Assento 1/99
Processo 47464. - Acordam no plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
Manuel José Lopes Gonçalves, arguido no processo sumário n.º 36/92 da 2.ª Secção do 2.º Juízo da Comarca de Vila Nova de Gaia, veio interpor o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no dia 27 de Maio de 1992 naqueles autos, invocando como fundamento a oposição entre tal acórdão e o prolatado também no Tribunal da Relação do Porto em 12 de Julho de 1989, no processo correccional n.º 782 da 1.ª Secção do 3.º Juízo também da comarca de Vila Nova de Gaia, recurso penal n.º 24249 da 2.ª Secção.
Pelo Acórdão de 17 de Novembro de 1994, a fls. 100 e seguintes, foi constatada a invocada oposição de julgados no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão de direito.
A legislação é o Código Penal de 1982 - Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro - e a questão de direito é a de saber «se as declarações prestadas pelo arguido em processo de inquérito perante o Ministério Público interrompem ou não a prescrição do procedimento criminal».
No acórdão recorrido, considerou-se que a interrupção da prescrição do procedimento criminal se verifica com a notificação para as primeiras declarações do agente como arguido mesmo em inquérito e perante o Ministério Público.
Contrariamente, no acórdão fundamento, decidira-se que só as notificações para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, em instrução preparatória e perante o juiz têm relevância bastante para interromper aquela prescrição.
Apenas alegou o recorrente, defendendo a posição expressa no acórdão fundamento.
O Sr. Procurador-Geral-Adjunto emitiu exaustivo parecer que conclui propondo se fixe a seguinte jurisprudência obrigatória:
«Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal, a prescrição do procedimento criminal interrompe-se com a notificação para as primeiras declarações, para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, no inquérito, quer o acto seja determinado ou praticado pelo Ministério Público ou pelo juiz.»
Colhidos os vistos legais, cumpre conhecer e decidir, já que nada a tal obsta.
O preceito legal que deu origem à divisão da jurisprudência a que com o presente recurso se pretende pôr termo é o artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982, na sua redacção originária.
Dispõe ele:
«1 - A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução preparatória;»
Na sua interpretação, a jurisprudência dividiu-se em dois sentidos:
Para uns, só as declarações do arguido, em instrução preparatória e perante o juiz, interrompiam a prescrição do procedimento criminal. Assim, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 1992, Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, t. III, p. 34, de 12 de Fevereiro de 1997, processo 967/96, de 13 de Novembro de 1996, processo 47624, de 20 de Fevereiro de 1991, Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, t. I, p. 192, da Relação de Lisboa de 20 de Fevereiro de 1991, Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, t. I, p. 193, e de 6 de Julho de 1994, Colectânea de Jurisprudência, ano XIX, t. IV, p. 136, da Relação do Porto de 9 de Dezembro de 1987, Colectânea de Jurisprudência, ano XII, t. V, p. 238, da Relação de Coimbra de 22 de Maio de 1985, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 347, p. 471, e de 28 de Outubro de 1987, Colectânea de Jurisprudência, ano XII, t. IV, p. 108, e da Relação de Évora de 27 de Maio de 1986, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 359, p. 793.
Para outros, as declarações do arguido, mesmo em inquérito e perante o Ministério Público, têm eficácia interruptiva da prescrição. Assim, também entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Novembro de 1992, Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, t. V, p. 14, de 23 de Março de 1993, processo 44599, e de 6 de Abril de 1994, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 436, p. 427, e Colectânea de Jurisprudência - Supremo Tribunal de Justiça, t. II, p. 184, e da Relação de Lisboa de 12 de Julho de 1995, Colectânea de Jurisprudência, ano XX, t. IV, p. 142.
A argumentação expendida na defesa de uma e de outra daquelas posições está praticamente esgotada, não se vislumbrando novas achegas a pesar em favor de qualquer delas.
Temos, porém, por certo que é na génese do preceito e no contexto da evolução legislativa verificada no domínio do processo penal que radica a solução para a divergência em causa.
No projecto do Código Penal, «Parte geral», de 1963, o normativo correspondente ao artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982, o artigo 111.º, n.º 1, atribuía eficácia interruptiva da prescrição do procedimento criminal à «notificação para as primeiras declarações, comparência ou interrogatório do agente na instrução do processo penal».
Como, nesse tempo, a instrução preparatória era dirigida pelo Ministério Público - artigo 12.º, § 2.º, segunda parte, do Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945 -, não há qualquer dúvida de que aquele projecto conferia a actos do Ministério Público em ordem às primeiras declarações, comparência ou interrogatório do agente na instrução do processo penal, se a este notificados, «eficácia interruptiva da prescrição».
Todavia, em 1975, o Decreto-Lei 605/75, de 3 de Novembro, criou o inquérito policial, «com base no qual poderá ser o feito introduzido em juízo, relativamente aos crimes puníveis com pena correccional, a menos que o arguido tenha sido preso e nessa situação haja sido ouvido em auto, caso em que haverá instrução preparatória [...]» (artigo 1.º, n.º 1), sendo que a instrução preparatória sempre teria lugar se o crime fosse punível com prisão maior (n.º 2 do mesmo artigo 1.º).
E, em 1977, com o Decreto-Lei 377/77, de 6 de Setembro, o inquérito de «policial» passou a «preliminar» (artigo 1.º), mantendo-se a instrução preparatória, que continuava a ser obrigatória para os casos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 1.º
Entretanto, com a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa, cujo artigo 32.º, n.º 4, dispunha que toda a instrução é da competência de um juiz, ficou revogado o preceito do Decreto-Lei 35007 que atribuía ao Ministério Público a direcção da instrução preparatória, voltando esta a ser dirigida por um juiz, de harmonia com o disposto no artigo 159.º do Código de Processo Penal de 1929.
Assim, quando da redacção final do Código Penal de 1982, existiam, no processo penal, numa mesma fase de investigação, por um lado, o inquérito preliminar, de natureza essencialmente administrativa e dirigido pelo Ministério Público e, por outro, a instrução preparatória, dirigida pelo juiz.
E esta realidade já não conduzia à atribuição do efeito de interrupção da prescrição do procedimento criminal a actos do Ministério Público.
Assim, como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 12 de Fevereiro de 1997, no processo 967/96, 3.ª Secção, Subsecção, que seguimos de perto, «a substituição da expressão do projecto - 'do agente na instrução do processo penal' - pela que se lê agora na alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º - 'do agente, como arguido, na instrução preparatória' - só pode logicamente traduzir o propósito de atribuir a aludida eficácia, exclusivamente, à notificação para as primeiras declarações, comparência ou interrogatório do agente como arguido, na instrução dirigida pelo juiz.
Noutra perspectiva: do âmbito da previsão do dispositivo, resultaram absolutamente excluídos quaisquer actos do Ministério Público.
Assim sendo, não pode, designadamente para os efeitos da citada disposição do Código Penal, equiparar-se a instrução preparatória (do Código de Processo Penal de 1929) ao actual inquérito, pela simples quanto decisiva razão de a titularidade e direcção deste competirem, exclusivamente, ao Ministério Público (artigo 263.º, n.º 1, do CPP)».
Contribuição decisiva para a solução para que nos inclinamos encontra-se ainda no Acórdão do plenário das Secções Criminais deste Supremo Tribunal de 9 de Julho de 1998, tirado sem voto algum de vencido e em sintonia com o parecer do Sr. Procurador-Geral-Adjunto no processo respectivo, onde, a propósito da constituição de arguido e da prestação de declarações do mesmo em inquérito, atenta a redacção do artigo 121.º, n.º 1, alínea a), da versão do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, se escreveu o que a seguir se transcreve, no que releva in casu:
«O Código Penal de 1982 não conhecia esse facto como causa específica interruptiva da prescrição. E não pode confundir-se com a notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução preparatória, na redacção do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código de 1982 (a fórmula legal não prima pelo rigor, denunciando má técnica legislativa) [...]
A tese de uma interpretação actualista da norma deste artigo não se abona em sólidos fundamentos.
Como se pondera no acórdão recorrido, não cabe aqui falar de interpretação da lei nos termos do artigo 9.º do Código Civil, desde logo por falta de um mínimo de correspondência verbal, nem se mostra que o pensamento legislativo fosse no sentido de equiparar a instrução preparatória do Código de Processo Penal de 1929 ao inquérito do Código actualmente em vigor. As razões da inclusão da 'constituição de arguido' como causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal já são nossas conhecidas e o próprio Prof. Figueiredo Dias, de indiscutível autoridade científica na matéria, reconhece que a doutrina que dimana da alínea a) do artigo 120.º, n.º 1, do Código de 1982 se tornou duvidosa, porque durante o inquérito e até ao momento em que tenha lugar a acusação, a afirmação solene da pretensão punitiva do Estado se traduz, melhor, na 'constituição de arguido', acrescentando que neste acto que deverá, de lege ferenda ancorar-se, nesta fase do processo, a eficácia interruptiva da prescrição.
De lege ferenda e não de lege data.
E a lege ferenda foi obviamente o Código Penal revisto em 1995.
Segue-se que a constituição de arguido não pode equiparar-se à notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução preparatória.»
Acresce que é regra básica da exegese da lei que não pode ser considerado pelo intérprete «o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» - artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil. Quer dizer, o limite da interpretação da lei, no plano literal, encontra-se naquele mínimo de correspondência verbal. Ultrapassá-lo já não é interpretação mas alteração da lei, e as alterações da lei fazem-se por via legislativa, não por via jurisprudencial, como é princípio constitucional.
Em suma, na vigência do Código Penal de 1982, redacção original, as declarações prestadas pelo arguido, em processo de inquérito, perante o Ministério Público, não interrompiam a prescrição do procedimento criminal, ao abrigo do disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma.
A decisão recorrida, do Tribunal da Relação do Porto, confirmando um despacho do Sr. Juiz do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia que declarara «improceder a excepção de prescrição do procedimento criminal» deduzida pelo arguido e ora recorrente, insere-se na corrente jurisprudencial que entendia que a notificação do agente para a constituição como arguido e o consequente interrogatório, em inquérito, perante o Ministério Público, face ao disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na sua redacção original, interrompiam a prescrição.
Assim, e de harmonia com o disposto no artigo 445.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, terá o processo de ser reenviado para aquele Tribunal da Relação, a fim de ali ser aplicada a jurisprudência que se vai fixar.
Termos em que acordam em julgar procedente o recurso e, em consequência:
a) Fixar com efeitos obrigatórios para os tribunais portugueses a seguinte jurisprudência:
«Na vigência do Código Penal de 1982, redacção original, a notificação para as primeiras declarações, para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, no inquérito, sendo o acto determinado ou praticado pelo Ministério Público, não interrompe a prescrição do procedimento criminal, ao abrigo do disposto no artigo 120.º, n.º 1, alínea a), daquele diploma.»;
b) Revogar a decisão recorrida e determinar que os autos, com o acórdão recorrido, sejam enviados ao Tribunal da Relação do Porto, a fim de ali ser proferida decisão final em harmonia com a doutrina fixada por este acórdão.
Não é devida taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Novembro de 1998. - Hugo Afonso dos Santos Lopes - Pedro Elmano de Figueiredo Marçal - Armando Acácio Gomes Leandro - Virgílio António Fonseca Oliveira - Augusto Alves - José Mariano Pereira - Luís Flores Ribeiro - Norberto Brito Câmara - João Henrique Martins Ramires - Florindo Pires Salpico - Manuel Maria Duarte Soares - Emanuel Leonardo Dias - Carlindo Rocha da Mota e Costa - António Abranches Martins - Álvaro José Guimarães Dias - Sebastião Duarte de Vasconcelos da Costa Pereira - Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira - António Sousa Guedes - José Pereira Dias Girão - Dionísio Manuel Dinis Alves - António Luís Sequeira Oliveira Guimarães.