Aos 22 de julho de dois mil e vinte e cinco, achando-se presentes o Juiz Conselheiro Presidente José João Abrantes e os Juízes Conselheiros João Carlos Loureiro, Joana Fernandes Costa, Carlos Medeiros Carvalho, José Teles Pereira, Gonçalo de Almeida Ribeiro, Mariana Canotilho, Rui Guerra da Fonseca, Maria Benedita Urbano, Dora Lucas Neto, António José da Ascensão Ramos, e Afonso Patrão, foram trazidos à conferência, em sessão plenária do Tribunal Constitucional, os presentes autos.
Após debate e votação, foi, pelo Ex.mo Conselheiro VicePresidente, por delegação do Ex.mo Conselheiro Presidente, nos termos do artigo 39.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, ditado o seguinte:
I. Relatório 1-Nos presentes autos de recurso jurisdicional em matéria de contas de campanhas eleitorais, vindos da ENTIDADE DAS CONTAS E FINANCIAMENTOS POLÍTICOS (doravante designada apenas por
ECFP
»), em que são recorrentes PARTIDO SOCIALISTA (PS) e HUGO FILIPE XAMBRE BENTO PEREIRA, foi interposto o presente recurso da decisão daquela Entidade, de 3 de dezembro de 2024, relativa às contas apresentadas pelo PS relativas à participação na campanha para a eleição para a Assembleia da República, realizada a 6 de outubro de 2019, e que sancionou contraordenacionalmente os recorrentes.
2-Por decisão datada de 7 de julho de 2021, tomada no âmbito do processo PA 1/AR/19/2019, a ECFP julgou prestadas, com irregularidades, as contas apresentadas pelo PS, relativas à campanha da referida eleição para a Assembleia da República, realizada a 6 de outubro de 2019, da qual o segundo recorrente foi mandatário financeiro [artigo 27.º, n.º 4, da Lei 19/2003, de 20 de junho (Lei de Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, referida adiante pela sigla
LFP
») e artigo 43.º, n.º 1, da Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro (Lei da Organização e Funcionamento da ECFP, referida adiante pela sigla
LEC
»)].
Mais determinou, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, da LEC, a extração de certidão para apuramento de eventual responsabilidade contraordenacional do PS e do referido mandatário financeiro.
3-Em 23 de março de 2022, a ECFP instaurou procedimento contraordenacional, a que corresponde o processo 1/2022, ao qual foi apensado o procedimento PA 1/AR/19/2019.
Por ofício datado de 24 de março de 2022, os arguidos foram notificados do processo de contraordenação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 44.º, n.os 1 e 2, da LEC, e no artigo 50.º do Decreto Lei 433/82, de 27 de outubro (Regime Geral das Contraordenações, referido adiante pela sigla
RGCO
»), tendo apresentado defesa.
4-No âmbito do referido procedimento contraordenacional n.º 1/2022, a ECFP proferiu decisão, datada de 3 de dezembro de 2024, nos termos da qual foi deliberado condenar os arguidos e ora recorrentes, sancionandoos nos seguintes termos:
a. Ao Arguido Partido Socialista (PS), a sanção de coima no valor de 20 (vinte) vezes o valor do Indexante dos Apoio Sociais (IAS) fixado para o ano de 2020, o que perfaz a quantia de 8.776,20EUR, pela prática da contraordenação, prevista e punida, pelo artigo 31.º, n.os 1 e 2, da Lei 19/2003.
b) Ao Arguido, Hugo Filipe Xambre Bento Pereira, mandatário financeiro do Partido Socialista, a sanção de coima no valor de 6 (seis) vezes o valor do Indexante dos Apoios Sociais (IAS) fixado para o ano de 2020, que perfaz a quantia de 2.632,86EUR, pela prática da contraordenação, prevista e punida, pelo artigo 31.º, n.os 1, da Lei 19/2003.
»5-Notificados de tal decisão sancionatória, os recorrentes interpuseram recurso conjuntamente para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 23.º e 46.º, n.º 2, da LEC, e do artigo 9.º, alínea e), da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla
LTC
»), tendo concluído as suas alegações nos seguintes termos:
A. A ECFP aplica ao arguido Partido Socialista (PS), “a sanção de coima no valor de 20 (vinte) vezes o valor do Indexante dos Apoios Sociais (IAS) fixado para o ano de 2020, o que perfaz a quantia de €8,776,20, pela prática da contraordenação, prevista e punida, pelo artigo 31.º n.º 1 e 2 da Lei 19/2003”.
B. E ao arguido, Hugo Filipe Xambre Bento Pereira, mandatário financeiro do Partido Socialista, “a sanção de coima no valor de 6 (seis) vezes o valor do Indexante dos Apoios Sociais (IAS) fixado para o ano de 2020, o que perfaz a quantia de €2,632,86, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º n.º 1 da Lei 19/2003”.
C. Alega ao longo do ponto 5. a 5.4.8. dos factos provados que, o PS e o seu Mandatário Financeiro registaram nas contas apresentadas várias despesas de campanha (melhor identificadas na decisão condenatória), cujo descritivo da respetiva documentação de suporte se apresenta incompleto uma vez que o Partido não disponibilizou os detalhes necessários, impossibilitando aferir a razoabilidade do seu valor face aos valores de mercado indicados na Listagem 5/2017.
D. A ECFP considera como violados os preceitos previstos no artigo 12.º n.º 1 e 2, ex vi artigo 15.º, n.º 1 da Lei 19/2003, de 20 de junho (já transcritos em sede de alegações).
E. O Partido Socialista e o seu Mandatário Financeiro, ambos aqui arguidos, não praticaram qualquer infração ou irregularidade, o que vai ficar aqui provado junto do Tribunal Constitucional.
F. Ora e conforme largamente explicitado na defesa apresentada em 26/04/2022 e para a tal remetemos “in totum”, lida e relida a norma incriminatória, da mesma não resulta qual o fundamento da tal “incompletude”, que anteriormente designava como “razoabilidade” como já vimos supra, não se extraindo da norma dos artigos 12.º e 15.º supratranscritos, que “razoabilidade” ou “descritivo incompleto” ou mesmo “incompletudes” estão em causa.
G. É que a ECFP não esclarece que tipo de razoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes está em causarazoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes dos montantes? razoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes no tipo de despesa? Será? Ficamos sem, saber… H. Apenas refere que a infração é exclusivamente sustentada nos seguintes factos:
-Preços abaixo do valor de mercado;
-Ausência de elementos complementares de comparação de bens/serviços e preços;
-Falta de demonstração da respetiva razoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes.
I. Conforme se comprova do texto acusatório, uma coisa que não existe é a determinabilidade do tipo legal, uma vez que é pura e simplesmente ininteligível qual ou quais os normativos violados, afetando, na sua totalidade o princípio da legalidade invocado supra (cf. aprofundado na terceira nota prévia supraponto II das alegações).
J. Ademais, não é possível determinar o que verdadeiramente pretende a ECFP quando faz apelo ao princípio da razoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes (cf. descrito na segunda nota prévia supraponto II das alegações);
K. Nem na decisão de 07/07/2021 que deu origem aos presentes autos de contraordenação, nem agora através da acusação aqui sob recurso, é feita prova da alegada infração, bem sabendo que o ónus da prova cabe“in casu”-ao Estado, através dos seus agentes/órgãos.
L. É com grande estranheza que os ora arguidos verificam esta afirmação da ECFP, uma vez que, quanto a estas despesas foi junta toda a documentação pertinente, como seja, deliberações, orçamentos, notas de encomenda, contratos de prestação de serviços e faturas/recibos.
M. Pelo que a acusação agora notificada aos ora arguidos é NULA, não podendo subsistir, nulidade que se invoca para os devidos e legais efeitos.
N. Por outro lado, e não menos importante, os factos que sustentam a presente condenação em relação à infração são insuficientes para concluir pela existência de qualquer infração contraordenacional.
O. Nem o auto de notícia, nem agora em sede de acusação, não menciona claramente “os factos que constituem a infração, e as circunstâncias em que foi cometida”, sendo que no caso em concreto tais “circunstâncias”, porque factuais, se apresentavam de extrema importância para indicar e sinalizar que, ou que tipo de infração está em causa.
P. Com efeito, tal como já acontecia na fase da defesa, em que invocámos que o auto de notícia se apresenta amputado de factos, conclusivo, vago e genérico, viciado pela ausência de uma concreta factualidade sinalizadora do (alegado) comportamento infrator do arguido, com todas as suas consequências e reflexos em termos acusatórios, quer como delimitador do próprio libelo acusatório e sustentáculobásico de uma posterior decisão condenatória, quer ainda, e não menos importante, no quadro e em parâmetros do cabal exercício de um direito de defesa por parte do arguido.
Q. A verdade é que a totalidade dos vícios imputados no auto de notícia estão vertidos na acusação aqui sob recurso.
R. E muito embora estejamos no domínio do direito contraordenacional previsto no RGCO, não se pode ignorar nem minimizar, tal como já foi enquadrado mais acima, o apelo que nos arts.32.º e 41.º se faz ao direito penal e processual criminal, como direito subsidiário, com todas as suas consequências.
S. Assim, e consequentemente, há que considerar nula a acusação aos arguidos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 41.º n.º 1, do DL 433/82 e alínea b) n.º 3 artigo 283.º do CPP.
T. Entendem os ora arguidos que a ECFP deveria esclarecer concreta, quantificada e taxativamente, o que entende por “razoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes das despesas face aos valores de mercado” e não fazer juízos de valor sem qualquer fundamento, remetendo-se para tudo aquilo que já foi dito em sede de defesa sobre este mesmo assunto.
U. Em todos os casos, os valores reais apresentados foram efetivamente os preços contratados com os fornecedores tendo havido sempre a preocupação de aforrar dinheiro nas campanhas que nos parece, até porque estão em causa dinheiros do erário público, que deveria ser sempre uma das preocupações das campanhas eleitorais.
V. Mas o Partido Socialista e o seu Mandatário Financeiro têm vindo a prosseguir, com toda a convicção e energia política, um caminho de redução dos custos eleitorais, nomeadamente no referente a custos unitários do material e dos serviços de campanha, o que tem vindo a ficar patente nas despesas globais das sucessivas campanhas eleitorais apresentadas a juízo das entidades competentes.
W. Não devendo esse esforço de boa gestão ficar limitado pela suposta obrigação de cumprir os tetos máximos dos valores unitários apresentados pela ECFP, de resto meramente indicativos, mas sim levar a uma explicação cabal das condições objetivas que propiciaram uma negociação mais bemsucedida por parte dos arguidos, o que em nenhum caso se deve recusar como imprópria ou ilegal. E essa explicação foi devidamente apresentada e será adiante reafirmada e reforçada.
X. E é visível que em quase todos os casos os preços reais estão abaixo dos indicados na listagem da ECFP, o que resulta da própria dimensão de campanha do Partido Socialista, mas também da capacidade negocial e dos objetivos de contenção de custos que o Partido erigiu em orientação política interna.
Y. É o que resulta, na totalidade dos casos concretos invocados pela ECFP como de “insuficiente comprovação das despesas de campanha”, casos que o Partido Socialista e o seu Mandatário Financeiro já tiveram ocasião de justificar em sede de defesa e para a qual se remete “in totum”.
Z. A ECFP lavra em erro na interpretação de tal inciso legal, na medida em que a razoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes, ou a falta dela, não tem qualquer arrimo ao dispositivo legal invocado pela entidade administrativa.
AA. E não se diga que da leitura do disposto na Lei 19/2003 (na redação atual) se retira tal efeito da razoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes, na medida em cabe à entidade fiscalizadora (e também sancionadora) indicar qual ou quais os normativos violados, e não ao arguido fazer um juízo de prognose no sentido de tentar perceber qual a norma violada e em que medida concreta o seja.
BB. Logo, e recorrendo à transcrição da norma dos artigos 12.º e 15.º (ex vi supra as alegações), não se retira qual a razoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes das contas, ou falta dela, que a ECFP viu, ao ponto de acoimar o Partido Socialista e seu Mandatário Financeiro ora arguidos.
CC. Ora, a lei, in casu o artigo 12.º, ex vi o 15.º transcrito, não refere, nem remete para outras normas, que sustentem a tesis da razoabilidade invocada pela ECFP.
DD. Nem o legislador ao longo de todo o diploma legal faz qualquer referência à matéria da razoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes dos gastos, nem se extrai da Lei o que tal significa, muito menos a título de infração contraordenacional.
EE. Tudo para invocar aqui a inexistência de infração, devendo a presente acusação ser liminarmente arquivada, atenta a nulidade já invocada.
FF. É que, e invocando o que vem dito em relação ao princípio da legalidade, consagrado nos artigos 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e no art.2.º do RGCO, que tem, como decorrências deste princípio a determinabilidade do tipo legalque a lei seja certa e determinadaou seja,
importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até a um ponto em que se tornem objectivamente determináveis os comportamento proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objectivamente e dirigível a conduta dos cidadãos
» e de acordo com o disposto no art.1.º do RGCO que refere que “constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”; e bem sabendo que o citado art.1.º consubstancia o princípio da tipicidade, “significando que a própria lei deve especificar clara e suficientemente os factos em que se desdobra o tipo legal de crimeno caso, de contraordenaçãoou que constituem os pressupostos da aplicação da medida de segurança criminalno caso, da coima, tal significando que só a lei pode definir o que são crimesno caso, contraordenações-e quais os pressupostos da aplicação de medidas de segurança criminaisno caso, das coimas, a verdade é que a entidade das contas não pode, de moto próprio, enquadrar segundo a sua vontade e interpretação, normas que não apresentam um mínimo de enquadramento legal em relação à interpretação que a própria Entidade Administrativa sancionatória pretende.
GG. Ou seja, a interpretação feita pela Entidade das Contas não tem um mínimo de acolhimento na lei, para usar um conceito aparentemente elástico, um mínimo de razoabilidade.
HH. Porque estamos a falar de normas sancionatórias, a matéria de facto invocada pela Entidade Administrativa, não tem um mínimo acolhimento na lei sancionatória invocada, razão pela qual a decisão condenatória é nula por violação do princípio da legalidade e da tipicidade prevista nos artigos 29.º, n.º 1, e 165.º, n.º 1, alínea c), ambos da CRP.
II. A matéria de facto carreada para a decisão condenatória aqui sob recurso, não é suficiente, nem encontra qualquer enquadramento nas normas violadas invocadas no libelo acusatório, sendo que, sendo admitida esta interpretação e subsunção que a entidade das contas faz dos factos à norma, será sempre uma interpretação inconstitucional.
JJ. E dizemos inconstitucional, porque viola frontalmente o princípio da legalidade, e, como seu corolário, no princípio da tipicidade (no sentido da exigência de uma descrição clara e precisa do facto punível), uma vez que os arguidos estão impedidos de conhecer os elementos essenciais do tipo da infração.
KK. Inconstitucionalidade e nulidade que ficam invocada, com os legais efeitos.
LL. Para a aplicação da sanção (rectius:
coima), porém, é mister ainda que o facto, além de típico e antijurídico, seja censurável, isto é, reprovável.
MM. Logo, a punição do agente tem de fundar-se num juízo de reprovação do autor pela formação da vontade e que a concreta sanção nunca pode ser mais grave do que aquele mereça segundo a sua culpa.
NN. Donde, a descoberta da verdade material, não consiste somente na averiguação do ilícito material, mas também, e sobretudo, na indagação do elemento subjetivo da infração, já que a imputação da responsabilidade contraordenacional só é possível se o comportamento do agente for censurável.
OO. O libelo acusatório não dá nota de nenhum facto suscetível de, juridicamente qualificado, preencher a culpa dos arguidos (maxime sob a forma de culpa), sendo certo que essa factualidade não se presume, antes é elemento subjetivo do tipo, pelo que deve ser comprovada para que o ilícito doloso seja preenchido.
PP. O que é bastante e suficiente para afastar a imputada responsabilidade dos arguidos, pois “no direito de mera ordenação social a condenação não pode ter lugar independentemente de culpa QQ. Agir com culpa significa atuar por forma a que a conduta do agente mereça a reprovação ou censura do direito:
o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo; o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo; está, portanto, arredada a admissibilidade de uma responsabilidade objetiva.
RR. Conforme já ficou dito mais acima na quarta nota (vide:
ponto II das notas prévias), no caso que aqui nos ocupa, e porque o diploma legal invocado no libelo acusatório da entidade administrativa ECFP não faz referência à punição a título de negligência, o Partido Socialista e seu Mandatário apenas podem ser punidos a título de dolo.
SS. E o dolo não se presume, tem que ser provado pela entidade fiscalizadora/instrutora/decisória; o que não aconteceu, na medida em que a ECFP não prova a existência de culpa na modalidade de dolo (direto, necessário ou sequer eventual), para assim fundamentar a aplicação de uma coima.
TT. A ECFP invoca no texto da decisão DOLO EVENTUAL dos arguidos pela prática da infração que vem noticiada, e agora sob a forma de condenação, e nada prova, nada refere sobre a razão e a medida desse dolo eventual, nada comprova, não ouviu o representante do arguido… nada.
UU. Da decisão condenatória nada resulta para além da decisão (conveniente) que o arguido agiu com DOLO, referindo que “verifica-se a ocorrência de atuação dolosa por parte dos arguidos, sob a modalidade de dolo eventual”.
VV. Entende a ECFP que, conhecendo os arguidos a Lei, ou estando obrigados a conhecer, qualquer infração topada pela entidade administrativa, implica a atuação dolosa dos arguidos.
WW. Quanto a esta matéria remetemos para os ensinamentos dos jurisconsultos Germano Marques da Silva e Figueiredo Dias, transcritos supra artigos 54.º a 56.º XX. Nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 1 e 2, do RGCO, as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, sendo estas responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.
YY. Ora, sendo o arguido PS uma pessoa coletiva, a imputação a título de dolo ou de negligência exige a atuação dolosa ou negligente por parte de uma ou mais pessoas físicas, agindo no exercício das suas funções, em nome e no interesse dessa mesma sociedade/pessoa coletiva.
ZZ. Deste modo, a responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva pressupõe, necessariamente, uma conduta de um seu órgão ou de um seu representante, no exercício das suas funções.
AAA. Tal conduta do órgão ou do representante (agente, empregado, etc.) da pessoa coletiva pode consistir na autoria (imediata ou mediata) ou na instigação do ilícito contraordenacional imputado ao arguido, ou, ainda, na cumplicidade no facto contraordenacional.
BBB. Em sede de defesa, e perante esta concretização, verifica-se que a decisão da autoridade Administrativa não faz uma descrição suficiente dos factos que consubstanciam a imputação à mesma da contraordenação em causa, desde logo no que respeita aos elementos subjetivos das infrações.
CCC. Lida e relida a decisão da autoridade administrativa, constata-se, sem hesitação, que, no tocante (designadamente) à fundamentação da imputação subjetiva das infrações, a mesma não é, de modo algum, efetuada, pois que refere apenas [
verifica-se a ocorrência de atuação dolosa, sob a modalidade de dolo eventual
»].
DDD. Ou seja, o que a entidade administrativa refere unicamente na decisão condenatória é que os arguidos agiram com dolo eventual, e a interpretar normativos legais que ela (entidade das contas) entende que encerram em si mesma um conceito de razoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes, que como já ficou dito, não tem qualquer enquadramento na lei sancionatória que nos tem ocupado neste processo.
EEE. A decisão condenatória, que faz referência à alegada infração, toda ela insuficientemente delimitada, e dai inferindo que o arguido PS, pessoa coletiva agiu com dolo (eventual), sem sequer ouvir em declarações os responsáveis e representantes legais do partido arguido, vai um grande passo.
FFF. Aliás, nem as putativas vantagens para o Partido ou para a campanha, advenientes das alegadas infrações são demonstradas, como o não são os intuitos obscuros dos responsáveis partidários, ao procederem como procederam.
GGG. Quanto a esta matéria remetemos para os ensinamentos dos jurisconsultos Germano Marques da Silva e Figueiredo Dias, transcritos supra artigos 66.º a 71.º HHH. Concluindo-se que, a doutrina hoje dominante conceitualiza o dolo, na formulação mais geral, como o conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo, sendo o conhecimento e momento intelectual e a vontade o momento volitivo de realização do facto.
III. Da decisão condenatória da ECFP, não consta (mesmo em termos simplificados, mas próximos de uma acusação penal) o relato dos factos que possam integrar o dolo ou a negligência da pessoa coletiva aqui arguido, não bastando invocar uma série de normas, e criar, assim, um novo conceito de atuação segundo a razoabilidade ou descritivo incompleto ou incompletudes, para daí inferir a existência de dolo [ou até de negligência inconsciente].
JJJ. Ora, a decisão da autoridade administrativa deve conter os elementos essenciais para, caso haja impugnação judicial, valer como acusação, e, caso não haja, valer como decisão condenatória.
KKK. A decisão da autoridade administrativa ora em análise é manifestamente infundada, por ausência de descrição bastante de factos relevantes para a incriminação.
LLL. Esta decisão da autoridade administrativa, ao não enunciar os referidos factos, é nula, de acordo com o disposto nos artigos 58.º n.º 1, alínea b) do RGCO, 374.º n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do C. P. Penal (estes aplicáveis ex vi do artigo 41.º n.º 1, do referido RGCO).
MMM. A falta de indicação daqueles factos constitui, ela própria também, falta de fundamentação da decisão da autoridade administrativa, tal como exigido na parte final da alínea c) do n.º 1 desse mesmo preceito legal.
NNN. Nulidade que fica invocada para toda a decisão condenatória, e que o Tribunal Constitucional não deixará de conhecer.
OOO. Assim, só sendo punível o facto se praticado com dolo e não podendo concluir-se da matéria de facto apurada pela decisão agora em crise, pela sua verificação, a condenação não pode subsistir, impondo-se a absolvição dos arguidos, com o correspondente arquivamento liminar de todo o processado, sem mais delongas.
PPP. Errou a entidade das contas na apreciação dos factos que enquadra a infração, não tendo apreciado a defesa apresentada pelo arguido, ou se a apreciou fez tábua rasa das notas apresentadas e que comprovam o erro em lavrou a ECFP ao condenar os arguidos nos termos constantes na acusação aqui em crise.
QQQ. Assim, e como já afirmado quanto aos pontos 5. a 5.4.8., onde a ECFP invoca existir uma insuficiente demonstração da razoabilidade das despesas, e refere:
“… apurou-se a falta de demonstração da razoabilidade das despesas… documentação de suporte se apresenta incompleto…, … incompletudes… impossibilitou a comparação dos bens/serviços em causa com os valores correntes de mercado…”.
RRR. Uma vez que e conforme referido, a comparação de preços de bens ou serviços utilizados na campanha eleitoral com a tabela indicativa (“lista indicativa#, diz o artigo 20.º n.º 2 alínea a) da Lei 2/2005 de 10 de janeiro) emitida pela ECFP pode inferir em situações não comparáveis:
A Tabela emitida pela ECFP, como o próprio título indica, é meramente indicativa;
Foi elaborada, supostamente, com base em preços médios de meios de campanha e propaganda política não se sabendo se esses preços médios cobrem todas as zonas do país (em termos de aquisição, instalação e utilização, o que pode justificar diferenças consideráveis) e todos os tipos de variantes dentro de cada meio de propaganda:
-Dentro de cada categoria de meios pode existir uma grande variedade quer quanto a materiais de que são feitos, quer quanto a dimensões, quer quanto ao seu estado de conservação ou período de vida útil já decorrido;
-Não contempla diferenciação de preços por zonas do país nem em função de quantidades adjudicadas.
SSS. Conforme referido, os valores reais apresentados foram efetivamente os preços contratados com os fornecedores, tendo havido sempre a preocupação de aplicar o melhor possível os recursos da campanha, até porque estão em causa verbas provenientes do erário público, que deveria ser sempre umas das preocupações das campanhas eleitorais.
TTT. Tem o Partido Socialista com vários fornecedores uma relação comercial e operacional com alguns anos, a qual aliás tem vindo a cultivar e a desenvolver, numa lógica de outsourcing, e a dimensão de várias campanhas permite economias de escala, conseguindo-se assim melhores preços. Mal seria se o PS não procurasse usar na negociação esses fatores diferenciadores, que reforçam a sua eficácia e permitem um uso mais eficiente dos recursos disponíveis.
UUU. O PS e seu Mandatário Financeiro desenvolveram um aturado processo de negociação de condições e de preços com os fornecedores, que redundou nas contratações efetuadas.
VVV. Essas contratações foram feitas a valores totalmente fundamentados e transparentes, que o PS e o seu orçamento de campanha podiam perfeitamente comportar, como se pode verificar comparando os valores unitários em causa com o custo global da campanha.
WWW. O que redundou, no final do processo, numa nova vitória eleitoral do PS, o que reforça a correção e a proporcionalidade das medidas organizativas e contratuais assumidas e dos meios financeiros empenhados.
XXX. Os preços praticados pelos fornecedores do PS resultam da própria dimensão de campanha do Partido Socialista, mas também da capacidade negocial, da exigência e dos objetivos de contenção de custos que o PS e o seu Mandatário erigiram em orientação política interna, o que não pode nunca ser motivo para censura ou descrédito.
YYY. Convém ainda, referir que é com estranheza que os ora arguidos verifica na afirmação da ECFP documentação de suporte se apresenta incompleto ou insuficientemente uma vez que, foi junta ao relatório toda a documentação pertinente, como seja, deliberações, orçamentos, notas de encomenda, contratos de prestação de serviços e faturas/recibos.
ZZZ. Ademais, é bastante óbvio que os serviços que apelam a uma especial qualificação técnico política como a realização de serviços de consultadoria de comunicação, consultadoria económica, consultadoria no âmbito da campanha eleitoral, filmagens, estudo gráficos, não podem deixar de ser adjudicados em função da qualificação e preparação das empresas prestadoras de serviços ou dos elementos que, em concreto, se propõem afetar à realização dos trabalhos em apreço (cf. descrito supra em sede de alegações).
AAAA. Todos os casos invocados, são serviços tecnicamente especializados, prestados com autonomia funcional e garantia de resultados concretos, identificados contratualmente, o que apela a conhecimento do ofício e das particularidades de campanha eleitoral, o que não é tão comum como se pensa encontrar disponível no mercado.
BBBB. O acompanhamento de uma campanha eleitoral pressupõe um elevado grau de interação e de confiança pessoal, política e profissional entre os responsáveis políticos e os encarregados das tarefas técnicas e logísticas, o que não pode ser negligenciado e deve ser requerido e valorizado na altura da escolha das partes contratantes.
CCCC. Não é demais insistir, que é obrigação de qualquer Partido Político dentro do que for comportável pelo Orçamento da campanha, selecionar fornecedores experimentados, fiáveis e com grande capacidade executiva, com os quais existam rotinas (standards) de trabalho conjunto, de modo a evitar a todo o custo qualquer falha operacional que seria irremediável e teria graves implicações políticas e eleitorais.
DDDD. Mesmo assim, nestas eleições (e em todas, de resto) e nos casos aludidos, o PS desenvolveu um aturado processo de negociação de condições e de preços com os fornecedores, que redundou nas contratações efetuadas, fazendo nos últimos anos dessa boa capacidade de negociação e gestão financeira, aliás, um forte e eficaz argumento politicoeleitoral.
EEEE. Sendo que, apesar disso, essas contratações foram feitas a valores que o PS e o seu orçamento de campanha podiam perfeitamente comportar, como se pode verificar comparando os valores unitários em causa com um custo global da campanha.
FFFF. Os preços praticados pelos fornecedores do PS resultam da própria dimensão de campanha do Partido Socialista, mas também da capacidade negocial e dos objetivos de contenção de custos que o Partido erigiu em orientação política interna.
GGGG. Assim e face ao descrito supra, e prestadas, como julgamos ter sucedido, toda a informação pertinente ao cabal esclarecimento do caso, devem as presentes infrações ser devidamente arquivadas, sem mais diligências adicionais.
HHHH. Pelo que, entendem os ora arguidos que andou mal a ECFP ao decidir pela aplicação de sanção de coima ao Partido Socialista e ao seu Mandatário Financeiro.
»6-A ECFP deliberou, em 17 de janeiro de 2025, sustentar a decisão impugnada, nos termos do n.º 4 do artigo 46.º da LEC, após o que remeteu os autos ao Tribunal Constitucional.
7-Recebidos os autos no Tribunal Constitucional, foi proferido despacho, datado de 23 de janeiro de 2025, pelo qual se admitiu liminarmente o recurso interposto.
8-O Ministério Público pronunciou-se, nos termos do artigo 103.º-A, n.º 1, da LTC, no sentido de ser regularizado o mandato do recorrente HUGO FILIPE XAMBRE BENTO PEREIRA e, no mais, ser negado provimento ao recurso.
9-Notificados, os recorrentes não apresentaram resposta, limitando-se a regularizar o mandato quanto ao recorrente HUGO FILIPE XAMBRE BENTO PEREIRA, juntando procuração forense e ratificando o processado.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação A. Considerações gerais 10-A Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, veio alterar, entre outras, a LFP e a LEC, introduzindo profundas modificações no regime de apreciação e fiscalização das contas dos partidos políticos e no regime de aplicação das respetivas coimas.
Considerando que os presentes autos se iniciaram após a data de entrada em vigor desta lei-20 de abril de 2018 (artigo 10.º), tal regime é-lhes aplicável, nos termos da norma transitória do artigo 7.º da referida Lei Orgânica.
A respeito do novo regime legal, quer quanto à competência de fiscalização, quer quanto ao regime processual, foram desenvolvidas algumas considerações no Acórdão 421/2020 (acessível, assim como os demais acórdãos adiante citados, a partir da hiperligação http:
//www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), para o qual se remete, salientando-se aqui que a alteração mais significativa diz respeito à competência para apreciar a regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, bem como aplicar as respetivas coimas que, até abril de 2018, pertencia ao Tribunal Constitucional e passou agora a ser atribuída à ECFP (artigos 9.º, n.º 1, alínea d), da LEC, e 24.º, n.º 1, da LFP).
Assim, nos termos do novo regime legal, cabe ao Plenário do Tribunal Constitucional apreciar, em recurso de plena jurisdição, as decisões daquela Entidade em matéria de regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, incluindo as decisões de aplicação de coimas (artigo 9.º, alínea e), da LTC).
No referido Acórdão 421/2020 esclareceu-se ainda, relativamente à competência do Tribunal em matéria de regularidade e legalidade das contas, que a apreciação deverá obedecer a critérios de legalidade, centrados na ordem de valores que o regime de financiamento dos partidos pretende tutelar, não se resumindo a uma aplicação mecânica de critérios de natureza estritamente financeira e contabilística (v., entre outros, os Acórdãos n.os 979/1996 e 563/2006).
B. Questões a decidir 11-Em face do teor da motivação, as questões a decidir a respeito do recurso da decisão sancionatória da ECFP, datada de 3 de dezembro de 2024, são as seguintes:
a) Questão prévia:
nulidade da decisão recorrida; nulidade da decisão recorrida;
b) Subsunção dos factos dados como provados ao tipo de ilícito imputado;
c) Imputação subjetiva dos factos a título doloso;
d) Medida concreta das coimas.
C. Mérito da decisão sancionatória 12-Nulidade da decisão recorrida Os recorrentes invocaram a nulidade da decisão administrativa recorrida, fazendo assentar tal pretensão, essencialmente, em duas ordens de razões.
Em primeiro lugar, sustentam que embora a decisão recorrida refira que nas contas apresentadas foram registadas
várias despesas de campanha (...), cujo descritivo da respetiva documentação de suporte se apresenta incompleto uma vez que o Partido não disponibilizou os detalhes necessários, impossibilitando aferir a razoabilidade do seu valor face aos valores de mercado indicados na Listagem 5/2017
», da norma incriminatória invocada em tal decisão (a do artigo 31.º, n.º 1, da LFP, por referência ao artigo 12 n.os 1 e 2, ex vi artigo 15.º, n.º 1, ambos da LFP) não resulta que razoabilidade está em causa, nem tal é esclarecido na decisão recorrida. No entender dos recorrentes, tal comprova a inexistência de determinabilidade do tipo legal, uma vez que é ininteligível qual ou quais os valores lesados, o que afeta o princípio da legalidade. Concluem, por isso, que nem na decisão
que deu origem aos presentes autos de contraordenação, nem agora através da acusação aqui sob recurso, é feita prova da alegada infração
», pelo que
a acusação agora notificada ao arguido
» é nula (v. pontos F. a M. das conclusões). Consideram ainda os recorrentes que a decisão ora impugnada padece de erro na interpretação do artigo 12.º da LFPaplicável ex vi artigo 15.º do mesmo diploma-, uma vez que de tal preceito não se extrai qual a razoabilidade (ou falta dela) das despesas registadas nas contas apresentadas, que permita aplicar a coima ora em causa. Invocam, por isso, a inexistência da infração descrita, sustentando que a matéria de facto invocada na decisão recorrida não tem um mínimo acolhimento na lei sancionatória invocada, razão pela qual entendem que a decisão condenatória é nula por violação dos princípios da legalidade e da tipicidade, previstos nos artigos 29.º, n.º 1, e 165.º, n.º 1, alínea c), ambos da Constituição (v. pontos T. a KK. das conclusões).Em segundo lugar, consideram os recorrentes que
os factos que sustentam a presente condenação em relação a todas as infrações são insuficientes ou inadequados para concluir pela existência de qualquer infração contraordenacional
», uma vez que, na sua perspetiva, tal decisão se encontra viciada
pela ausência de uma concreta factualidade sinalizadora do (alegado) comportamento infrator do arguido
», razão pela qual conclui também pela nulidade da
acusação ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 41.º, n.º 1, do DL 433/82 e alínea b) n.º 3 artigo 283.º do CPP
»(v. pontos N. a S. das conclusões).
Por outro lado, depois de tecerem diversas considerações sobre a falta, no auto de notícia e, posteriormente, na decisão recorrida, do relato dos factos que possam integrar o dolo ou a negligência dos arguidos, sustentam que tal decisão é manifestamente infundada, por ausência de descrição bastante de factos relevantes para a incriminação e que, ao não enunciar os referidos factos, a decisão é nula, de acordo com o disposto nos artigos 58.º, n.º 1, alínea b), do RGCO, 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPP, aplicáveis ex vi artigo 41.º, n.º 1, do referido RGCO (v. pontos LL. a LLL. das conclusões).
Cabe apreciar.
12.1-Conforme decorre das razões em que faz assentar a invocada nulidade da decisão recorrida, os recorrentes consideram que o artigo 12.º da LFP (aplicável, in casu, por força do artigo 15.º do mesmo diploma legal), pela sua indeterminabilidade, viola os princípios da legalidade e da tipicidade.
A questão que se coloca passa por saber se, na ausência de explícita definição de um dever positivo de discriminação ou comprovação devida das receitas e despesas da campanha eleitoral, está assegurada a determinabilidade do tipo infracional imputado.
O problema, colocado nestes termos, convoca, como ponto prévio, uma tomada de posição acerca da extensão do princípio da tipicidade ao domínio contraordenacional. Recorde-se, a este propósito, que o Tribunal Constitucional tem afirmado que a exigência de determinabilidade dos tipos é menor no direito contraordenacional do que no plano criminal (v. Acórdão 41/2004), argumentando-se que
[a] exigência da determinabilidade na definição dos deveres impostos aos administrados que podem ser sancionados administrativamente não impede o recurso a conceitos indeterminados. [...] Daqui resulta que os tipos contraordenacionais podem revestir maior maleabilidade, desde que acautelem a determinabilidade objetiva das condutas proibidas. Certo é que não se encontra afastada a possibilidade de recurso a conceitos indeterminados, desde que a sua utilização não obste à determinabilidade objetiva da conduta proibida
»(v. Acórdão 231/2020).
Sobre a concreta questão de determinabilidade trazida pelos recorrentes, importa notar que, da letra do artigo 12.º, da LFP, resulta um dever estrito de discriminar e comprovar as despesas e as receitas de campanha, conforme se extrai de forma inequívoca das alíneas b) e c) do n.º 3 daquele normativo, aplicável ex vi do artigo 15.º da LFP. Em suma, no que ora particularmente releva, o comportamento que, nos termos do artigo 31.º, n.os 1 e 2, da LFP, é sancionado com coima é a falta de discriminação ou de comprovação devida das receitas e despesas da campanha eleitoral. Consequentemente, é por referência aos aludidos preceitos dos artigos 12.º, ex vi artigo 15.º, n.º 1, e 19.º, n.os 1 e 2, todos da LFP, que se materializa o elemento objetivo das contraordenações em causa. Através de tal interpretação conjugada, a descrição dos comportamentos sancionados como contraordenação-e a respetiva sançãoresultam objetivamente determináveis para os destinatários, não podendo considerar-se violado, nem o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, nem, desde logo por não ser aplicável em virtude de não estar em causa a matéria nele referida, o artigo 165.º, n.º 1, alínea c), do mesmo diploma.
Em suma, as apontadas normas não estão inquinadas por ambiguidade, imprecisão ou vagueza na descrição dos comportamentos cuja violação constitui ilícito contraordenacional, razão pela qual não se verifica a apontada indeterminabilidade dos comportamentos puníveis, tanto mais que a conduta em causa nestes autos não diz respeito à conformidade legal das despesas face aos valores de mercado, mas à completude da informação constante da respetiva documentação de suporte.
Resta, assim, concluir pela improcedência, nesta parte, do pedido impugnatório.
12.2-Os arguidos invocam ainda a nulidade da decisão recorrida por considerarem que a mesma se encontra viciada pela ausência de factos que consubstanciem a imputação objetiva e subjetiva da infração pela qual foram condenados, designadamente no que respeita à descrição dos factos correspondentes aos elementos típicos da infração, conforme exigido pelo artigo 58.º do RGCO, vício que, sustentam, se verificava já no auto de notícia.
Conforme referido, os recorrentes fazem assentar a nulidade ora em apreciação, por um lado, numa alegada insuficiência de factos para concluir pela existência de qualquer infração contraordenacional, designadamente no que respeita à verificação do elemento subjetivo, considerando que a decisão recorrida se encontra viciada
pela ausência de uma concreta factualidade sinalizadora do (alegado) comportamento infrator do arguido
». Por outro lado, entendem que tal decisão é manifestamente infundada, por ausência de descrição bastante de factos relevantes para o preenchimento do tipo.
Desde logo, no que concerne ao invocado vício atinente à omissão dos factos integradores do tipo subjetivo do ilícito contraordenacional no auto de notícia, importa ter presente a jurisprudência firmada quanto a esta matéria e que aqui encontra direta aplicação. Com efeito, o Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, publicado no Diário da República, 1.ª série A, de 25 de janeiro de 2003, fixou jurisprudência nos seguintes termos:
Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contraordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contraordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa
».
Daqui decorre que o vício invocado pelos recorrentes, a verificar-se, sempre consubstanciaria uma nulidade relativa e, consequentemente, sanável, pois somente arguível no prazo de 10 dias sobre a notificação, perante a própria administração ou, no âmbito judicial, no ato da impugnação.
Porém, conclui ainda o citado aresto que
se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada (artigos 121.º, n.º 1, alínea c, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações).
»Compulsados os autos, verifica-se que, por ofício datado de 24 de março de 2022, os arguidos foram notificados do teor do auto de notícia, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 44.º, n.os 1 e 2, da LEC e no artigo 50.º do RGCO, sem que hajam suscitado nenhum vício no referido prazo legal de 10 dias.
Acresce que, não obstante o tenham feito na impugnação judicial da decisão final condenatória proferida pela autoridade administrativa, os arguidos não se limitaram a invocar a referida nulidade, antes vindo impugnar expressamente a matéria de facto integradora do elemento objetivo e subjetivo das infrações em causa que consta da decisão recorrida (v. pontos 83. a 113. das alegações de recurso).
Em face do exposto, sempre o putativo vício se encontraria sanado, pelo que improcede também este fundamento.
No mais, quanto à invocada nulidade da decisão com idêntico fundamento, cumpre sublinhar que o plano dos vícios intrínsecos de um determinado ato processualneste caso, da decisão administrativa sancionatórianão se confunde com o plano do respetivo mérito, designadamente no que respeita ao acerto das operações de qualificação e subsunção indispensáveis para a recondução dos factos ao tipo contraordenacional. A eventual invalidade da decisão administrativa ora impugnada coloca-se no primeiro dos planos enunciados, verificando-se quando esta não contenha factos que permitam sequer efetuar ou sindicar o juízo de tipicidade. Assim, a decisão de aplicação de uma coima, carecendo dos elementos referidos no artigo 58.º do RGCO, estará suficientemente fundamentada desde que se mostrem justificadas as razões pelas quais é aplicada determinada sanção ao(s) arguido(s), de modo que este(s), tomando conhecimento da decisão, possa(m) compreender, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais se tomou a decisão condenatória e, consequentemente, esteja(m) em condições de impugnar tais fundamentos.
Por conseguinte, não assiste razão aos recorrentes quando defendem que a decisão recorrida não se encontra suficientemente fundamentada. Conforme resulta da leitura da decisão, é manifesto que da mesma consta a descrição da matéria factual suficiente para julgar a causa, pois foram dados como provados factos atinentes ao tipo objetivo (v., em especial, os pontos 4. e 5. dos factos provados na decisão recorrida) e ao tipo subjetivo do ilícito imputado (v. os pontos 6. e 7. dos factos provados), bem como factos relevantes para a graduação da medida das coimas a aplicar. É igualmente manifesto que a decisão impugnada se encontra fundamentada, quer no que respeita às razões pelas quais se consideraram provados os factos pertinentes, quer no que respeita à recondução dos mesmos às normas jurídicas tidas por relevantes.
Não resulta, pois, da alegação dos recorrentes, qualquer fundamento para a arguição de nulidade da decisão recorrida, a qual improcede.
13-Matéria de facto
13.1-Factos provados
Com relevo para a decisão, provou-se que:
1-O PS é um Partido Político português, constituído a 1 de fevereiro de 1975, cuja atividade se encontra registada junto do Tribunal Constitucional.
2-O PS apresentou listas de candidatos à eleição para a Assembleia da República, realizada a 6 de outubro de 2019.
3-O Partido Socialista constitui Hugo Filipe Xambre Bento Pereira como mandatário financeiro das contas da referida campanha.
4-O PS apresentou, em 24 de fevereiro de 2020, as respetivas contas relativas à campanha eleitoral mencionada no ponto 2., tendo, no dia 8 de outubro de 2020, complementado as mesmas.
5-O PS registou, nas contas apresentadas, as seguintes despesas de campanha:
5.1-Faturas emitidas pelo fornecedor “Sdad. de las Indias Eletrónicas S. Coop”, cujo descritivo não detalha o valor unitário/hora e o número de pessoas a laborar na equipa:
5.1.1-Fatura n.º 029/19, emitida em 5 de outubro de 2019, no valor total de €11.250,00, com o descritivo:
“Serviços faturados:
Apoio estratégico e organizativo em termos de intervenção nas redes sociais, Subtotal:
11.250 €, I.V.A. (+0 %-Intercomunitário):
0,00€, Total factura:
11.250,00€”
;
5.1.2-Fatura n.º 015/19, emitida em 05 de junho de 2019, no valor total de €11.250,00, com o descritivo:
“Serviços faturados:
Apoio estratégico e organizativo em termos de intervenção nas redes sociais, Subtotal:
11.250 €, I.V.A. (+0 %-Intercomunitário):
0,00€, Total factura:
11.250,00 €”
;
5.1.3-Fatura n.º 019/19, emitida em 05 de julho de 2019, no valor total de €11.250,00, com o descritivo:
“Serviços faturados:
Apoio estratégico e organizativo em termos de intervenção nas redes sociais por conta de campanha designada por PS Legislativas 2019, Subtotal:
11.250 €, I.V.A. (+0 %-Intercomunitário):
0,00€, Total factura:
11.250,00 €”
;
5.1.4-Fatura n.º 024/19, emitida em 05 de agosto de 2019, no valor total de €11.250,00, com o descritivo:
“Serviços faturados:
Apoio estratégico e organizativo em termos de intervenção nas redes sociais por conta de campanha designada por PS Legislativas 2019., Subtotal:
11.250 €, I.V.A.(+0 %-Intercomunitário):
0,00€, Total factura:
11.250,00 €”
;
5.1.5-Fatura n.º 027/19, emitida em 05 de setembro de 2019, no valor total de €11.250,00, com o descritivo:
“Serviços faturados:
Apoio estratégico e organizativo em termos de intervenção nas redes sociais por conta de campanha designada por PS Legislativas 2019., Subtotal:
11.250 €, I.V.A. (+0 %-Intercomunitário):
0,00€, Total factura:
11.250,00 €”
;
5.2-Fatura n.º A/545/2019, emitida pelo fornecedor “Som ao Vivo, Sociedade Unipessoal, L.da”, em 11 de setembro de 2019, no valor total de €19.459,00, com o descritivo:
“Aluguer montagem, desmontagem e Ass. Técnica de Equipamentos audiovisuais, palco e estruturas para a reentré nacional em Machico, no dia 31/8/2019, Quant.:
1.00 UN, Preço Unit.:
15.950,00, IVA:
22.0, VI.Liq.:
15.950,00”, cujo descritivo não detalha os meios utilizados e respetivos valores unitários.
5.3-Faturas emitidas pelo fornecedor “AVK-Soluções Audiovisuais, S. A. ”, cujo descritivo da documentação de suporte apresentada não detalha o valor unitário de cada meio:
5.3.1-Fatura n.º FA 2019/894, emitida em 24 de junho de 2019, no valor total de €7.484,55, com o descritivo:
“Descrição:
Serviço audiovisual realizado dia 22 de Junho, em Faro e Lisboa, no âmbito da Convenção do PS (serviço de transmissão via Skype entre Faro e a Sede do PS, em Lisboa), Qtd.:
1.00, Un.:
UN, Pr. Unitário:
6 085,00, IVA:
23,00, Total Líquido:
6.085,00”
;
5.3.2-Fatura n.º FA 2019/932, emitida em 28 de junho de 2019, no valor total de €7.730,55, com o descritivo:
“Descrição:
Serviço audiovisual realizado dia 29 de Junho, em Portalegre e Lisboa, no âmbito da Convenção do PSPS Legislativas 2019 (serviço de transmissão via Skype entre Portalegre e a Sede do PS, em Lisboa), Qtd.:
1.00, Un.:
UN, Pr. Unitário:
6 285,00, IVA:
23,00, Total Líquido:
6.285.00”
;
5.3.3-Fatura n.º FA 2019/1046, emitida em 26 de julho de 2019, no valor total de €7.173,36, com o descritivo “Descrição-Serviços audiovisuais para eleições PS 2019, realizado dia 25 de Julho no Palácio das Galveias, Qtd.:
1.00, Un.:
UN, Pr. Unitário:
5 832,00, IVA:
23,00, Total Líquido:
5.832,00”
;
5.3.4-Fatura n.º FA 2019/1159, emitida em 11 de setembro de 2019, no valor total de €282.900,00, com o descritivo “Descrição:
Serviços audiovisuais realizados de 7 de Setembro a 4 de Outubro, em vários locais, em Portugal Continental, no âmbito dos Comícios do Partido SocialistaEleições Legislativas 2019, Qtd.:
1.00, Un.:
UN, Pr. Unitário:
230.000,00, IVA:
23,00, Total Líquido:
230.000,00”
;
5.3.5-Fatura n.º FA 2019/1329, emitida em 07 de outubro de 2019, no valor total de €11.680,08, com o descritivo “Descrição:
Serviços audiovisuais realizados no âmbito da Noite Eleitoral Legislativas 2019, no dia 6 de outubro 2019, no Hotel AltisLisboa Prop. 2075/19, Qtd.:
1.00, Un.:
UN, Pr. Unitário:
9 496,00, IVA:
23,00, Total Liquido:
9.496.00”
;
5.4-Faturas emitidas pelo fornecedor “AEDIS-Assessoria e Estudos de Imagem, L.da”, cujo descritivo da documentação de suporte não detalha o valor unitário:
5.4.1-Fatura n.º FA 2019/57, emitida em 11 de setembro de 2019, no valor total de €84.735,00, com o descritivo “Descrição:
Partido SocialistaLegislativas de 2019 N/orçamento n.º 313/2019, Artigo 004, Descrição:
Produção de ações de campanha para as legislativas de 2019, 35 % do valor do Orçamento, Qtd.:
1, Un.:
UN, Pr. Unitário:
68 890,24, Desc.:
0,00, IVA:
23,00, Valor:
68 890,24, Os serviços fatur. foram disponibiliz.ao adquir.na data da fatura (N.º 5-alínea F do artigo 36.º do CIVA) NIB:
0033 0000 4521 6243 1900 5”
;
5.4.2-Fatura n.º FA 2019/58, emitida em 11 de setembro de 2019, no valor total de €84.735,00, com o descritivo “Descrição:
Partido SocialistaLegislativas de 2019 N/orçamento n.º 313/2019, Artigo 004, Descrição:
Produção de ações de campanha para as legislativas de 2019, 35 % do valor do Orçamento, Qtd.:
1, Un.:
UN, Pr. Unitário:
68 890,24, Desc.:
0,00, IVA:
23,00, Valor 68 890,24, Os serviços. fatur. foram disponibiliz.ao adquir.na data da fatura (N.º5-alínea F do artigo 36.º do CIVA) NIB:
0033 0000 4521 6243 1900 5”
;
5.4.3-Fatura n.º FA 2019/61, emitida em 05 de outubro de 2019, no valor total de €72.630,00, com o descritivo “Descrição:
Partido SocialistaLegislativas de 2019 N/orçamento n.º 313/2019, Artigo:
004, Produção de ações de campanha para as legislativas de 2019, 30 % do valor do Orçamento, Qtd.:
1, Un.:
UN Pr. Unitário:
59 048,78, Desc.:
0,00, IVA:
23,00, Valor:
59 048,78, Os serviços fatur. foram disponibiliz.ao adquir.na data da fatura (N.º5-alínea F do artigo 36.º do CIVA), NIB:
0033 0000 4521 6243 1900 5”
;
5.4.4-Fatura n.º FA 2019/59, emitida em 11 de setembro de 2019, no valor total de €16.000,00, com o descritivo:
“Descrição Partido SocialistaLegislativas de 2019 N/orçamento n.º 308/2019, Artigo:
004, Descrição:
Produção de ações de campanha para as legislativas de 2019, 50 % do valor do Orçamento, Qtd. 1, Un.:
UN, Pr. Unitário:
13 008,13, Desc.:
0,00, IVA 23,00, Valor 13 008,13, Os serviços fatur. foram disponibiliz.ao adquir.na data da fatura (N.º5-alínea F do artigo 36.º do CIVA) NIB:
0033 0000 4521 6243 1900 5”
;
5.4.5-Fatura n.º FA 2019/62, emitida em 05 de outubro de 2019, no valor total de €16.000,00, com o descritivo:
“Descrição Partido SocialistaLegislativas de 2019 N/orçamento n.º 308/2019, Artigo:
004, Descrição:
Produção de ações de campanha para as legislativas de 2019, 50 % do valor do Orçamento, Qtd. 1, Un.:
UN,Pr. Unitário:
13 008,13, Desc.:
0,00, IVA:
23,00, Valor:
13 008,13,, Os serviços fatur. foram disponibiliz.ao adquir.na data da fatura (N.º 5-alínea F do artigo 36.º do CIVA) NIB:
0033 0000 4521 6243 1900 5”
;
5.4.6-Fatura n.º FA 2019/46, emitida em 01 de julho de 2019, no valor total de €86.592,00, com o descritivo:
“ORÇAMENTO AE_073_06_2019, LEGISLTIVAS DE 2019, Convenções Regionais, 4 Convenções a realizar em Viseu, Faro, Portalegre e Braga, Auditório, Desigualdades, Artigo 004, GE, Qtd.:
4, Un.:
UN, Pr.Unitário:
3 450,00, Desc.:
0,00, IVA:
23,00, Valor 13 800,00, Descrição:
1 púlpito, 2 micros, 2 mesas altas POT brancas, 5 bancos altos, 1 mesa de apoio em acrílico, 2 caixas de luz com 450X250, 1 Backdrop para caixa de luz 450X250, 1 backdrop blackout para caixa de luz, 3 estrados, ledwall, 1-200X100+1-100X100+1-100X0.50,20X2 mt alcatifa branca, Artigo:
004, Descrição:
AVK, Qtd.:
4, Un.:
UN, Pr.Unitário:
8 500,00, Desc.:
0,00, IVA 23,00, Valor 34 000,00, Descrição:
1 sistema de som, 10 micros, 2 púlpitos, 2 mesas, 2 lapela, 2 head set, 2 s/fios, 4 caixas Boxe para OCS, 1 Ledwall com 350X250, 1 régie e todos os equipamentos inerentes ao Ledwall, 1 sistema de luz para palco, Artigo 004, Descrição:
SALAS-4, Qtd. 4, Un.:
UN, Pr.Unitário:
5 650,00, Desc.:
0,00, IVA 23,00, Valor 22 600,00, GE., Descrição:
4 sistemas de som, 8 micros, 4 de mesa+4 s/sios, 4 gravadores, 4 cartões de memória, 4 boxes ocs, 4 plasmas de 75”, 4 pc portáteis, 4 apontadores, 4 totens 50X180, sinalética. Os serviços fatur. foram disponibiliz.ao adquir.na data da fatura (N.º 5-alínea F do artigo 36.º do CIVA) NIB:
0033 0000 4521 6243 1900 5.”.
6-Ao agirem conforme descrito em 5.2. dos factos provados, registando despesas cujos documentos de suporte (faturas e documentos complementares) não discriminam os meios utilizados, os Arguidos representaram como possível que nas contas apresentadas não constava a discriminação e comprovação de todas as despesas da campanha eleitoral e, conformando-se com essa possibilidade, apresentaram as contas nessas condições.
7-Os Arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e contraordenacionalmente sancionável, tendo agido livre, voluntária e conscientemente.
8-O Partido Socialista registou, nas contas referidas em 4., receitas no valor de €2.588.002,55, e despesas no valor de €2.954.729,99.
9-O PS recebeu subvenção pública para a campanha eleitoral relativa à eleição mencionada no ponto 2., no valor de €2.378.445,66.
10-Nas contas de 2023, o PS registou:
10.1-No Balanço:
um total do ativo de €11.441.219,57, um total do fundo de capital €876.876,54 e um total do passivo de €10.564.343,03.
10.2-Na demonstração dos resultados:
um resultado líquido do período no valor de €1.545.038,43.
11-O PS recebeu de subvenção anual pública, no ano de 2023, o montante de €7.374.923,99.
12-No âmbito dos presentes autos, os Arguidos prestaram informação, através de documentos fornecidos pelos fornecedores SOM AO VIVO, AVK e AEDIS, acerca dos valores individuais dos bens e serviços constantes das faturas indicadas supra, respeitantes a cada um destes fornecedores, bem como uma cópia do trabalho desenvolvido pelo fornecedor Sociedad. de las Indias, concretamente:
12.1-Os Arguidos juntaram um documento do fornecedor “Som ao Vivo, Sociedade Unipessoal, L.da” no qual consta informação de todos os meios fornecidos, da descrição desses meios, dos seus valores unitários e do valor total da fatura n.º A/545/2019.
12.2-Os Arguidos juntaram seis documentos do fornecedor “AVK-Soluções Audiovisuais, S. A. “ com informação quanto à descrição de todos os meio fornecidos, a quantidade de meios fornecidos, valor por item e valor unitário dos meios constantes das faturas FA 2019/894, FA 2019/932, FA 2019/1046, FA 2019/1159 e FA 2019/1329.
12.3-Os Arguidos juntaram três documentos do fornecedor “AEDIS-Assessoria e Estudos de Imagem, L.da” os quais discriminam todos os meios fornecidos, as suas quantidades e os valores unitários dos meios constantes das faturas FA 2019/46, FA 2019/57, FA 2019/62, FA 2019/58, FA 2019/61, FA 2019/59 e FA 2019/62.
12.4-Os Arguidos juntaram um documento do fornecedor “Sdad. de las Indias Eletrónicas S. Coop”, com o título “Resumo Executivo das Conclusões ~ Integração de equipes e processos de estratégia e comunicação de redes” e datado de março de 2019.
13.2-Factos não provados
Com relevância para a decisão, não se provou que:
1-Ao agirem conforme descrito em 5.1, 5.3 e 5.4. dos factos provados, os Arguidos representaram como possível que nas contas apresentadas não constava a discriminação e comprovação de todas as despesas da campanha eleitoral e, conformando-se com essa possibilidade, apresentaram as contas nessas condições.
13.3-Motivação da decisão sobre a matéria de facto
A decisão sobre a matéria de facto resulta da análise conjugada da prova documental junta aos autos, das regras da experiência e de inferências lógicas.
Para a prova da factualidade elencada no ponto 1. dos factos provados foi considerado o teor da publicação existente no sítio público da internet do Tribunal Constitucional-http:
//www.tribunalconstitucional.pt/tc/partidos.html, da qual a mesma se extrai.
A prova dos factos constantes do ponto 2. dos factos provados resulta do teor do Mapa Oficial 9-A/2019, publicado no Diário da República n.º 203, 1.ª série de 22 de outubro de 2019.
A prova do facto constante do ponto 3. dos factos provados resulta de fls. 5, 6 e 8 do PA 1/AR/19/2019 (doravante designado somente por
PA
»), documentos nos quais vem identificada a identidade do mandatário financeiro.
A prova do facto constante do ponto 4. dos factos provados decorre do teor de fls. 17 a 209, 217 e 218 do PA, documentos dos quais resulta a apresentação das contas de campanha pelo PS.
Quanto à factualidade indicada no ponto 5.1. dos factos provados, foi valorado o teor da demonstração dos resultados de fls. 22 conjugado com Mapa total de despesas de fls. 40 e os Mapas M6 de fls. 41 e 42 do PA, M9 de fls. 50, 54, 59, 60, 61, 64, 68, bem assim das faturas de fls. 22 a 26 do volume I do Anexo II, da nota de encomenda e do contrato de prestação de serviços de fls. 28 a 34, do volume I, do Anexo II do PA, de cuja análise a mesma se extrai.
A prova dos factos identificados no ponto 5.2. dos factos provados adveio do teor da demonstração dos resultados de fls. 22 conjugado com o Mapa M9 de fls. 68 do PA e bem assim da fatura de fls. 44 e nota de encomenda de fls. 45 do Volume I, do Anexo II do PA.
A prova dos factos identificados no ponto 5.3. dos factos provados adveio do teor da demonstração dos resultados de fls. 22 conjugado com o Mapas M9 de fls. 59 e 61 do PA e bem assim das faturas, das propostas e das notas de encomenda de fls. 46 a 75 do Volume I, do Anexo II do PA.
A prova dos factos identificados no ponto 5.4. dos factos provados adveio do teor da demonstração dos resultados de fls. 22 conjugado com os Mapas M9 de fls. 50, 54, 60 e 64 do PA e bem assim das faturas, propostas e notas de encomenda de fls. 76 a 100 do Volume I, do Anexo II do PA.
A atuação dolosa dos arguidos dada como provada no ponto 6. dos factos provados − que consiste na atuação com conhecimento de que daí pode resultar, como consequência, o facto punível, e conformando-se o agente com tal possibilidade −, resulta, no que concerne à conduta dada como provada no ponto 5.2 dos factos provados, perfeitamente demonstrada na matéria de facto, de acordo com as regras da experiência e inferências lógicas, daí se extraindo que representaram como possível o resultado da sua conduta e conformaram-se com essa possibilidade.
Desde logo, já no Relatório da ECFP de fls. 497 a 513 do PA, emitido ainda no âmbito do procedimento administrativo relativo à apreciação das contas aqui em apreço, se identificava a situação sob análise. Apesar de notificados desse mesmo Relatório, sendo concedido prazo para se pronunciarem ou retificarem as contas no decurso da fase administrativa, os arguidos não o fizeram adequadamente quanto às despesas elencadas no ponto 5.2 dos factos provados. Ademais, só aquando da apresentação da defesa no âmbito dos presentes autos é que os recorrentes diligenciaram pela junção de documentação complementar.
Por outro lado, a factualidade apurada por prova direta permite inferir, de forma segura, que os recorrentes tinham conhecimento das obrigações contabilísticas que sobre si impendiam, da punibilidade da sua violação e de que a factualidade vertida no ponto 5.2 infringia tais deveres, tendo-se conformado com tal possibilidade. De facto, estando em causa a ausência de documentação que permita uma adequada contabilização e comprovação de despesas de campanha com fornecedores, não é crível que os arguidos não tenham representado a possibilidade de a documentação apresentada ser irregular ou incompleta, e se terem conformado com esse facto, ou que desconhecessem a exigência legal de discriminação e comprovação das despesas, bem como a necessária conciliação com a documentação de suporte. Não só constitui a mais relevante obrigação em matéria de prestação de contas, como não estamos sequer perante matéria que reclame particulares conhecimentos contabilísticos ou de índole técnica equivalente.
Quanto à consciência da ilicitude, constante do ponto 7. dos factos provados, refere a decisão recorrida que os arguidos sabiam que as condutas praticadas eram proibidas e sancionáveis como contraordenação, tendo agido livre, voluntária e conscientemente. Vêm indicadas, na motivação da decisão da matéria de facto, as razões para tal juízo, devendo recordar-se que, também aqui, a prova destes factos se faz por via indireta, repousando nas regras da experiência comum e processos inferenciais, designadamente de natureza abdutiva. Ora, resulta da globalidade da prova produzida que o Partido e o seu mandatário financeiro efetivamente exerceram aquelas funções, tendo, além do mais, apresentado as contas de campanharegistando, discriminando e comprovando as demais receitas e despesasem moldes que demonstram o conhecimento daqueles mesmos deveres específicos que sobre si impendiam nesta matéria. Conclui-se, pois, que a prova da consciência da ilicitude resulta da matéria objetiva dada como provada, de acordo com as regras da experiência comum e de inferências lógicas.
A prova da matéria indicada no ponto 8. dos factos provados adveio da demonstração de resultados de fls. 22 conjugado com o teor de fls. 30 e 40, todas do PA.
A prova dos factos identificados no ponto 9. dos factos provados extrai-se do teor do ofício da Assembleia da República de fls. 211 a 213.
A prova da factualidade constante dos pontos 10. dos factos provados extrai-se do Balanço consolidado e demonstração dos resultados, que integram as contas relativas ao ano de 2023, apresentadas pelo PS e que se encontram publicitadas no “site” da ECFP https:
//www.tribunalconstitucional.pt/tc/file/CA23_PS..pdf?src=1&mid=8236&bid=6960.
A prova da factualidade constante do ponto 11. dos factos provados extrai-se do conteúdo do Ofício n.º 0525/XV/SG, de 28 de fevereiro de 2024, da Assembleia da República, junto a fls. 52 e 53.
Por fim, para prova do ponto 12. dos factos provados, foi valorado o teor dos documentos remetidos em anexo à defesa apresentada no âmbito dos presentes autos, constantes de fls. 33 a 51 do processo principal.
No que respeita à factualidade não provada sob o ponto 1. dos factos não provados, respeitante às condutas descritas nos pontos 5.1., 5.3. e 5.4. dos factos provados, a razão de ser do juízo é a circunstância de tal factualidade, pelas razões assinaladas na fundamentação da matéria de direito, não permitir imputar nenhuma infração; assim não faria sentido (a não ser por erro do próprio, que aqui não é plausível) dar como provado que os arguidos tinham consciência dessa inexistente infração. É certo que, na razão de ordem de uma decisão judicial, a apreciação jurídica, nomeadamente quanto ao preenchimento do tipo objetivo, é posterior ao julgamento da matéria de facto, pelo que se trata aqui da antecipação de uma conclusão ainda por obter. Sucede que a atribuição a um agente de um conteúdo mental representativo de um estado de coisas que consiste na divergência entre a sua conduta e um parâmetro-o elemento intelectual do dolo numa infração de dever − pressupõe logicamente, senão um juízo de ilicitude objetiva, pelo menos a verosimilhança desta. Isto é particularmente evidente quando a prova do elemento subjetivo do tipo se baseia em primeira linha, como é o caso das infrações que incidem sobre a violação de deveres funcionais, em presunções judiciais estabelecidas a partir de regras da experiência acerca da conduta e as atitudes dos portadores do estatuto relevante. Há, pois, uma certa e inevitável desarmonia entre a ordem expositiva e a ordem judicativa do processo decisório, atento o figurino linear da primeira e circular da última, desarmonia essa que é reveladora da conhecida aporia metodológica da dicotomia convencional entre questão-de-facto e questão-de-direito.
14-Matéria de direito
14.1-Considerações gerais
Nos termos do artigo 28.º, n.º 1, da LFP,
os infratores das regras respeitantes ao financiamento dos Partidos e das campanhas eleitorais previstas nos capítulos II e III ficam sujeitos às sanções previstas nos números e artigos seguintes
», sendo que os n.os 2 a 4 do artigo 28.º impõem penas e os artigos 29.º a 32.º impõem coimas, restringindo-se a competência do Tribunal Constitucional à aplicação destas, nos termos previstos no artigo 33.º, n.º 1, do mesmo diploma.
Como se salientou no recente Acórdão 509/2023, decorre do cotejo entre as normas dos artigos 30.º a 32.º da LFPos especialmente relevantes em matéria de contas de campanha eleitoral-e o regime jurídico traçado no seu capítulo III, que existe uma dicotomia fundamental no universo das infrações passíveis de sanção contraordenacional no âmbito das campanhas eleitorais. Temos, por um lado, infrações materiais, estas relativas ao financiamento das campanhas eleitorais propriamente dito, que se traduzem na obtenção de receitas para a campanha eleitoral por formas não consentidas pela lei, designadamente receitas não enquadráveis no artigo 16.º do mesmo diploma, ou na realização de despesas sem justificação legal, mormente por não dizerem respeito à campanha eleitoral ou que excedam os limites previstos no artigo 20.º Temos, por outro lado, infrações formais, que dizem respeito à inobservância do dever de prestação de contas e, no âmbito destas, do dever de tratar contabilisticamente as despesas e receitas da campanha de acordo com as diretrizes do artigo 12.º da LFP, aplicável ex vi do artigo 15.º do mesmo diploma, de tal forma que essa representação contabilística viabilize a sindicância material das receitas percebidas e das despesas realizadas.
Atendendo ao conteúdo dos tipos contraordenacionais dos artigos 30.º a 32.º da LFP, são passíveis de sancionamento com coima em matéria de financiamento e organização das contas das campanhas eleitorais as seguintes condutas (v. o Acórdão 98/2016, § 6.2.):
a) O recebimento, por parte dos partidos políticos, de receitas para a campanha eleitoral através de formas não consentidas pela LFPartigo 30.º, n.º 1, ab initio;
b) A violação, por parte dos partidos políticos, dos limites máximos de despesas de campanha eleitoral fixados no artigo 20.º da LFPartigo 30.º, n.º 1, in fine;
c) A inobservância, por parte de pessoas singulares, pessoas coletivas e respetivos administradores, das regras de financiamento de campanha eleitoral previstas no artigo 16.º da LFPartigo 30.º, n.os 2 a 4;
d) A ausência ou insuficiência de discriminação ou comprovação das receitas e despesas da campanha eleitoral, por parte dos partidos políticos, mandatários financeiros, candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista e primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitoresartigo 31.º da LFP;
e) A inobservância do dever de entrega das contas discriminadas da campanha eleitoral ao Tribunal Constitucional, nos termos previstos no artigo 27.º da Lei 19/2003, por parte dos partidos políticos, mandatários financeiros, candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista e primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitoresartigo 32.º, n.os 1 e 2, da LFP.
Como se afirmou no Acórdão 405/2009, a contraposição entre infrações materiais − as descritas nas alíneas a) a c) − e infrações formais − as descritas nas alíneas d) e e) −
tem por base um critério segundo o qual, enquanto as primeiras dizem respeito à inobservância do regime das despesas e das receitas em sentido estritoou seja, do conjunto das regras a que se subordina a respectiva realização e de cujo cumprimento depende a regularidade de cada acto (cf. arts.16.º, n.º 3, 19.º, n.º 3, e 20.º da Lei 19/2003)-, as segundas reportam-se à desconsideração do regime de tratamento das despesas e receitas realizadasisto é, do conjunto das regras que dispõem sobre a incidência contabilística dos actos já realizados (cf. art. 12.º, ex vi do art. 15.º, n.º 1, 16.º, n.º 2, e 19.º, n.º 2, da Lei 19/2003)
».
Importa extrair os corolários desta dicotomia.
Em primeiro lugar-e como se salientou no citado Acórdão 405/2009-, releva para a determinação do momento em que deverá considerar-se praticado o facto típico e, nessa medida, para todos os efeitos jurídicos que dependam desse elemento, como sejam a determinação da lei temporalmente aplicável e a contagem do prazo de prescrição.
Em segundo lugar, dela se extrai que ambas as categorias de infrações são, pela sua distinta natureza, mutuamente irredutíveis e cumuláveis. Irredutíveis no sentido em que, embora as infrações formais tenham uma natureza instrumental face às materiais, dado que as exigências contabilísticas impostas às campanhas eleitorais visam possibilitar um adequado escrutínio do cumprimento das regras substantivas sobre o regime das despesas e das receitas em sentido estrito, não se implicam, nem se excluem, mutuamente. O que vale por dizer que o cometimento de uma infração material não implica logicamente o cometimento de uma infração formal (nada obsta a que, por exemplo, a perceção de uma receita não permitida por lei esteja devidamente comprovada e discriminada nas contas da campanha), nem o seu contrário (por exemplo, a falta ou insuficiência da discriminação ou de comprovação contabilística de uma determinada receita nas contas da campanha não implica, por si só, que essa receita seja materialmente ilícitaainda que dificulte tal avaliação). Cumuláveis no sentido em que, relativamente ao mesmo facto, ambas as infrações podem coexistir e ser imputadas ao mesmo sujeito a título de concurso efetivo (por exemplo, nada obsta a que a perceção de uma receita proibida por lei seja objeto de uma representação contabilística deficiente, visando precisamente ocultar a sua ilicitude material).
14.2-Imputação aos recorrentes
14.2.1-Da contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.º 1, da LFP
O artigo 31.º, sob a epígrafe
[n]ão discriminação de receitas e de despesas
», prevê no seu n.º 1 que
[o]s mandatários financeiros, os candidatos às eleições presidenciais, os primeiros candidatos de cada lista e os primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores que não discriminem ou não comprovem devidamente as receitas e despesas da campanha eleitoral são punidos com coima mínima no valor do IAS e máxima no valor de 80 vezes o valor do IAS
».
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito,
[o]s partidos políticos que cometam a infração prevista no número anterior são punidos com coima mínima no valor de 10 vezes o valor do IAS e máxima no valor de 200 vezes o valor do IAS
».
Nesse sentido, o artigo 15.º da LFP determina que as receitas e despesas da campanha eleitoral constam de contas próprias, as quais devem obedecer ao regime do artigo 12.º do mesmo diploma, onde se estabelece um conjunto de regras e deveres contabilísticos.
Contudo, nem toda e qualquer violação desses deveres releva para o tipo contraordenacional previsto no artigo 31.º, n.º 1, da LFP. O Tribunal tem reiteradamente sublinhado que
não há uma correspondência perfeita entre os deveres que o Capítulo III da Lei 19/2003 impõe às candidaturas e as coimas previstas nos artigos 30.º a 32.º, existindo, inclusivamente, deveres cujo incumprimento não é sancionado com coima
»(Acórdão 98/2016). Só releva a inobservância de deveres que se traduza em não discriminação ou não comprovação devida das despesas e receitas da campanha eleitoral. A primeira constitui a omissão, incompletude ou imprecisão na descrição do facto sujeito a contabilização. A segunda constitui a ausência ou insuficiência da titulação ou suporte dos factos sujeitos a contabilização e que sustentam a sua inclusão numa dada conta (v. o Acórdão 509/2023).
No caso vertente, a decisão recorrida reconduziu um único núcleo factual ao tipo de infração previsto no artigo 31.º, n.os 1 e 2, da LFP, isto é, o registo de despesas tituladas por documentos de suporte incompletos.
14.2.1.1-A imputação em causa nos autos diz respeito à factualidade constante do ponto 5. dos factos provados. Segundo a decisão recorrida, a incompletude das faturas ali identificadas determina a impossibilidade de se aferir a razoabilidade dos preços dos bens, por ausência de informações quanto ao valor unitário/hora e o número de pessoas a colaborar na equipa (v. ponto 5.1. dos factos provados), e quanto ao valor unitário de cada meio (v. pontos 5.2. a 5.4. dos factos provados), consubstanciando uma violação do disposto no artigo 12.º, n.os 1 e 2, aplicável ex vi do artigo 15.º, todos da LFP.
Vejamos.
No plano da representação contabilística ao qual devem obedecer as receitas e despesas da campanha eleitoral, nos termos do artigo 12.º, n.º 2, da LFP, aplicável ex vi do disposto no artigo 15.º, n.º 1, do mesmo diploma, a forma como são faturadas e contabilizadas as despesas tem de permitir a aferição da sua conformidade legal.
Ora, o índice dos preços de mercado que operam como parâmetro de regularidade das despesas efetuadas é constituído pela listagem mencionada nos artigos 24.º, n.º 5, da LFP, e 9.º, n.º 2, da LEC. No caso vertente, trata-se da Listagem 5/2017 (publicada no Diário da República n.º 79/2017, Série II, de 21 de abril, e retificada pela Declaração de Retificação n.º 355/2017, de 31 de maio).
Aí estão previstos diversos intervalos de custos com os principais meios de campanha e de propaganda política, nomeadamente em virtude da sua duração, formato, qualidade e quantidade. Ora, a ausência de descrição completa desses elementos, para os itens indicados, impede que se proceda à comparação pertinente, dado que o mercado disponibiliza variedade significativa de meios, razão pela qual a Listagem 5/2017 contempla múltiplos intervalos de preços neste domínio.
Assim, a exigência de discriminação das faturas é condição necessária da formulação de um juízo acerca da conformidade dos preços de aquisição do bem com os preços de mercado aplicáveis, já que só mediante uma adequada e completa discriminação dos bens e serviços a que respeitam as despesas (identificando devidamente a sua natureza, qualidade e quantidade) será possível à ECFP verificar, designadamente:
(i) se se trata de bens e serviços incluídos na Listagem 5/2017 e, nesse caso, aferir se os respetivos valores se situam dentro dos limites aí previstos; ou (ii) se as despesas respeitam a bens e serviços não incluídos na Listagem referida, caso em que compete à ECFP demonstrar a sua eventual desconformidade legal.
A título de enquadramento geral relativo ao tipo contraordenacional previsto no artigo 31.º, n.os 1 e 2, da LFP, justifica-se reiterar o que se escreveu no recente Acórdão 509/2023:
Nos Acórdãos n.os 756/2020 e 758/2020, a propósito do tipo contraordenacional previsto no artigo 31.º, n.º 1, da LFP, ensaiou-se uma tipologia das situações relevantes, com o seguinte teor:
Num primeiro grupo (a), incluiremos as despesas tituladas por faturas que não permitem identificar a natureza, qualidade ou quantidade daquilo que se pagou. São estas, verdadeiramente, as faturas incompletas.
Num segundo grupo (b), estão as despesas que representam gastos relativos a bens e serviços incluídos na Listagem 38/2013, cujos valores se situam dentro dos limites máximo e mínimo aqui estabelecidos.
Num terceiro grupo (c), incluímos as despesas que representam gastos relativos a bens e serviços incluídos na Listagem, cujos valores se situam fora dos limites estabelecidos nesta.
No último grupo (d), estão as despesas relativas a bens e serviços não incluídos na Listagem referida.
Tentaremos agora classificar as [...] faturas [...] num dos quatro grupos. A ideia subjacente é a de encontrar um critério justo e equitativo de repartição do ónus da prova da fatura irregular.
Assim:
-as faturas do grupo (a) são consideradas irregulares enquanto instrumento de titulação de despesas de campanha;
-as faturas do grupo (b) são consideradas regulares;
-as faturas do grupo (c) são consideradas irregulares, salvo se o partido ou coligação concorrente tiver demonstrado cabalmente a razão de ser do desvio, ou este não seja significativo;
-relativamente às faturas do grupo (d) que discriminem clara e precisamente o que é que foi pago, cabia à ECFP demonstrar que os respetivos montantes carecem de credibilidade, por excessivamente elevados ou demasiado reduzidos, quando confrontados com os valores de mercado; não tendo sido feita tal demonstração, as faturas serão consideradas regulares.
Sublinhe-se, relativamente a estas últimas faturas, que a ECFP poderá tentar obviar a esta consequência simplesmente atualizando e mantendo atualizada a Listagemque já tinha dois anos à data das eleições-, e que não inclui prestações de serviços hoje comuns nas campanhas eleitorais. Não tendo procedido à atualizaçãoque porventura conviria fazer anualmentepor que razão há de o ónus da demonstração da razoabilidade da despesa recair sobre as candidaturas?
»Esta tetrapartição, que visa distribuir os casos concretos por quatro grupos definidos em função das combinações possíveis das diversas variantes relevantes-a natureza do bem ou serviço adquirido, o preço de aquisição praticado, o preço de mercado tal como definido na Listagem, a completude da titulação contabilística dessa operação, etc.-, deve ser cruzada com a já referida dicotomia, há muito consolidada na jurisprudência do Tribunal Constitucional, das infrações materiais e infrações formais, para que possamos ter um quadro classificatório mais perfeito, que habilite o correto enquadramento jurídico das situações submetidas a juízo.
Em boa verdade-e deixando de parte o grupo b), que não suscita problemas de conformidade legal-, verifica-se uma diferença estrutural entre os casos do grupo a) e os dos grupos c) e d). No primeiro, o que está em causa é uma verdadeira irregularidade da fatura, uma irregularidade formal, na medida em que o documento que titula a operação efetuada, pela sua incompletude ou imperfeição, não permite
identificar a natureza, qualidade ou quantidade daquilo que se pagou
»− designadamente, não permite apurar se o que foi adquirido podia ou não ser licitamente adquirido pelo preço praticado. É essa, aliás, como se vincou anteriormente, a função instrumental das exigências contabilísticas impostas às campanhas eleitorais:
existe como forma de representar com fidedignidade a atividade realizada pelas campanhas eleitorais, com o intuito de viabilizar o escrutínio da conformidade legal das receitas e despesas das campanhas eleitorais.
Já nos casos do grupo c), em rigor, não existe irregularidade da fatura, uma vez que esta titula adequadamente o bem ou serviço que foi adquirido e o preço por que foi adquirido, permitindo
identificar a natureza, qualidade ou quantidade daquilo que se pagou
». A aquisição de um bem ou serviço por um preço que divirja do preço de mercado não é primariamente um problema de representação contabilística de uma operação, mas um problema da admissibilidade material da própria operação. Nesse sentido, a apresentação de razões que visem ilidir a presunção estabelecida pelos intervalos de valores constantes da lista de referênciaessa natureza ilidível ou meramente
indicativa
», como resulta dos artigos 20.º, n.º 2, alínea a) e 21.º, n.º 1, alínea a), da LEC, tem sido reiteradamente afirmada pelo Tribunal (cf. Acórdão 625/2022, § 11.1.)-ou mostrar que, embora divergente dos valores de mercado gerais, as concretas circunstâncias de uma dada aquisição justificavam o preço praticado, não visa regularizar a fatura, antes visa demonstrar a licitude do próprio ato aquisitivo ou dispositivo − designadamente mostrando, nos casos de aquisição por preço inferior ao de mercado, que não representa uma forma oculta de financiamento por parte da entidade vendedora, e nos casos de aquisição por preço superior ao de mercado, que ela não representa uma forma oculta de financiamento por parte da entidade adquirente. Note-se, aliás, que, tal como se salientou acima, a LFP consagra, no seu artigo 8.º, uma norma proibitiva de cariz material relativa a determinadas formas de financiamento, onde avultam, tanto a proibição expressa de
[a]dquirir bens ou serviços a preços inferiores aos praticados no mercado
», como a de
[r]eceber pagamentos de bens ou serviços por si prestados por preços manifestamente superiores ao respetivo valor de mercado
»-alíneas b) e c) do n.º 2.
Finalmente, no grupo d) a situação é estruturalmente equivalente aos casos do grupo c):
não está em causa um problema de irregularidade da fatura ou do documento que titule uma dada operação, tal que impossibilite ou dificulte a ação de
identificar a natureza, qualidade ou quantidade daquilo que se pagou
»(ainda que essa hipótese também seja equacionável), mas de admissibilidade da própria operação. Em primeiro lugar, porque se reporta a bem ou serviço não incluído na Listagem e, por isso, suscetível de dúvida sobre a respetiva qualificação como despesa de campanha eleitoral, atenta a noção que dela se dá no artigo 19.º, n.º 1, da LFPpor definição, os bens e serviços enumerados na Listagem são meios de campanha eleitoral (artigo 9.º, n.º 2, da LEC). Em segundo lugar, devendo ser considerada despesa de campanha eleitoral, está sujeita à proibição de divergência injustificada do preço de mercado. Sob este aspeto, a diferença relativamente ao grupo c) é que, tratando-se de meio não contemplado na lista de referência, inexiste um parâmetro de aferição previamente conhecido e mobilizável para o efeito, o que justifica que o juízo positivo sobre a divergência deva ser substancialmente mais exigente ao nível probatório, onerando de modo integral a ECFP.
».
No caso vertente, importa notar que não está em causacomo alegam os recorrentes-a falta de razoabilidade dos valores das despesas tituladas pelos documentos a que se refere o ponto 5. dos factos provados, mas a circunstância de, segundo a decisão recorrida, as faturas ali referidas não permitirem, por ausência de informações essenciais à determinação da natureza, qualidade e quantidade dos bens adquiridos, cotejar o respetivo preço com os preços de mercado aplicáveis.
14.2.1.2-No recurso apresentado, sustentam os arguidos, em primeira linha, que
quanto a estas despesas foi junta toda a documentação pertinente, como seja, deliberações, orçamentos, notas de encomenda, contratos de prestação de serviços e faturas/recibos (vide anexos 1 a 11 juntos em sede de resposta/esclarecimentos apresentados à ECFP e para os quais se remete)
»(v. ponto 86. das alegações de recurso).
Analisados os autos, verifica-se que os referidos documentos juntos pela defesa no PA foram efetivamente considerados na decisão recorrida, assim como serão na presente decisão para aferir da alegada incompletude da documentação de suporte, como se analisará infra.
Já quanto aos elementos documentais juntos com a defesa apresentada no decurso destes autos e relativa aos fornecedores “Sdad. de las Indias Eletrónicas S. Coop”, “Som ao Vivo, Sociedade Unipessoal, L.da”, “AVK-Soluções Audiovisuais, S. A. ” e “AEDIS-Assessoria e Estudos de Imagem, L.da”, não obstante considerados no ponto 12. dos factos provados, importa notar que à data da sua junção qualquer irregularidade era já insuscetível de sanação.
Conforme se vem reiterando na jurisprudência deste Tribunal (v. os Acórdãos n.os 361/2003, 423/2004, 874/2023, 14/2024), para o caso geral, a data da consumação das contraordenações por infração aos deveres formais de organização contabilística estabelecidos na LFPcomo é o caso da presentecorresponde ao termo final do prazo de entrega das contas partidárias. No caso vertente, no prazo máximo de sessenta dias após o pagamento integral da subvenção pública, por força do disposto nos artigos 35.º da LEC e 27.º, n.º 1, da LFP.
Assim, as correções que sejam realizadas em data posterior não obstam ao preenchimento do tipo contraordenacional, porque subsequentes à consumação da infração.
Contudo, o n.º 6 do artigo 27.º da LFP consagra uma importante exceção a tal regra, em matéria de contas de campanha. Naqueles casos em que, na apreciação a que a ECFP submete as contas apresentadas, forem detetadas incertezas ou irregularidades suscetíveis de sanação, deverá a candidatura ser notificada para as esclarecer ou regularizar, no prazo de 30 dias.
Caso o venham a fazer dentro do prazo fixado, a irregularidade, mesmo que previamente verificada, tem-se por eliminada, caso em que deixará de poder servir de base à imputação de responsabilidade contraordenacional. Com efeito, o Tribunal Constitucional tem uma jurisprudência clara sobre a relação que intercede entre as irregularidades que afetem as contas anuais dos partidos ou as contas de campanhas eleitorais e as contraordenações previstas na LFP e na LEC, no sentido de que a existência de infrações às regras que regem os financiamentos dos partidos políticos e das campanhas eleitorais constitui condição necessária da responsabilidade contraordenacional pelos delitos previstos na legislação sobre a matéria, dado que os tipos contraordenacionais estão construídos sobre a violação das regras de financiamento, aqui entendidas em sentido amplo, isto é, abrangendo a obtenção de receitas e a realização de despesas e sua contabilização. Ora, a partir do momento em que determinada irregularidade, ainda que verificada no momento da entrega das contas, é ulteriormente suprida por via de mecanismo expressamente previsto na lei para tal, deixa de poder fundar a imputação de responsabilidade contraordenacional, a qual se extingue, não podendo o procedimento tendente à sua efetivação ser iniciado ou, quando já o tenha sido, subsistir.
No caso em apreço e analisados os autos, verifica-se que, no decurso da instrução do processo PA 1/AR/19/2019, os arguidos foram notificados, por ofício de 13 de maio de 2021, do relatório de auditoria da ECFP a que alude o artigo 41.º, n.º 1, da LEC, para que, no prazo de 30 dias, sobre o mesmo se pronunciassem e prestassem os esclarecimentos tidos por convenientes. Nesse Relatório foi precisamente assinalado que
foram identificadas despesas de campanha cujos suportes documentais padecem de deficiências, em virtude de as descrições constantes das faturas serem insuficientes e, como tal, impeditivas de aferir da conformidade do valor de cada uma das despesas em causa com os valores constantes da Listagem 5/2017 e, em consequência, da sua razoabilidade
»-v. ponto 4.3 e anexo III-B do Relatório da ECFP, a fls. 497 a 513 do PA. Dado que, segundo o artigo 43.º, n.º 1, do mesmo diploma, é após as respostas dadas pelos partidos e tendo em consideração o respetivo teor e elementos que as acompanhem, que a ECFP profere a sua decisão final sobre a prestação das contas das campanhas eleitorais e sobre as irregularidades que as afetem, é de entender que a notificação de tal relatório vale como notificação para os efeitos do disposto no artigo 27.º, n.º 6, da LFP, no que a irregularidades sanáveis diz respeito.
Temos, assim, que só aquele seria o momento próprio para os recorrentes, querendo, apresentarem os elementos em falta e as contas devidamente regularizadas, como forma de sanar as apontadas irregularidades. Com efeito,
estando em causa possibilitar que a ECFP verifique as contas apresentadas, quaisquer elementos ou explicações adicionais devem ser facultados no âmbito do processo de prestação de contas, até à prolação da decisão em sede de procedimento administrativo que as aprecia
»-v. Acórdão 126/2022, o qual remete ainda para os Acórdãos n.os 43/2015 e 236/2021. Por conseguinte, qualquer esclarecimento ou retificação na prestação de contas de campanha só poderá relevar, para efeitos de apreciação da sua regularidade, se ocorrer na fase instrutória e em tempo útil, ou seja, no prazo que para tal for concedido nos termos previstos no referido artigo 27.º, n.º 6, da LFP − ou, no limite, até ao momento da decisão no âmbito do procedimento administrativo que aprecia a regularidade das contas, segundo o disposto no artigo 43.º da LEC.
Dito isto, o posterior exercício do contraditório que aos recorrentes foi concedido no processo contraordenacional, no decurso do prazo previsto no artigo 50.º do RGCO, conferiulhes a possibilidade deno exercício dos seus direitos fundamentais de audiência e defesa-se pronunciarem quanto às infrações que lhes eram imputadas e quanto ao projeto de decisão que sobre as mesmas recairia em caso de inexistência de impugnação, operando, com integral amplitude, todas as garantias de defesa e contraditório. No uso daqueles direitos cabia, além do mais, a faculdade de invocar eventuais invalidades formais do procedimento administrativo, impugnar a factualidade descrita no auto de notícia ou contraditar os elementos de prova que a sustentam, apresentar novos meios probatórios ou requerer a realização de diligências, alegar questões jurídicas relevantes para a boa decisão da causa ou tomar posição quanto às possíveis sanções aplicáveis. Mas tal direito de defesa, nesta fase processual, já não contemplava a possibilidade de demonstração da regularização das infrações em causa, a qual, por extemporânea, não é idónea a afastar a violação legal do procedimento de apresentação de contas.
Em suma, a circunstância de os recorrentes terem apresentado, no contexto do exercício do seu direito de defesa, a documentação complementar a que se refere o ponto 12. dos factos provados, não teve a virtualidade de suprir alguma irregularidade que se considere verificada.
14.2.1.3-Alegam ainda os arguidos que
os valores reais apresentados na faturação apresentada foram efetivamente os preços contratados com os fornecedores, tendo havido sempre a preocupação de aplicar o melhor possível os recursos da campanha, até porque estão em causa verbas provenientes do erário público
», sendo que
[t]em o Partido Socialista com vários fornecedores uma relação comercial e operacional com alguns anos, a qual aliás tem vindo a cultivar e a desenvolver, numa lógica de outsourcing, e a dimensão de várias campanhas permite economias de escala, conseguindo-se assim melhores preços
»(v. pontos 87. e 88. das alegações de recurso).
Ora, antes de mais e como já referido, a defesa apresentada pelos recorrentes labora em manifesto erro quanto ao fundamento da imputação contraordenacional em causa nos autos, visto não estar em causa a falta de razoabilidade dos preços contratados com os fornecedores, antes a suscetibilidade de aferir da sua conformidade legal através da informação constante da respetiva documentação de suporte.
Vejamos.
14.2.1.3.1-Analisadas as despesas respeitantes às faturas emitidas pelo fornecedor “Sdad. de las Indias Eletrónicas S. Coop”, verifica-se que as faturas n.º 029/19, 015/19, 019/19, 024/19 e 027/19 apresentam, como descritivo, o
Apoio estratégico e organizativo em termos de intervenção nas redes sociais
»(v. ponto 5.1. dos factos provados), fornecimentos efetuados com base no contrato de prestação de serviços de fls. 28 a 34 do Volume I, do Anexo II do PA.
A decisão recorrida considerou que tal documentação se encontra incompleta para efeitos de aferição e comparação com os preços de mercado por não se detalhar o valor unitário/hora e o número de pessoas a laborar na equipa.
A este propósito, alegam os recorrentes que
o PS recorreu a uma prestação de serviços de análise, planeamento, estratégia e desenvolvimento criativo da campanha nos novos canais, nomeadamente nas redes sociais, elaborado por uma empresa espanhola de grande prestígio e curriculum internacional, a Sociedad de Las índias Eletrónicas, com a qual discutiu exaustivamente os respetivos preços e condições, conseguindo uma relação preçoqualidade extremamente satisfatória, o que pode ser comprovado pela qualidade dos serviços prestados
»(v. ponto 100. das alegações de recurso).
Ora, analisada a documentação de suporte oportunamente apresentada, verifica-se que os arguidos procederam à junção do referido contrato de prestação de serviços do qual consta a descrição genérica dos serviços a prestar (v., em especial, a cláusula primeira) e a duração do contrato entre 23 de abril de 2019 e 6 de outubro de 2019, dia do ato eleitoral (v. cláusula sexta), do que resulta que o objeto desse mesmo serviço se traduziu em
[...] dinamizar a comunicação através das redes sociais e fortalecer as capacidades digitais do 1.º outorgante Partido Socialista, no desenvolvimento de novas dimensões na comunicação e na pesquisa e acompanhamento das redes sociais:
1-Monitorização e acompanhamento do tráfego de informação nas redes;
2-Resposta rápida perante inverdades propagadas nas redes sociais;
3-Criação de mecanismos de autodefesa e resiliências através das redes sociais;
4-Mecanismos e estratégias de contraataque.
5-Inovar na estratégia de comunicação e introduzir novos temas, sempre atuais.
6-Criar e ajustar mensagens por
nichos
» específicos.7-Detetar tendências comunicacionais por assuntos, acompanhar em tempo as mudanças comunicacionais, elaborar previsões e antecipar o desenvolvimento e difusão de temas fraturantes com impacto para o primeiro outorgante.
»A natureza do contrato em análise, que tem por objeto a definição e execução de uma estratégia de comunicação digital, nomeadamente através da gestão de conteúdos em redes sociais no contexto da atividade política do partido, apresenta especificidades que impedem ou tornam praticamente impossível, à partida e de acordo com os usos correntes do setor da comunicação institucional e política, a fixação de um valor unitário por hora de trabalho ou a determinação exata do número de profissionais envolvidos na equipa de execução. Com efeito, tratando-se de uma prestação de serviços marcada por um elevado grau de variabilidade (frequentemente determinada por fatores exógenos e imprevisíveis), afigura-se inexigível a definição do número de horas e a alocação de recursos humanos ou a decomposição desses parâmetros como método comparativo do preço suportado face aos valores de mercado, quando o mesmo é sindicável com base na análise da natureza e modalidades específicas dos serviços contratados, do período de duração do contrato e do valor acordado e pago pelo Partido, do que se conclui que a documentação de suporte das despesas elencadas no ponto 5.1. dos factos provados se afigura bastante para aferir, junto do mercado, da adequação e conformidade dos valores faturados.
14.2.1.3.2-Quanto às faturas emitidas pelo fornecedor “AVK-Soluções Audiovisuais, S. A. ”, verifica-se que as faturas n.os 2019/894, 2019/932, 2019/1046, 2019/1159 e 2019/1329, apresentam, como descritivo, a prestação de
Serviços audiovisuais
»(v. ponto 5.3. dos factos provados), tendo sido melhor identificados os meios utilizados nas propostas n.os 1451V002/2019, 1530V001/2019, 1673V001/2019, 1748V002/2019 e 2075V003/2019 (v. fls. 47 a 49, 52 a 54, 60, 61 e 68 a 73 do Volume I, do Anexo II do PA), sem, todavia, indicação do respetivo valor unitário desses meios.
A este propósito, alegam os arguidos que
o PS negociou um preço conjunto para uma série de eventos (standard) que, atendendo à grande dimensão e de acordo com as especificidades dos espaços e o seu formato, justificaram uma negociação específica, impossível de enquadrar nas listas de preços referenciais da ECFP
», encontrando-se os valores, contudo,
ajustados ao valor unitário, com as quantidades e valores unitários referentes aos diversos serviços descritos em cada fatura
»(v. pontos 90. e 91. das alegações de recurso).
Vista a referida documentação de suporte apresentada no PA, verifica-se que as faturas emitidas, quando conjugadas com as propostas e notas de encomenda com base nas quais foram emitidas, fornecem a informação que permite aferir quais os concretos meios utilizados na prestação dos referidos serviços audiovisuais e, nessa medida, realizar um estudo comparativo dos preços praticados, confrontando o preço global com referências de mercado para serviços de natureza e complexidade equivalentes, sem que se afigure exigível, em função da natureza do serviço contratado, a discriminação unitária dos preços dos meios técnicos envolvidos. Aliás, a natureza do serviço contratadoque constitui uma prestação integrada, dependente da articulação funcional entre diversos recursos humanos e técnicosjustifica a apresentação de uma proposta global, cujo valor reflete a complexidade logística, a disponibilidade e exigência técnica e os custos associados à operação como um todo, e não a soma meramente aritmética de elementos individualmente valorados. Assim, a ausência de decomposição do preço por unidade técnica não impede o estudo comparativo da proposta adjudicada, podendo esta ser feita por comparação com práticas correntes no setor, seja mediante análise de tabelas de preços de operadores similares ou de adjudicações anteriores, designadamente por parte da mesma entidade, para prestações equivalentes.
14.2.1.3.3-Por fim, relativamente às faturas emitidas pelo fornecedor “AEDIS-Assessoria e Estudos de Imagem, L.da” (v. ponto 5.4. dos factos provados), verifica-se que as faturas n.os FA 2019/46, FA 2019/57, FA 2019/58, FA 2019/61, FA 2019/59 e FA 2019/62 apresentam, como descritivo, a
Produção de ações de campanha para as legislativas de 2019
», serviços nos quais foram utilizados os meios melhor descritos no orçamento AE_073_06_2019 e nas propostas n.os 313/2019 e 308/2019 (v. fls. 80 a 84, 89, 91, 98 e 99 do Volume I, do Anexo II do PA).
Quanto a estas despesas, sustentam os recorrentes que
os valores estão ajustados ao valor unitário, com as quantidades e valores unitários referentes aos diversos serviços descritos em cada fatura
»(v. ponto 93. das alegações de recurso).
Ora, analisadas as faturas em causa, quando conjugadas com a documentação de suporte apresentada no PA, verifica-se que também estas permitiriam aferir quais os concretos meios utilizados na prestação dos serviços faturados e conduzir um estudo comparativo de mercado para determinar a conformidade legal dos preços praticados.
Por um lado:
(i) a fatura n.º FA 2019/57, emitida em 11 de setembro de 2019, no valor total de €84.735,00, apresenta o descritivo “Descrição:
Partido SocialistaLegislativas de 2019 N/orçamento n.º 313/2019, Artigo 004, Descrição:
Produção de ações de campanha para as legislativas de 2019, 35 % do valor do orçamento
»