Acórdão 260/98
Processo 418/93
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O Provedor de Justiça requereu ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas no artigo 4.º n.os 1 e 3, do Decreto-Lei 103-B/89, de 4 de Abril, bem como das normas orçamentais que anualmente as concretizaram desde então - a do artigo 43.º da Lei 101/89, de 19 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 1990), a do artigo 45.º, n.º 1, da Lei 65/90, de 28 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 1991), a do artigo 16, n.º 1, da Lei 2/92, de 9 de Março (Lei do Orçamento do Estado para 1992), e ainda a do artigo 12.º, n.º 1, da Lei 30-E/92, de 28 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para o ano de 1993).
Entende o Provedor de Justiça serem tais normas desconformes com o conteúdo do artigo 243.º, n.º 1, da Constituição (quanto à limitação da tutela administrativa sobre as autarquias à mera legalidade) e com o disposto no artigo 254.º da Constituição (por serem violados os direitos próprios dos municípios sobre certas receitas), em articulação com o artigo 240.º, n.º 1 (princípio da autonomia financeira autárquica).
2 - Segundo o Provedor de Justiça, «a retenção na fonte de uma parcela das receitas da sisa e das transferências resultantes do Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF) configura uma verdadeira e clara intervenção tutelar na gestão dos municípios [...] Na classificação das espécies fundamentais de tutela administrativa - em tutela de mérito e tutela da legalidade - não restarão dúvidas em concluir ser este um caso de tutela sobre o mérito na variante de tutela substitutiva ou supletiva, a qual consiste [...] 'no poder conferido à autoridade tutelar de suprir as omissões de órgão tutelado, praticando em seu lugar os actos devidos' [parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 90/85, de 12 de Janeiro de 1989, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 342, p. 109]. [...] Os actos devidos, na situação em análise, são pura e simplesmente o cumprimento de uma obrigação negocial, não sendo nem podendo ser um acto administrativo do poder central a convertê-lo no cumprimento de uma obrigação legal, cuja fiscalização recaia na órbita tutelar definida pelo artigo 243.º, n.º 1, da Constituição.»
3 - Por outro lado, ainda segundo o Provedor de Justiça, «as verbas que ficam sujeitas a retenção por parte do Estado constituem, sem dúvida alguma, receitas próprias dos municípios. Tal é o caso da sisa [configurada como imposto local, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Lei 1/87, de 6 de Janeiro], como é o caso da participação no FEF [artigo 4.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma]. [...] se é certo, por um lado, caber à lei definir os termos do direito próprio dos municípios à participação nas receitas de impostos directos, não se afigura em caso algum consentâneo com o princípio de autonomia financeira municipal condicionar a resolução de litígios com a EDP - Electricidade de Portugal, S. A., pela ameaça de diminuição do alcance de uma garantia institucional dos municípios. [...] um município vê a gestão dos seus recursos financeiros, em certo ano, condicionada pela retenção administrativa central a efectuar em anos seguintes.» Com efeito,«para ser desencadeado o mecanismo de retenção previsto no n.º 3 do artigo 4.º do Decreto-Lei 103-B/89, de 4 de Abril - cuja inconstitucionalidade ora se sustenta -, basta, tão-só, a ultrapassagem dos prazos de negociação previstos no artigo 2.º sem que tenha sido obtido o acordo entre os municípios e a EDP, S. A. [...] Quanto às restantes normas cuja fiscalização de constitucionalidade ora se pede, constituem uma concretização anual, nas sucessivas leis do Orçamento do Estado, habilitando o poder central a efectuar as retenções constantes do Decreto-Lei 103-B/89, de 4 de Abril.» Ora, «sejam quais forem os contornos do direito próprio assinalado no artigo 254.º da Constituição, nunca será admissível que tal garantia possa ser utilizada contra os seus titulares. [...] A autonomia financeira municipal - resultante dos artigos 240.º, n.º 2, e 254.º da CRP - no que toca à resolução dos litígios com a EDP, S. A., ficará intoleravelmente diminuída pelo sistema adoptado das normas em apreço.»
4 - O Primeiro-Ministro pronunciou-se sobre o pedido, dizendo, em conclusão:
«a) O mecanismo, previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 4.º do Decreto-Lei 103-B/89, de 4 de Abril, de retenção de verbas de receitas municipais provenientes da cobrança da sisa e da participação no FEF para regularização das dívidas dos municípios à EDP não constitui uma medida tutelar destinada a indagar se determinada decisão autárquica é uma decisão conveniente ou inconveniente, correcta ou incorrecta do ponto de vista administrativo ou financeiro;
b) Na verdade, não está aí em causa um juízo de desvalor sobre o mérito da omissão do cumprimento de uma obrigação contratual assumida pelos municípios perante a EDP, mas sim, como facilmente se compreende, o exercício de um poder destinado a reprimir a ilegalidade desse comportamento;
c) O mecanismo de retenção previsto no Decreto-Lei 103-B/89, de 4 de Abril, constitui um instrumento regulador da prossecução de um interesse público geral de toda a colectividade e que, por isso, cabe ao Estado assegurar, não podendo ficar à mercê da actuação ilegal de certos municípios;
d) Esse interesse público consiste em assegurar o normal funcionamento do serviço público de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, gravemente ameaçado pela ruptura financeira da EDP, cuja principal causa reside no não pagamento, por parte de determinados municípios, de vários milhões de contos em dívida;
e) Ora, o legislador não está impedido de conferir ao Governo poderes para prevenir ou até reprimir a ilegalidade da actuação dos órgãos autárquicos, quando tal seja justificado pela necessidade de realização de um interesse público nacional ou estadual diferente do interesse geral da repressão da ilegalidade, isto é, quando a actuação ilegal das autarquias ponha em causa a realização de interesses públicos que ao Governo caiba salvaguardar ou promover;
f) Não se pode, pois, considerar aquelas normas legais como violadoras dos limites da tutela administrativa fixados no n.º 1 do artigo 243.º da Constituição;
g) Por outro lado, a retenção de verbas de receitas municipais provenientes da cobrança de sisa e da participação no FEF para regularização das dívidas dos municípios à EDP não constitui violação do direito próprio dos municípios a participarem nas receitas provenientes dos impostos directos, tal como se encontra consagrado no artigo 254.º da Constituição;
h) Seria, com efeito, erróneo considerar que aquele preceito constitucional impõe ao Estado a atribuição aos municípios da totalidade das verbas das receitas provenientes desses impostos;
i) O legislador goza de uma ampla margem de liberdade de conformação na determinação não só do montante da parcela dessas receitas como também do tipo de impostos em que ocorrerá a incidência da mesma;
j) O essencial é que a participação dos municípios nas receitas provenientes dos impostos directos - quer directamente sobre os impostos cobrados na respectiva circunscrição municipal, quer sobre a receita global nacional inscrita no Orçamento do Estado, através do mecanismo do FEF - não se reduza a percentagens tais que ponham em causa a própria autonomia financeira dos municípios;
k) No caso sub iudice, a retenção prevista, atento o seu quantitativo, é constitucionalmente admissível, uma vez que se encontram respeitados os limites que decorrem da necessidade de deixar intocado o núcleo essencial da autonomia local e da inadmissibilidade de proceder à afectação de receitas, desnecessária ou injustificadamente, ou ainda em termos desproporcionados;
l) No caso presente, a retenção é fixada, comedidamente, em percentagens que claramente impedem que a gestão de tais meios patrimoniais fique totalmente dependente da administração central do Estado, além de que a retenção tem em vista a prossecução de um importante interesse público de relevância nacional;
m) Impõe-se, pois, concluir que uma tal medida se não revela desnecessária, injustificada ou desproporcionada;
n) Assim sendo, não se pode considerar aquelas normas legais como violadoras dos direitos dos municípios à participação nas receitas provenientes dos impostos directos do Estado, tal como aquele se encontra consagrado no artigo 254.º da Constituição.»
Cumpre decidir.
II - Fundamentação
5 - Examinemos, em primeiro lugar, as normas de cuja constitucionalidade se trata.
Os n.os 1 e 3 do artigo 4.º do Decreto-Lei 103-B/89, de 4 de Abril, dispõem:
«Artigo 4.º
1 - Após a recepção da comunicação mencionada no artigo anterior, os Ministérios das Finanças e do Planeamento e da Administração do Território procederão, respectivamente, à retenção de verbas até ao limite dos montantes discriminados nas alíneas a) e b) do artigo 48.º da Lei 114/88, de 30 de Dezembro.
...
3 - Os Ministérios das Finanças e do Planeamento e da Administração do Território, com base em comunicação prévia da EDP sobre o montante em dívida, reterão as verbas correspondentes a 50% do acréscimo da receita da sisa verificado em 1989 relativamente ao mês homólogo de 1988 e a 10% do duodécimo da participação do Fundo de Equilíbrio Financeiro referentes aos municípios previstos no n.º 1 do artigo 1.º»
Transcrevem-se também os restantes números do artigo 4.º, importantes para a compreensão do sistema:
«...
2 - Os municípios serão informados pelos Ministérios das Finanças e do Planeamento e da Administração do Território da retenção de verbas previstas no número anterior.
...
4 - As verbas referidas nos termos do número anterior serão transferidas mensalmente para a EDP.
5 - A retenção prevista no n.º 3 reporta-se a 1 de Abril, incide sobre os montantes previstos no mesmo dispositivo e efectiva-se a partir de 1 de Julho, redistribuindo-se pelo 2.º semestre os valores correspondentes aos nove meses.»
A previsão do n.º 1 remete para «a comunicação mencionada no n.º 1 do artigo anterior». Trata-se da comunicação pela EDP do quantitativo da dívida do município. Só que esse quantitativo é determinado, em alternativa, pelo valor referido no n.º 1 do artigo 2.º ou pelo valor fixado nos termos do n.º 4 do artigo 5.º e a comunicação é excluída pelo protocolo do acordo referido no n.º 2 do artigo 1.º, pelo que se torna necessário transcrever os artigos 1.º, 2.º, 3.º e 5.º para compreensão da previsão do n.º 1 do artigo 4.º:
«Artigo 1.º
1 - Os municípios que tenham dívidas à Electricidade de Portugal, E. P., adiante designada por EDP, dispõem do prazo de 60 dias a contar da data da entrada em vigor do presente diploma, e nos termos do disposto nos artigos 2.º e 3.º, para acordar com a EDP as condições de regularização dos respectivos débitos, reportados a 31 de Dezembro de 1988.
2 - O acordo referido no número anterior revestirá a forma de protocolo.
3 - Exceptuam-se do disposto no n.º 1 os municípios que, tendo acordado com a EDP as condições de regularização das respectivas dívidas, se encontrem a cumprir esses acordos à data da entrada em vigor deste diploma.
Artigo 2.º
1 - Para efeitos do disposto no artigo anterior, a EDP comunicará aos municípios, por carta registada com aviso de recepção, no prazo de 15 dias contado da data da entrada em vigor do presente diploma, o montante em dívida, reportado a 31 de Dezembro de 1988, solicitando a apresentação de uma proposta de pagamento desses débitos.
2 - No prazo máximo de 30 dias após a recepção da comunicação referida no número anterior, e sem prejuízo da negociação directa entre as partes nesse período, com a consequente celebração do protocolo de acordo, devem os municípios apresentar à EDP a sua proposta.
Artigo 3.º
Decorridos que sejam 15 dias sobre o prazo previsto no n.º 2 do artigo anterior, e não se encontrando assinado o protocolo de acordo, a EDP comunicará aos Ministérios das Finanças e do Planeamento e da Administração do Território, relativamente a cada município, o quantitativo da dívida referida no n.º 1 do artigo anterior.
Artigo 5.º
1 - Decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 2.º do presente decreto-lei, e precedendo solicitação formulada por qualquer das partes aos Ministérios do Planeamento e da Administração do Território e da Indústria e Energia, pode ser constituída uma comissão de avaliação dos débitos mencionados no n.º 1 do artigo 1.º, sempre que haja desacordo quanto ao montante dos mesmos.
2 - A comissão referida no número anterior delibera por maioria e tem a seguinte composição:
a) Um representante dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e da Indústria e Energia, que presidirá;
b) Um representante do município;
c) Um representante da EDP.
3 - A comissão apresentará aos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e da Indústria e Energia, no prazo máximo de 30 dias a contar do termo final do prazo previsto no n.º 2 do artigo 2.º, um relatório, com parecer fundamentado, sobre os montantes em dívida.
4 - No prazo de 15 dias após a apresentação do relatório referido no número anterior, por decisão conjunta dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território e da Indústria e Energia, pode ser expressamente aceite, para efeitos de fixação do quantitativo referido no artigo 3.º, o montante proposto pela comissão.
5 - Da decisão ministerial proferida nos termos do número anterior será dado conhecimento ao Ministério das Finanças, ao município e à EDP, para efeitos de aplicação do regime de retenção e transferência de verbas previstas no presente diploma.»
A estatuição remete para o artigo 48.º da Lei 114/88, de 30 de Dezembro, que contém a norma autorizadora do Decreto-Lei 103-B/89, e que dispõe:
«Fica o Governo autorizado, nos termos do Decreto-Lei 103-B/89, de 4 de Abril, e no caso dos municípios que não hajam celebrado com a EDP acordos de regularização da dívida reportada a 31 de Dezembro de 1988 ou não estejam a cumprir acordos celebrados, a proceder à retenção dos montantes seguidamente discriminados:
a) Até 50% do acréscimo, verificado em 1990 relativamente a 1989, da receita da sisa respeitante às transacções ocorridas na área do município devedor;
b) Até 10% das verbas do Fundo de Equilíbrio Financeiro referentes ao município devedor.»
É também pedida a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas orçamentais dos artigos 43.º da Lei 101/89, de 19 de Dezembro, 45.º, n.º 1, da Lei 65/90, de 28 de Dezembro, 16.º, n.º 1, da Lei 2/92, de 16 de Março, e 12.º, n.º 1, da Lei 30-C/92, de 28 de Dezembro, que têm o mesmo teor literal, com excepção de anos indicativos do período orçamental a que se reportam:
«Fica o Governo autorizado, nos termos do Decreto-Lei 103-B/89, de 4 de Abril, e no caso dos municípios que não hajam celebrado com a EDP acordos de regularização da dívida reportada a 31 de Dezembro de 1988 ou não estejam a cumprir acordos celebrados, a proceder à retenção dos montantes seguidamente discriminados:
a) Até 50% do acréscimo, verificado em 1990 relativamente a 1989 [assim o artigo 43. da Lei 101/89], da receita da sisa respeitante às transacções ocorridas na área do município devedor;
b) Até 10% das verbas do Fundo de Equilíbrio Financeiro referentes ao município devedor.»
6 - O Provedor de Justiça entende que a transferência para a EDP, imposta pelo n.º 4 do artigo 4.º do Decreto-Lei 103-B/89, das verbas retidas por força do n.º 3 do mesmo artigo é um caso de tutela substitutiva, em que o Governo, como autoridade tutelar, supre a omissão da pessoa colectiva tutelada, que é o município, praticando em seu lugar os actos devidos por este. A retenção pode, com efeito, ser vista como o primeiro acto de gestão preparatório da transferência, ou, antes, como a outra face, relativa ao município, dos actos de transferência efectivamente praticados: a transferência para o município das receitas próprias deste, deduzida do quantitativo retido, e a transferência para a EDP do mesmo quantitativo, nos termos dos n.os 4 e 5 do mesmo artigo 4.º
Ora, segundo o Provedor, não se trata aqui de controlo da legalidade, porque «os actos devidos na situação em análise são pura e simplesmente o cumprimento de uma obrigação negocial, não sendo nem podendo ser um acto administrativo do poder central e convertê-lo no cumprimento de uma obrigação legal, cuja fiscalização recaia na órbita tutelar definida pelo artigo 243.º [242.º desde a revisão de 1997], n.º 1, da Constituição».
Em reforço da sua posição o Provedor faz uma citação de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., 1993, p. 897), a qual implica que, mesmo que se tratasse do cumprimento de uma obrigação legal, sempre estaria vedada a tutela substitutiva. Segundo os autores citados, estão «excluídas à partida formas de tutela incompatíveis com essa função constitucional [que designam por função administrativa de controlo], nomeadamente a tutela orientadora (instrução, recomendações), a tutela homologatória, a tutela substitutiva, o recurso tutelar».
7 - A isto responde o Primeiro-Ministro que não é pelo facto de se reprimir a violação de um contrato que se trata de tutela de mérito. Com efeito, afirma, «o não cumprimento de um contrato administrativo (como é o que existe entre a EDP e os municípios para a distribuição de energia eléctrica) representa uma verdadeira ilegalidade [...]». O bloco de legalidade que serve de parâmetro de conformidade à actuação administrativa não se restringe à lei e aos regulamentos; inclui também os contratos administrativos. Aliás, nos termos do n.º 1 do artigo 15.º da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo, o vício de violação de lei (no sentido apontado do bloco de legalidade) era designado por vício de violação de lei, regulamento ou contrato administrativo. Doutrina essa que ainda hoje se mantém. O conceito de «lei» previsto no n.º 1 do artigo 243.º da Constituição tem, pois, «um âmbito amplíssimo» (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 897). Por consequência, segundo o Primeiro-Ministro, «o mecanismo de retenção de verbas previsto nas normas legais cuja inconstitucionalidade agora se pretende seja declarada não constitui um caso de tutela de mérito sobre os municípios». Tão-pouco se trataria de tutela substitutiva de legalidade. Invoca-se aqui a doutrina de Vieira de Andrade («Distribuição pelos municípios de energia eléctrica em baixa tensão», Colectânea de Jurisprudência, XIV, 1989, t. 1, p. 24) segundo a qual o artigo 243.º (hoje 242.º) da Constituição «não significa de maneira alguma que a lei só possa prever mecanismos de fiscalização estrita de legalidade e que esteja impedida de conferir ao Governo poderes para prevenir ou até reprimir a ilegalidade da actuação dos órgãos autárquicos, quando tal seja justificado pela necessidade de realização de um interesse público nacional ou estatal diferente do interesse geral da repressão da ilegalidade, isto é, quando a actuação ilegal das autarquias ponha em causa a realização de interesses públicos que ao Governo caiba salvaguardar ou promover». Ora, no caso em análise, estaria «presente um interesse público de relevância nacional e que é o de assegurar o normal funcionamento do serviço público de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, gravemente ameaçado pela ruptura financeira da EDP, cuja principal causa reside no não pagamento, por parte de determinados municípios, de vários milhões de contos em dívida». Teríamos, portanto, «não tanto um caso de tutela substitutiva, mas sim de competência originária destinada à prossecução de interesses públicos nacionais legalmente definidos, e que constitui, no caso em análise, um corolário lógico da tutela inspectiva».
Quid iuris?
8 - Há que atentar na alteração introduzida pela revisão constitucional de 1982 na redacção primitiva da primeira parte do n.º 1 do artigo 243.º (hoje 242.º) da Constituição: onde se lia «a tutela sobre as autarquias locais será exercida segundo as formas e nos casos previstos na lei» passou a dizer-se «a tutela administrativa sobre as autarquias locais consiste na verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos e é exercida nos casos e segundo as formas previstos na lei». Não há dúvida que a alteração do texto visou defender a autonomia local (expressamente nomeada e igualmente defendida pela contemporânea nova redacção do n.º 2 do mesmo artigo) e, nessa medida, promover a descentralização administrativa. Para tanto o n.º 1 restringiu as formas de tutela admissíveis, sem qualquer restrição explícita na anterior redacção, à que «consiste na verificação do cumprimento da lei». As questões que aqui se põem são as de saber se os actos de retenção de verbas em questão são uma forma de tutela autorizada ou excluída pela nova redacção do n.º 1 do artigo 243.º (hoje 242.º), defendendo o Provedor de Justiça serem de tutela substitutiva de mérito, ou se são uma outra forma de actuação legítima do Governo que não tem carácter tutelar, mas é corolário lógico da tutela inspectiva, como pretende o Primeiro-Ministro. A resposta é tratar-se de tutela substitutiva de legalidade proibida pela norma constitucional.
Com efeito, como reconhece precisamente a resposta do Primeiro-Ministro, «a retenção prevista no artigo 4.º do Decreto-Lei 103-B/89, de 4 de Abril, representa uma consignação de parte das receitas municipais a determinada despesa, no caso, ao pagamento das dívidas à EDP». Só que a consignação é logo executada pela administração central, que, em vez de entregar as verbas correspondentes ao município, as entrega à EDP. Trata-se, portanto, de uma forma de pagamento substitutiva do pagamento por iniciativa do município. A circunstância de haver um interesse público nacional em questão diferente do interesse na repressão da ilegalidade não exclui, por si, que seja este último interesse o relevante. Há sempre um outro interesse, que é o fim da lei de cuja ilegalidade se trata, concomitante com o da repressão da ilegalidade, quando esta se realiza. E o interesse em assegurar o fornecimento de energia eléctrica, evitando a ruptura financeira da EDP, é um motivo de oportunidade que não afecta em nada o regime jurídico, uma vez que tanto o pagamento da dívida se pressupõe obrigatório como a acção do Governo, ao reter as verbas, se torna obrigatória, verificados os trâmites anteriores previstos na lei. Se tal interesse fosse relevante, tratar-se-ia de uma tutela de mérito, em que o Governo assegurava a prevalência do interesse nacional sobre o interesse local do município que pudesse basear uma contestação judicial do pagamento, ou a simples preferência pela mora, eventualmente para possibilitar o pagamento imediato de outras dívidas. Mesmo entendendo que o controlo de legalidade pela administração central não contende com a ideia de descentralização administrativa, como defende Charles Eisenmann (Cours de droit administratif, I, 1982, p. 269), há que admitir, como o faz o próprio Eisenmann, que a descentralização é «mais» favorecida por um sistema que exclua da competência da autoridade administrativa tutelar certas formas de controlo da legalidade. Ora, reconhecendo que os n.os 2 e 3 do actual artigo 242.º implicam a existência de formas sancionatórias de tutela de legalidade, máxime a dissolução, que afectam genericamente, e não apenas quanto a actos determinados, a autonomia das autarquias locais, deve considerar-se que a tutela substitutiva de legalidade está afastada pelo n.º 1 do mesmo artigo. A falta de pagamento, por parte de uma autarquia local, de uma dívida de um contrato com uma empresa pública não pode dar lugar a uma tutela substitutiva que antecipe cautelarmente o que a outra parte pode obter através dos tribunais. É, portanto, de seguir aquela doutrina que entende que a actual redacção do n.º 1 do artigo 242.º veio excluir a tutela substitutiva (assim, além de Gomes Canotilho e Vital Moreira, atrás citados, Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2.ª ed., I, 1994, p. 706, António Cândido de Oliveira, «Poderes de intervenção do Estado em matéria de urbanismo - Autonomia local - Tutela», Scientia Juridica, XLI, 1992, pp. 171 e seguintes.), como já disse este Tribunal (Acórdão 379/96, Diário da República, 2.ª série, de 15 de Julho de 1996, p. 9592).
Não há qualquer «lógica» de tutela inspectiva que obrigue o Estado-Administração a intervir quando detecta uma ilegalidade. A tutela da legalidade também incumbe constitucionalmente a outros órgãos do Estado, especialmente aos tribunais (artigo 202.º, n.º 2, da Constituição). Na hipótese, a EDP tem interesse na reposição da legalidade e pode obtê-la através dos tribunais. A tutela da legalidade efectiva-se assim com mais independência e mais respeito pela autonomia autárquica do que pela tutela administrativa substitutiva.
Concluindo, assim, o Tribunal pela inconstitucionalidade das normas sub judice, pelo apontado fundamento da violação do disposto no artigo 242.º, n.º 1, da Constituição, torna-se desnecessário definir a sua posição acerca de outros eventuais fundamentos alternativos ou cumulativos.
Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas no artigo 4.º, n.os 1 e 3, do Decreto-Lei 103-B/89, de 4 de Abril, e ainda nos artigos 43.º da Lei 101/89, de 19 de Dezembro, 45.º, n.º 1, da Lei 55/90, de 28 de Dezembro, 16.º, n.º 1, da Lei 2/92, de 9 de Março, e 12.º, n.º 1, da Lei 30-C/92, de 28 de Dezembro, por violação do disposto no artigo 242.º, n.º 1, da Constituição.
Lisboa, 5 de Março de 1998. - José de Sousa e Brito (com declaração) - Alberto Tavares da Costa - Messias Bento - Bravo Serra - Maria da Assunção Esteves (vencida quanto à fundamentação) - Armindo Ribeiro Mendes (com declaração de voto) - Luís Nunes de Almeida (com a declaração junta) - Vítor Nunes de Almeida (vencido) - José Manuel Cardoso da Costa [não me sendo possível, neste momento, explicitar mais desenvolvidamente o meu ponto de vista, tenho de cingir-me à referência de que nem me convenci inteiramente de que a Constituição exclua, em absoluto, toda e qualquer forma de tutela «substitutiva» da autonomia local, desde que de «legalidade», nem, em qualquer caso, de que o tipo de intervenção governamental previsto nas normas apreciadas se reconduza, sequer, àquela figura (da «tutela» substitutiva): é que está em causa, na matéria, um interesse administrativo (sublinho a qualificação) que é também do Estado. Por estas razões, fiquei vencido] - (Tem voto de conformidade do conselheiro Guilherme da Fonseca e da conselheira Maria Fernanda Palma, esta com declaração de voto remetendo para a declaração de voto do relator, os quais não assinam por terem cessado funções) - José de Sousa e Brito.
Declaração de voto
Entendo que o Tribunal deveria concluir haver igualmente violação do princípio da reserva da função judicial aos tribunais, consagrado no artigo 202.º da Constituição.
Com efeito, o Supremo Tribunal Administrativo, em vários acórdãos sobre casos de aplicação do Decreto-Lei 103-B/89, tem recusado aplicação a várias normas do mesmo decreto-lei, entre elas as que aqui se questionam; assim, por exemplo, Acórdão de 25 de Junho de 1992, processo 622/92, do Tribunal Constitucional, mas também a norma do n.º 4 do artigo 5.º (assim, por exemplo, no Acórdão do pleno da 1.ª Secção de 2 de Maio de 1995, processo 348/95, do Tribunal Constitucional), com fundamento na violação das normas dos artigos 205.º e 206.º da Constituição, na redacção anterior à revisão de 1989, correspondentes aos n.os 1 e 2 do artigo 205.º dessa revisão e do artigo 202.º da revisão de 1997. Segundo tal jurisprudência, permitir à Administração o exercício de um poder unilateral e autoritário para fixação e execução de uma dívida cujo montante é controvertido entre as parte directamente interessadas - para a composição de um conflito -, estando apenas imediatamente em causa a realização do direito e da justiça, ofende as referidas normas constitucionais.
Importaria apreciar este argumento, dado que o Tribunal pode fundamentar as suas declarações de inconstitucionalidade na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada (artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82, de 15 de Novembro).
O Tribunal Constitucional tem-se diversas vezes pronunciado sobre a distinção entre a função jurisdicional e administrativa, nomeadamente nos Acórdãos n.os 104/85 (Acórdãos, cit., 5, pp. 633 e 638-639), 443/91 (Acórdãos, cit., 20, pp. 477 e 487), 226/95 (Diário da República, 2.ª série, de 27 de Julho de 1995) e 452/95 (Diário da República, 2.ª série, de 21 de Novembro de 1995). Poderá aqui partir-se da noção de que «o quid specificum do acto jurisdicional reside em que ele não apenas pressupõe mas é necessariamente praticado para resolver uma 'questão de direito'», nas palavras de Afonso Queiró (Lições de Direito Administrativo - policopiadas -, Coimbra, 1976, pp. 50 e 51). É o que resulta da atribuição em exclusivo aos tribunais de competência para administrar a justiça (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição). É matéria em que os tribunais têm de ter não apenas a última, mas logo a primeira palavra (assim o citado Acórdão 452/95).
Ora, no caso presente o Governo vem resolver um conflito de interesses entre a EDP e o município, fixando autoritariamente o montante da pretensão da EDP e executando-a por meio da retenção e transferência autoritária de verbas que são da titularidade do município. O fim imediato é assim a aplicação do direito, mesmo que o fim último seja a garantia do fornecimento de energia eléctrica ao País e que o processo expedito adoptado se entenda como sujeito a controlo da jurisdição administrativa.
Isto é particularmente claro da perspectiva dos sujeitos do processo administrativo. Com efeito, a reserva da função jurisdicional aos tribunais é uma garantia dos sujeitos do processo e, no caso, das autarquias locais e da respectiva autonomia. Ora, através do processo descrito no Decreto-Lei 103-B/89 os municípios estão sujeitos a esse procedimento executivo a favor da EDP, a que não se podem opor directamente perante um juiz independente, mas só depois de finda a execução, mediante um processo dirigido contra o Estado. - José de Sousa e Brito.
Declaração de voto
Votei vencida a fundamentação, considerando que as normas do artigo 4.º, n.os 1 e 3, do Decreto-Lei 103-B/89, de 4 de Abril, do artigo n.º 43.º da Lei 101/89, de 19 de Dezembro, do artigo 45.º, n.º 1, da Lei 55/90, de 28 de Dezembro, do artigo 16.º, n.º 1, da Lei 2/92, de 9 de Março, e do artigo 12.º, n.º 1, da Lei 30-C/92, de 28 de Dezembro, são inconstitucionais, mas por violação do princípio da reserva de juiz, consagrado no artigo 205.º da Constituição (redacção da Lei Constitucional de 1989). E apenas por esse fundamento. A Administração (neste caso, o Estado) não pode, com efeito, arrogar-se «um poder unilateral e autoritário para fixação e execução de uma dívida cujo montante é controvertido entre as partes directamente interessadas». A composição de conflitos é tarefa do juiz.
Este fundamento «desqualifica», em meu entender, outros fundamentos que porventura aqui possam ser convocados, como o da tutela administrativa substitutiva. Uma coisa é, na verdade, a patologia constitucional das normas, outra é o efeito de reprodução de vícios induzido por essa patologia. - Maria da Assunção Esteves.
Declaração de voto
Tal como sustenta o Exmo. Conselheiro Sousa e Brito, na sua declaração de voto, considerei que as normas impugnadas e declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, violavam igualmente o princípio da reserva da função judicial aos tribunais, consagrada no artigo 202.º da Constituição.
De facto, estando em causa um litígio entre a EDP e certas câmaras municipais e pretendendo as normas agora inconstitucionalizadas obter a execução forçada dos créditos daquela empresa em situação de incumprimento, ainda que litigiosos, tenho para mim que a reserva do juiz impunha também a inconstitucionalidade da solução de conseguir a «retenção na fonte» e a transferência forçada das verbas da sisa e do FEF. Remeto para as considerações feitas pelo conselheiro Sousa e Brito na referida declaração de voto. - Armindo Ribeiro Mendes.
Declaração de voto
Acompanhei o Exmo. Relator na sua declaração de voto, ao considerar que as normas ora declaradas inconstitucionais se encontravam igualmente em contradição com o princípio da reserva da função judicial.
Com efeito, a proibição constitucional da tutela substitutiva implica que só através do recurso à via judiciária se poderia resolver o litígio entre as autarquias e a EDP. - Luís Nunes de Almeida.