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Acórdão 110/2007, de 20 de Março

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Sumário

Julga inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia

Texto do documento

Acórdão 110/2007

Processo 788/2006

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Por Acórdão de 19 de Julho de 2006, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa da decisão deste Tribunal de 22 de Fevereiro de 2006, que, concedendo provimento ao recurso interposto por António Manuel Marques Barata, revogara o despacho recorrido proferido em 11 de Outubro de 2005, e, consequentemente, julgara extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra aquele pela prática, em 1992, de um crime de burla agravada, previsto e punido pelos artigos 313.º e 314.º, alínea c), da redacção originária do Código Penal de 1982. Pode ler-se nesse aresto do Supremo Tribunal de Justiça:

"Na análise da questão substancial suscitada nos presentes autos importa precisar o segmento da decisão proferida objecto de impugnação.

"Analisemos agora a argumentação do mencionado acórdão de fixação de jurisprudência.

Não merecem, em nosso entender, qualquer crítica os dois primeiros argumentos utilizados. De facto, o corpo do artigo 119.º da redacção originária do Código Penal de 1982 ressalva outros casos especialmente previstos na lei e essa ressalva tanto abrange as situações já então previstas como casos especiais de suspensão do procedimento criminal como outras que, posteriormente, tivessem vindo a ser estabelecidas. Para isso seria, no entanto, imprescindível que fossem ou viessem a ser posteriormente concebidas como causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal e não como meras causas de suspensão do processo. Não é pelo facto de a suspensão da prescrição, a existir, dever ter duração correspondente à da suspensão do processo que esta, 'sem ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal' (n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil), se pode transformar naquela.

Uma coisa é prever-se uma causa de suspensão do processo.

Outra, completamente diferente, uma causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal. Se da primeira apenas decorrem efeitos de natureza processual, a prescrição tem uma natureza mista. Extingue o procedimento e também a responsabilidade criminal.

É certo que o legislador ao publicar o novo Código de Processo Penal deveria ter alterado o Código Penal, nomeadamente as disposições relativas à prescrição, para adaptar as causas de suspensão e de interrupção do procedimento criminal à nova tramitação prevista, como veio a fazer em 1995, e depois em 1998, sob pena de, de outro modo, acabar 'por vir a proteger o arguido que, mais lesto, fugira à alçada da justiça'. Porém, tais considerações de política legislativa não podem, por si só, sustentar a referida interpretação do artigo 336.º do Código de Processo Penal. Se, em geral, as considerações político-criminais não podem ser estranhas ao intérprete e devem por ele ser consideradas na sua actividade, o resultado da interpretação não pode ir além do sentido possível das palavras utilizadas no texto. Não se pode pretender que o intérprete, com base nas considerações de política legislativa e político-criminais, se substitua ao legislador e alcance, por via da aplicação do direito, o resultado que o legislador devia ter previsto mas que, consabidamente, não previu.

De outra forma violar-se-ia inexoravelmente o princípio da legalidade consagrado no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 1.º do Código Penal.

E desta forma se entra no argumento decisivo para a não aplicação do referido acórdão de fixação de jurisprudência.

Se bem que ele não constitua hoje 'assento', nem sequer jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais (n.º 3 do artigo 445.º do Código de Processo Penal), sempre poderíamos optar, não obstante a nossa discordância, por o aplicar, não fora a questão de constitucionalidade. Isto por considerações de segurança jurídica e de respeito pelos interesses dos sujeitos processuais envolvidos, atenta a data relativamente recente daquela fixação da jurisprudência.

Porém, a interpretação do segmento 'a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido', inserto no n.º 1 do artigo 336.º da redacção originária do Código de Processo Penal, no sentido de que aí se consagra uma causa especial de suspensão da prescrição do procedimento criminal admitida pelo corpo do n.º 1 do artigo 119.º da redacção primitiva do Código Penal de 1982, viola o princípio da legalidade criminal referido, sendo portanto, por esse motivo, materialmente inconstitucional."

Assim, conclui a decisão em causa que, com fundamento em inconstitucionalidade, se decide não aplicar (artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa) a norma criada pelo citado acórdão, razão pela qual, tendo decorrido a prazo de prescrição previsto no artigo 117.º, n.º 1, alínea b), da redacção originária do Código Penal e não tendo sido praticado, até ao seu termo, qualquer acto com efeito suspensivo ou interruptivo, se julga procedente o recurso e, consequentemente, se declara extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra o arguido António Manuel Marques Barata, pela prática em 1992 de um crime de burla agravada, previsto e punido pelos artigos 313.º e 314.º, alínea c), da redacção originária do Código Penal de 1982.

Na decisão do presente recurso importa estabelecer as premissas que constituem o antecedente lógico da decisão a enunciar:

a) O assento 10/2000 decidiu que "No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal".

b) Pronunciando-se sobre a questão da constitucionalidade do entendimento consagrado no mesmo assento refere o Acórdão 449/2002 do Tribunal Constitucional que o princípio da legalidade - e, em concreto, a exigência de tipicidade - não requer que todas as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal estejam previstas na mesma norma legal. Apenas pode postular que a norma que preveja cada uma (ou várias) daquelas causas seja suficientemente precisa e seja emitida pela Assembleia da República ou pelo Governo, no uso da indispensável autorização legislativa [artigo 198.º, n.º 1, alínea b), da Constituição].

Mas nada obsta a que uma norma - no caso, o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 - remeta para outras normas a consagração, em concreto, de causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal.

Esta conclusão não é invalidada pela circunstância de a norma que consagra a causa de suspensão do prazo prescricional - o artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 - ser posterior. Na verdade, a cláusula "geral" ou de "remissão" dirige-se a todas as normas que vigoravam à data da sua entrada em vigor ou hajam entrado em vigor posteriormente (mas, claro está, na sua vigência).

Esta técnica legislativa em nada contraria o princípio da legalidade, bastando ter em conta, para o evidenciar, que uma enumeração taxativa (do artigo 119.º, n.º 2, do Código Penal de 1982) poderia ser livremente revogada por uma norma de idêntico valor hierárquico (artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987), que consagrasse uma nova causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal.

c) Este Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se plúrimas vezes sobre a validade dos fundamentos e conclusão do referido assento (Acórdãos de 2 de Outubro de 2002, 13 de Janeiro de 2003, 27 de Fevereiro de 2003 e 26 de Janeiro de 2003).

De acordo com o disposto no artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, a decisão que resolver o conflito, no caso de recurso para a fixação de jurisprudência, não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.

Sobre o sentido interpretativo daquela norma permitimo-nos chamar à colação a decisão deste Supremo Tribunal de 26 de Janeiro de 2006 (processo 06P181) onde se referiu que:

1 - A partir da reforma de 1998 do processo penal, os tribunais judiciais podem-se afastar da jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça, conquanto que fundamentem as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão (n.º 3 do artigo 445.º do CPP).

2 - Mas, com essa norma não se quis seguramente referir o dever geral de fundamentação das decisões judiciais (artigos 97.º, n.º 4, e 374.º do CPP), antes postular um dever especial de fundamentação destinado a explicitar e explicar as razões de divergência em relação à jurisprudência fixada.

3 - Quis então o legislador que o eventual afastamento, por parte dos tribunais judiciais, da jurisprudência fixada, pudesse gerar uma "fiscalização difusa" da jurisprudência uniformizada (artigo 446.º, n.º 3, do CPP).

4 - Ora, as duas normas, que se ocupam da possibilidade de revisão pelo Supremo Tribunal de Justiça da jurisprudência por si fixada, usam a mesma terminologia: haver "razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada" (artigos 446.º, n.º 3, e 447.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPP), as únicas razões, pois, que podem levar um tribunal judicial a afastar-se da jurisprudência fixada.

5 - Isso sucederá, v. g., quando:

O tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada;

Se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, de forma que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou, finalmente,

A alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juízes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada.

7 - Mas seguramente não sucederá quando, como infelizmente se tem vindo a constatar suceder com frequência, o Tribunal Judicial não acata a jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer argumento novo, sem percepção da alteração das concepções ou da composição do Supremo Tribunal de Justiça, baseado somente na sua convicção de que aquela não é a melhor solução ou a "solução legal".

Na verdade, esta é a posição que se coaduna com a concepção vigente do Supremo Tribunal de Justiça como regulador e uniformizador da jurisprudência nacional, cabendo-lhe essencialmente a função de tribunal de revista (artigo 29.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais).

É, pois, o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, isto é, um "tribunal cuja função própria e normal é restabelecer o império da lei, corrigindo os erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas cometidos pela relação ou pelo tribunal da 1.ª instância, contribuindo para a uniformização da jurisprudência. Essa uniformização ocorre quer directamente, por via dos assentos, quer indirectamente" (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, VI, p. 2).

"Pelo facto de estar colocado no mais alto grau da hierarquia judicial, de ser tribunal único, e de ser presumível que a jurisprudência estabelecida pelos seus acórdãos venha a ser adoptada, de futuro, em casos semelhantes, é natural que os tribunais de 1.ª e 2.ª instância se inspirem na interpretação e aplicação que o Supremo for dando aos textos legais."

"O que dá aos acórdãos do Supremo um prestígio e valor especial é a circunstância de emanarem do mais alto tribunal e de dever supor-se que o Supremo manterá, de futuro, a sua jurisprudência, em casos semelhantes. Esta força, senão de persuasão, ao menos de supremacia, tenderá a produzir o seguinte resultado prático: os tribunais inferiores, mesmo quando não concordem com a doutrina emitida pelo Supremo, serão levados naturalmente a aceitá-la e a aplicá-la. Podem, certamente, reagir contra ela, quando a considerarem errada; e a cada passo reagem. Mas se o Supremo insistir na sua jurisprudência, se se mantiver fiel a ela, os tribunais inferiores acabarão por desarmar e por se submeter, certos de que a sua luta será inglória e inútil. A jurisprudência do Supremo acabará por triunfar contra as veleidades de resistência dos tribunais de instância. Pouco a pouco, por uma lei natural do espírito humano, os juízes dos tribunais inferiores vão-se conformando com as directrizes traçadas pelo Supremo em matéria de interpretação e aplicação das normas jurídicas. Este o mecanismo indirecto que conduz à uniformização da jurisprudência. Mecanismo lento, mas de resultado seguro. A acção deste mecanismo pressupõe a condição já assinalada: que o Supremo se mantenha fiel à sua própria jurisprudência" (Alberto dos Reis, loc. cit., pp. 1-15, cf. também Karl Larenz, a importância da jurisprudência para a actividade jurídica prática in Metodologia da Ciência do Direito, 2.ª ed., C. Gulbenkian, p. 277). Conforme refere o Exmo. M.mº Juiz Conselheiro Simas Santos ao pronunciar-se sobre esta matéria, "tem assim o Supremo Tribunal de Justiça como função própria e normal corrigir os erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas cometidos pelas instâncias, restabelecendo o império da lei e contribuindo para a uniformização da jurisprudência directamente (por via da jurisprudência fixada) e indirectamente, por via das suas decisões.

Já se viu que é a circunstância de emanarem do mais alto tribunal nacional e de dever supor-se que o STJ de futuro manterá, em casos semelhantes, a sua jurisprudência, que dá aos acórdãos do Supremo um prestígio e valor especial. É que, sendo o mais alto grau da hierarquia judicial e tribunal único, é de esperar que no futuro os seus acórdãos e a jurisprudência que estabeleçam venha a ser adoptada em casos semelhantes, o que torna natural que as instâncias se inspirem na interpretação e aplicação dos textos legais que o STJ for fazendo.

As instâncias, ainda que não concordando com a doutrina emitida pelo Supremo, terão tendência a aceitá-la aplicando-a, independentemente de reagir contra ela num primeiro momento, quando a considerarem errada. Mantendo o STJ a sua jurisprudência, os restantes tribunais acabarão por se conformar com ela. Mas este mecanismo indirecto e lento de uniformização da jurisprudência pressupõe que o Supremo se mantenha fiel à sua própria jurisprudência" (Simas Santos, ob. cit.).

Compulsado o texto da decisão recorrida verifica-se que a mesma se limita a enunciar uma das duas posições em debate prévio à prolação do referido acórdão de uniformização de jurisprudência.

A decisão recorrida, não seguindo a orientação determinada por este Supremo Tribunal, limitou-se a elencar argumentos já analisados não importando nenhum elemento ex novo. Igualmente é certo que não existiu qualquer alteração nos pressupostos doutrinais que levaram à emissão do referido acórdão de uniformização.

Nesta conformidade acordam os juízes que compõem a Secção Criminal em conceder provimento ao presente recurso trazido pelo Ministério Público entendendo que se mantêm inteiramente válidos os pressupostos constantes do Acórdão uniformizador de 19 de Outubro de 2000 (Diário da República, 1.ª série-A, de 10 de Novembro de 2000) que estabeleceu a doutrina de que "No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal", revogando-se a decisão recorrida.

Consequentemente, confirmando-se a decisão proferida em sede de 1.ª instância, devem os autos prosseguir os seus termos face à improcedência da questão prévia suscitada."

2 - Dessa decisão interpôs o arguido o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), nos seguintes termos:

"Em cumprimento do disposto no artigo 75.º-A da Lei 28/82, de 15 de Novembro, o recorrente esclarece que o presente recurso assenta na afirmação da inconstitucionalidade material, formal e orgânica da norma extraída do artigo 119.º, n.º 1, do CP de 1982 ("casos especialmente previstos na lei" e o "tempo em que o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal..."), conjugada com a expressão utilizada pelo artigo 336.º, n.º 1, do CPP de 1987 ("suspensão dos ulteriores termos do processo"), por parte do assento 10/2000, concluindo que, na vigência do CPP e do CP originários, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição, inconstitucionalidade essa por violação do disposto nos artigos 1.º, 2.º, 8.º, 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 165.º, n.os 1, alínea c), e 3, da Constituição da República.

Ainda nos termos do disposto no referido artigo 75.º-A da Lei 28/82, de 15 de Novembro, declara o recorrente que tal questão de inconstitucionalidade:

Foi pelo arguido suscitada, não só no recurso por si interposto do Acórdão do Tribunal Criminal de Lisboa para o Tribunal da Relação de Lisboa;

Como o foi igualmente nas motivações de resposta do arguido ao recurso interposto pelo Ministério Público do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa para o STJ.

Por fim se declara que a questão de inconstitucionalidade em apreço, com a abrangência e os fundamentos invocados pelo arguido ao longo dos autos, nunca foi objecto de conhecimento por parte do Tribunal Constitucional.

O presente recurso deverá subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, porquanto esse efeito e regime de subida eram os que já se aplicavam ao recurso anterior, no âmbito do qual foi proferida a decisão agora recorrida."

Admitidos os autos no Tribunal Constitucional, foram as partes notificadas para alegar. O recorrente concluiu pela seguinte forma as suas alegações:

"A) O presente recurso tem por objecto a afirmação de inconstitucionalidade material, formal e orgânica da norma extraída do artigo 119.º, n.º 1, do CP de 1982, conjugada com o artigo 336.º, n.º 1, do CPP de 1987, interpretação essa feita no acórdão recorrido (e consagrada no assento 10/2000, de 19 de Outubro, in Diário da República, 1.ª série, de 10 de Novembro de 2000), que concluiu que, na vigência do CPP e CP originários, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição.

B) Entende o recorrente que tal norma, com a interpretação que lhe foi dada pelo STJ (inclusive com consagração em assento), está ferida de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 8.º, 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 165.º, n.os 1, alínea c), e 3, da CRP.

C) Entende o recorrente que o acórdão recorrido e a jurisprudência fixada no referido assento 10/2000 aplicam norma que carece de fundamento lógico intrínseco e que viola os artigos 1.º, 2.º, 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 165.º, n.os 1, alínea c), e 3, da CRP, termos em que deveria ter sido desaplicado pelo STJ o dito assento, e, assim, desaplicada a interpretação normativa que fazem do artigo 119.º, n.º 1, do CP de 1982, conjugada com o artigo 336.º, n.º 1, do CPP de 1987.

Assim:

D) As expressões constantes do artigo 119.º, n.º 1, do CP de 1982 ("casos especialmente previstos na lei" e "o tempo em que o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal..."), conjugadas com a expressão utilizada pelo artigo 336.º, n.º 1, do CPP de 1987 ("suspensão dos ulteriores termos do processo"), não permitem concluir pela integração da declaração de contumácia do arguido como causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal no âmbito do CP de 1982, nem tal integração cabe minimamente nos sentidos normativos possíveis da letra da lei.

E) Por isso a revisão do CP operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, ajustando o CP de 1982 ao CPP de 1987, introduziu como causa de suspensão autónoma na alínea c) do artigo 120.º do CP de 1995, a par dos "casos especialmente previstos na lei" (artigo 120.º, n.º 1) e da referência ao "tempo em que o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal" [artigo 120.º, n.º 1, alínea a)], referência expressa ao "tempo em que vigorar a declaração de contumácia".

F) Quer a análise do Decreto-Lei 48/95, quer a análise da Lei de Autorização Legislativa n.º 35/94, de 15 de Setembro, em especial o n.º 77 do artigo 3.º, levam a conclusão oposta à da interpretação sustentada na decisão recorrida e no assento 10/2000, visto que o legislador é expresso no sentido de que está a proceder a uma modificação legislativa (e não a uma clarificação do regime vigente).

G) Quer os trabalhos preparatórios do CP de 1995, cristalizados nas posições assumidas pela comissão revisora, quer a doutrina com pergaminhos na matéria, nunca entenderam que a situação de declaração de contumácia estava abrangida no artigo 119.º do CP de 1982.

H) Por outro lado, e no que aqui mais importa, o acórdão recorrido - que se firmou com base no assento 10/2000 - consagra interpretação do artigo 119.º, n.º 1, do CP de 1982 pela qual se aplica uma norma claramente inconstitucional, pelas seguintes razões:

I) As normas sobre prescrição do procedimento criminal não podem ser interpretadas nem integradas em violação do princípio favor reus nem do princípio da legalidade, consagrados intangivelmente nos artigos 1.º e 2.º do CP e no artigo 29.º, n.os 1, 3 e 4, da CRP.

J) Ao sustentar uma interpretação do artigo 119.º, n.º 1, do CP de 1982 que permite nele incluir a declaração de contumácia do arguido como causa de suspensão da prescrição, procede o STJ à criação de situação de suspensão da prescrição que não constava expressamente, traduzindo-se em interpretação proibida da dita norma (por recurso ao artigo 336.º, n.º 1, do CPP de 1987), o que consubstancia alargamento da área da incriminação e diminuição dos casos de afastamento da punição por extinção da acção penal, violando os artigos 1.º e 29.º, n.os 1, 3 e 4, da CRP.

K) A jurisprudência sustentada no acórdão recorrido, tendo por base o assento 10/2000, defende ademais uma interpretação orgânica e formalmente inconstitucional dos artigos 119.º, n.º 1, do CP de 1982, e 336.º, n.º 1, do CPP de 1987.

L) Isto porque o artigo 2.º da Lei 43/86, de 26 de Setembro (autorização legislativa do CPP de 1987), não concedeu qualquer autorização ao Governo para legislar em matéria de suspensão de prescrição do procedimento criminal e, muito menos, de alargamento das incriminações (cf. artigo 2.º, n.º 62, da referida lei).

M) A ser aceite a jurisprudência sustentada no acórdão recorrido igualmente estaria violado o princípio da separação de poderes que impõe que em matéria de definição de crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo - artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP.

N) Tudo razões pelas quais se encontra viciada de ilegalidade e de aplicação de norma inconstitucional o douto acórdão recorrido do STJ."

Por sua vez, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, contra-alegando, concluiu:

"1 - As causas de suspensão de prescrição do procedimento criminal não foram definidas no Código Penal de 1982 de forma taxativa e fechada, admitindo-se a existência de outras especialmente previstas na lei.

2 - Entre estas, encontrava-se a declaração de contumácia estabelecida inicialmente no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e que foi expressamente consagrada, a partir da reforma do Código Penal de 1995, no seu artigo 120.º, n.º 1, alínea c).

3 - A existência legal de uma causa suspensiva do prazo de prescrição verificada em data posterior à prática do facto criminoso, mas aplicado ao processo pendente não merece censura constitucional, mesmo na dimensão da exigência da não retroactividade in pejus.

4 - Atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, não é de conhecer a parte referente à invocada inconstitucionalidade orgânica, uma vez que, qualquer que fosse o sentido da decisão, nenhum efeito útil teria na decisão da questão de mérito relativa à suspensão da prescrição do procedimento criminal, tendo em consideração que a declaração de contumácia ocorreu já na vigência da reforma do Código Penal de 1995.

5 - Mas mesmo que assim se não entenda, ocorre que o Governo estava munido de competente e necessária autorização parlamentar, face ao disposto no artigo 2.º, n.os 2-59, da Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro, para poder consagrar, como o fez, na redacção originária do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a declaração de contumácia como causa suspensiva da prescrição do procedimento criminal.

6 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso."

Foi então proferido pelo relator, em 12 de Dezembro de 2006, o seguinte despacho:

"Notifique o recorrente para, no prazo de 10 dias, se pronunciar, querendo, sobre a eventualidade de se não poder tomar conhecimento, total ou parcialmente, do recurso, pelo facto de, à data em que foi declarado contumaz, estar já em vigor a redacção dada ao artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março."

Respondeu o recorrente:

"I - Intróito:

1 - Ao abrigo do disposto no artigo 75.º-A da Lei 28/82, de 15 de Novembro, o recorrente esclareceu que o presente recurso assentava na afirmação da inconstitucionalidade material, formal e orgânica da norma extraída do artigo 119.º, n.º 1, do CP de 1982 ("casos especialmente previstos na lei" e "o tempo em que o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal..."), conjugada com a expressão utilizada pelo artigo 336.º, n.º 1, do CPP de 1987 ("suspensão dos ulteriores termos do processo"), por parte do assento 10/2000, concluindo que, na vigência do CPP e do CP originários, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição...

2 - Inconstitucionalidade essa por violação do disposto nos artigos 1.º, 2.º, 8.º, 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 165.º, n.os 1, alínea e), e 3, da Constituição da República.

3 - Mais declarou o recorrente no seu requerimento de interposição de recurso que a questão de inconstitucionalidade em apreço, com a abrangência e os fundamentos invocados pelo arguido ao longo dos autos, nunca foi objecto de conhecimento por parte do Tribunal Constitucional.

4 - Vem agora o Exmo. Senhor Procurador-Geral-Adjunto junto do TC suscitar a questão da eventual impossibilidade de este Tribunal conhecer do recurso, "pelo facto de, à data em que foi declarado contumaz (o recorrente), estar já em vigor a redacção dada ao artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP, pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março".

5 - E é sobre esta questão que o recorrente é convidado a pronunciar-se.

II - Inadmissibilidade formal e material da questão prévia colocada:

6 - Conjugando o disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), e 71.º, n.º 1, da LOTC, o recurso de decisões judiciais para o Tribunal Constitucional é restrito à questão da constitucionalidade ou da ilegalidade que tiverem sido suscitadas.

7 - Que o mesmo é dizer que o TC não funciona sequer como um tribunal de revista, mas como um tribunal de fiscalização da constitucionalidade, in casu, da constitucionalidade de normas aplicadas numa decisão jurisdicional concreta.

8 - Ora, no aresto do STJ que deu origem aos presentes autos, foi expressamente aplicada a norma constante do artigo 119.º, n.º 1, do CP de 1982, conjugada com a expressão utilizada pelo artigo 336.º, n.º 1, do CPP de 1987, por força do disposto no assento 10/2000.

9 - Ou seja, a norma segundo a qual na vigência do CPP e do CP originários a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição.

10 - Expressis verbis se pode ler a p. 14 do acórdão do STJ o seguinte: "se mantêm inteiramente válidos os pressupostos constantes do acórdão uniformizador de 19 de Outubro de 2000 (Diário da República, 1.ª série-A, de 10 de Novembro de 2000) que estabeleceu a doutrina de que 'no domínio da vigência do CP de 1982 e do CPP de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal' [...]".

11 - Ora, a questão prévia ora suscitada pelo Ministério Público traduz-se em afirmar que se não deve conhecer da questão de constitucionalidade objecto do recurso na medida em que "à data em que foi declarado contumaz (o arguido recorrente), estar já em vigor a redacção dada ao artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP, pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março".

12 - I. e., a questão prévia suscitada nada tem que ver, nem com a norma aplicada pelo STJ que se reputa de inconstitucional, nem com os termos do recurso de constitucionalidade, cujo âmbito é definido pelas alegações e conclusões do recorrente.

13 - Melhor explicando: aquilo que se questiona, em sede de constitucionalidade, é da conformidade com a Constituição da República da norma aplicada pelo STJ no caso concreto, i. e., na decisão recorrida!

14 - Não é objecto deste recurso, nem pode ser, por força do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 71.º e 79.º-C da LOTC, a correcta ou incorrecta aplicação do direito ao caso concreto por parte do STJ e demais instâncias inferiores, questão essa que se tem por encerrada quando este TC é chamado a apreciar da constitucionalidade da norma que foi efectivamente aplicada nas ditas decisões.

15 - Ora, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público manifesta uma profunda confusão, s. d. r., sobre o que é objecto deste recurso de constitucionalidade, isto na medida em que vem assumir - incompreensivelmente -, que a norma aplicada ao caso vertente é a do artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP, por ser essa que "já se encontrava em vigor à data da declaração de contumácia do arguido".

16 - Por outras palavras, como poderia entender-se que o TC não deve conhecer do objecto do recurso, por, à data da declaração de contumácia, já se encontrar em vigor o artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP, na redacção dada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, quando tal norma não foi aplicada na decisão do STJ de que se recorreu?...

17 - E de que se recorreu devido ao facto de ter aplicado a norma do artigo 119.º do CP de 1982, tal como delimitada e entendida no Acórdão 10/2000 de uniformização de jurisprudência do STJ.

18 - Em suma, o facto de a 27 de Outubro de 1995 já estar em vigor o artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP na redacção dada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, é questão totalmente irrelevante para este recurso de constitucionalidade, dado que tal norma e solução jurídica não foram as aplicadas pelas instâncias, nem constitui, como tal, objecto do recurso tal como delimitado pelo recorrente.

19 - Dir-se-á mais: o poder jurisdicional do TC nesta lide não abrange sequer qualquer discussão sobre a aplicação ao caso vertente do artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP na redacção dada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, como parece sustentar o Ministério Público e estar subjacente à dúvida a que se alude no despacho de 12 de Dezembro de 2006 do Sr. Conselheiro Relator, posto que tal norma não foi aplicada pelo STJ, nem foi - nem poderia ser - objecto de recurso de constitucionalidade.

20 - Como é unânime entendimento deste TC, que reiteradamente o afirma:

a) Acórdão 178/2000 - "Como a lei exige [cf. a citada alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e o artigo 79.º-C da Lei 28/82] e o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade interposto ao abrigo da citada alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º destina-se a conhecer da alegada inconstitucionalidade de uma norma efectivamente aplicada pela decisão recorrida, como expressamente ali se refere ['Cabe recurso para o Tribunal Constitucional em secção, das decisões dos tribunais: b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.']."

b) Acórdão 313/2004 - "Na verdade, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC apresenta como pressuposto, entre outros, o da efectiva aplicação na decisão recorrida, como ratio decidendi, da norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo."

21 - Mais: se o TC viesse a recusar o conhecimento do presente recurso com o fundamento invocado na questão prévia a que se responde, então deixaria no mundo do direito uma situação perfeitamente incongruente e incompreensível, posto que todas as instâncias competentes haviam decidido a questão material subjacente aplicando a norma do artigo 119.º do CP de 1982, no sentido constante do assento 10/2000, e o TC viria a não tomar conhecimento da questão de constitucionalidade com o fundamento de que a norma aplicável ao caso era o artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP na redacção do Decreto-Lei 48/95.

22 - Subsistiriam, assim, no mundo do direito duas decisões opostas, sendo que uma delas, a proferida pelo TC, o teria sido por um tribunal que não tem poder jurisdicional de revista, conforme resulta do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 71.º, 79.º-C e 80.º da LOTC.

23 - Tudo razões pelas quais o Tribunal Constitucional pode e deve tomar conhecimento total do recurso de constitucionalidade interposto.

24 - Sem prejuízo de todo o exposto, caberá ainda analisar do mal fundado, substantivamente, da questão prévia suscitada pelo Ministério Público nas suas contra-alegações.

III - Pressupostos da decisão da questão prévia:

25 Antes de mais, recoloque-se a questão fáctica nos seus devidos termos, com base em dados assentes nos autos:

a) Os factos imputados nos autos criminais que deram origem ao presente recurso remontam a meados de 1991;

b) Os autos iniciaram-se a 13 de Março de 1992;

c) O arguido nunca foi notificado em sede de inquérito para prestar declarações ou ser interrogado, seja perante o Ministério Público seja perante um JIC;

d) A acusação foi proferida em Outubro de 1994;

e) A 27 de Outubro de 1995, o arguido ora recorrente foi declarado contumaz;

f) A acusação foi notificada pessoalmente ao arguido em 11 de Outubro de 2005.

26 - Ora, no processo criminal a lei penal aplicável é, segundo o impõem os artigos 2.º do CP e 29.º da CRP, a lei penal mais favorável (seja a do momento da prática dos factos, seja a do momento em que cumpre decidir determinada questão), enquanto a lei processual penal a aplicar será, por força do disposto no artigo 5.º do CPP, e ressalvado o caso das chamadas normas processuais penais de conteúdo material ou substancial - que seguem as regras do direito substantivo -, a que estava em vigor no momento da prática do acto processual em questão - tempos regit actum.

27 - Assim sendo, caberá atentar no conteúdo do recurso interposto pelo arguido para este egrégio Tribunal Constitucional, e, uma vez delimitado o objecto do recurso, ver se faz algum sentido discutir a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o que, desde já se antecipe, merece resposta negativa.

28 - Ora, antes de tudo o mais, recorde-se que o que se peticiona ao Tribunal Constitucional é que declare a inconstitucionalidade, material, formal e orgânica da norma extraída do artigo 119.º, n.º 1, do CP de 1982, conjugada com a expressão utilizada pelo artigo 336.º, n.º 1, do CPP de 1987, por parte do assento 10/2000, concluindo que, na vigência do CPP e do CP originários, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição.

29 - Tudo porque, se tal inconstitucionalidade for declarada, então caberá concluir que a declaração de contumácia não constituía causa de suspensão da prescrição na vigência do CPP e do CP originários, ao invés do que resulta da norma aplicada pelo STJ, diplomas originários esses aplicáveis ao caso vertente no que concerne à contagem do prazo prescricional conforme o disse a decisão recorrida.

30 - Assim se demonstra, logo in limine, que a questão prévia colocada pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público carece totalmente, s. d. r., de sentido, porquanto o facto de, à data da declaração de contumácia do ora recorrente, já estar em vigor o Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, em nada altera a conclusão que previamente tem que ser tirada quanto às leis penal e processual penal aplicáveis ao caso vertente.

Vejamos.

31 - A questão jurídico-material subjacente, cujo conhecimento foi pedido ao STJ (e que, conhecendo-a mal, s. d. r., aplicou norma que se reputa de inconstitucional, o que caberá ao TC decidir), é a de saber se, à data em que o arguido foi notificado da acusação e foi constituído como arguido - em 11 de Outubro de 2005 -, o procedimento estava ou não prescrito.

32 - Ora, para saber se determinado procedimento penal está prescrito cabe:

a) Atentar na data da prática dos factos;

b) Fixar a lei substantiva e processual penal em vigor a essa data e posteriormente;

c) Contabilizar o decurso dos prazos legalmente previstos.

33 - Conforme atrás referido, e dado por assente nos autos, os factos imputados ao arguido remontam a meados de 1991, tendo-se os autos iniciado em 13 de Março de 1992.

34 - A essa data, encontravam-se em vigor:

a) O artigo 314.º, alínea c), do CP, na redacção originária do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, que punia as burlas, em abstracto, com uma moldura penal de 1 a 10 anos de pena de prisão;

b) Os artigos 119.º e 120.º do CP, na redacção originária do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, que estatuíam sobre a suspensão e a interrupção da prescrição, nenhum deles fazendo qualquer alusão à eficácia suspensiva e ou interruptiva da prescrição da declaração de contumácia;

35 - Apenas em 1 de Outubro de 1995 entrou em vigor o Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, pelo qual:

a) Foram alterados os artigos 119.º e 120.º do CP, que passaram a ser os artigos 120.º e 121.º do CP, deles passando a constar, respectivamente:

i) Que "a prescrição do procedimento criminal suspende-se [...] durante o tempo em que: [...] c) vigorar a declaração de contumácia"; e ii) Que "a prescrição do procedimento criminal interrompe-se: [...] c) com a declaração de contumácia".

b) Foi alterado o tipo penal pelo qual o arguido vinha acusado, passando o mesmo a constar do artigo 218.º, n.os 1 e 2, alínea a), do CP, com uma moldura penal em abstracto aplicável, para 2 a 8 anos de pena de prisão, o que ainda hoje se mantém.

36 - Pergunte-se: qual a lei aplicável, in casu, no que concerne à questão da prescrição?

37 - Ora, a matéria da prescrição do procedimento criminal, por processual que seja, é unanimemente considerada como integrando o núcleo das normas processuais penais de conteúdo material, i. e., normas processuais penais cuja relevância ou influência na responsabilidade criminal do arguido impõe que sigam as regras estatuídas para as normas incriminadoras.

38 - Por outras palavras, dada a eficácia extintiva da responsabilidade criminal, não se pode, no que à prescrição respeita (normas incriminadoras de sentido negativo, ou normas que circunscrevem negativamente os tipos), deixar de aplicar a regra de aplicação da lei no tempo constante do artigo 2.º do CP, e, assim, a norma segundo a qual quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado.

39 - E assim o decidiu o STJ no aresto recorrido, bem como todas as instâncias inferiores, i. e., nunca nenhuma instância decidiu que seria aplicável ao caso vertente o artigo 120.º, n.º 1, alínea c), na redacção do Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, o que constitui premissa inafastável do presente recurso de constitucionalidade.

40 - Assim que seja totalmente irrelevante a questão prévia suscitada pelo Ministério Público junto deste TC, posto que o facto de à data da declaração de contumácia já vigorar a redacção dada ao artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, em nada briga com o facto de à prescrição dos presentes autos ter de se aplicar a lei em vigor à data da prática dos factos, por força do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do CP, tal como o fizeram o STJ e as instâncias, ainda que aplicando norma inconstitucional.

41 - Mas não só! Que o facto de o Decreto-Lei 48/95 ter vindo a dar nova redacção ao artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP, apenas pode servir, precisamente, para demonstração da procedência da alegação de inconstitucionalidade que se discute nesta sede, como aliás se encontra amplamente demonstrado nas alegações e conclusões do recurso junto deste TC, termos em que aqui por economia se não reproduzem.

42 - Daí que seja falacioso no caso vertente afirmar que "a norma do artigo 336.º, n.º 1, do CPP não se aplica retroactivamente - aplica-se para o futuro a processos crimes ainda pendentes, embora resultantes de crimes cometidos no passado."...

43 - Tal entendimento pressuporia uma desconsideração do carácter jurídico material das normas processuais penais que regulam a prescrição - que como tal seguem as regras de aplicação no tempo constantes do artigo 2.º, n.º 4, do CP.

44 - Por outro lado, na perspectiva da segurança jurídica (do arguido ora recorrente e de toda a comunidade que se norteia pela lei penal e processual penal cm vigor a cada momento), e mesmo da justiça, cabe não esquecer que atenta contra a confiança dos cidadãos o facto de se lhes poder opor a não prescrição do procedimento criminal com base em situações não expressas (nem contidas) na lei, assim se alargando a área da incriminação, e, pari passu, da punibilidade.

45 - Um último passo cabe censurar à opinio iuris expendida pelo Ministério Público a este respeito, posto que resulta de uma manifesta confusão acerca das questões em discussão:

a) A invocada inconstitucionalidade orgânica, sendo decretada, afastaria a não prescrição do procedimento;

b) Mas não é a declaração da inconstitucionalidade que afasta a aplicação da citada alínea c) do n.º 1 do artigo 120.º do CP na redacção do Decreto-Lei 48/95!

46 - Expliquemo-nos: o que afasta a aplicação do artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP na redacção do Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, é o disposto no artigo 2.º, n.º 4, que impõe a aplicação do regime originário constante do artigo 119.º do CP.

47 - E o regime do artigo 119.º do CP no sentido conforme à Constituição da República, que o mesmo é dizer contrário ao da norma aplicada no acórdão do STJ de que promana o presente recurso de constitucionalidade.

48 - Em suma, são várias as confusões, s. d. r., de que resulta a questão prévia suscitada nas contra-alegações oferecidas aos autos pelo Ministério Público, pelo que deverá a mesma ser desatendida."

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentos. - A) Questão prévia. - 3 - Sustenta o Ministério Público que o Tribunal Constitucional não poderá conhecer da alegada inconstitucionalidade orgânica, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, pois, "qualquer que fosse o sentido da decisão, nenhum efeito útil teria na decisão da questão de mérito relativa à suspensão da prescrição do procedimento criminal, tendo em consideração que a declaração de contumácia ocorreu já na vigência da reforma do Código Penal de 1995". Bem vistas as coisas, o facto de a declaração de contumácia ter ocorrido (em 27 de Outubro de 1995) numa data em que estava já em vigor a redacção dada ao Código Penal em 1995, que entrou em vigor em 1 de Outubro de 1995 (artigo 13.º do Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março), não afectaria apenas a alegada inconstitucionalidade orgânica da norma impugnada. Com efeito, em 1995 passou a prever-se, no artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, que a prescrição do procedimento criminal se suspende durante o tempo em que "[v]igorar a declaração de contumácia". Tal clara previsão legal contenderia igualmente com a alegada violação do princípio da legalidade. Isto, evidentemente, desde que a decisão do tribunal recorrido se tenha baseado justamente (pelo menos também), de modo expresso ou implícito, na redacção dada ao Código Penal em 1995, e não tenha antes aplicado, exclusivamente (bem ou mal) as normas impugnadas do Código Penal, na sua redacção originária.

Ora, a análise do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido impõe a conclusão de que a questão prévia suscitada não pode proceder. Com efeito, esta decisão do Supremo Tribunal de Justiça fundamentou-se exclusivamente nos "pressupostos constantes do Acórdão uniformizador de 19 de Outubro de 2000 (Diário da República, 1.ª série-A de 10 de Novembro de 2000) que estabeleceu a doutrina de que "No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal"".

Independentemente da questão de saber se deveria ou não ter sido aplicada a norma do artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, na redacção decorrente da reforma de 1995 (como sustenta o Ministério Público), tendo em conta a data da declaração de contumácia, o facto é que, dedicando vários parágrafos à análise da relação entre a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e a das instâncias, no acórdão recorrido não se encontra, porém, qualquer traço de invocação do referido artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, na redacção dada pelo Decreto-Lei 48/95 - O tribunal recorrido baseou-se, antes, exclusivamente na redacção originária do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, e no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1976 - Ora, o Tribunal Constitucional apenas pode considerar objecto do presente recurso a apreciação das questões de constitucionalidade das normas que foram aplicadas pelo tribunal recorrido como rationes decidendi (e relativamente a cuja aplicação o poder jurisdicional deste está já esgotado). E essas são apenas as normas dos artigos 119.º, n.º 1, e 336.º, n.º 1, respectivamente da versão originária do Código Penal e do Código de Processo Penal de 1987 [cf., aliás, uma situação semelhante, embora tratada para efeitos dos pressupostos do recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea g), da citada Lei do Tribunal Constitucional, no Acórdão 371/2005, disponível em www.tribunalconstitucional.pt].

Esta conclusão, baseada apenas na análise das normas aplicadas, bem ou mal, na decisão recorrida, é, aliás, independente da resposta à questão de saber qual seria exactamente o regime que o tribunal recorrido deveria ter aplicado [designadamente de saber se tem razão o recorrente, quando, na resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, veio dizer que "o facto de à data da declaração de contumácia já vigorar a redacção dada ao artigo 120.º, n.º 1, alínea c), do CP pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, em nada briga com o facto de à prescrição dos presentes autos ter de se aplicar a lei em vigor à data da prática dos factos, por força do disposto no artigo 2.º, n.º 4, do CP, tal como o fizeram o STJ e as instâncias"].

Não procede, pois, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, e tomar-se-á conhecimento do recurso, para apreciação da conformidade com a Constituição da norma resultante das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.

B) Questões de constitucionalidade. - 4 - Segundo o recorrente, a norma referida viola o princípio da legalidade, consagrado no artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República. Trata-se, aqui, de questão de que (conforme jurisprudência maioritariamente firmada deste Tribunal, e que se não vê razão para alterar) compete ao Tribunal Constitucional conhecer em sede de recurso de constitucionalidade (v. já os Acórdãos n.os 205/99, 285/99 e 122/2000, publicados no Diário da República, 2.ª série, respectivamente de 5 de Novembro de 1999, 21 de Outubro de 1999 e 6 de Junho de 2000). Que se trata de uma questão que cabe dentro dos poderes de cognição deste Tribunal, quando vier enunciada uma dimensão normativa, aplicada como critério de decisão, que se pretende confrontar com aqueles princípios - e não quando estiver em causa apenas a qualificação dos factos ou a sua subsunção sob uma ou mais normas -, é o que resulta já do que se disse também no Acórdão 412/2003 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), embora a propósito de outra norma: a do "artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982 (na redacção originária), na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada, como causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal, à marcação de dia para julgamento em processo de ausentes, aí prevista". Remete-se para tais considerações, em que se recordou que, "embora com alguns votos dissidentes, tem-se entendido que, neste tipo de situações, se mostra delineada uma questão de inconstitucionalidade normativa, cognoscível em recurso de constitucionalidade, já que o processo interpretativo, extensivo ou de cariz analógico, seguido pelos tribunais decorre, não de uma pura operação subsuntiva no tipo, mas da adopção de um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas.

Este entendimento foi reiterado nos Acórdãos n.os 285/99 [Diário da República, 2.ª série, n.º 246, de 21 de Outubro de 1999, p. 15 772; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 487, p. 72; Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43.º vol., p. 477; e Revista do Ministério Público, n.º 84 (Outubro-Dezembro de 2000), p. 158, com anotação de Eduardo Maia Costa], 122/2000 [Diário da República, 2.ª série, n.º 131, de 6 de Junho de 2000, p. 9708; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 494, p. 57; Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46.º vol., p. 449; e Revista do Ministério Público, n.º 84 (Outubro-Dezembro de 2000), p. 168, com anotação de Eduardo Maia Costa], 317/2000, 494/2000, 557/2000 e 585/2000, e é de manter no presente caso."

Tal como então, "a adopção de um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas, foi explicitamente invocada [...] na decisão recorrida". Nesta remeteu-se mesmo para a sua fixação, com carácter de generalidade, pelo "assento" n.º 10/2000 (publicado no Diário da República, 1.ª série-A, n.º 260, de 10 de Novembro de 2000, p. 6319), nos termos da qual "[n]o domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal". O que está em causa é a apreciação deste critério, resultante, segundo o referido "assento" e para a decisão recorrida, do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nas suas redacções originárias.

Também no presente caso, nesta perspectiva, nada obsta, pois, ao conhecimento do objecto do recurso.

5 - Há que reconhecer ainda que assiste razão ao recorrente quando afirma que "a questão de inconstitucionalidade em apreço, com a abrangência e os fundamentos invocados pelo arguido ao longo dos autos, nunca foi objecto de conhecimento por parte do Tribunal Constitucional".

Com efeito, no Acórdão 449/2002 (disponível no sítio da Internet www.tribunalconstitucional.pt), invocado pelo Ministério Público nas suas contra alegações e referido igualmente na decisão recorrida, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, quando interpretada no sentido de abranger, como causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, a declaração de contumácia. Todavia, esse aresto, tirado igualmente nesta 2.ª Secção do Tribunal Constitucional, não só se pronunciou apenas sobre a constitucionalidade de um certo entendimento do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, na parte em que se remetia para outros "casos especialmente previstos na lei" de suspensão da prescrição do procedimento criminal, como (na sequência da delimitação da questão normativa a apreciar então efectuada pelo próprio Ministério Público) se preocupou em ressalvar expressamente (em prevenir o tratamento como "precedente" para) qualquer juízo sobre a constitucionalidade de um entendimento do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal no sentido de neste se prever um desses casos de suspensão da prescrição. Disse-se, na verdade, na fundamentação do Acórdão 449/2002:

"[...]

8 - O princípio da tipicidade exprime-se, em direito penal, na exigência de normas prévias, escritas e precisas. As normas incriminadoras - e, mais amplamente, as normas penais positivas, isto é, as normas que geram ou agravam a responsabilidade - só podem cumprir a sua finalidade preventiva geral e satisfazer o desígnio da segurança jurídica que enforma o princípio da legalidade e o próprio Estado de direito democrático se houverem entrado em vigor antes da prática das condutas criminosas e forem efectivamente cognoscíveis pelos destinatários.

Na Constituição, estes requisitos traduzem-se nas exigências de lei prévia e expressa (artigo 29.º, n.os 1, 3 e 4), que constituem a essência do princípio da legalidade penal, e ainda, no domínio da determinação das fontes normativas, na atribuição de uma reserva relativa de competência legislativa à Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1).

9 - Ao invocar a violação da exigência constitucional de tipicidade, o recorrente pretende que a declaração de contumácia se não encontrava expressamente prevista como causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal (pressupondo que tal é exigível, uma vez que a não suspensão de tal prazo implica a efectivação da responsabilidade penal).

O recorrente identifica como norma inconstitucional o artigo 119.º (n.º 1) do Código Penal de 1982, na medida em que a referência a qualquer caso "especialmente previsto na lei" abranja uma situação futura. A verdade, porém, é que o princípio da legalidade - e, em concreto, a exigência de tipicidade - não requer que todas as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal estejam previstas na mesma norma legal. Apenas pode postular que a norma que preveja cada uma (ou várias) daquelas causas seja suficientemente precisa e seja emitida pela Assembleia da República ou pelo Governo, no uso da indispensável autorização legislativa [artigo 198.º, n.º 1, alínea b), da Constituição].

Mas nada obsta a que uma norma - no caso, o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 - remeta para outras normas a consagração, em concreto, de causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal.

Esta conclusão não é invalidada pela circunstância de a norma que consagra a causa de suspensão do prazo prescricional - o artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 - ser posterior. Na verdade, a cláusula "geral" ou de "remissão" dirige-se a todas as normas que vigoravam à data da sua entrada em vigor ou hajam entrado em vigor posteriormente (mas, claro está, na sua vigência). Esta técnica legislativa em nada contraria o princípio da legalidade, bastando ter em conta, para o evidenciar, que uma enumeração taxativa (do artigo 119.º, n.º 2, do Código Penal de 1982) poderia ser livremente revogada por uma norma de idêntico valor hierárquico (artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987), que consagrasse uma nova causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal.

[...]

12 - Por fim, seria ainda possível questionar se a determinação da "suspensão dos termos ulteriores do processo", estatuída pelo artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (na sua versão originária, correspondente ao artigo 335.º, n.º 3, na redacção dada pela Lei 59/98, de 25 de Agosto), constitui disposição bastante para se concluir pela presença de uma causa de suspensão do prazo prescricional "especialmente previsto na lei". Poderia pôr-se em causa, de novo, a satisfação dos ditames da tipicidade, na medida em que se concluísse que a expressão "termos ulteriores do processo" é ambígua e não obedece ao desígnio de precisão decorrente do princípio da legalidade.

Todavia, como sustenta nas suas alegações junto deste Tribunal o Ministério Público, tal questão normativa jamais foi suscitada pelo recorrente. Este, com efeito, apenas arguiu a inconstitucionalidade do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, ainda que numa certa interpretação. Nunca chamou à colação o artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 ou invocou a inconstitucionalidade dessa norma. Por isso, o Tribunal Constitucional não pode conhecer da referida questão." (Itálico aditado.)

Não procede, pois, a invocação do Acórdão 449/2002 feita pelo Ministério Público, e que se encontra também na decisão recorrida, para o juízo sobre a questão de constitucionalidade que se depara ao Tribunal Constitucional no presente recurso, à a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.

Antes o Tribunal Constitucional não se pronunciou ainda sobre esta questão de constitucionalidade, de que importa tratar.

6 - Recordem-se, antes de mais, os dados da "história" legislativa e jurisprudencial do problema a apreciar.

O Código Penal, aprovado pelo Decreto Lei 400/82, de 23 de Setembro, na sua redacção originária, dispunha no seu artigo 119.º, n.º 1:

"Artigo 119.º

Suspensão da prescrição

1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:

a) O procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial para juízo não penal;

b) O procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação do despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de processo de ausentes;

c) O delinquente cumpra no estrangeiro uma pena ou uma medida de segurança privativa da liberdade.

2 - ...

3 - ..."

Esta estatuição estava em consonância com o Código de Processo Penal de 1929 e suas sucessivas alterações vigentes à data da aprovação do Código Penal de 1982 - Porém, a estrutura processual penal foi profundamente alterada pelo Código de Processo Penal de 1987 - designadamente com a abolição do julgamento em processo de ausentes, substituído pelo instituto da contumácia - sem que tivessem sido introduzidas adaptações nas previsões do Código Penal de 1982. Com efeito, só com o Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, é que essa adaptação legal veio a ser feita através da nova redacção dada ao correspondente artigo 120.º do Código Penal, que passou a ter o seguinte teor:

"Artigo 120.º

Suspensão da prescrição

1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:

a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;

b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para a audiência em processo sumaríssimo;

c) Vigorar a declaração de contumácia; ou d) O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativa da liberdade.

2 - ...

3 - ..."

Relativamente aos processos - como o presente - nos quais esta alteração legislativa não foi aplicada, suscitou se a questão de saber se se poderia atribuir eficácia suspensiva da prescrição do procedimento criminal à declaração de contumácia (tal como o problema se pusera também para actos processuais previstos no Código de Processo Penal de 1987 que poderiam ser tidos como "equivalentes" aos actos processuais referidos na redacção originária do artigo 119.º), ou se tal interpretação violaria o princípio da legalidade penal. As divergências jurisprudenciais a este propósito suscitadas conduziram à prolação, pelo Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão de fixação de jurisprudência (o citado "assento" n.º 10/2000, de 19 de Outubro de 2000), pronunciando-se no sentido de que mesmo no vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, "a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal". A atribuição à declaração de contumácia, introduzida apenas pelo Código de Processo Penal de 1987, da eficácia interruptiva da prescrição do procedimento criminal resultaria da aplicação da norma do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 (em conjugação com a norma do artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982), que dispunha, na sua redacção originária, como se segue:

"Artigo 336.º

Declaração de contumácia. Caducidade

1 - A declaração de contumácia é da competência do presidente e implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320.º

2 - ...

3 - ..."

Como está em causa o confronto com o princípio da legalidade da interpretação normativa que foi adoptada e tratada no citado acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, há que recordar a fundamentação deste aresto. Pode ler-se nesse acórdão de fixação de jurisprudência:

"[...]

Para fundamentar o seu ponto de vista, escreveu-se no acórdão recorrido, a certo passo:

"É que o referido n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982, versão original, tem a seguinte redacção:

'A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: a) o procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal [...]'

Ora, a declaração de contumácia constitui um verdadeiro impedimento legal, que obsta ao prosseguimento do processo (e, portanto, do procedimento criminal) até à apresentação ou à detenção do arguido (artigo 336.º, n.os 1 e 3, do Código de Processo Penal de 1987). Tal como, por exemplo, há um impedimento legal de julgar o Presidente da República antes de findo o mandato por crimes estranhos ao exercício das suas funções (artigo 133.º, n.º 4, da Constituição), há um impedimento legal de julgar um arguido a que não foi possível notificar pessoalmente o despacho que designa dia para julgamento. No primeiro caso há uma falta de autorização legal em virtude das funções da pessoa, no segundo caso há uma falta de autorização legal em virtude da ausência da pessoa. Sem a declaração de contumácia, portanto, o procedimento criminal não pode continuar por falta de uma autorização legal, falta essa que resulta da ausência do arguido no processo e que caduca apenas no momento em que este se apresentar ou for detido."

Por sua vez, o acórdão fundamento baseia-se nas seguintes razões para justificar o seu ponto de vista:

"Cremos, porém, que não tem razão o digno recorrente. É, sem dúvida, verdadeira a primeira premissa em que assenta o seu raciocínio: o artigo 119.º [do Código Penal de 1982] não contém um numerus clausus de causas de suspensão da prescrição. Simplesmente, respeitando tal norma à 'suspensão da prescrição', a remissão feita no n.º 1 para os 'casos especialmente previstos na lei' só pode referir-se aos casos em que determinado preceito legal atribua expressamente a determinado facto eficácia suspensiva da prescrição. Assim, só poderia aceitar-se que a remissão é para os casos de suspensão de processo se:

a) As expressões 'suspensão do processo' e 'suspensão da prescrição' fossem sinónimos, o que não é verdade - casos há de suspensão da prescrição que se não ligam a qualquer paragem/suspensão do processo [v. o caso paradigmático da alínea b) do n.º 1 do artigo 119.º]; ou b) Houvesse uma indicação do legislador ou se tivesse ao menos de concluir, face aos princípios gerais, no sentido de que toda e qualquer suspensão do processo implica necessariamente a suspensão da prescrição.

Ora, se é certo que o instituto da suspensão da prescrição, para além do mais, 'radica na ideia segundo a qual a produção de determinados eventos, que excluem a possibilidade de o procedimento se iniciar ou a continuar, deve impedir o decurso do prazo da prescrição' (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, p. 711), já parece não poder afirmar-se, peremptoriamente, que qualquer suspensão da instância deve originar a suspensão da prescrição pelo correspondente tempo: é, do ponto de vista teórico, perfeitamente admissível que algumas causas de suspensão do processo não tenham eficácia suspensiva da prescrição. E, assim, cabe ao legislador optar por erigir em causa de suspensão da prescrição toda e qualquer suspensão do processo ou escolher casuisticamente quais os casos de suspensão do processo que devem relevar para esse efeito. E a verdade é que não encontramos no Código Penal de 1982 qualquer indício de que o legislador fez a primeira opção. O argumento histórico leva-nos até a concluir que essa opção foi deliberadamente rejeitada."

Posto isto, vejamos quais as normas jurídicas em causa.

Dispõe o artigo 119.º do Código Penal de 1982, aprovado pelo Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, no seu n.º 1, o seguinte:

"A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:

a) O procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial para o juízo não penal;

b) O procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação do despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de processo de ausentes;

c) O delinquente cumpra no estrangeiro uma pena ou uma medida de segurança privativa da liberdade."

Este artigo correspondente ao artigo 110.º do projecto do Código Penal, parte geral, segundo o qual, "[a] prescrição suspende-se durante o tempo em que:

1.º O procedimento criminal não pôde iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, por efeito da devolução de uma questão prejudicial para um juízo não penal, bem como em todos os casos em que a suspensão do processo penal é imposta por uma disposição especial da lei;

2.º O processo penal se desenvolve, a partir da notificação do despacho de pronúncia e até à sentença final e seu trânsito em julgado, salvo no caso do processo de ausentes;

3.º O delinquente cumpre uma pena no estrangeiro." (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 127, p. 127.)

Por sua vez, dispõe o artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro:

"A declaração de contumácia é da competência do presidente e implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320.º"

E acrescenta o n.º 3:

"A declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido, sem prejuízo do disposto no número anterior."

Como se sabe, o instituto da suspensão da prescrição foi uma novidade introduzida pelo artigo 119.º do Código Penal de 1982 no direito penal português - v. Figueiredo Dias, § 1150, p. 711, e Direito Penal Português - Parte Geral - As Consequências Jurídicas do Crime.

Por sua vez, o instituto da contumácia aparece pela primeira vez na lei processual penal, em substituição do processo de ausentes, no Código de Processo Penal de 1987 e com uma regulamentação totalmente distinta da apresentada por este processo (v. os artigos 335.º e seguintes do Código de Processo Penal de 1987 e os artigos 562.º e seguintes do Código de Processo Penal de 1929).

Ora, toda a divergência a que os autos se referem resulta do uso da expressão "implica a suspensão dos termos ulteriores do processo" e a ausência de alteração no artigo 119.º do Código Penal de 1982 em consequência da introdução do instituto de contumácia.

Como diz Figueiredo Dias, na obra citada, a p. 712, § 1151, "[a]ssim, também aqui aquela alínea [alínea b) do artigo 119.º] deveria estatuir que é causa de suspensão da prescrição a pendência do procedimento [...]; bem como, em vez da referência ultrapassada ao processo de ausentes, deveria a prescrição ficar suspensa enquanto vigorar a declaração de contumácia".

No seguimento deste ponto de vista, aquando da revisão do Código Penal de 1982, foi proposta uma alteração ao n.º 2 do artigo 119.º segundo a qual, "no caso previsto na alínea b) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar três anos, salvo se o arguido tiver sido declarado contumaz antes de ter expirado aquele prazo".

Na discussão da proposta, o Sr. Procurador-Geral da República emitiu parecer no sentido de que a "contumácia, por exemplo, não deveria interromper, mas sim suspender, pois o que se verifica é a paralisação do processo devido ao arguido" e "se a contumácia funciona também como causa autónoma da suspensão, então é melhor prevê-la no n.º 1".

Acabou a comissão por entender "ser de proceder às seguintes alterações no artigo 119.º, dado o novo enquadramento dado à questão:

A alínea c) passa a ter a seguinte redacção: 'vigorar a declaração de contumácia";

No n.º 2 é eliminada a referência à contumácia."

(V. Código Penal - Actas e Projecto da Comissão Revisora, Ministério da Justiça, 1993, pp. 106-109.)

Solução que veio a ser consagrada no Código Penal revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, na alínea c) do artigo 120.º

Como resulta do conteúdo das actas, nenhum membro da comissão revisora entendeu que a situação de contumácia poderia ser abrangida nos segmentos "o procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal" ou nos "casos especialmente previstos na lei" usados no transcrito artigo 119.º Mas também parece resultar claro que foi entendimento da comissão que, dado o seu regime legal, a contumácia deveria ser considerada como causa da suspensão do procedimento criminal.

Ainda recentemente, este Supremo Tribunal se pronunciou sobre esta questão no processo 1169/98, 3.ª Secção, onde se defendeu que a declaração de contumácia, ao abrigo do disposto no Código de Processo Penal de 1987, tem efeitos suspensivos no procedimento criminal, pois se trata de "um dos casos especialmente previstos na lei" a que se refere o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, afirmando na sua fundamentação:

"Aliás, se, por força da alínea a) do n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982, a prescrição do procedimento criminal '[se] suspende durante o tempo em que o procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal', cremos que não poderia deixar de suspender-se quando a própria lei manda suspender os termos do processo, por se tratar de impedimento legal ao exercício do procedimento criminal", e "se o legislador considerou necessário consagrar expressamente no Código Penal de 1995 a declaração de contumácia como causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal [artigo 120.º, n.º 1, alínea c)], tal deve explicar-se não pelo propósito de preencher uma lacuna da regulamentação e sim como consequência da atribuição à contumácia do efeito interruptivo da prescrição no artigo 121.º, n.º 1, alínea c), donde a necessidade de fazer referência expressa no artigo 120.º, n.º 1, alínea c), à declaração de contumácia como causa de suspensão da prescrição [...]" (Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VII, t. I, p. 175.)

Relativamente ao Acórdão de 27 de Abril de 2000, processo 31/2000, 5.ª Secção, citado nas muito doutas alegações do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, dir-se-á que o mesmo teve em vista a interrupção da prescrição e não a suspensão da mesma. Trata-se, pois, de situações distintas.

Feita esta resenha, impõe-se agora determinar qual a solução a adoptar.

Princípio legal que todo o jurista tem de respeitar ao proceder à interpretação de uma norma jurídica é o consagrado no artigo 9.º do Código Civil.

Ao preceituar-se no n.º 1 do artigo 119.º "para além dos casos especialmente previstos na lei" não se pode deixar de considerar abrangidos quer aqueles casos que de momento já se encontrem previstos em leis quer aqueles que, de futuro, venham a ser consagrados em diplomas legais. Na verdade, nada impede que, desde logo, se preveja a possibilidade de, em normas avulsas ou não, se venha a consagrar situações que determinem a suspensão da prescrição do procedimento criminal. É como que um dar aqui como reproduzido o estabelecido nas tais normas futuras.

Dizendo o artigo 336.º do Código de Processo Penal que a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação do arguido, só poderá querer ter tido em vista aquela suspensão relacionada com a prescrição do procedimento criminal. O efeito visado coincide com o previsto no artigo 119.º, n.º 3: desde o momento de declaração de contumácia até àquele em que caduca - n.º 3 do artigo 336.º - a prescrição não corre.

De outra maneira, acabava-se por vir a proteger o arguido que, mais lesto, fugira à alçada da justiça.

Não nos parece que o elemento histórico, nas suas vertentes, justifique o ponto de vista defendido no acórdão fundamento.

O facto de ser desconhecido, à data da entrada em vigor do Código Penal de 1982, o instituto da contumácia não justifica a afirmação de que o n.º 1 do artigo 119.º não se podia referir ao mesmo. A expressão usada, "casos especialmente previstos na lei", não se quer referir a denominações, mas a situações, a certos conteúdos. É isto que interessa, e não o nome que se lhes aplica. Para efeitos iguais tem de haver soluções idênticas.

Justificando a introdução do normativo da alínea c) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal de 1995, diz Maia Gonçalves que ela resulta "de adaptação a soluções perfilhadas pelo Código de Processo Penal" - Código de Processo Penal Anotado, 9.ª ed., 1996, p. 499.

Parece-nos, assim, que a solução, em abstracto, defendida pelo acórdão recorrido não é de censurar."

Esta conclusão não foi, porém, pacífica, tendo logo vários conselheiros ficado vencidos neste acórdão do plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça. A fundamentação de tal voto encontra-se na declaração de voto do conselheiro Carmona da Mota, com o seguinte teor, que importa igualmente recordar:

"1 - A análise crítica com que, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Eduardo Correia fustigou o processo de ausentes regulado no Código de Processo Penal de 1929 (sobretudo na medida em que ditava, depois de verificada a ausência do arguido, o prosseguimento do processo à sua revelia - cf. os artigos 570.º e seguintes) conduziu a que o novo CPP de 1982 viesse a optar, na impossibilidade de notificação ao arguido do despacho designativo de dia para audiência ou de execução da sua detenção ou prisão preventiva, pela "suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou detenção do arguido" (artigo 335.º, n.º 3).

2 - Tal "suspensão" (dos termos processuais ulteriores) não prejudicava, porém, nem "a realização de actos urgentes" (artigo 335.º, n.º 3) nem, tampouco, as diligências processuais que tivessem em vista a apresentação ou a detenção do arguido em ordem, exactamente, à caducidade da declaração de contumácia e à activação dos "termos ulteriores do processo":

"A detenção, que é uma das formas de se pôr termo à situação de contumácia, pode ser determinada para aplicação de uma medida de coacção." - Acórdão da Relação do Porto de 26 de Abril de 1995, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 446, p. 349;

"É admissível a emissão de mandados de captura para detenção de arguido contumaz, com vista à notificação do despacho que recebeu a acusação, mesmo que o arguido esteja acusado de crime que não admita prisão preventiva." - Acórdão da Relação do Porto de 20 de Novembro de 1996, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 461, p. 517;

"É admissível a emissão de mandados de comparência ou de detenção contra arguido declarado contumaz com o objectivo de lhe ser notificado o despacho de 'pronúncia'." - Acórdãos da Relação do Porto de 20 de Novembro de 1996, in Colectânea de Jurisprudência, ano XXI, t. V, p. 239, de 8 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 467, p. 617, de 14 de Maio de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 467, p. 627, de 11 de Junho de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 467, p. 475;

"Durante a situação de contumácia do arguido - e apesar da concomitante 'suspensão dos ulteriores termos do processo' -, não só poderá como deverá diligenciar-se - oficiosamente ou a requerimento dos interessados (Ministério Público e assistente) - pela localização do arguido (e, sendo caso disso, pela sua detenção, captura e extradição), com vista à abreviação dessa situação, à apresentação ou detenção do ausente, à caducidade da declaração de contumácia e, enfim, à realização - já na presença do arguido - dos 'termos ulteriores do processo'." (ver nota 1) - Acórdão da Relação de Lisboa de 22 de Maio de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 635, e Colectânea de Jurisprudência, ano XXII, t. III, p. 136.

3 - O Código Penal de 1982 - publicado na vigência do Código de Processo Penal de 1929 - escusou-se, no âmbito do processo especial de ausentes, a inventariar qualquer factor de suspensão do prazo prescricional do procedimento criminal (artigo 119.º) e indicou, como único factor interruptivo desse prazo, a "marcação do dia para o julgamento no processo de ausentes" [artigo 120.º, n.º 1, alínea d)].

4 - O artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, em matéria de suspensão de prescrição do procedimento criminal, salvaguardou, é certo, "os casos especialmente previstos na lei" e, especialmente, "o tempo em que o procedimento criminal não pudesse legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal" (n.º 1).

5 - Mas, ao referir-se às situações em que "o procedimento criminal não pudesse legalmente continuar por falta de uma autorização legal", não visaria, com certeza (pois que em 1982), a "suspensão dos ulteriores termos do processo" que o Código de Processo Penal de 1987 só viria a fazer operar (a partir de 1988) relativamente, no novo processo penal, em caso de "contumácia" do arguido.

6 - De qualquer modo, a "falta de uma autorização legal" (ou, melhor, de uma autorização legalmente exigida) visaria paradigmaticamente as situações de imunidade penal do Presidente da República, dos Deputados e dos membros do Governo:

"A iniciativa do processo (por crimes praticados pelo presidente da República no exercício das suas funções) cabe à Assembleia da República." - artigo 133.º, n.º 2, da Constituição, revista pela Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro;

"Movido procedimento criminal contra algum Deputado e indiciado este definitivamente por despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de crime punível com pena maior, a Assembleia decidirá se o Deputado deve ou não ser suspenso, para efeito de seguimento do processo." - artigo 160.º, n.º 3;

"Movido procedimento criminal contra um membro do Governo e indiciado este definitivamente por despacho de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de crime punível com pena maior, a Assembleia decidirá se o membro do Governo deve ou não ser suspenso, para efeito de seguimento do processo." - artigo 199.º

7 - E se era esse o sentido da lei ao aludir ao "tempo em que o procedimento criminal não pudesse legalmente iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal", não creio que o sentido e alcance dessa "autorização legal" no pressuposto de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e de que não poderá ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra um mínimo de correspondência verbal (artigo 9.º, n.os 2 e 3, do Código Civil) - compreendessem (ou compreendam) os casos de suspensão do processo penal entre a constatação da ausência do arguido e a sua apresentação ou detenção.

8 - E tanto assim não era (nem será) que o Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, ao ajustar (com uma tardança de quase oito anos) (ver nota 2) o Código Penal de 1982 ao Código de Processo Penal de 1987, fez questão de introduzir, como factor de suspensão, a par dos "casos especialmente previstos na lei" (artigo 120.º, n.º 1) e do "tempo em que o procedimento criminal não pudesse legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal" [artigo 120.º, n.º 1, alínea a), "o tempo em que vigorar a declaração de contumácia" [artigo 120.º, n.º 1, alínea c)].

9 - Aliás, têm fracassado, a nível do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, as sucessivas tentativas jurisprudenciais - antes da reforma de 1995 - de ajustamento substantivo do Código Penal de 1982, por interpretação "actualista", às novidades adjectivas do Código de Processo Penal de 1987:

"Instaurado processo criminal na vigência do Código de Processo Penal de 1987 por crimes praticados antes de 1 de Outubro de 1995 e constituído o agente como arguido posteriormente a esta data, tal facto não tem eficácia interruptiva da prescrição do procedimento por aplicação do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março." - Acórdão/assento 1/98, de 9 de Julho de 1998, votado por unanimidade, in Diário da República, 1.ª série-A, de 29 de Julho de 1998, e Boletim do Ministério da Justiça, n.º 479, p. 87;

"Na vigência do Código Penal de 1982, redacção original, a notificação para as primeiras declarações ou para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, no inquérito, sendo o acto determinado ou praticado pelo Ministério Público, não interrompe a prescrição do procedimento criminal ao abrigo do disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea a), daquele diploma." - Acórdão/assento 1/99, de 12 de Novembro de 1998, votado por unanimidade, in Diário da República, 1.ª série-A, de 5 de Janeiro de 1999, Colectânea de Jurisprudência - Supremo Tribunal de Justiça, ano VI, t. III, p. 6, e Boletim do Ministério da Justiça, n.º 481, p. 118.

"Seria inconstitucional (artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição) o artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal interpretado no sentido de que a notificação para as primeiras declarações do arguido na fase de inquérito interromperia o prazo prescricional." TC, 7 de Abril de 1999, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 486, p. 51.

Seria "inconstitucional, por violação dos n.os 1 e 3 do artigo 29.º da lei fundamental, a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º da versão originária do Código Penal, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se interrompe com a notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução" (ver nota 3). - Tribunal Constitucional, Acórdão 122/2000, de 23 de Fevereiro de 2000, processo 257/99-2, in Diário da República, 2.ª série, n.º 131, de 6 de Junho de 2000.

10 - Creio, por isso, que - pelas mesmas razões - mereceria igual sorte esta outra tentativa jurisprudencial de minorar os efeitos do tal 'escandaloso erro legislativo de 1987 (ver nota 4)." (Notas de rodapé no original.)

7 - Ora, analisando a fundamentação transcrita do Acórdão, de fixação de jurisprudência, n.º 10/2000 do Supremo Tribunal de Justiça cumpre notar, desde logo, que é sobretudo tratada a questão do eventual alcance da remissão (e do seu carácter "estático" ou "dinâmico") que se contém no artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal, para outros casos de suspensão da prescrição "especialmente previstos na lei", mais do que especificamente a interpretação do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (ambos na sua redacção originária), onde se previa que a declaração de contumácia teria como efeito a "suspensão dos termos ulteriores do processo". E é certo que é a questão da constitucionalidade do entendimento também deste último preceito no sentido de prever (como um desses casos "especialmente previstos na lei") a suspensão da prescrição e não apenas a da conformidade constitucional do citado segmento remissivo do artigo 119.º, n.º 1 (decidida no Acórdão 449/2002) - que está agora em questão.

Assim, não podem considerar-se decisivos, para a questão de constitucionalidade a decidir no presente recurso, argumentos como o da previsão da suspensão da prescrição em casos análogos aos da contumácia (a prescrição "não poderia deixar de suspender-se quando a própria lei manda suspender os termos do processo, por se tratar de impedimento legal ao exercício do procedimento criminal", e "[p]ara efeitos iguais tem de haver soluções idênticas"), ou o de que se não poderia dizer, ex adverso, que o próprio legislador sentiu necessidade de colmatar em 1995 uma lacuna, pois que tal se explicaria antes pelo intuito de atribuição à contumácia de um efeito interruptivo da prescrição. É que não só a possível diversidade de explicações para a intervenção do legislador, em 1995, nada permite concluir, só por si, sobre uma anterior previsão no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, respeitadora das exigências constitucionais, no sentido de que a declaração de contumácia já suspendia a prescrição, como é claro que tais exigências constitucionais de tipicidade e de legalidade se não bastam com a descoberta de razões para um tratamento idêntico de casos idênticos aos previstos na lei. Dir-se-á, mesmo, que uma das mais significativas dimensões desses princípios reside, justamente, na proscrição da analogia e na exigência de que a definição dos crimes, das penas e de outros aspectos de que depende a acção penal (entre os quais a prescrição do procedimento criminal) sejam objecto de uma previsão legal, cuja falta, ou incorrecta formulação, beneficia o arguido.

Há, aliás, que recordar que o Tribunal Constitucional já se pronunciou (e já se pronunciara também antes do "assento" n.º 10/2000) sobre a sujeição do instituto da prescrição, e da sua interrupção, ao princípio da legalidade, aplicando-se lhe a proibição da analogia ao instituto da prescrição, e que fundamentou aí juízos de inconstitucionalidade. Assim, disse-se no citado Acórdão 205/99 (num discurso retomado também nos citados Acórdãos n.os 285/99 e 122/2000; e cf. também os Acórdãos n.os 317/2000, 494/2000, 557/2000, 585/2000 e 412/2003):

"[...]

Apesar de a proibição da analogia quanto à matéria da prescrição não estar, de modo literal, incluída na proibição da analogia quanto às normas incriminadoras e ser questionável a existência de um verdadeiro direito do agente a que a inércia do Estado na prossecução penal o beneficie, a proibição da analogia em matéria prescricional, nomeadamente quanto às causas de interrupção da prescrição, está sem dúvida justificada pelo referido controlo do poder punitivo do Estado através do direito que criou, de modo que sem a verificação de factos previstos em lei penal (objecto de reserva de lei e inerente controlo democrático) como indiciadores de uma efectiva e sustentada vontade e capacidade punitiva do próprio Estado não será possível estabelecer causas interruptivas da prescrição.

Assim, mesmo que a garantia da previsibilidade para os reais ou hipotéticos agentes dos crimes dos prazos prescricionais não baste para justificar a proibição da analogia, ela será imposta pelo menos pela segurança democrática, relativamente ao controlo do exercício do poder punitivo, o qual não pode ser exercido sem limites objectivos democraticamente estipulados. Pelo menos neste sentido, a proibição da analogia das normas relativas à prescrição partilha dos fundamentos da proibição da analogia relativamente aos fundamentos da incriminação e insere-se no objecto de reserva relativamente à definição de crimes e penas, prevista no artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição."

E no Acórdão 285/99 disse-se:

"Em matéria da prescrição do procedimento criminal, é sem dúvida questionável a existência de um verdadeiro direito do agente a que a inércia do Estado na perseguição penal o beneficie; mas é inquestionável que a lei reconhece que a perseguição criminal tem um "tempo" próprio e certo para ser desencadeada e promovida. Ou seja, a não prescrição do procedimento criminal é condição jurídica do exercício da acção penal - "orientada pelo princípio da legalidade", conforme exige a Constituição no artigo 219.º, n.º 1.

Mas acresce que a introdução de um grau relevante de incerteza neste campo repercute-se por sua vez na consistência do princípio de legalidade que preside à aplicação da lei criminal, conforme exigência dos n.os 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição. A punição criminal pressupõe lei anterior, mas lei que tem de ser certa. Por isso neste domínio é incompatível com a Constituição uma interpretação "criadora", que no caso foi tornada indispensável pela falta de adequada previsão legal inequívoca."

Também o argumento - reportado aos efeitos de uma interpretação segundo a qual a declaração de contumácia, a partir de 1987 e até à revisão do Código Penal, em 1995, não afectava o prazo de prescrição do procedimento - de que "[d]e outra maneira, acabava-se por vir a proteger o arguido que, mais lesto, fugira à alçada da justiça" não responde ao problema constitucional (que é o único que nos pode nesta sede interessar) do respeito pelo princípio da legalidade, sabido que é como o sentido deste princípio é também o de que "[e]squecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam, por isso, sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também outros comportamentos" (no ensinamento de Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral, t. I, Questões Fundamentais - A Doutrina Geral do Crime, Coimbra, 2004, p. 168).

Importa, pois, perguntar se o tribunal recorrido, ao adoptar um entendimento das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção originária, segundo o qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia, respeitou o princípio da legalidade, previsto no artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República.

8 - Entende-se que a resposta à pergunta que se formulou é negativa, por razões semelhantes às que levaram este Tribunal a censurar, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade, "interpretações actualistas", posteriores ao Código de Processo Penal de 1987, de outras normas do Código Penal de 1982 relativas à prescrição - isto é, por razões estruturalmente paralelas às que (embora para norma diversa da que está agora em causa) foram invocadas nos citados Acórdãos n.os 205/99, 285/99, 122/2000, 317/2000, 494/2000, 557/2000, 585/2000 e 412/2003. Trata-se, neste sentido, de conclusão que decorre desta anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre questão paralela, e da exigência de que também ele se mantenha fiel à sua própria jurisprudência.

Na verdade, no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal previa-se que a declaração de contumácia teria como consequência "a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido". A declaração de contumácia, e tal consequência, assentam no pressuposto da impossibilidade de realização de julgamento "à revelia", mas não se referiu o legislador a qualquer afectação do decurso da prescrição do procedimento criminal. E a suspensão dos termos ulteriores do processo tem, com aquele fundamento, um sentido, antes de mais, jurídico-processual, pelo que não se pode concordar com a afirmação de que a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação do arguido "só poderá querer ter tido em vista" uma suspensão relacionada com a prescrição do procedimento criminal. Sob este aspecto também não pode, aliás, retirar-se nada da previsão, no n.º 3 (hoje n.º 1) do artigo 336.º do Código de Processo Penal de 1987, da caducidade da declaração de contumácia.

Da perspectiva do respeito pelo princípio da legalidade, o que importa antes perguntar é se, depois de prevista esta declaração de contumácia na redacção originária do Código de Processo Penal, e antes de alterado o Código Penal de 1982, podia já dizer-se que correspondia ao significado comum atribuível às palavras utilizadas pelo legislador de 1987 no artigo 336.º, n.º 1 ("suspensão dos termos ulteriores do processo") ou se ultrapassava tal significado entender que aí se compreendia, não só a suspensão do processo como a consequência de suspensão da prescrição do procedimento criminal.

Ora, entende-se que não pode deixar de responder-se à pergunta formulada neste último sentido: isto é, que o significado comum e literal da expressão empregue pelo legislador de 1987 era ultrapassado pelo entendimento de que a declaração de contumácia importava a suspensão também da prescrição do procedimento criminal, e não apenas dos "termos ulteriores do processo". Tal diversidade de sentido literal é, aliás, acompanhada da diferença de consequências da "suspensão dos termos ulteriores do processo" e da suspensão da prescrição do procedimento criminal.

Na verdade, e como se disse na declaração de voto aposta ao "assento" n.º 10/2000, a "suspensão dos termos processuais ulteriores" não prejudicava, "nem "a realização de actos urgentes" ([actual] artigo 335.º, n.º 3) nem, tampouco, as diligências processuais que tivessem em vista a apresentação ou a detenção do arguido em ordem, exactamente, à caducidade da declaração de contumácia e à activação dos "termos ulteriores do processo"". Por outro lado, as expressões "suspensão do processo" e "suspensão da prescrição" do procedimento não são sinónimas, nem sequer existe entre si qualquer relação de implicação: não existe norma, ou qualquer princípio geral, no sentido de que qualquer suspensão da instância (suspensão do processo) conduz a uma suspensão da prescrição (e, por definição, esta começa mesmo a correr antes do início do procedimento criminal, "desde o dia em que o facto se consumou" - artigo 118.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção de 1982), e há também casos de suspensão da prescrição que se não ligam a qualquer suspensão do processo. Como se salientou no acórdão que constitui o fundamento para o recurso de fixação de jurisprudência que deu origem ao dito "assento" n.º 10/2000, "se é certo que o instituto da suspensão da prescrição, para além do mais, "radica na ideia segundo a qual a produção de determinados eventos, que excluem a possibilidade de o procedimento se iniciar ou continuar, deve impedir o decurso do prazo da prescrição" (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, p. 711), já parece não poder afirmar-se, peremptoriamente, que qualquer suspensão da instância deve originar a suspensão da prescrição pelo correspondente tempo: é, do ponto de vista teórico, perfeitamente admissível que algumas causas de suspensão do processo não tenham eficácia suspensiva da prescrição. E, assim, cabe ao legislador optar por erigir em causa de suspensão da prescrição toda e qualquer suspensão do processo ou escolher casuisticamente quais os casos de suspensão do processo que devem relevar para esse efeito. E a verdade é que não encontramos no Código Penal de 1982 qualquer indício de que o legislador fez a primeira opção".

Não podia, pois, entender-se que a previsão de "suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido", como efeito da declaração de contumácia, incluía, como seu sentido comum e literal, a suspensão da prescrição do procedimento criminal, a qual começava a correr antes do processo e podia não ser afectada por uma sua suspensão. Tal interpretação, implicando uma "interpretação "criadora", que no caso foi tornada indispensável pela falta de adequada previsão legal inequívoca" (expressão do citado Acórdão 285/99), é, nesta medida, incompatível com a Constituição, pois viola o princípio da legalidade a que está também sujeita a definição das causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal.

9 - Em face disto, tem de concluir-se que a norma resultante das disposições conjugadas dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982, e 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987, na redacção originária, interpretadas no sentido de que a declaração de contumácia constituía causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal, é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade constitucionalmente consagrado (n.os 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição).

Alcançada esta conclusão, torna-se dispensável a análise de outros fundamentos de inconstitucionalidade, igualmente invocados pelo recorrente.

III - Decisão. - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia;

b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, que deverá ser reformulada de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.

(nota 1) O CPP revisto determina agora, no artigo 337.º, n.º 1, que "a declaração de contumácia implica para o arguido a passagem imediata de mandado de detenção para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo anterior." ("Logo que se apresente ou for detido, o arguido é sujeito a termo de identidade e residência.")

(nota 2) "Os processos prescrevem [...], também e principalmente, porque foi cometido um grande erro legislativo entre 1988 e 1995, com transformações estruturais nas leis penais, em que não foram acauteladas as figuras da interrupção/suspensão da prescrição, que constavam da legislação revogada. Eis em poucas palavras o que aconteceu: a interrupção/suspensão da prescrição estava contemplada no Código Penal, que remetia a sua verificação quando ocorressem alguns actos previstos no Código de Processo Penal; em Janeiro de 1988 entrou em vigor um novo Código de Processo Penal que não previa uma série dos actos interruptivos da prescrição; não houve uma alteração simultânea do Código Penal no sentido de se adequarem as suas disposições sobre prescrição ao novo Código de Processo Penal, e as figuras da interrupção/suspensão quase desapareceram porque os actos que as determinavam desapareceram do novo Código; essa situação durou até Outubro de 1995 - e durante quase oito anos tal omissão legislativa foi o pano de fundo do regime legal da prescrição." (Francisco Bruto da Costa, O Independente, de 21 de Janeiro de 2000.)

(nota 3) "Procurando minimizar os efeitos da jurisprudência obrigatória [fixada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/99, de 5 de Janeiro], a jurisprudência tem vindo a considerar constituir causa interruptiva da prescrição o interrogatório judicial o arguido na fase da instrução. É orientação sem qualquer fundamento legal." (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, 1999, Verbo, p. 234, n. 1.)

(nota 4) "Como hoje se sabe, houve um escandaloso erro legislativo em 1987, só corrigido em 1995 e que atinge todos os casos verificados nesses oito anos." (Ministro António Santos Costa, Público, de 17 de Janeiro de 2000.)

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2007. - Paulo Mota Pinto - Mário José de Araújo Torres - Maria Fernanda Palma - Benjamim Rodrigues (vencido nos termos da declaração anexa) - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto

Votei vencido quanto ao conhecimento do recurso de constitucionalidade, por entender que não constitui uma questão de constitucionalidade normativa a apreciação da correcção do processo hermenêutico desenvolvido pelo tribunal a quo, tendente a determinar o sentido das normas, bem como do resultado a que o mesmo chegou.

O princípio da legalidade penal (ou fiscal) opera como mero limite constitucional à admissibilidade do resultado interpretativo a que se chegou no processo de interpretação, obrigando o intérprete a excluir aqueles resultados que não tenham na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.

Deste modo, ele não é portador de qualquer sentido axiológico substancial com o qual possa ser contrastado directamente certa norma de direito infraconstitucional, para aferir da sua validade, mas tão só para excluir o resultado de um processo concreto de conhecimento judicial do sentido da norma.

No presente caso, essa natureza mostra-se espelhada com extrema nitidez no modo como o Tribunal Constitucional resolveu a questão, pois este não fez mais do que refazer e sindicar a correcção do processo intelectual de apuramento do sentido da lei levado a cabo pelo tribunal a quo, manejando as mesmas regras técnicas hermenêuticas.

Essa actividade do Tribunal Constitucional apenas teria sentido dentro do sistema do recurso de amparo, o qual, porém, não foi acolhido pela nossa Constituição.

Assim, renovo aqui o essencial do meu voto de vencido aposto no Acórdão 412/2003.

Congruentemente não há que tomar posição quanto ao fundo. - Benjamim Rodrigues.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1554829.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-09-23 - Decreto-Lei 400/82 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código Penal.

  • Tem documento Em vigor 1982-09-30 - Lei Constitucional 1/82 - Assembleia da República

    Aprova a primeira revisão Constitucional, determinando a sua entrada em vigor no trigésimo dia posterior ao da publicação no diário da república, bem como publicação conjunta da Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, no seu novo texto.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1986-09-26 - Lei 43/86 - Assembleia da República

    Autorização legislativa em matéria de processo penal.

  • Tem documento Em vigor 1987-02-17 - Decreto-Lei 78/87 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código de Processo Penal.

  • Tem documento Em vigor 1995-03-15 - Decreto-Lei 48/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, e procede à sua republicação.

  • Tem documento Em vigor 1998-07-29 - Assento 1/98 - Supremo Tribunal de Justiça

    Instaurado processo criminal na vigência do Código de Processo Penal de 1987 por crimes eventualmente praticados antes de 1 de Outubro de 1995 e constituído o agente como arguido posteriormente a esta data, tal facto não tem eficácia interruptiva da prescrição do procedimento por aplicação do disposto no artigo 121º, nº 1, alínea a), do Código Penal, aprovado pelo Decreto Lei 48/95, de 15 de Março. (Proc. nº 1299/97).

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

  • Tem documento Em vigor 1999-01-05 - Assento 1/99 - Supremo Tribunal de Justiça

    Na vigência do Código penal de 1982 - aprovado pelo Decreto Lei 400/82 de 23 de Setembro-, redacção original, a notificação para as primeiras declarações, para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, no inquérito, sendo o acto determinado ou praticado pelo Ministério Público, não interrompe a prescrição do procedimento criminal, ao abrigo do disposto no artigo 120º, nº 1, alínea a), daquele diploma. (Proc. 47464)

  • Tem documento Em vigor 2000-11-10 - Assento 10/2000 - Supremo Tribunal de Justiça

    No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constituia causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.(Procº 87/2000, 3ª Secção).

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2023-11-10 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 11/2023 - Supremo Tribunal de Justiça

    «O requerimento apresentado pelo condenado, peticionando a substituição da multa por dias de trabalho, nos termos do artigo 48.º, n.º 1 do Código Penal, não integra a causa suspensiva da prescrição prevista no artigo 125.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.»

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