Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - O Tribunal Cível da Comarca de Lisboa (11.ª Vara Cível) deferiu o pedido de ratificação judicial de embargo de obra nova formulado por Renault Chelas - Comércio e Reparação de Veículos, Lda., contra REFER - Rede Ferroviária Nacional, E. P., e Ferrovial Agroman, S. A., determinando a suspensão imediata das obras promovidas pela REFER (dono da obra) e executadas pela Ferrovial (empreiteira) no local identificado nos autos, "até ao momento em que seja constituído um acesso fácil e em segurança para o estabelecimento da requerente, incluindo para camiões de mercadoria" e impondo uma sanção compulsória por cada dia de atraso no cumprimento.
Na oposição apresentada pela REFER, tinha sido invocada, para o que agora interessa, a incompetência do Tribunal comum em razão da matéria, pedindo-se a absolvição da instância. Para o efeito, a REFER sustentou estar em causa uma obra promovida por uma empresa pública, que tem a natureza de pessoa colectiva pública e por objecto o serviço público de gestão das infra-estruturas ferroviárias, sujeita à tutela do Estado e exercendo prerrogativas de autoridade, que a equiparam a entidade administrativa. Como tal, por força do disposto no artigo 414.º do Código de Processo Civil, não poderia a obra ser embargada, devendo a requerente socorrer-se dos meios previstos no contencioso administrativo.
Na decisão proferida foi a excepção julgada improcedente, com o fundamento de que a requerida não estava a desenvolver actos de gestão pública enquanto, por outro lado, a requerente visava a defesa da sua "propriedade privada".
2 - Inconformada, recorreu a REFER para o Tribunal da Relação de Lisboa - recurso recebido como agravo, a subir em separado e imediatamente, com efeito meramente devolutivo -, o qual, por Acórdão de 14 de Março de 2002, julgou procedente o recurso e revogou a decisão recorrida, considerando que, face ao estatuído no artigo 414.º do Código de Processo Civil, a obra em causa não podia ser embargada e que a defesa dos interesses da requerente, eventualmente lesados, deveria processar-se na jurisdição administrativa, através dos meios processuais próprios ou subsidiariamente aplicáveis.
Para tanto, recusou aplicação da norma contida no n.º 1 do artigo 32.º dos Estatutos da REFER, E. P., aprovados pelo Decreto-Lei 104/97, de 29 de Abril, por inconstitucionalidade, com dois fundamentos: ao atribuir competência aos tribunais judiciais para o julgamento de todos os litígios em que figure como parte a REFER, "retirando-a aos tribunais administrativos, mesmo no caso das acções (principais ou instrumentais) em que, sendo parte a REFER, estejam em causa relações jurídicas administrativas", a norma é materialmente inconstitucional, violando o disposto no n.º 3 do artigo 212.º da Constituição; além disso, enferma de inconstitucionalidade orgânica, dado "emanar do Governo, introduzindo uma solução inovatória em matéria da competência dos tribunais, sem credencial legislativa bastante" - artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição.
3 - Desta decisão interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, o Ministério Público e a requerente, Renault Chelas.
O Ministério Público concluiu do seguinte modo as suas alegações:
"1.º A matéria atinente à definição da 'competência dos tribunais' situa-se inteiramente no âmbito da competência legislativa reservada da AR, não sendo admissível que uma norma constante de diploma, não parlamentarmente credenciado, disponha inovatoriamente sobre a repartição de competências entre tribunais judiciais e administrativos.
2.º Situam-se no âmbito do conceito de 'relação jurídica administrativa' os actos que consubstanciam a realização, mediante empreitada de obras públicas, de obra nova em infra-estruturas do domínio público ferroviário, por iniciativa da pessoa colectiva pública em que o Estado 'delegou' as tarefas de gestão e manutenção de tais bens.
3.º A norma a que se reporta o presente recurso, quando interpretada no sentido de implicar a atribuição ao foro cível de competência para dirimir o litígio atinente a tal relação jurídico-administrativa, é organicamente inconstitucional, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa.
4.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida."
Por sua vez, Renault Chelas rematou as suas alegações com as seguintes conclusões:
"I - O artigo 212.º, n.º 3, da CRP não consagra uma reserva absoluta de competência dos tribunais administrativos, apenas os estabelece como 'tribunais comuns' para dirimir litígios emergentes de relações jurídico-administrativas.
II - É, assim, constitucionalmente legítima a atribuição pelo legislador a outras ordens de tribunais de competências pontuais, desde que fundamentadas.
III - Mas o artigo 32.º dos Estatutos da REFER mantém, no seu n.º 2, a atribuição da competência dos tribunais administrativos para dirimir litígios emergentes de relações jurídico-administrativas.
IV - Atribuindo, pelo seu n.º 1, competência aos tribunais judiciais apenas para as restantes relações jurídico-privadas.
V - Aliás, a REFER, enquanto empresa pública, desenvolve a sua actividade principalmente sob o regime de direito privado, nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril (e hoje do artigo 7.º do Decreto-Lei 558/99, de 17 de Dezembro).
VI - O artigo 32.º dos Estatutos da REFER vem repetir, quase palavra por palavra, o texto do artigo 46.º do Decreto-Lei 260/76, limitando-se a manter, sem novidades, uma tradição jurídica do regime das empresas públicas.
VII - Não há, assim, qualquer incompatibilidade com o artigo 212.º, n.º 3, da CRP.
VIII - Também a natureza não inovatória do artigo 32.º dos Estatutos da REFER, de mera reprodução da tradição jurídica constante já do artigo 46.º do Decreto-Lei 260/76, retira-lhe qualquer inconstitucionalidade orgânica que pudesse ter.
IX - De acordo com jurisprudência pacífica e reiterada deste Tribunal Constitucional.
Termos em que, com o douto suprimento de VV. Exmas., deve o julgamento de inconstitucionalidade recorrido ser anulado, declarando-se a plena constitucionalidade do artigo 32.º, n.º 1, dos Estatutos da REFER e ordenando-se a repetição do julgamento em conformidade, como é da Constituição e de justiça!"
Por seu turno, a REFER defende a decisão recorrida, acompanhando os seus fundamentos e as alegações do Ministério Público, considerando que a competência para dirimir este tipo de litígios está constitucionalmente reservada aos tribunais administrativos, de acordo com o n.º 3 do artigo 212.º da Constituição.
II - Fundamentação. - 4 - O Decreto-Lei 104/97, de 29 de Abril, criou a Rede Rodoviária Nacional - REFER, E. P., pessoa colectiva de direito público, "dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio, estando sujeito à tutela dos Ministros das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território" (n.º 1 do artigo 2.º), a qual se rege pelo Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril, com as alterações posteriores, "com o estatuto que constitui o anexo I ao [...] diploma, que dele faz parte integrante, e pela demais legislação aplicável (n.º 1 do artigo 1.º do mesmo diploma)".
Nesse estatuto figura um preceito do seguinte teor:
"Artigo 32.º
Tribunais competentes
1 - Sem prejuízo decorrente do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 3.º, compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que seja parte a REFER, E. P., incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil dos titulares dos seus órgãos para com a respectiva empresa.
2 - São da competência dos tribunais administrativos os julgamentos dos recursos dos actos dos órgãos da REFER, E. P., que se encontrem sujeitos a um regime de direito público, bem como o julgamento das acções sobre a validade, interpretação e execução dos contratos administrativos celebrados pela empresa."
A norma cuja constitucionalidade é questionada é a do n.º 1 do transcrito artigo 32.º, na interpretação de que atribui competência aos tribunais judiciais para o julgamento de todos os litígios em que figure como parte a REFER, mesmo no caso das acções em que estejam em causa relações jurídicas administrativas. Foi essa a norma que o acórdão recorrido entendeu que seria chamada a disciplinar o caso e afastou por inconstitucionalidade, o que significa que implicitamente considerou não caber a situação em qualquer das outras normas de competência que o preceito comporta.
5 - Considerando o disposto no n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República - nos termos do qual "compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais" - o acórdão recorrido considerou aquele preceito não só materialmente inconstitucional (por violação desta última norma), como organicamente inconstitucional, por emanar do Governo, introduzindo uma solução inovatória no tocante à competência dos tribunais, sem credencial legislativa bastante, infringindo a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, constante da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Lei Fundamental. Assentou esse entendimento na qualificação do litígio como reportado a uma relação jurídico-administrativa, em função da natureza da obra e dos fins com ela prosseguidos e do enquadramento institucional da acção desenvolvida pela REFER, enquanto gestora do domínio público ferroviário infra-estrutural, por um lado, e do fim visado pela requerente do embargo, por outro, devendo a defesa dos interesses desta processar-se pelos meios do contencioso administrativo e nos tribunais dessa jurisdição.
A este propósito, escreveu-se no acórdão:
"Estatui o artigo 414.º do Código de Processo Civil que 'Não podem ser embargadas, nos termos desta subsecção, as obras do Estado, das demais pessoas colectivas públicas e das entidades concessionárias de obras ou serviços públicos quando, por o litígio se reportar a uma relação jurídico-administrativa, a defesa dos direitos ou interesses lesados se deva efectivar através dos meios previstos na lei de processo administrativo contencioso'.
Defende a recorrente que é uma empresa pública, com a natureza de pessoa colectiva pública, com prerrogativas de autoridade pública, que tem por objecto a gestão da infra-estrutura integrante da rede ferroviária nacional e que foi no âmbito dessas suas atribuições que lançou a obra que a recorrida embargou e cuja ratificação de embargo obteve do tribunal recorrido, com violação do disposto na citada norma.
Deriva do estatuído no Decreto-Lei 104/97, de 29 de Abril, que a requerida, pessoa colectiva de direito público sujeita à tutela dos Ministros das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território (artigo 2.º, n.º 1), tem por objecto principal a prestação do serviço público de gestão da infra-estrutura integrante da rede rodoviária nacional, constando, entre as suas atribuições, para além de outras, 'a construção, instalação e renovação das infra-estruturas ferroviárias', integrando-se nestas, desde que façam parte das vias principais e de serviço, designadamente, os terrenos, a estrutura e plataformas da via (aterros, trincheiras, valas, valetas, muros de revestimentos, de vedação, bermas, etc.), 'obras de arte: pontes, pontões e outras passagens superiores, túneis, valas cobertas e outras passagens inferiores [...]', passagens de nível, pátios das gares, instalações de segurança, sinalização e telecomunicações, de iluminação, etc. (cf. artigo 3.º, n.º 1, e anexo II do mesmo diploma).
Para além disso, deriva dos Estatutos da REFER, E. P., publicados em anexo ao mesmo diploma (anexo I), que o dito objecto principal da REFER, E. P., 'consiste no serviço público de gestão da infra-estrutura integrante da rede rodoviária nacional, desenvolvendo as actividades pertinentes ao seu objecto de acordo com os princípios de modernização e eficácia, de modo a assegurar o regular e contínuo fornecimento do serviço público, utilizando para o efeito os meios mais adequados à actividade ferroviária' (artigo 2.º, n.º 1).
E acrescenta-se no seu artigo 3.º, n.º 1, sob a epígrafe 'Prossecução do objecto', que a REFER, E. P., pode praticar todos os actos de gestão necessários ou convenientes à prossecução do seu objecto, e 'conserva os direitos e assume as responsabilidades atribuídas ao Estado relativamente ao domínio público ferroviário nas disposições legais e regulamentares aplicáveis [...]' (n.º 2 da mesma norma, com itálico nosso).
Ora, inserindo-se a obra em questão - execução da ligação ferroviária norte-sul, através da Ponte 25 de Abril (troço Chelas-Entrecampos), (v. despacho 21 989/98, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Dezembro de 1998, e planta anexa) - 'nas atribuições próprias da recorrida, mas inerentes ao domínio público ferroviário, que normal e tradicionalmente caberiam no núcleo de actuações do Estado' (cf. preâmbulo do Decreto-Lei 104/97 e da Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres, onde a responsabilidade pela construção, renovação e conservação da infra-estrutura integrante da Rede Ferroviária Nacional está atribuída ao Estado ou a 'entidade actuando por sua concessão ou delegação' (artigos 10.º e 11.º, n.º 1) - e que este, por opção estratégica, colocou na requerida), e estando verdadeiramente em causa o acesso da recorrida à via pública, tem de concluir-se que a ameaça dos eventuais direitos que a requerente procurou, provisoriamente, proteger com recurso ao embargo extrajudicial, seguido de pedido de ratificação judicial do mesmo, se reporta a uma relação jurídico-administrativa."
Desta caracterização e face ao artigo 414.º do Código de Processo Civil decorreria, segundo o acórdão recorrido, não poder a obra em causa ter sido embargada nos termos em que o foi, devendo a defesa dos interesses daqueles que aleguem ser ou poder ser afectados por ela processar-se nos tribunais administrativos, "através dos seus meios processuais próprios ou por elas subsidiariamente aplicáveis" (aliás, além desta norma geral, é uma constante do sistema jurídico a introdução de cautelas excepcionais relativamente à possibilidade de embargo de obras promovidas pela empresa a que incumbe a construção e gestão das infra-estruturas ferroviárias, como resultava do preceituado no artigo 4.º do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, constante do Decreto-Lei 39 870, de 21 de Agosto de 1954, e consta do artigo 10.º do Decreto-Lei 276/2003, de 4 de Novembro).
Entendeu, porém, o acórdão recorrido que o n.º 1 do artigo 32.º dos Estatutos da REFER impediria esta solução de remessa da requerente para os meios do contencioso administrativo. Mas afastou este obstáculo, considerando que o n.º 1 do artigo 32.º do Estatuto, "na parte em que atribui competência aos tribunais judiciais para o julgamento de todos os litígios em que seja parte a REFER, E. P., retirando-a aos tribunais administrativos, mesmo no caso das acções (principais ou instrumentais) em que, sendo parte a REFER, estejam em causa relações jurídicas administrativas, é materialmente inconstitucional, por violar o disposto no n.º 3 do artigo 212.º da Constituição e é, também, organicamente inconstitucional por emanar do Governo, introduzindo uma solução inovatória em matéria de competência dos Tribunais, sem credencial legislativa bastante, infringindo a reserva de competência legislativa consagrada na alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição".
Reconduzindo a apreciação da situação apenas aos restantes preceitos citados, o acórdão recorrido decidiu que a obra em causa não podia ser embargada e, consequentemente, o pedido de ratificação do embargo extrajudicial deveria ter sido julgado improcedente. Deve, aliás, notar-se que não se trata propriamente de uma decisão de incompetência, isto é, de verificação da falta de um pressuposto processual relativo ao tribunal, mas de uma decisão de improcedência do pedido por insusceptibilidade de embargo da obra pública nos termos pretendidos. A norma de competência a que é recusada aplicação é convocada pela decisão recorrida porque - integrando o regime de excepção às regras da defesa cautelar por embargos de obra nova que consta do artigo 414.º do CPC - obstaria a que os interesses da requerente "devessem" ser defendidos pelos meios do contencioso administrativo, na medida em que subtrairia a causa à jurisdição (ao conjunto dos tribunais da ordem jurisdicional) onde esses meios têm aplicação.
6 - Deve começar-se por observar que ao Tribunal Constitucional compete, tão-somente, a apreciação da conformidade ou desconformidade com regras ou princípios constitucionais, sejam os invocados da decisão recorrida e nas alegações do recurso, sejam outros que o Tribunal entenda pertinentes, da norma a que a decisão recorrida recusou aplicação (artigo 79.º-C da LTC). Assim, está fora da sua competência saber se a situação litigiosa, tal como o acórdão recorrido a caracteriza, cai no âmbito do n.º 1 do artigo 32.º dos Estatutos da REFER.
Na verdade, como salienta o Ministério Público, poderia justificar-se a interrogação sobre se a norma dos Estatutos tem o sentido com que foi tomada, ou se a norma de competência contenciosa não deveria antes ser interpretada como corolário do princípio geral de que as empresas públicas actuam segundo o direito privado, isto é, que a fiscalização da actividade das empresas públicas não fica submetida aos tribunais administrativos justamente porque fazem gestão privada e na exacta medida em que o fazem. Interrogação que, face à nova disciplina que, quanto ao regime geral das empresas públicas, foi introduzida pelo Decreto-Lei 558/99, de 17 de Dezembro, poderia levar-se ao ponto de questionar a própria vigência dessa norma ou, pelo menos, se não deveria ser interpretada em conformidade com o novo desenho geral do regime jurídico dos entes públicos empresariais. Todavia, como adiante se verá, a controvérsia jurisprudencial existente a este propósito impede que o Tribunal encare a hipótese de proceder a uma interpretação conforme, ao abrigo do n.º 3 do artigo 80.º da Constituição.
A mesma aceitação do decidido pelo tribunal a quo tem de observar-se quanto à definição da situação jurídica litigiosa, designadamente com o enquadramento dos trabalhos embargados e a identificação da pretensão da ora recorrida, que levou o tribunal da causa a qualificar o litígio como reportado a uma situação jurídica administrativa. Sem prejuízo de sempre competir ao Tribunal Constitucional, se tanto se revelar necessário, dizer se, para efeitos do n.º 3 do artigo 212.º da Constituição, a situação, tal como é recortada pelo tribunal a quo quanto aos factos pertinentes e ao direito ordinário que os rege, integra o conceito constitucionalmente relevante de relação jurídica administrativa, porque aí já se trata de determinar o conceito constitucionalmente relevante.
7 - De uma norma como aquela que está em apreciação, cujo objecto é a determinação da jurisdição competente, isto é, a escolha entre atribuir a apreciação jurisdicional de determinado tipo de litígios à ordem dos tribunais judiciais ou à ordem dos tribunais administrativos e fiscais, pode seguramente afirmar-se que incide sobre matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, que ao tempo da edição da norma constava da alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º e actualmente figura na alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição [Organização e competência dos tribunais [...]. É actualmente pacífico que a reserva abrange toda a matéria da competência dos tribunais (cf., entre outros, Acórdãos n.os 25/88, 3/89, 356/89, 172/96 e 588/99, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vols. 11.º, pp. 541 e segs., 13.º, II, pp. 619 e segs., I, pp. 443 e segs., e 33.º, pp. 361 e segs., e Diário da República, 2.ª série, de 20 de Março de 2000, respectivamente). De todo o modo, mesmo quem propugnasse uma interpretação restritiva do preceito constitucional aceitaria que a repartição dos litígios entre as duas ordens jurisdicionais está seguramente compreendida na extensão mínima desta reserva.
Assim, pode assentar-se que um conteúdo normativo como aquele que consta da norma em causa só pode, em princípio, constar de decreto-lei mediante prévia lei parlamentar de autorização legislativa.
8 - Todavia, de acordo com a jurisprudência reiterada do Tribunal, para que se afirme a inconstitucionalidade orgânica não basta que nos deparemos com produção normativa não autorizada do Governo em determinado domínio onde este órgão só poderia intervir com credencial parlamentar bastante. Com efeito, o facto de o Governo aprovar actos normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de competência da Assembleia da República não determina, por si só e automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de inconstitucionalidade orgânica. Desde que se demonstre que tais normas não criaram um ordenamento diverso do então vigente, limitando-se a retomar e a reproduzir substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão de soberania competente, no seguimento de jurisprudência constitucional que remonta à comissão constitucional (cf., aliás com posição discordante, a indicação de Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. V, pp. 234-235), vem o Tribunal entendendo não existir invasão relevante da esfera de competência reservada [sobre o carácter inovatório de um preceito como critério decisivo para aferir da sua compatibilidade com o artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição - actualmente, artigo 165.º, n.º 1, alínea p) - cf., por ex., o Acórdão 123/04 (plenário), publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 30 de Março de 2004].
Ora, a recorrida objecta ao juízo de inconstitucionalidade orgânica, precisamente, com o facto de a norma em causa se limitar a reproduzir o que já constava do regime geral das empresas públicas vigente ao tempo da sua edição. Refere-se ao artigo 46.º do Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril, que dispunha o seguinte:
"Artigo 46.º
Tribunais competentes
1 - Salvo o disposto no números seguintes, compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que seja parte uma empresa pública, incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil por actos dos seus órgãos, bem como a apreciação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com a respectiva empresa.
2 - São da competência dos tribunais administrativos os julgamentos dos recursos dos actos definitivos e executórios dos órgãos das empresas públicas sujeitos a um regime de direito público, nos termos do n.º 2 do artigo 3.º, bem como o julgamento das acções sobre validade, interpretação ou execução dos contratos administrativos celebrados por essas mesmas empresas."
O cotejo das duas disposições imediatamente revela a sua essencial similitude de conteúdo normativo, sobretudo no que respeita à norma que agora está em apreciação, aquela que entrega aos tribunais judiciais a competência regra para conhecer dos litígios em que seja parte uma empresa pública. Assim, o n.º 1 do artigo 32.º dos Estatutos da REFER não correspondeu a uma qualquer actuação inovadora do Governo em matéria de reserva relativa da Assembleia da República, limitando-se a reiterar, para o caso de uma certa empresa pública, algo que a legislação em vigor já genericamente dispunha. Não pode, consequentemente, concluir-se pela inconstitucionalidade orgânica porque, suposta a bondade da interpretação que conduziu à recusa de aplicação que considera a situação abrangida por essa determinação de que todos os litígios em que seja parte a empresa cabem, em princípio aos tribunais judiciais, o Governo nada terá inovado.
Não se ignora que, ao tempo da propositura da acção, o Decreto-Lei 260/76 já não se encontrava em vigor, tendo sido substituído pelo Decreto-Lei 558/99, de 17 de Dezembro, que introduziu profundíssimas alterações no regime jurídico geral do sector empresarial do Estado, passando a determinação dos "tribunais competentes" a constar do artigo 18.º deste último diploma em termos que poderiam justificar a interrogação sobre a vigência da disposição particular do artigo 32.º dos Estatutos da REFER ou, pelo menos, sobre a repercussão da evolução do regime geral na determinação do sentido dessa norma estatutária particular.
Todavia, esse aspecto da evolução do regime quadro não interfere nos termos de apreciação da questão da inconstitucionalidade orgânica a que no presente processo cumpre proceder. Por um lado, o acórdão recorrido teve apenas em consideração a norma dos Estatutos, nos seus estritos termos literais, sendo que a determinação da vigência e a interpretação do direito ordinário aplicado ou a que é recusada aplicação com fundamento em inconstitucionalidade é matéria da competência do tribunal da causa, que o Tribunal Constitucional tem de aceitar como um dado, com ressalva de hipóteses excepcionais de imposição de interpretação conforme ao abrigo do n.º 3 do artigo 80.º da LTC que, no caso, se não justifica desde logo porque a solução é efectivamente e na prática judiciária controversa (cf., por ex., em sentidos opostos, Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Junho de 2005, processo 3378/2005-6, 20 de Outubro de 2005, processo 9174/2005-6 e o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 6 de Julho de 2006, conflito n.º 28/05). Por outro, para efeitos da verificação do carácter inovatório da solução normativa questionada, enquanto critério da relevância da falta de credencial parlamentar específica, o quadro normativo que importa considerar é aquele que se verificava no momento em que essa norma passou a integrar o ordenamento jurídico (é por referência à situação nesse momento verificada que produz ou não modificação substancial do ordenamento), sendo irrelevantes as modificações posteriores.
Deste modo, face à regra geral de atribuição aos tribunais comuns da competência para conhecer dos litígios em que fosse parte uma empresa pública, instituída pelo artigo 46.º do Decreto-Lei 260/76, a norma agora em causa, embora especial para certa empresa pública, não se reveste de carácter inovatório, pelo que importa passar à apreciação da inconstitucionalidade material de que o acórdão recorrido também entendeu estar a norma inquinada.
9 - Como no acórdão se salienta, o dono da obra embargada (a REFER) é uma empresa pública, com a natureza de pessoa colectiva de direito público e forma de "entidade pública empresarial" (cf. artigo 23.º do Decreto-Lei 558/99, de 17 de Dezembro), cujo escopo principal é a gestão da infra-estrutura integrante da rede ferroviária nacional. Incumbe-lhe não apenas a gestão da capacidade, conservação e manutenção da infra-estrutura instalada mas também a própria construção, instalação e renovação das infra-estruturas ferroviárias (artigos 2.º e 3.º do Decreto-Lei 194/97 e 2.º dos Estatutos aprovados por este mesmo diploma legal). Nessa qualidade, a REFER conserva os direitos e assume as responsabilidades atribuídas ao Estado relativamente ao domínio público ferroviário.
Dispõe o actual n.º 3 do artigo 212.º da Constituição (anteriormente à Lei Constitucional 1/97, era o n.º 3 do artigo 214.º) que compete aos tribunais administrativos [e fiscais] o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas [e fiscais]. O Tribunal já foi por diversas vezes confrontado com a questão de determinar o alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa, no duplo sentido de que, por um lado, os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e, por outro, de que só eles poderão julgar tais questões, tendo-lhe respondido, em jurisprudência cujos pressupostos se mantêm, que o preceito contém uma regra definidora de um modelo típico, compatível com adaptações ou desvios em casos especiais desde que não fique prejudicado o seu núcleo caracterizador.
Assim, sem preocupações de apresentar um elenco exaustivo, decidiu o Tribunal que não violavam o disposto no mencionado preceito constitucional:
O artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei 48 953, de 5 de Abril de 1969 (redacção do Decreto-Lei 693/70, de 31 de Dezembro), que atribuía aos tribunais tributários competência para cobrar dívidas de que fosse credora a Caixa Geral de Depósitos (cf. Acórdãos n.os 371/94, 372/94 e 508/94, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 3 de Setembro de 1994, 7 de Setembro de 1994 e 13 de Dezembro de 1994, respectivamente, e 574/94, 610/94 e 629/94, dispóniveis em www.tribunalconstitucional.pt);
O artigo 36.º, n.º 1, da Portaria 640/76, de 26 de Outubro - norma que prevê recurso contencioso para os tribunais administrativos dos actos de registo de imprensa - não violava o disposto naquele preceito da Constituição (cf. Acórdão 607/95, disponíveis no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Março de 1996);
Os preceitos do Código das Expropriações (na espécie, o aprovado pelo Decreto-Lei 438/91, de 9 de Novembro) que atribuem aos tribunais judiciais a competência para julgar a questão da indemnização por expropriação por utilidade pública (cf. o Acórdão 746/96, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 4 de Setembro de 1996);
A atribuição ao Supremo Tribunal de Justiça da competência para julgar os recursos interpostos das deliberações do plenário do Conselho Superior da Magistratura, feita pelo n.º 1 do artigo 168.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, não viola o referido artigo 212.º, n.º 3, da Constituição (cf. os Acórdãos n.os 347/97 e 290/99, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 25 de Julho de 1997 e de 15 de Novembro de 2000, respectivamente, e o Acórdão 421/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt);
As normas que cometem aos tribunais judiciais a competência para a apreciação do recurso dos actos relativos a certos actos de registo em sede de propriedade industrial, apesar de se reconhecer o carácter publicístico destes (cf. o Acórdão 550/2000, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 1 de Fevereiro de 2001) e para a impugnação dos actos dos conservadores do registo predial (cf. Acórdão 284/2003, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 18 de Julho de 2003).
Desta jurisprudência ressalta o entendimento, várias vezes sublinhado, de que a introdução, pela revisão constitucional de 1989, no então artigo 214.º, n.º 3, da Constituição, da definição do âmbito material da jurisdição administrativa, não visou estabelecer uma reserva absoluta, quer no sentido de exclusiva, quer no sentido de excludente, de atribuição a tal jurisdição da competência para o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. O preceito constitucional não impôs que todos estes litígios fossem conhecidos pela jurisdição administrativa (com total exclusão da possibilidade de atribuição de alguns deles à jurisdição "comum"), nem impôs que esta jurisdição apenas pudesse conhecer desses litígios (com absoluta proibição de pontual confiança à jurisdição administrativa do conhecimento de litígios emergentes de relações não administrativas), sendo constitucionalmente admissíveis desvios num sentido ou noutro, desde que materialmente fundados e insusceptíveis de descaracterizar o núcleo essencial de cada uma das jurisdições.
É conclusão que o Tribunal vem sustentando, no essencial, tendo em consideração, por um lado, que o preceito (inicialmente o n.º 3 do artigo 214.º) se explica historicamente na sequência da alteração do então artigo 211.º (actualmente artigo 209.º) que consagrou a ordem jurisdicional administrativa como de existência necessária e não meramente facultativa. Neste contexto é normal que, num texto como o da Constituição, se tenha utilizado, na definição da área própria dessa ordem jurisdicional, a técnica da cláusula geral, sem que isso signifique um propósito de estabelecer uma reserva material absoluta. Por outro lado, uma interpretação rigorosamente chegada aos estritos termos literais colocaria dúvidas perturbadoras do normal funcionamento dos tribunais em áreas de grande importância prática e de longa tradição de competência dos tribunais judiciais, designadamente em matéria de contencioso de actos de registo, de impugnação de decisões em matéria de contra-ordenações, de fixação da indemnização na expropriação por utilidade pública, bem como depararia com a impossibilidade de os tribunais administrativos, na organização judiciária administrativa então existente, dado o seu escasso número e distribuição geográfica, darem resposta adequada e acessível à avalanche de litígios com que se veriam confrontados. Só perante uma inequívoca vontade do legislador constituinte se poderia assumir uma tal "revolução".
Como diz Vieira de Andrade A Justiça Administrativa - (Lições), 8.ª ed., p. 113, essa definição constitucional do "âmbito-regra, que corresponde à justiça administrativa em sentido material, deve ser entendida como uma garantia institucional, da qual deriva para o legislador ordinário tão-somente a obrigação de respeitar o núcleo essencial da organização material das jurisdições". O preceito constitucional proíbe a descaracterização ou desfiguração da jurisdição administrativa, enquanto jurisdição própria ou principal nesta matéria. Mas não fica proibida a atribuição pontual do julgamento de questões substancialmente administrativas aos tribunais judiciais, admitindo-se a razoabilidade dessas "remissões", que podem ter justificações diversas e muitas delas tradicionais na nossa organização judiciária - por ex., a apreciação das decisões das autoridades administrativas em matéria de contra-ordenações, os litígios relativos à indemnização por expropriação, o contencioso de actos de registo e notariais -, e designadamente naquelas situações de fronteira em que há dúvidas de qualificação ou zonas de intersecção entre as matérias administrativas e as restantes.
Em termos práticos, significa isto que, perante norma legal a definir concretamente qual a jurisdição competente, há que indagar qual a natureza da relação jurídica de que emerge o litígio e, se se concluir que possui natureza administrativa, se impõe averiguar se a solução descaracteriza a jurisdição administrativa, enquanto jurisdição própria ou principal nesta matéria.
10 - Vejamos, então, se isto acontece com a atribuição de competência aos tribunais judiciais para conhecer dos litígios em que seja parte a REFER, mesmo nos casos de acções emergentes de obras por esta promovidas e sujeitas a um regime de direito administrativo, no âmbito das suas atribuições inerentes ao domínio público ferroviário - foi esse o pressuposto de que partiu a decisão recorrida para qualificar a relação como relação jurídica administrativa - , alegadamente geradoras de prejuízos para terceiros por perturbarem as condições de acesso destes à via pública.
A resposta a esta questão surgirá facilitada se começarmos por ter presente que o litígio não versa directamente sobre qualquer acto jurídico unilateral relativo à utilização, protecção e gestão das infra-estruturas afectas ao serviço público (cf. o artigo 14.º do Decreto-Lei 558/99 e n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei 104/97), nem sobre aspectos respeitantes à interpretação, validade ou execução do contrato de empreitada ao abrigo do qual a obra estava a ser realizada. Efectivamente, o objecto imediato da reacção da embargante, a causa da lesão que quer prevenir ou afastar, são as operações materiais em que a execução da obra se traduz, que atingiam os seus interesses sem pré-existência de um acto jurídico individual, emitido no exercício de poderes ou prerrogativas de autoridade, que a sujeitasse a tais consequências, nos termos em que o acórdão recorrido configura a causa porque se assim não fosse teria atendido ao n.º 2 do citado artigo 32.º A embargante não estava constituída noutra relação com a actividade jurídica da REFER de que as obras emergem que não seja a que resulta da vizinhança do local das obras e só por via da execução destas se estabelece entre ambas a relação de que emerge a pretensão conservatória ou restaurativa em que a acção se traduz.
Ora, nesta perspectiva e mesmo admitindo que as alterações das condições de acesso à via pública por parte da recorrida que daí advêm tenham de ser resolvidos pela aplicação de normas de direito administrativo, trata-se de um daqueles domínios em que a remissão para os tribunais comuns não pode ser considerado atentatório do modelo típico que a Constituição quis consagrar quanto ao âmbito material da justiça administrativa. Com efeito, a fonte causal imediata da actuação alegadamente lesiva de que emerge o litígio são as referidas operações materiais e estas apresentam-se como juridicamente neutras ou ambivalentes. Assim, não põe dizer-se que, mesmo praticadas num contexto vivencial de direito público, a atribuição dos litígios delas emergentes, quando da responsabilidade de uma empresa pública em que a regra é preferência pelo princípio da gestão privada, atinja o núcleo essencial da organização material das jurisdições nos termos em que a jurisprudência do Tribunal, que não se vê razões para rever, interpreta o n.º 3 do artigo 212.º da Constituição.
Pelo exposto, não se verificando os vícios de inconstitucionalidade (orgânica e material) que levaram o acórdão recorrido a recusar aplicação ao n.º 1 do artigo 32.º dos Estatutos da REFER, o recurso deve ser julgado procedente.
III - Decisão. - Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 21 de Março de 2007. - Vítor Gomes - Bravo Serra - Gil Galvão - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Artur Maurício.