pessoas colectivas não pode servir como pretexto para se eximir à responsabilidade (cf. Pierre Béliveau, «La responsabilité pénale des corporations en droit canadien», in Revue de science criminelle et de droit pénal comparé, 1999, n.º 1, Janeiro-Março, pp. 1 e segs.).
Os elementos comparados não contêm, assim, nem referentes com saliente valor argumentativo nem soluções que constituam a projecção de construções dogmaticamente elaboradas e comummente aceites.
Permitem, quando muito, revelar que a extinção da responsabilidade penal nos casos de extinção da pessoa colectiva é objecto de regulamentação específica (o que se compreende pela impossibilidade de equiparação a se entre as causas de extinção e a morte das pessoas físicas) e, por outro lado, que as soluções não derivam da aplicação de rígidos princípios, mas estão impregnadas de pressupostos e considerações de ordem pragmática, como seja evitar as situações de fraude.
16 - Refira-se, também, que em recente anteprojecto de lei sobre o «regime da responsabilidade penal das pessoas colectivas e equiparadas», apresentado pelo Governo, afirma-se como «objectivo último» proceder a «uma regulação geral em matéria de responsabilidade penal das entidades colectivas, que altere a parte geral do Código Penal - a ser apresentada após recolha e discussão dos contributos necessários da doutrina nacional sobre a matéria»;
todavia, na lei que se propõe «apenas se procede a uma extensão pontual da responsabilidade penal à pessoa colectiva em determinados tipos previstos na parte especial do Código Penal», sem, pois, qualquer disposição que pretenda regular autonomamente as causas de extinção do procedimento e das penas.
17 - A racionalidade sistémica do direito de mera ordenação social, manifestada na eleição das finalidades que pretende realizar, supõe, por seu lado, também uma solução que não considere assimilável e materialmente análoga a extinção por fusão de uma sociedade comercial ao fundamento previsto no artigo 128.º, n.º 1, do Código Penal.
O direito de mera ordenação social realiza, como foi referido, uma finalidade de protecção de interesses da Administração nos variados domínios a que se alargou exponencialmente a actividade administrativa, sem «ressonância ética», mas cuja afectação deve merecer censura social, com a cominação de medidas sancionatórias apropriadas.
Mas, por ser assim, a necessidade de censura social pela afectação dos interesses que estejam em causa relativamente ao exercício de certa actividade, por determinada organização económica (v. g., uma sociedade comercial) que prossegue finalidades próprias, permanece na plenitude se uma organização, juridicamente diversa mas material, económica e finalisticamente a mesma (ao menos em parte) prosseguir, sem soluções de continuidade, as mesma finalidades, actuando e desenvolvendo os mesmos interesses, usando os mesmos meios, no mesmo plano material de intervenção em que foram afectados os interesses e valores cuja violação constitui contra-ordenação a impor uma censura social.
A razão própria do sistema resultaria intensamente afectada se uma mera modificação instrumental do suporte jurídico, inteiramente dependente da vontade dos interessados, produzisse como consequência o apagamento da censura social, precisamente quando nenhuma alteração de substância se produziu e permanece todo o complexo organizatório onde ocorreu, e pode voltar a ocorrer no futuro nos mesmos termos, a violação dos interesses públicos a que respondem a contra-ordenação e a coima.
Na verdade, na mudança de estatuto que resulta da fusão deve haver o esforço de evitar a fraude à lei de tais operações, «muitas vezes de mera cosmética» [cf. Mário Pedro Meireles, «Sanções das (e para as) pessoas colectivas», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 10.º, fasc. 4.º, Outubro-Dezembro de 2000, p. 511].
Por outro lado, é geralmente aceite que, por exemplo, no caso de transmissão de estabelecimento de uma empresa para outra entidade colectiva não se verifica extinção da responsabilidade por contra-ordenação ou da coima (cf.
João Soares Ribeiro, Contra-Ordenações Laborais, 2.ª ed., p. 119), sendo que, em direito laboral, se admite actualmente a transmissão da responsabilidade pelo pagamento da coima - artigo 318.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
Por último, e ainda em perspectivação sistemática, a personalidade jurídica não é elemento pressuposto da susceptibilidade para ser agente de contra-ordenação, bastando, para o efeito, um simples ente de facto sem personalidade jurídica.
18 - A aproximação geral ao regime da extinção do procedimento por contra-ordenação e da coima permite já uma passagem à questão concreta que foi objecto das decisões em divergência, e cuja resolução jurisprudencial constitui o objecto do recurso.
Está em causa uma contra-ordenação laboral, prevista nos artigos 9.º do regime geral das contra-ordenações laborais (RGCOL), aprovado pela Lei 116/99, de 4 de Agosto.
As sociedades responsáveis, em um e outro caso - bancos, sob a forma de sociedades anónimas -, foram incorporadas em outro banco, para o qual se transferiram os seus direitos e obrigações (património, estabelecimentos, trabalhadores e actividade) - artigo 112.º, alínea a), do CSC.
Tanto no regime das contra-ordenações laborais, como no regime geral subsidiariamente aplicável - artigo 2.º do RGCOL -, não se prevêem directamente, além da prescrição, outras causas de extinção do procedimento, sendo aplicável, por isso, subsidiariamente, o regime material do direito penal;
relativamente à responsabilidade pelo pagamento da coima, prevê-se - artigo 90.º do RGDMOS - que se extingue pela morte do agente, com toda a identidade problemática resultante da utilização normativa da categoria.
No regime material do direito penal, construído historicamente para a responsabilidade individual das pessoas singulares, a morte extingue o procedimento e a pena, na concretização do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal inscrito como direito fundamental - artigo 30.º, n.º 3, da Constituição.
Mas como a dimensão jurídica da categoria biológica de morte não se refere a pessoas colectivas, esta causa de extinção do procedimento e da coima apenas poderá ser chamada se for possível, e na medida em que o seja, a intervenção de critérios relevantes de analogia. No caso, como se demonstrou, tais critérios não permitem encontrar uma similitude relevante de situações entre a morte física da pessoa singular e a extinção por fusão de uma sociedade comercial, sendo que também a semelhança na diferença não pode ser suportada pela racionalidade em que assenta o regime das contra-ordenações quando permaneça e continue, apesar da extinção jurídica, um centro de imputação e se mantenham, inteiramente, as finalidades que determinam a necessidade de censura social pela continuação da actividade em que ocorreu a violação.
19 - Pelo exposto, fixa-se a seguinte jurisprudência:
A extinção, por fusão, de uma sociedade comercial, com os efeitos do artigo 112.º, alíneas a) e b), do Código das Sociedades Comerciais, não extingue o procedimento por contra-ordenação praticada anteriormente à fusão, nem a coima que lhe tenha sido aplicada.
Em consequência, o Tribunal da Relação deverá proferir nova decisão (artigo 445.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal).
Não é devida taxa de justiça.
Lisboa, 2 de Junho de 2004. - António Silva Henriques Gaspar - Sebastião Duarte de Vasconcelos da Costa Pereira - Luís Flores Ribeiro - Florindo Pires Salpico - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - António Joaquim da Costa Mortágua - António Luís Gil Antunes Grancho - Políbio Rosa da Silva Flor - António Artur Rodrigues da Costa - José Vítor Soreto de Barros - Armindo dos Santos Monteiro - João Manuel de Sousa Fonte - Fernando José da Cruz Quinta Gomes - Mário Rua Dias.