Acórdão do Tribunal Constitucional 539/2024, de 16 de Setembro
- Corpo emitente: Tribunal Constitucional
- Fonte: Diário da República n.º 179/2024, Série I de 2024-09-16
- Data: 2024-09-16
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Sumário
Texto do documento
Processo 231/23
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional ("LTC"), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação, pelo Plenário, da constitucionalidade da norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (aprovado pela Lei 15/2002, de 22 de fevereiro, na redação dada pela Lei 118/2019, de 17 de setembro), segundo a qual, "nos tribunais administrativos, quando seja demandado o Estado ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a representação do Estado pelo Ministério Público é uma possibilidade, sendo a citação dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo".
De forma a legitimar o seu pedido, o requerente alega que tal norma foi julgada inconstitucional em mais de três casos concretos pelo Tribunal Constitucional. Por um lado, invoca que esse juízo de inconstitucionalidade foi proferido no Acórdão 857/2022 e posteriormente reafirmado nas Decisões Sumárias n.os 15/2023 e 16/2023. Acrescenta ainda que, para além destas decisões, foram igualmente proferidos os Acórdãos n.os 794/2022, 796/2022 e 876/2022, os quais, embora com formulações distintas, julgaram inconstitucionais interpretações normativas materialmente coincidentes com aquela que integra o objeto do pedido.
De acordo com o requerimento do Ministério Público, todas as decisões referidas transitaram em julgado.
2 - Foi notificada, nos termos conjugados do artigo 54.º e do n.º 3 do artigo 55.º da LTC, a Assembleia da República, na pessoa do respetivo Presidente e em representação do órgão autor da norma.
Na sequência dessa notificação, veio o Presidente da Assembleia da República oferecer o merecimento dos autos e juntar uma nota técnica sobre os trabalhos preparatórios conducentes à Lei 118/2019, de 17 de setembro, elaborada pelos serviços de apoio à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
3 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente, nos termos previstos no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II - Fundamentação
[A.] Pressupostos de cognição
4 - Importa determinar, em primeiro lugar, se estão preenchidos os pressupostos para que o Tribunal possa tomar conhecimento do objeto do pedido.
De acordo com o disposto no artigo 281.º, n.º 3, da Constituição, o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos. Este preceito é reproduzido, no essencial, pelo artigo 82.º da LTC, que determina pertencer a iniciativa a qualquer dos juízes do Tribunal Constitucional ou ao Ministério Público, devendo promover-se a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao Presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, previsto na mesma lei.
Não havendo dúvidas quanto à legitimidade do Ministério Público para formular o pedido sob apreciação, verifica-se também que a norma em causa foi, efetivamente, julgada inconstitucional, em sede de fiscalização concreta, em mais de três casos. Por um lado, a Segunda Secção deste Tribunal pronunciou-se pela inconstitucionalidade desta norma nos Acórdãos n.os 794/2022 e 796/2022, tendo posteriormente reiterado essas pronúncias nos Acórdãos n.os 876/2022, 112/2023 e 113/2023. Por outro lado, a Terceira Secção deste Tribunal julgou a mesma norma inconstitucional no Acórdão 857/2022, tendo posteriormente reiterado essa pronúncia nos Acórdãos n.os 92/2023 e 98/2023, assim como nas Decisões Sumárias n.os 15/2023 e 16/2023.
Apesar de a fundamentação subjacente aos juízos de inconstitucionalidade formulados pela Segunda e Terceira Secções não ter sido uniforme, todas as referidas decisões incidiram sobre interpretações normativas materialmente coincidentes, tendo o juízo de inconstitucionalidade sido proferido por violação do mesmo parâmetro - o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição.
Mostram-se, assim, preenchidos os pressupostos para que o Plenário aprecie a constitucionalidade da norma em apreço.
B. Do mérito
5 - Conforme relatado supra, o objeto do pedido é integrado pela norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos ("CPTA"), aprovado pela Lei 15/2002, de 22 de fevereiro, na redação dada pela Lei 118/2019, de 17 de setembro, segundo a qual, "nos tribunais administrativos, quando seja demandado o Estado ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a representação do Estado pelo Ministério Público é uma possibilidade, sendo a citação dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo".
Os preceitos em causa têm a seguinte redação:
"Artigo 11.º
Patrocínio judiciário e representação em juízo
1 - Nos tribunais administrativos é obrigatória a constituição de mandatário, nos termos previstos no Código do Processo Civil, podendo as entidades públicas fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado, solicitador ou licenciado em direito ou em solicitadoria com funções de apoio jurídico, sem prejuízo da possibilidade de representação do Estado pelo Ministério Público.
[...]"
"Artigo 25.º
Citações e notificações
[...]
4 - Quando seja demandado o Estado, ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a citação é dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo."
6 - Para a plena compreensão do sentido e alcance da solução normativa que decorre da alteração legislativa levada a cabo pela Lei 118/2019 é útil ter presente o essencial da evolução do regime legal relativo à representação processual do Estado pelo Ministério Público nos tribunais administrativos. Tal evolução foi traçada com particular detalhe no Acórdão 857/2022 (v. os n.os 9 a 14) em termos que serão de perto acompanhados nos pontos seguintes.
6.1 - Como houve oportunidade de observar no referido aresto, antes da entrada em vigor do CPTA, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ("ETAF") então vigente estabelecia amplamente que o "Ministério Público representa o Estado nas ações em que este for parte, nos termos da lei de processo administrativo" (v. o artigo 69.º, n.º 2, do ETAF, aprovado pelo Decreto-Lei 129/84, de 27 de abril, na redação conferida pela 129/84, de 27 de Abril e 374/84, de 29 de Novembro (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).">Lei 4/86, de 21 de março). Esta disposição, porém, pressupunha já uma importante limitação dos poderes de representação do Estado pelo Ministério Público, baseada na tradicional contraposição entre o recurso contencioso e o contencioso das ações: ao contrário das ações sobre contratos administrativos e de responsabilidade civil extracontratual em que o Estado figurasse como demandado, os recursos contenciosos de impugnação de atos administrativos não eram verdadeiras ações propostas contra o Estado (Mário Aroso de Almeida, “Principais alterações ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos introduzidas pela Lei 118/2019, de 17 de setembro”, e-Pública, vol. 6, n.º 3, dezembro de 2019 [pp. 16-30], disponível em https://www.e-publica.pt/volumes/v6n3a03.html, pp. 18-19), sendo aí conferidos diretamente poderes processuais "à autoridade recorrida" (v. o artigo 26.º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo Decreto-Lei 267/85, de 16 de julho). Já no âmbito das ações, o Estatuto do Ministério Público ("EMP") anteriormente em vigor (aprovado pela Lei 47/86, de 15 de outubro), passou a prever, na redação dada pela Lei 60/98, de 27 de agosto, que caberia aos departamentos de contencioso do Estado a "[a] representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais" (artigo 53.º, alínea a), do Estatuto, na redação indicada). Por sua vez, o Código de Procedimento e Processo Tributário, aprovado pelo Decreto-Lei 433/99, de 26 de outubro, atribuía competência "ao representante da Fazenda Pública junto nos tribunais tributários" para representar "a administração tributária e, nos termos da lei, quaisquer outras entidades públicas no processo judicial tributário e no processo de execução fiscal" (cf. a alínea a) do n.º 1 do artigo 15.º), não subsistindo assim qualquer dúvida de que esse domínio da defesa dos interesses patrimoniais do Estado, em regra, se encontrava subtraído ao âmbito de intervenção processual principal do Ministério Público como representante do Estado em juízo (sem prejuízo dos amplos poderes processuais conferidos a esta magistratura neste domínio).
No que diz respeito ao âmbito subjetivo da intervenção do Ministério Público, a representação do Estado era já substancialmente distinta da “representação” de outras pessoas coletivas públicas. Com efeito, embora o Estatuto anteriormente em vigor afirmasse, no artigo 3.º, n.º 1, alínea a), que competia "especialmente ao Ministério Público" representar "o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta", tendo nos processos em que representasse o Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais intervenção principal (cf. o artigo 5.º, n.º 1, alíneas a) e b) do referido EMP), a representação das autarquias locais e das regiões era, na verdade, meramente facultativa, já que se encontrava simultaneamente prevista no Estatuto a possibilidade de a intervenção principal do Ministério Público cessar "quando fo[sse] constituído mandatário próprio" por tais entidades (cf. o artigo 5.º, n.º 2, do Estatuto anteriormente vigente). Deste modo, a representação processual do Estado pelo Ministério Público era já claramente distinta da “representação” processual de outras pessoas coletivas públicas, sendo obrigatória no primeiro caso e facultativa no segundo. Como refere Manuel Pereira Augusto de Matos (“o Ministério Público e a representação do Estado na jurisdição administrativa - Anteprojeto de Revisão do Código do Procedimento dos Tribunais Administrativos”, in O Anteprojeto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em debate, coordenação de Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, AAFDL Editora, Lisboa, 2014 [pp. 245-268], p. 257):
"A representação do Estado-Administração pelo Ministério Público, seja qual for a qualificação jurídica que se lhe entenda atribuir, é obrigatória para o Ministério Público, ao contrário do que sucede com a representação a título de patrocínio judiciário de outras pessoas e entidades coletivas públicas exercido pelos agentes do Ministério Público que surge sempre como facultativo, cessando com a constituição de mandatário judicial próprio ou com a oposição à intervenção deduzida pelos representantes legais dos incapazes ou de ausentes (cf. artigo 5.º, n.os 2 e 3, do EMP)."
6.2 - A reforma do contencioso administrativo, concluída em 2002 com a aprovação do novo ETAF (pela Lei 13/2002, de 19 de fevereiro) e do CPTA (pela Lei 15/2002, de 22 de fevereiro), trouxe importantes novidades neste domínio. Para além de ter sido eliminada a figura do recurso contencioso - com consequente recondução dos meios processuais principais às formas de ação administrativa comum (artigo 37.º do CPTA, na sua redação original) ou de ação administrativa especial (artigo 46.º do CPTA, na sua redação original) -, a intervenção do Ministério Público no âmbito do contencioso administrativo de ações foi de certa forma reconfigurada, sobretudo tendo em conta o que dispunha a alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Estatuto então vigente.
Por um lado, o artigo 51.º do novo ETAF passou simplesmente a prever que "compete ao Ministério Público representar o Estado, defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público, exercendo, para o efeito, os poderes que a lei processual lhe confere", deixando de fora as regiões autónomas e as autarquias locais (referidas no artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do referido EMP). Por outro, o CPTA veio delimitar, de forma clara, o âmbito objetivo das competências atribuídas ao Ministério Público, ao estabelecer, no n.º 2 do artigo 11.º, que "as pessoas coletivas de direito público ou os ministérios podem ser representados em juízo por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito", "[s]em prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade".
Neste novo quadro legal, a distinção entre a representação do Estado pelo Ministério Público e a “representação” pelo Ministério Público de outras pessoas coletivas públicas tornou-se ainda mais clara. Como pode ler-se no Parecer 7/2014, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (publicado Diário da República, 2.ª série, n.º 126, de 3 de julho de 2014, p. 17295):
"A situação dos institutos públicos à luz do disposto no artigo 21.º, n.º 4, da LQIP, é equiparável à das regiões autónomas e das autarquias locais, uma vez que os institutos é que são citados, nas pessoas dos respetivos titulares máximos dos órgãos executivos (artigo 21.º, n.º 3, da LQIP), enquanto nas ações contra o Estado, este é citado na pessoa do procurador junto do tribunal competente. Por isso mesmo, o Estado não pode afastar essa representação pelo Ministério Público. Isto significa que no caso do Estado prevê-se uma verdadeira representação e, pelo contrário, no que se refere aos institutos públicos, não se trata de uma representação em sentido estrito, mas estes podem solicitar ao Ministério Público que as defenda, no quadro de um verdadeiro e próprio patrocínio judiciário. É por isso que a representação do Estado pelo Ministério Público não pode ser afastada pelos órgãos do Estado-administração, enquanto, pelo contrário, a representação da região autónoma ou da autarquia local cessa quando for constituído mandatário próprio, nos termos do n.º 2 do artigo 5.º do EMP."
Para além disso, e com maior relevância, a representação do Estado pelo Ministério Público no âmbito do contencioso administrativo ficou cingida aos processos que tivessem por objeto relações contratuais e de responsabilidade, em linha com o que dispunha a alínea a) do artigo 53.º do EMP então vigente.
6.3 - Este novo quadro legal viria a ser, no entanto, alterado pelo Decreto-Lei 214-G/2015, de 2 de outubro, através do qual se procedeu a uma nova e profunda reforma do contencioso administrativo, cuja relevância se não esgotou na fusão das ações comum e especial numa única forma processual, designada ação administrativa.
No que releva para o enquadramento da norma objeto do pedido, importa salientar que o artigo 11.º do CPTA, que continuou a versar sobre o "patrocínio judiciário e a representação em juízo", foi consideravelmente modificado, sobretudo no segmento correspondente à ressalva da representação do Estado pelo Ministério Público. Assim, onde antes constava "[s]em prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade", passou a constar, agora no n.º 2, "sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público". Em consequência desta alteração, o artigo 11.º do CPTA deixou de conter qualquer associação expressa entre a representação do Estado pelo Ministério Público e os "processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade". Tal alteração não foi, no entanto, acompanhada de qualquer modificação do EMP então vigente, em especial da alínea a) do seu artigo 53.º, o que levou a que se entendesse, tendo em conta o disposto no artigo 51.º do ETAF (também alterado pelo Decreto-Lei 214-G/2015), que ao Ministério Público fora cometida a representação do Estado na defesa dos seus interesses patrimoniais, "exercendo, para o efeito, os poderes que a lei lhe confere" (v. Ricardo Pedro, “Representação do Estado pelo Ministério Público no Código de Processo nos Tribunais Administrativos revisto: introdução a algumas questões”, in Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, coordenação de Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago Serrão, 3.ª edição, AAFDL Editora, Lisboa, 2017 [pp. 503-519], pp. 511-513).
Como se vê, as alterações introduzidas nos artigos 10.º e 11.º do CPTA pelo Decreto-Lei 214-G/2015 não originaram uma modificação substancial de regime em matéria de representação do Estado pelo Ministério Público, tendo ficado muito aquém do que fora proposto pela comissão de revisão do CPTA criada em 2012 (neste sentido, v. Mário Aroso de Almeida, loc. cit., p. 19). Daí que, pelo menos para os críticos da subsistência daquela função representativa, o aspeto mais relevante da reforma de 2015 tivesse acabado por residir na "oportunidade desperdiçada para reconfigurar, ou pelo menos aligeirar, a tradicional e para muitos anacrónica missão de representação do Estado" (aludindo a tal posição, v. Paulo Dias Neves, “Notas sobre a defesa da legalidade pelo Ministério Público no CPTA revisto”, in Comentários à revisão do ETAF e do CPTA, cit., [pp. 521-544], p. 521).
6.4 - Ao invés do regime acolhido no Decreto-Lei 214-G/2015, as alterações ao CPTA constantes do Anteprojeto apresentado pela comissão de revisão continham sinais claros de uma certa mudança de paradigma no âmbito da representação do Estado pelo Ministério Público. Nas palavras de Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2021, p. 131), o essencial dessa mudança consistia no seguinte:
"No exato propósito de possibilitar o patrocínio do Estado por mandatário judicial próprio nas ações que contra ele são propostas nos tribunais administrativos, a comissão de revisão do CPTA de 2015 tinha proposto uma redação para o n.º 3 deste artigo 11.º que dava resposta adequada à questão, de harmonia com as disposições transcritas, tanto do EMP, como do CPC [i.e., o artigo 9.º do EMP e o artigo 24.º do CPC]. A redação era a seguinte “Nas ações propostas contra o Estado em que o pedido principal tenha por objeto relações contratuais ou de responsabilidade, o Estado é representado pelo Ministério Público, sem prejuízo da possibilidade de patrocínio por advogado, mediante decisão devidamente fundamentada, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que aquele esteja constituído”.
Esta redação dava resposta adequada à questão porque partia do pressuposto da representação em juízo do Estado pelo Ministério Público para admitir que, nas ações propostas contra o Estado, este continuasse a ser citado na pessoa do representante do Ministério Público junto do tribunal em que a ação é proposta, mas admitia, por outro lado, tal como previsto no artigo 9.º, n.º 2, do EMP e a exemplo do previsto, para os tribunais judiciais, no artigo 24.º do CPC, que a intervenção principal do Ministério Público nessa ações poderia cessar se, entretanto, fosse constituído advogado." (itálico aditado)
Assim, de acordo com a proposta contida no Anteprojeto de revisão, no âmbito das ações que tivessem por objeto relações contratuais ou de responsabilidade, a representação do Estado pelo Ministério Público podia ser afastada mediante a constituição de mandatário judicial na pendência da ação. A citação do Estado para os termos da ação continuaria a ser feita na pessoa do procurador junto do Tribunal competente, prevendo-se, no entanto, que "a propositura da ação também fosse comunicada à Presidência do Conselho de Ministros para o efeito de esta poder proceder, sendo caso disso, à constituição de mandatário, fazendo, nesse caso, cessar a intervenção principal do Ministério Público" (idem, p. 209).
O regime proposto pela comissão de revisão de 2015 aproximava-se, no essencial, da solução adotada no âmbito do processo civil: à semelhança dos casos expressamente ressalvados pela lei processual civil desde a revisão de operada pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de dezembro - que alterou o n.º 1 do artigo 20.º do antigo Código de Processo Civil em termos que transitaram inalterados para o n.º 1 do artigo 24.º do novo Código -, a intervenção principal do Ministério Público, apesar de se impor ab initio no processo, cessaria assim que o Estado constituísse mandatário próprio. Porém, e ainda assim, com uma diferença assinável relativamente àquela: ao invés do que decorre ainda hoje do n.º 1 do artigo 24.º do Código de Processo Civil, a prerrogativa de constituição de mandatário próprio não se confinaria a um conjunto restrito de casos a delimitar subsequentemente através de lei especial, sendo antes conferida ao Estado para todas as ações propostas contra ele em que o pedido principal tivesse por objeto relações contratuais ou de responsabilidade, sendo aí exercida discricionariamente, ainda que através de decisão fundamentada, sem dependência da verificação de qualquer outro pressuposto ou requisito para além da condição de demandado em ação pertencente a alguma daquelas duas categorias.
6.5 - Depois de sucessivos avanços e recuos na (re)configuração do paradigma da intervenção principal do Ministério Público no âmbito do contencioso administrativo, a consagração da possibilidade de o Estado ser representado por mandatário judicial próprio - desde há muito reivindicada por parte da doutrina - veio a concretizar-se em 2019, tendo sido precedida da aprovação do novo EMP pela Lei 68/2019, de 27 de agosto, que importa referir aqui.
O elenco das competências - agora "atribuições" - do Ministério Público, que transitou para o artigo 4.º do novo EMP, passou a ser encabeçado pela defesa da legalidade democrática (alínea a) do n.º 1), seguindo-se a representação do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais, dos incapazes, dos incertos e dos ausentes em parte incerta (alínea b) do n.º 1), até então contemplada na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do anterior EMP. Em linha com esta aparente reordenação das funções do Ministério Público, com a representação do Estado a ceder o seu anterior lugar cimeiro à defesa da legalidade democrática, o artigo 9.º do novo EMP, que versa sobre a intervenção principal do Ministério Público, passou a dispor que, "[e]m caso de representação de região autónoma, de autarquia local ou, nos casos em que a lei especialmente o permita, do Estado, a intervenção principal cessa quando for constituído mandatário próprio" (n.º 2). Por sua vez, o artigo 63.º do novo EMP, prevê agora, na alínea a) do n.º 1, que compete "aos departamentos de contencioso do Estado e interesses coletivos e difusos", a "representação do Estado em juízo, na defesa dos seus interesses patrimoniais, em casos de especial complexidade ou de valor patrimonial particularmente relevante, mediante decisão do Procurador-Geral da República". Nessa medida, chegou a defender-se que o novo EMP viera, ele próprio, "trazer novas soluções sobre a representação do Estado pelo MP" (Ricardo Pedro, “O novo Estatuto do Ministério Público: O fim da função de representação do Estado pelo MP (?): Killing me softly with this song… with these (legal) words…”, Revista do Ministério Público, n.º 159, Ano 40, julho-setembro de 2019 [pp. 43-59], p. 45), o que seria evidenciado ainda pela disciplina contida no artigo 93.º (que corresponde, embora com relevantes alterações, ao artigo 69.º do Estatuto anteriormente em vigor), onde passou a prever-se expressamente a possibilidade de, "[e]m caso de conflito entre entidades, pessoas ou interesses que o Ministério Público deva representar, os magistrados coordenadores das procuradorias da República de comarca e administrativas e fiscais" solicitarem ao Centro de Competências Jurídicas do Estado a "indicação de um advogado para representar uma das partes", quando uma dessas "entidades" seja o Estado (cf. os n.os 1 e 2 do artigo 93.º).
7 - Recuperados os traços essenciais da evolução do regime legal da representação processual do Estado no contencioso administrativo, torna-se neste momento particularmente evidente a diferença fundamental entre o modelo que perdurou até à reforma de 2019 e o regime atualmente em vigor no que respeita à intervenção do Ministério Público nas ações propostas contra aquele em que o pedido principal tenha por objeto relações contratuais ou de responsabilidade.
Como se observou no Acórdão 857/2022, enquanto no regime previamente vigente o Ministério Público era chamado, por força da lei, a representar necessariamente o Estado, assumindo em tais processos intervenção principal e sendo aí diretamente citado para os termos da ação, no novo regime jurídico essa intervenção, apesar de possível, deixou de ser necessária, passando a citação a ser unicamente dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado. À luz do regime que resultou da aprovação do novo EMP e das alterações ao CPTA introduzidas pela Lei 118/2019, o Estado só será representado pelo Ministério Público em juízo se essa representação for solicitada pelo Governo - já que o Centro de Competências Jurídicas do Estado, nos termos do Decreto-Lei 149/2017, de 6 de dezembro, não detém competências para tal (v., em especial, o artigo 2.º do diploma) -, assistindo ao Ministério Público a faculdade de fazer cessar tal representação por sua iniciativa sempre que, perante uma situação de conflito, requeira a indicação de um advogado para representar uma das partes, nos termos do artigo 93.º, n.os 1 e 2, do novo EMP.
Tendo em conta esta diferença fundamental entre o regime pretérito e aquele que atualmente vigora, é forçoso concluir, uma vez mais na linha do Acórdão 857/2022, que a representação do Estado pelo Ministério Público não só deixou de ter a natureza de regra geral, como passou inclusivamente a depender de uma decisão discricionária do Executivo.
8 - Por um lado, não se encontram previstos no regime jurídico vigente quaisquer pressupostos legais que condicionem a decisão do Governo ou que o vinculem a optar pela representação por mandatário judicial próprio apenas em determinados casos ou em circunstâncias excecionais e devidamente fundamentadas.
Por outro, a solução que veio a ser consagrada em matéria de citação no n.º 4 do artigo 25.º do CPTA, traduz e concretiza, no plano processual, a amplitude da prerrogativa conferida ao Governo relativamente ao exercício pelo Ministério Público do seu estatuto de representante do Estado em juízo. Constituindo a citação "o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender" (cf. o artigo 219.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), a regra em direito processual é a de que as pessoas coletivas são citadas através dos seus representantes legais, ou seja, "quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem" (cf. os artigos 223.º, n.º 1, e 25.º do mesmo Código), estabilizando-se então os elementos subjetivos e objetivos da instância. Ora, neste contexto, é tudo menos irrelevante a circunstância de o Estado ser chamado a defender-se em juízo através do Centro de Competências Jurídicas do Estado e não através do Ministério Público (cf. o artigo 24.º do Código de Processo Civil), cuja falta de citação deixou assim de implicar no contencioso administrativo a verificação de qualquer nulidade (cf. o artigo 187.º, alínea b), do CPC). O relevo desta alteração em matéria de citação levou, de resto, certos Autores, como Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, a sustentar que o n.º 4 do artigo 25.º do CPTA deve ser objeto de uma interpretação corretiva "[...] para o efeito de se entender que, ao contrário do que diz, ele não impõe que, quando seja demandado o Estado, a citação seja dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, mas apenas exige que a citação, para além de ser feita através do Ministério Público, nos termos da lei geral, seja também dirigida ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, para o efeito de este Centro poder providenciar que o órgão competente decida se a representação do Estado pelo Ministério Público se deve manter ou se ela deve cessar, procedendo, nesse caso, o próprio Estado à constituição de advogado, solicitador ou licenciado em direito com funções de apoio jurídico" (v. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, loc. cit., p. 209).
9 - No sentido oposto ao que resultaria de tal “correção”, decorre da norma que integra o objeto do pedido que o Ministério Público apenas terá intervenção principal no processo se a citação lhe for transmitida pelo Centro de Competências Jurídicas do Estado, mediante decisão discricionária do Governo. Não sendo chamado ao processo pelo Governo, o Ministério Público manterá a faculdade de nele intervir nos termos previstos nos artigos 85.º, n.º 1, do CPTA, e 10.º, n.º 1, alínea a), do respetivo Estatuto, devendo ser notificado, no momento da citação, dos elementos processuais relevantes, de modo a poder assumir no processo uma intervenção acessória.
Deste modo, e como se observou uma vez mais no Acórdão 857/2022, já não se pode dizer, em rigor, que o Estado é representado pelo Ministério Público, no sentido em que, por força da lei, o Ministério Público representa, necessária e obrigatoriamente, o Estado em juízo. A solução imposta pelos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do CPTA, na versão decorrente das alterações introduzidas pela Lei 118/2019, aponta, ao invés, para um sistema misto, em que o Estado pode ser representado pelo Ministério Público ou patrocinado por advogado, cabendo a escolha ao Executivo. Deste ponto de vista, pode dizer-se que a solução atual se assemelha àquela que se aplicava, já na vigência do antigo EMP, às autarquias locais, às regiões autónomas e a outras pessoas coletivas públicas, e que assume a feição própria de uma mera representação processual, ou patrocínio judiciário, no sentido em que pressupõe o exercício de uma prerrogativa reconhecida ao Governo de optar por se fazer representar em juízo pelo Ministério Público (v. Alexandra Leitão, “A Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos”, Julgar, n.º 20, 2013, [pp. 191-208], p. 193 e pp. 206-207, e Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, op. cit., p. 130).
10 - Para responder negativamente à questão de saber se tal solução pode ter-se por compatível com o n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, as decisões do Tribunal Constitucional que fundamentam o presente pedido não seguiram, como se disse já, uma fundamentação totalmente convergente. A divergência detetada entre os fundamentos em que se basearam os juízos positivos de inconstitucionalidade alcançados, por um lado, nos Acórdãos n.os 794/2022, 796/2022, 876/2022, 112/2023 e 113/2023, todos da Segunda Secção, e, por outro, nos Acórdãos n.os 857/2022, 92/2023 e 98/2023, estes da Terceira Secção, prende-se essencialmente com o distinto significado e alcance atribuídos ao segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, e, consequentemente, com a diferente amplitude reconhecida à margem de liberdade de conformação do legislador ordinário no que diz respeito à modelação do regime legal de representação processual do Estado no âmbito do contencioso administrativo.
11 - Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, "[o] Ministério Público é um dos órgãos constitucionais integrados na organização dos tribunais que mais dúvidas oferece quanto à sua posição constitucional. Tendo em conta a sua evolução histórica [...], é seguro afirmar que o paradigma do Ministério Público acolhido pela Constituição de 1976 é o de um órgão da justiça independente e autónomo [...], subtraído à dependência do poder executivo, e erguido à categoria de magistratura, com garantias próprias aproximadas às dos juízes" (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª Edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 601). As suas funções encontram-se elencadas no n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, que comete ao Ministério Público a competência para "representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática". Estas distintas funções, que evidenciam a chamada "polifuncionalidade" do Ministério Público (Francisco Narciso, “O Ministério Público na Justiça Administrativa”, Revista do Ministério Público, Ano 31, n.º 122, 2010, p. 95), são agrupáveis, como igualmente notado por aqueles Autores, em quatro categorias: representação do Estado, nomeadamente nas causas judiciais em que ele seja parte; exercício da ação penal; defesa da legalidade democrática, designadamente através da intervenção no contencioso administrativo e fiscal e na fiscalização da constitucionalidade; e defesa dos interesses de determinadas pessoas mais carenciadas de proteção (menores, ausentes, trabalhadores, etc.).
A aferição da compatibilidade da norma sindicada com a ordem jurídico-constitucional passa, como se percebe, pela delimitação daquela primeira função cometida ao Ministério Público e esta pela interpretação do segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, onde se afirma que "Ao Ministério Público compete representar o Estado". Apesar do enunciado linguístico compreendido neste inciso inicial não ser isento de dificuldades hermenêuticas (neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 603), é seguro retirar-se dele que, ao distinguir a função de "representação do Estado" das funções de "defesa da legalidade democrática" e "exercício da ação penal", a Constituição diferencia e autonomiza aquela destas, impondo que se lhe atribua um sentido que não se confunda com o das demais.
Na tentativa de determinação desse sentido próprio e específico da função de representação do Estado cometida ao Ministério Público, o Tribunal Constitucional partiu, em todos os pronunciamentos que incidiram sobre a norma sindicada, de duas premissas fundamentais.
Em primeiro lugar, e na linha do entendimento já adotado no Parecer da Comissão Constitucional n.º 8/82, considerou que o Ministério Público, ao exercer função cometida pelo segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, não surge como representante do Estado-Coletividade, mas sim do Estado-pessoa, Estado-Governo, ou Estado-Administração, categoria que, na definição de António da Costa Neves Ribeiro, corresponde "à noção restrita do Estado, enquanto pessoa coletiva que, para efeitos de direito interno, corporiza, por excelência, a função administrativa do Estado-Coletividade" (v. O Estado nos Tribunais - Intervenção Cível do Ministério Público em 1.ª Instância, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1994, p. 48). O Tribunal afastou-se assim da posição defendida por Gomes Canotilho e Vital Moreira, segundo a qual o n.º 1 do artigo 219.º da Constituição comete ao Ministério Público a função de representar em juízo o Estado-coletividade em defesa de interesses da comunidade (op. cit., Vol. II, p. 603).
Em segundo lugar, o Tribunal teve por certo que a representação do Estado pelo Ministério Público a que se refere o n.º 1 do artigo 219.º da Constituição deve ser entendida como o poder conferido ao Ministério Público de, fora do domínio processual penal, representar o Estado em juízo, intervindo "como “advogado do Estado” (contrapondo a sua intervenção aos casos de intervenção como “fiscal do cumprimento da lei”)" (v. Jorge Miranda e Rui Medeiros, com a colaboração de José Lobo Moutinho e Maria Pessanha, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. III, 2.ª Edição revista, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2020, p. 194). O que está em causa é, portanto, a representação processual do Estado pelo Ministério Público, sendo sempre dessa representação judiciária que se fala quando, como adiante melhor se verá (v., infra, o n.º 13), se procura determinar o conceito mais apto a exprimir a respetiva natureza jurídica, designadamente com base na contraposição entre as figuras da representação orgânica, da representação legal e da representação processual, no sentido de (mero) patrocínio judiciário.
Partindo embora destas premissas comuns, as posições com base nas quais os Acórdãos n.os 794/2022, 796/2022, 876/2022, 112/2023 e 113/2023, por um lado, e os Acórdãos n.os 857/2022, 92/2023 e 98/2023, por outro, concluíram pela incompatibilidade da norma sindicada com o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição, evidenciam uma distinta compreensão da natureza da função de representação do Estado que ali se comete ao Ministério Público, assim como da extensão da margem de conformação deixada ao legislador ordinário para a consagração de soluções que acomodem a possibilidade de o Estado se fazer representar em juízo por outra via.
12 - De acordo com a posição sustentada nos Acórdãos n.os 794/2022, 796/2022, 876/2022, 112/2023 e 113/2023, o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição deve ser interpretado no sentido de conferir ao Ministério Público uma reserva de competência tendencialmente exclusiva de representação processual do Estado no âmbito do contencioso administrativo.
Em apertada síntese, o Tribunal considerou, nos referidos arestos, que a representação judicial do Estado por parte do Ministério Público corresponde a uma função primária desta magistratura, situada no mesmo exato plano em que a Constituição coloca o exercício da ação penal e a defesa da legalidade democrática, decorrendo o exercício dessa representação pelo Ministério Público diretamente da ordem jurídico-constitucional, sem necessidade de qualquer intervenção mediadora da lei ordinária. De acordo com a posição ali sufragada, o Ministério Público detém, por força do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, um "“mandato” constitucional de representação judiciária do Estado-administração", mandato esse que, sendo recortado com "sensível inelasticidade", por um lado "se opõe, ao menos quando não se mostre justificada por outros interesses constitucionais de relevo, a medidas legislativas que importem o cerceamento da efetividade dessa representação ou da extensão por que pode ser exercida, designadamente através de condições ou causas de exclusão" (Acórdão 794/2022, § 6; Acórdão 796/2022, § 7), mas, por outro, convive com "modelo[s] diárquico[s] de representação do Estado" (idem, § 7 e § 8, respetivamente), admitindo a intervenção, principal (conjunta) ou acessória, de outros representantes estaduais integrados na estrutura da administração ou constituídos por via de mandato forense, desde que a atividade de representação do Ministério Público não seja prejudicada. Desse mandato constitucional, que se considerou ter por objetivo garantir que a representação judicial do Estado-administração é levada a cabo por um órgão judiciário independente vinculado a critérios estritos de legalidade e de objetividade, entendeu-se derivarem duas importantes limitações para o legislador ordinário em matéria de regulação da representação do Estado em juízo. Em primeiro lugar, a preclusão da possibilidade de definição de um outro modelo de representação a nível infraconstitucional, designadamente que conferisse um papel subsidiário, supletivo ou optativo à intervenção desta magistratura como representante judicial do Estado. Em segundo lugar, a redução da possibilidade de afastamento da intervenção do Ministério Público como representante estadual a "situações específicas previstas na Lei [...], certamente muito residuais, em que se sinalizem valores constitucionais que o aconselham ou imponham" (Acórdão 794/2022, § 7; Acórdão 796/2022, § 8).
Com base nesta compreensão do sentido e alcance da função cometida ao Ministério Público pelo segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, os referidos arestos concluíram pela inconstitucionalidade da norma que integra o objeto do presente por dela resultar uma inversão do paradigma constitucional da representação do Estado em juízo, na medida em que aí se "[...] confere à intervenção do magistrado como representante estadual na instância um caráter conjuntural e optativo face à representação por advogado ou funcionário com funções de apoio jurídico [...], subordinando-se a atividade do Ministério Público ao que seja uma escolha arbitrária dos titulares do órgão de direção da entidade administrativa interveniente de acordo com o leque de “possibilidades” que a norma coloca ao seu dispor" (Acórdão 794/2022, § 8; Acórdão 796/2022, § 9) e sem por isso se assegurar que aquele é "chamado à instância proposta conta o Estado na qualidade de seu representante no foro administrativo".
Embora convergindo no resultado, o presente julgamento afasta-se, contudo, quanto aos seus pressupostos, da leitura do segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição que esteve na base do juízo de positivo de inconstitucionalidade formulado nos arestos acima indicados, em benefício da posição sufragada nos Acórdãos n.os 857/2022, 92/2023 e 98/2023. É, por consequência, o percurso argumentativo seguido nestas últimas decisões que se procurará aqui retomar nos pontos seguintes.
13 - Como se observou logo no Acórdão 857/2022, ao atribuir ao Ministério Público competência para representar o Estado em juízo, n.º 1 do artigo 219.º da Constituição não esclarece a natureza dessa representação, nem fornece qualquer indicação segura a partir da qual possam em definitivo traçar-se os limites que dela derivam para o legislador ordinário.
No plano infraconstitucional, a determinação da natureza jurídica da representação processual do Estado por parte do Ministério Público vem suscitando desde há muito um amplo debate na doutrina, que a vem caracterizando ora como representação orgânica, ora legal, ora puramente processual, ou seja, semelhante a um patrocínio judiciário.
A tese da representação orgânica corresponde ao entendimento tradicionalmente seguido (v. António da Costa Neves Ribeiro, op. cit., p. 29, e Carlos Lopes do Rego “A intervenção do Ministério Público na área cível e o respeito pelo princípio da igualdade de armas”, O Ministério Público, a democracia e a igualdade dos cidadãos, 5.º Congresso do Ministério Público, Cadernos da Revista do Ministério Público, Lisboa, Edições Cosmos, 2000, p. 83), tendo sido acolhida, pelo menos até 2014, em diversos Pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, designadamente no Parecer 131/2001 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 8 de março de 2003), que a explicitou da seguinte forma:
"O Ministério Público é [...] um órgão do Estado a quem compete a sua representação em juízo, representação que se situa num plano diverso da simples representação legal ou da representação voluntária.
[...]
Quando o Ministério Público representa o Estado fá-lo no quadro de uma representação orgânica, a qual, como se referiu, não se confunde e se diferencia da relação de mandato. Na representação orgânica é o próprio órgão da pessoa coletiva que intervém em todos os atos do processo e designadamente na citação, ao contrário da representação voluntária, em que o primeiro contacto é estabelecido com a própria parte".
No quadro legal que emergiu da reforma de 2002, a ideia de que o Ministério Público interviria como órgão do Estado-Administração nos processos do contencioso administrativo em que este figure como parte continuou a ser objeto de assertiva contestação na doutrina, designadamente por parte daqueles que tendiam a reconhecer nessa intervenção as caraterísticas próprias do instituto da representação legal.
Assim, defendia Alexandra Leitão (loc. cit., pp. 206-207):
"Tradicionalmente, tem-se entendido que a representação do Estado pelo Ministério Público é uma representação orgânica, na medida em que o Ministério Público é um órgão do Estado (Neves Ribeiro) e figura como sujeito da relação material controvertida (Lopes do Rego).
Desta qualificação jurídica decorrem implicações de grande relevância prática, nomeadamente a impossibilidade de o Estado constituir advogado e afastar a intervenção do Ministério Público [...].
[...]
Efetivamente, enquanto a representação orgânica decorre da própria natureza das coisas - é, por assim dizer, lógica e ontológica -, a representação legal decorre de uma opção do legislador.
Por outras palavras: seria possível optar-se por não cometer ao Ministério Público a representação em juízo do Estado, mas seria impossível determinar que a pessoa coletiva deixasse de ser representada por um ou mais dos seus órgãos, pela simples razão que as pessoas coletivas são entidades imateriais que carecem sempre de um ou mais órgão(s) e do(s) seu(s) titular(es) para manifestar a sua vontade. Este é o cerne da distinção entre representação orgânica e legal.
Dito isto, fácil será perceber que [...] a tese da representação legal se apresenta como a mais correta, uma vez que também não se trata apenas de um simples patrocínio judiciário, que pressupõe uma representação voluntária" (itálico aditado).
A tese da representação orgânica foi definitivamente abandonada no Parecer 7/2014, já referido, em termos que parecem subscrever a ideia de que, ao representar o Estado-Administração em juízo nos termos ressalvados no n.º 2 do artigo 11.º do CPTA, na redação originariamente conferida pela Lei 15/2002, o Ministério Público não interviria sequer nos quadros próprios da representação legal.
Afirmou-se aí o seguinte:
"Ora, a verdade é que, apesar de o Ministério Público ser, de facto, um órgão do Estado, não é um órgão da pessoa coletiva Estado ou, dito de outra forma, do Estado Administração, que é aquele que é representado nas ações cíveis e nas ações administrativas. Trata-se, pelo contrário, de um órgão que se integra, à luz do princípio da separação orgânico-funcional de poderes, na função judicial do Estado, como resulta, aliás, da sua inserção sistemática no título V da Constituição dedicado aos Tribunais. Como refere Isabel Alexandre, “[T]ambém o Código de Processo nos Tribunais Administrativos dá a entender que a representação do Estado em juízo pelo Ministério Público não pode ser qualificada como uma representação orgânica, aproximando-se antes da figura do patrocínio judiciário, na medida em que esse Código trata da representação do Estado pelo Ministério Público a propósito da representação por advogado e da representação por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico (cf. o artigo 11.º, que tem como epígrafe justamente “Patrocínio judiciário e representação em juízo)”.
Assim, a natureza jurídica da representação do Estado pelo Ministério Público é duvidosa, sendo discutível que se trate de uma verdadeira e própria representação orgânica ou de uma representação legal.
A representação orgânica ocorre seguramente noutros casos de intervenção principal do Ministério Público, em nome ou em defesa do Estado-coletividade." (itálico aditado)
Para além de a ideia de uma representação orgânica do Estado-Administração não ser facilmente conciliável, como se verá em seguida, com o estatuto constitucional do Ministério Público (neste sentido, v. Alexandra Leitão, cit., ibid.), o que releva sobretudo desta discussão é que, mesmo entre Autores que defendem tratar-se ainda de uma representação orgânica, sempre se admitiu que "a letra do texto constitucional" e as normas legais conformadoras das competências do Ministério Público "não favore[cem] a ideia de exclusividade" (v. António Neves Ribeiro, op. cit., p. 28). Ou seja, esta competência do Ministério Público é aqui entendida como uma competência que se cinge à representação em juízo do Estado-Administração e que não exclui, em absoluto, a possibilidade de essa função ser exercida por outrem, que não o Ministério Público.
Seja como for, com a tese da representação legal procurava traduzir-se a ideia, que perdurou até à reforma de 2019, de que a representação processual do Estado pelo Ministério Público não apenas decorria da lei, como se impunha por força da lei, independentemente de qual fosse ou viesse a ser a vontade da entidade representada. Nas palavras de Alexandra Leitão, "se é verdade que no quadro legislativo [então em vigor] o Estado não pod[ia] afastar a intervenção do Ministério Público através da constituição de mandatário judicial [...], essa solução justifica[va-se] também à luz do conceito de representação legal" (loc. cit., p. 207).
14 - No plano constitucional, as posições doutrinárias sobre o sentido e o alcance a atribuir ao segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição são igualmente dissonantes.
Em sentido próximo daquele que parece ter sido acolhido nos Acórdãos n.os 794/2022, 796/2022, 876/2022, 112/2023 e 113/2023, defendem Jorge Miranda e Rui Medeiros que tal segmento não pode ser interpretado no sentido de se limitar a estabelecer "uma competência-regra que pode ser afastada pela lei ordinária", já que isso equivaleria a "confer[ir] à lei constitucional, face à lei ordinária, o valor de uma simples norma supletiva, esvaziando de conteúdo a disposição constitucional" em causa. Ademais, "a exigência de que seja o Ministério Público a representar o Estado" - a intervir como advogado do Estado - não releva de "uma questão simplesmente formal-organizatória", mas antes, e ainda, de uma "opção material pelos critérios que hão de presidir à própria atuação do Estado na defesa dos seus interesses (legalidade, estrita objetividade e imparcialidade)" (idem, p. 195), tendo presente que, "também quando intervém em representação do Estado, [o Ministério Público] intervém como defensor da legalidade" (ibidem, p. 194).
15 - A esta interpretação estrita da fórmula "Ao Ministério Público compete representar o Estado" tem sido oposta uma interpretação mais ampla, fundada sobretudo na convicção de que, quando interpretado no sentido de reservar ao Ministério Público a competência para, no domínio do contencioso cível ou administrativo, representar em juízo o Estado, na defesa dos seus interesses patrimoniais, o n.º 1 do artigo 219.º da Constituição suscita especiais dificuldades, essencialmente relacionadas, como se anteviu já, com a conciliação do exercício da função de "advogado do Estado" com a função de defesa da legalidade democrática e com a salvaguarda da autonomia do Ministério Público - problema que se torna especialmente claro quando se põe a hipótese de haver litígios em que a defesa da legalidade conflitua com os interesses do Estado-Administração que ao Ministério Público cabe representar, ou quando se admite em abstrato a possibilidade de o “representado”, na condição de parte processual demandada, pretender dirigir instruções ao seu “representante”, segundo a avaliação que faça dos seus próprios interesses em jogo.
Daí que, na doutrina, venha sendo desde há muito defendida a adoção de soluções, tidas por admissíveis à luz da Constituição, que logrem uma mais adequada harmonização da tarefa de "representação do Estado" com as demais funções atribuídas ao Ministério Público. Assentando sobretudo na ideia de que, "[...] atendendo ao estatuto de magistratura autónoma que corresponde ao Ministério Público na nossa ordem constitucional, os agentes do Ministério Público não têm por que ser, nem devem ser, advogados do Estado [...]" (Mário Aroso de Almeida, loc. cit., p. 20), tal posição é, no âmbito do contencioso administrativo, defendida por J. C. Vieira de Andrade (in, A Justiça Administrativa - Lições, 18.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 153-154), nos termos seguintes:
"Como é evidente, a diversidade de funções cometidas ao Ministério Público é suscetível de causar problemas e embaraços, quer na medida em que ele tenha de desempenhar no mesmo processo funções incompatíveis, quer na medida em que atribui à instituição um papel dúplice, como parte processual, em que ora surge do lado do Estado, defendendo-o contra as ações do particular, ora aparece contra a Administração, ao lado do administrado, ou em vez dele.
Se é possível evitar as contradições práticas decorrentes da incompatibilidade de funções nos processos - assegurando que estas funções sejam desempenhadas por diferentes agentes -, já se torna mais difícil conciliar as “atitudes espirituais” requeridas para o exercício profícuo das tarefas que lhe são cometidas.
Parece-nos que a configuração atual do Ministério Público, na sequência da “desgovernamentalização” da respetiva magistratura, associada à evolução do processo administrativo no sentido de um processo de partes, aconselham a que o Ministério Público seja visto apenas como um defensor da legalidade, quer intervenha como parte principal, quer atue na veste auxiliar do juiz.
Julgamos - apesar da referência constitucional à “representação do Estado” - não haver razão para, no processo administrativo atual, atribuir ao Ministério Público a representação dos interesses patrimoniais do Estado-Administração [...], quando a representação ou o patrocínio podem ser assegurados por funcionários dos serviços jurídicos ministeriais ou por advogados contratados, nem sequer para lhe conferir o encargo de promoção processual do interesse público, quando este possa ser prosseguido por órgãos administrativos.
Só assim se resolverá satisfatoriamente o conflito virtual entre a autonomia do Ministério Público e a representação do Estado-parte - que, como é natural, há de depender de algum modo das orientações governamentais -, bem como, em algumas situações, a dificuldade de conciliação da defesa da Administração (e do interesse público) com a estrita garantia da legalidade."
Note-se que, justamente com o intuito de superar estas dificuldades, chegou a ser proposta, no contexto da Revisão Constitucional de 1997, uma alteração ao (então) artigo 221.º da Constituição que, sob a epígrafe "garantia de autonomia do Ministério Público", visava a "subtração ao Ministério Público da função de representar o Estado, deixando este de funcionar como uma espécie de advogado do Estado (artigo 221.º, n.º 1)" [v. o Projeto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, apresentado pelo Partido Comunista Português, publicado no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 27, de 7 de março de 1996, p. 484(-32)].
Aos argumentos apresentados pelos proponentes, bem como por quem nesse contexto defendeu que a Constituição deveria, pelo menos, viabilizar uma reconfiguração legal dos interesses que ao Ministério Público incumbe defender em representação do Estado (v., em especial, o Diário da Assembleia da República, 2.ª série - RC, n.º 52, de 13 de novembro de 1996, p. 46 e o Diário da Assembleia da República, 2.ª série - RC, n.º 33, de 4 de outubro de 1996), opuseram-se os que defendiam que a garantia de uma representação adequada dos interesses estaduais não poderia prescindir, também por razões de ordem histórica e prática, da atribuição desta competência ao Ministério Público (neste sentido, v., em especial, o Diário da Assembleia da República, 2.ª série - RC, n.º 52, de 13 de novembro de 1996, p. 50).
A alteração proposta acabou, pois, por não merecer acolhimento, mantendo-se na redação do n.º 1 do artigo 221.º (que viria a ser o artigo 219.º) votada pela Comissão Eventual, e aprovada a final, a competência para "representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar" (v. o Diário da Assembleia da República, 2.ª série - RC, n.º 110, de 27 de junho de 1997, p. 21).
16 - Uma primeira aproximação à tentativa de delimitação da tipologia dos modelos de representação processual do Estado no contencioso administrativo permitidos e proscritos pelo segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição pressupõe a consideração do estatuto constitucional do Ministério Público, enquanto magistratura autónoma e desgovernamentalizada.
Foi esse, de resto, o ponto de partida assumido no Parecer 8/82, já referido, onde a tal propósito se observou o seguinte:
"9 - O sentido da representação do Estado pelo Ministério Público.
Saindo do domínio da atividade própria (típica) do Ministério Público - o da perseguição dos crimes - e penetrando naqueloutro, em que só razões de pragmatismo justificam a sua intervenção - o da representação do Estado em juízo -, encontrar-nos-emos num terreno em que, então, já se não descobre qualquer fundamento material para uma reserva de competência.
Bem ao invés: o que a autonomia do Ministério Público poderia reclamar seria que se lhe não cometessem essas funções de representação.
De facto, quando representa o Estado, em juízo, para defender os seus interesses, em ações cíveis, tem o Ministério Público que obedecer a instruções específicas do Governo.
Ora, muito embora o dever de obediência só se imponha perante ordens legais, ainda assim, o Ministério Público poderá "ver-se reduzido a defender exigências impopulares" do Estado.
[...]
O que, aqui, pois, está em causa é, tão-somente, a previsão de um representante permanente do Estado. De alguém que, sempre que necessário, assegure a defesa dos seus direitos, em juízo.
Essa representação não foi, contudo, pensada em termos de monopólio."
Rejeitando, deste modo, a tese do monopólio da representação do Estado pelo Ministério Público, a Comissão Constitucional não hesitou, como se viu, em considerar tal encargo estranho às funções nucleares constitucionalmente cometidas àquela magistratura, entendidas como aquelas em nome e para a prossecução das quais é atribuído ao Ministério Público um "estatuto próprio", que assegura a sua "autonomia" (artigo 219.º, n.º 2, da Constituição) - de que é exemplo paradigmático o exercício da ação penal -, e, por isso, relativamente às quais pode afirmar-se, de forma materialmente fundada, uma reserva constitucional de competência em termos não extensíveis à função de representação do Estado em juízo.
Tal posição tem subjacente o entendimento de que a função de "advogado do Estado" "não se apresenta [...] como uma função natural, própria, específica ou típica do Ministério Público" (Parecer 8/82, o n.º 3), sendo de certa forma discrepante da configuração constitucional daquela magistratura, tendo em conta que a mesma se caracteriza pelo atributo da autonomia e que esta é "antes de mais, [uma] “autonomia externa”", enquanto "“[...] exigência de exclusão [...] de hetero-determinação mediante subordinação a outras entidades públicas, incluindo a exclusão de qualquer dependência do poder político [...]” (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, p. 239)" (v. o 2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20 de Agosto, 33-A/96, de 26 de Agosto, 60/98, de 27 de Agosto, 42/2005, de 29 de Agosto e 67/2007, de 31 de Dezembro, na redacção conferida pelo artigo 164.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, e da norma do artigo 90.º da Lei n. (...)">Acórdão 305/2011). Como nota Gomes Canotilho, "[...] [g]lobalmente consideradas, as funções do Ministério Público têm, em geral, como denominador comum, o serem exercidas no interesse do “Estado-comunidade” e não do “Estado-pessoa” (Pizzorusso). Isto, em termos tendenciais, porque em Portugal o Ministério Público continua a ser “advogado do Estado”, tarefa que noutros países é desempenhada por operadores jurídicos diferentes (“advogados do Estado” ou “advogados contratados”)" (v. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2003, p. 685; v., também, Inês Seabra de Carvalho, “O Estatuto Constitucional do Ministério Público”, Educar, Defender, Julgar - Para uma reforma das funções do Estado, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 217-218).
17 - Como se observou no Acórdão 857/2022 - que de perto se continuará a acompanhar aqui -, o artigo 219.º da Constituição insere-se no Capítulo IV (“Ministério Público) do Título V (“Tribunais”) da Parte reservada à organização do poder político, versando sobre as funções e estatuto do Ministério Público. A norma, pelo seu conteúdo e inserção sistemática, integra o chamado direito constitucional organizatório, entendido como "o conjunto de regras e princípios constitucionais que regulam a formação dos órgãos constitucionais, sobretudo dos órgãos constitucionais de soberania, e respetivas competências e funções, bem como a forma e procedimento da sua atividade" (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, cit., p. 541). A competência, por sua vez, pode ser definida como "o poder de ação e de atuação atribuído aos vários órgãos e agentes constitucionais com o fim de prosseguirem as tarefas de que são constitucional ou legalmente incumbidos", envolvendo, "por conseguinte, a atribuição de determinadas tarefas bem como os meios de ação ("poderes") necessários para a sua prossecução. [...]" (idem, op. cit., p. 543). Assim sendo, deve concluir-se que o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição, ao atribuir ao Ministério Público a competência para representar o Estado, não estabelece per se uma garantia institucional de que possa ou deva inferir-se que só o Ministério Público se encontra constitucionalmente autorizado ou legitimado a assegurar a representação em juízo do Estado-Administração, na defesa dos seus interesses patrimoniais.
Desde logo, atribuir ao Ministério Público competência para representar o Estado não é o mesmo que atribuir a representação do Estado ao Ministério Público (neste sentido, v. Luís Sousa da Fábrica, “A Representação Judiciária do Estado pelo Ministério Público - Comentário ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 857/2022”, Revista Portuguesa de Direito Constitucional, N.º 3 (2023), [pp. 179-213], p. 198). A competência traduz-se essencialmente "numa autorização ou legitimação para a prática de atos jurídicos (aspeto positivo) e num limite para essa prática (aspeto negativo)" (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Vol. III (Tomo V), Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 61), pelo que a mera atribuição a um determinado ente - aqui, o Ministério Público - de competência para exercício de uma certa função - no caso, a representação do Estado-Administração - não constitui, só por si, base suficiente para se afirmar uma reserva constitucional de competência a favor do ente designado. Tal conclusão, para poder firmar-se, teria de contar com outros pontos de apoio, que evidenciassem e permitissem discernir o respetivo fundamento material, sendo certo que a compreensão integrada das diversas funções atribuídas ao Ministério Público, designadamente à luz do seu estatuto constitucional, não favorece, como se viu, tal posição.
Na verdade, mesmo admitindo que à atribuição da competência referida no primeiro segmento do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição não seja indiferente o propósito de que a intervenção do Estado na defesa dos seus interesses em juízo se processe de acordo com os critérios de legalidade e objetividade a que se encontra tipicamente subordinada a atuação do Ministério Público, continua a não ser possível correlacionar a função de representação do Estado, entendida como "advocacia do Estado", com as demais funções atribuídas àquela magistratura, em termos de poder afirmar-se que a Constituição reserva ao Ministério Público uma competência exclusiva para representar o Estado-Administração, quando este é a parte demandada em contencioso administrativo e em causa está a defesa dos seus interesses patrimoniais. Relembre-se que não está aqui em causa qualquer limitação dos poderes legalmente conferidos ao Ministério Público para intervir no contencioso administrativo, em defesa da legalidade democrática, como titular da ação pública ou como amicus curiae, no âmbito da "fiscalização judicial do poder administrativo", que segundo José Manuel Ribeiro de Almeida, constitui "um dos domínios por excelência" da plena efetivação da "vocação institucional e [d]a incumbência constitucional de defender a legalidade democrática" que a este magistratura se reconhece (v. "“Uma Teoria da Justiça” - Justificação do Ministério Público no contencioso administrativo", Revista do Ministério Público, n.º 84, Ano 21, Outubro-Dezembro de 2000 [pp. 95-117], p. 95). O que está em causa é, tão-só, o exercício daquela função de "advocacia do Estado" que, como vem sendo amplamente reconhecido, é potencial antagonista dos atributos que integram o estatuto constitucional daquela magistratura; o mesmo é dizer, da autonomia do Ministério Público - entendida, antes do mais, como "“autonomia orgânica e funcional” do Ministério Público “face ao poder executivo”" (2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20 de Agosto, 33-A/96, de 26 de Agosto, 60/98, de 27 de Agosto, 42/2005, de 29 de Agosto e 67/2007, de 31 de Dezembro, na redacção conferida pelo artigo 164.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, e da norma do artigo 90.º da Lei n. (...)">Acórdão 305/2011) - e do exercício da função de defesa da legalidade democrática, com a qual pode bem mostrar-se em concreto incompatível. É precisamente por essa razão que hoje se encontra expressamente prevista, no artigo 93.º do novo EMP, a possibilidade de o Ministério Público requerer ao Estado que constitua mandatário próprio, nos casos em que se verifique existir conflito entre entidades, pessoas ou interesses que o Ministério Público deva representar, e que deve ter-se por analogicamente aplicável às ações administrativas o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 101.º do EMP, segundo as quais quaisquer "instruções específicas" só poderão ser transmitidas aos magistrados, por intermédio do Procurador-Geral da República, pelo membro do Governo responsável pela área da justiça (neste sentido, v. o Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 7/2014, cit., p. 17297, e J. C. Vieira de Andrade, op. cit., p. 154).
18 - Aqui chegados, é já possível formular uma primeira conclusão.
Ao dotar o Ministério Público da competência necessária para assegurar a representação em juízo do Estado-Administração, inciso inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição não reserva essa competência àquela magistratura, isto é, não impõe que tal representação só possa ser assegurada por aquela magistratura, nem determina que "a representação do Estado por outras entidades tenha que ser, sempre, uma representação concorrencial ou subsidiária da do Ministério Público" (Parecer 8/82).
Como atrás se procurou demonstrar, não é possível extrair da Constituição qualquer argumento que favoreça o entendimento de que a função cometida ao Ministério Público pelo inciso inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição integra o monopólio da representação em juízo do Estado-Administração, na defesa dos seus interesses patrimoniais. Com efeito, e ainda que se reconheça quanto "de estável e sedimentado também há na atribuição da competência para representar o Estado em juízo" (Jorge Miranda/Rui Medeiros, op. cit., p. 194), não se vê como, mesmo nesse estrito domínio, o exercício de tal competência exclusivamente pelo Ministério Público possa ter-se por incindível da configuração constitucional da missão confiada a esta magistratura, sobretudo quando se considera, com Inês Seabra de Carvalho, que "[a]s competências, constitucionais e legais, enquanto poderes de ação e de atuação atribuídos ao Ministério Público estarão [...] em princípio funcionalmente submetidas ao programa finalístico/teleológico da defesa da legalidade democrática" (cit., p. 213).
Veja-se que, em rigor, se Constituição impusesse a via única da representação legal, na aceção em que este conceito vem sendo aplicado à representação judiciária do Estado pelo Ministério Público - isto é, para exprimir a ideia de que os poderes de representação processual cometidos ao Ministério Público decorrem diretamente da lei, sendo o seu exercício independente da (e imune à) vontade do ente representado (v., supra, o n.º 13) -, isso significaria que o legislador se encontraria impedido de atribuir ao Estado-Administração, quando demandado, qualquer prerrogativa de que pudesse depender não só o estabelecimento como a própria subsistência da sua concreta representação pelo Ministério Público em juízo. Neste caso, tal representação haveria de decorrer não só direta como imperativamente da lei, sem que o Executivo - ou mesmo o Ministério Público, em caso de conflito de interesses - pudesse obstaculizá-la ou colocar-lhe termo através da constituição de mandatário. O que, diga-se ainda, não só se oporia à possibilidade de acolhimento de qualquer solução do tipo daquela que foi proposta no Anteprojeto de revisão do CPTA, acima mencionado (v., supra, o n.º 6.4.), como levaria a pôr em causa a própria viabilidade da solução constante do artigo 24.º do Código de Processo Civil vigente - cuja constitucionalidade, note-se, nunca foi sequer contestada -, com a qual passou a admitir-se a previsão em lei especial dos casos em que o Estado pode optar pelo patrocínio por mandatário judicial próprio, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que este esteja constituído (v., supra, o n.º 6.4.).
Tendo em conta a missão constitucionalmente confiada ao Governo, enquanto órgão superior da administração pública (artigo 182.º da Constituição), e ao Ministério Público, enquanto magistratura autónoma e preeminentemente comprometida com a defesa da legalidade democrática, há que concluir, pois, que o inciso inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição não proíbe em absoluto o legislador, seja em que termos ou por que via for, de atribuir ao Executivo a possibilidade de optar por se defender em juízo pelos meios que tenha por mais eficazes e conformes à realização dos interesses públicos que integram as respetivas atribuições, nem, evidentemente, de facultar ao Ministério Público, em caso de conflito, as necessárias condições para dar primazia à defesa dos interesses que lhe cabe defender nos termos da lei e da Constituição, em detrimento da defesa dos interesses patrimoniais do Estado-Administração.
Saber em que termos é que a atribuição legal dessa prerrogativa ao Executivo pode ser conciliada com a inclusão da representação do Estado-Administração no âmbito das funções constitucionais do Ministério Público é o que se procurará determinar nos pontos seguintes.
19 - Ao incumbir expressamente o Ministério Público de "representar o Estado", a Constituição não impõe, como se viu, o monopólio da representação do Estado-Administração pelo Ministério Público, nem que esta se efetive com todas as limitações inerentes a uma representação legal em sentido próprio, o mesmo é dizer, sem qualquer possibilidade de consideração da vontade da entidade representada. Porém, na medida em que não deixa de atribuir tal função àquela magistratura, a Constituição também não coloca na livre disponibilidade do legislador ordinário a decisão sobre o se dessa representação, designadamente em termos que compreendam a possibilidade de este a cometer por inteiro ao Estado-Administração, enquanto ente representado. Sob pena de se negar qualquer eficácia normativa ao segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, a atribuição ao Ministério Público da competência para representar o Estado-Administração, apesar de não envolver uma reserva ou monopólio de representação, não pode deixar de ser entendida como um "indirizzo constitucional" (Alexandra Leitão, loc. cit., p. 191), que se impõe ao legislador ordinário enquanto exigência de reconhecimento àquela magistratura do estatuto legal, não de único ou exclusivo representante judiciário do Estado-Administração, mas, em todo o caso, do seu representante judiciário natural, designadamente no âmbito do contencioso administrativo (neste sentido, v. Pedro Machete/Cláudia Saavedra Pinto, “A Representação do Estado pelo Ministério Público - Breve Resenha da Jurisprudência Constitucional sobre o Tema”, in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria da Glória Garcia, UCP Editora: Lisboa, 2023, p. 2141). Nas palavras do Parecer 8/82, o que está em causa no segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição é apenas, mas necessariamente, "a previsão de um representante permanente do Estado. De alguém que, sempre que necessário, assegure a defesa dos seus direitos, em juízo" (o n.º 9).
20 - No que diz respeito ao estabelecimento do alcance do mandato constitucional atribuído ao Ministério Público pelo segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º, é possível formular a partir daqui uma segunda, e igualmente importante, conclusão. Ao atribuir ao Ministério Público competência para representar o Estado em juízo, a Constituição, se não reservou o exercício dessa função àquela magistratura, também não colocou tal exercício na integral dependência da vontade do ente representado, pelo menos em termos equivalentes à salvaguarda de modelo de pura representação voluntária. Com efeito, este determinaria que o Ministério Público não tivesse, nem em princípio, nem por regra, intervenção principal nos processos em que é demandado o Estado e estão em causa interesses cuja defesa lhe é legalmente cometida, o que esvaziaria de conteúdo útil, ou desmentiria até, a atribuição àquela magistratura da competência para "representar o Estado" - que, como atrás se viu (v., supra, o n.º 11), a Constituição enuncia a título distinto e autónomo de todas as demais atribuições referidas no n.º 1 do artigo 219.º -, descaracterizando em definitivo o mandato constitucional atribuído ao Ministério Público, enquanto representante natural do Estado em juízo.
21 - Analisada a solução legal que decorre da norma sindicada à luz de quanto vai dito, verifica-se, desde logo, que a mesma se distancia, quer da solução constante do artigo 24.º do Código de Processo Civil vigente, quer da proposta constante do Anteprojeto de revisão do CPTA, acima referido (v., supra, o n.º 6.4.).
Embora todas relevem do pressuposto, que se viu constitucionalmente viável, de que a representação do Estado-Administração em juízo pode ser atribuída a entidades diferentes do Ministério Público, a solução consagrada no domínio do contencioso administrativo diverge significativamente, quanto aos termos e modo seguidos nessa atribuição, da solução consagrada, desde logo, na lei processual civil, que confere ao Estado a faculdade, num conjunto de casos previstos em lei especial, fazer cessar a intervenção principal do Ministério Público através da constituição de mandatário judicial. E diverge também, em menor, mas igualmente relevante medida, da proposta constante do Anteprojeto de revisão do CPTA, que conferia ao Estado, nas ações referentes a relações contratuais ou de responsabilidade em que fosse demandado, a faculdade de optar pelo patrocínio por advogado, mediante decisão devidamente fundamentada, cessando a intervenção principal do Ministério Público logo que aquele fosse constituído. É que, ao contrário desta, a solução que acabou por vigorar no âmbito do contencioso administrativo não impõe a intervenção do Ministério Público ab initio no processo, admitindo que a escolha entre a representação pelo Ministério Público e o patrocínio por advogado nos processos em que o Estado seja demandado possa ser realizada pelo Executivo já não apenas por decisão ex post, como ali se previa, mas através de uma opção ex ante, viabilizada e operacionalizada através do direcionamento da citação para o Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo. Deste modo, não só a subsistência, mas a própria efetivação da intervenção principal do Ministério Público passa a ficar na inteira dependência da vontade do Estado-Administração, que acaba por ser desta forma equiparado às entidades com o poder de suscitar a intervenção principal do Ministério Público, como, v. g., os institutos públicos (cf. o n.º 4 do artigo 21.º da Lei-Quadro dos Institutos Públicos, aprovada pela Lei 3/2004, de 15 de janeiro, na sua redação atual). Neste cenário, e como se observou também no Acórdão 857/2022, não é possível afirmar que, em matéria de contencioso administrativo, o direito infraconstitucional se encontre modelado em termos que permitam (ou continuem a permitir) reconhecer que, em regra, "[a]o Ministério Público compete representar o Estado", nem que aquele se mantém como o representante natural deste em juízo.
Ora, por muitas e relevantes dificuldades hermenêuticas que o inciso inicial do artigo 219.º, n.º 1, da Constituição, possa suscitar, é certo que aí não prevê que o Estado pode ser representado pelo Ministério Público na defesa dos interesses que a lei determinar. Determina-se, outrossim, que a "representação do Ministério Público terá de constituir sempre a regra" (Parecer 8/82, o n.º 9), pelo que, se o demandado é o Estado e em causa estão interesses que incumbe ao Ministério Público defender, este deve ser chamado a ter intervenção principal nos processos em que age em sua representação, o que não sucederá se a citação para os termos da ação for, como estabelece a norma sindicada, dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado.
22 - Não é demais repetir que a Constituição, se não impõe uma reserva de competência do Ministério Público em matéria de representação processual do Estado-Administração, também não viabiliza um modelo de puro patrocínio judiciário, em que a intervenção principal do Ministério Público fique na inteira dependência da vontade do Executivo, enquanto órgão cimeiro do ente representado. Entre as alternativas representadas por um modelo e outro, o que de mais seguro se extrai do inciso primeiro do n.º 1 do artigo 219.º é a vinculação do legislador a respeitar o estatuto constitucional do Ministério Público, enquanto representante natural do Estado em juízo, e, consequentemente, a conformar a ordem jurídica em termos que discernir que "[a]o Ministério Público compete representar o Estado". O que, por sua vez, obriga a que aquela intervenção haja de decorrer da lei e só possa ser afastada mediante substituição, cessando nos precisos termos em que a lei expressamente o preveja e consinta, assim ademais se garantindo que a defesa em juízo dos interesses do Estado não fique exposta ao risco de não beneficiar da tutela qualificada que é assegurada pela intervenção daquela magistratura.
Deste modo, nada impede o legislador de prever que a intervenção principal do Ministério Público possa cessar em certos casos, sobretudo quando se considere que estão em causa interesses públicos do Estado de natureza específica, que podem ser por essa razão mais adequada e eficazmente acautelados em juízo se a sua representação processual for confiada a um mandatário próprio. O que se impõe, em face do disposto no n.º 1 do artigo 219.º e 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição, é que tal ocorra nos termos e casos especialmente previstos por lei (tal como prescreve o artigo 24.º do Código de Processo Civil vigente, e agora o n.º 2 do artigo 9.º do atual EMP) ou através de decisão fundamentada no caso concreto (v., supra, o n.º 6.4.), e sempre sem excluir à partida a intervenção principal do Ministério Público, já que isso comprometeria a sua condição de representante natural do Estado em juízo. Se assim não for - isto é, se a representação do Estado pelo Ministério Público constituir sempre e só uma mera possibilidade, que se efetivará ou não consoante a decisão que aquele livremente tomar -, a competência atribuída àquela magistratura pelo inciso inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, como se disse também no Acórdão 857/2022, deixará de ser certa para passar a ser contingente, aleatória e acidental: o Ministério Público intervirá em juízo em representação do Estado, na defesa dos seus interesses patrimoniais, se e apenas se for essa a escolha do Executivo.
Ora, ao estabelecer que a representação do Estado pelo Ministério Público constitui uma mera possibilidade, sendo a citação dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, a solução sindicada atribui inequivocamente ao Governo o poder de, através de uma decisão discricionária - que se exprime através do envio da citação ao magistrado do Ministério Público competente -, optar ou não optar pela representação processual do Ministério Público. E fá-lo sem assegurar que este tenha intervenção principal nos processos em que estão em causa interesses que lhe cumpre defender, sem subordinar a decisão de constituir mandatário próprio à observância de quaisquer pressupostos, por mínimos que sejam, e sem estabelecer especiais exigências de fundamentação. Assim, concedeu ao Executivo uma ampla margem para determinar, segundo critérios de oportunidade e conveniência, se a intervenção principal do Ministério Público, nas ações em que o Estado é parte e em que está em causa a defesa dos seus interesses patrimoniais, sequer ocorre. Deste ponto de vista, é manifesto que a solução legal sub judicio não exprime qualquer ponderação de que possa inferir-se ter sido intenção do legislador permitir, apenas em casos justificados, que fosse retirada ao Ministério Público a incumbência que a Constituição e o próprio EMP lhe atribuem. Pelo contrário, o que nela vai pressuposto é que o Ministério Público deixa de ser, em regra, competente para representar o Estado em juízo, função cuja probabilidade de vir a desempenhar passa a ser igual àquela que assiste a qualquer profissional do foro habilitado a exercer o patrocínio judiciário. Neste sentido, a norma sindicada abre a porta ao único resultado efetivamente vedado pelo segmento inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição e que é, uma vez mais nas palavras do Parecer 8/82, o seguinte: "o legislador não pode privar, totalmente, o Ministério Público das funções de representação do Estado, em juízo, cometendo-as, por inteiro, a outras entidades".
Em suma: ao converter a representação do Estado pelo Ministério Público, quando demandado na ação, numa "mera possibilidade, sendo a citação seja dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo", o legislador concretizou aquela atribuição em termos tais que não permitem continuar a reconhecer no Ministério Público, pelo menos com a densidade mínima necessária, a competência para "representar o Estado" que lhe é cometida pela Constituição. Nessa medida, a norma sindicada coloca o regime legal de representação do Estado no contencioso administrativo num ponto inconciliável com o n.º 1 do artigo 219.º da Constituição, devendo, por essa razão, ser declarada inconstitucional.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da interpretação conjugada dos artigos 11.º, n.º 1, e 25.º, n.º 4, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (aprovado pela Lei 15/2002, de 22 de fevereiro, na redação dada pela Lei 118/2019, de 17 de setembro), segundo a qual, nos tribunais administrativos, quando seja demandado o Estado ou na mesma ação sejam demandados diversos ministérios, a representação do Estado pelo Ministério Público é uma possibilidade, sendo a citação dirigida unicamente ao Centro de Competências Jurídicas do Estado, que assegura a sua transmissão aos serviços competentes e coordena os termos da respetiva intervenção em juízo.
Atesto o voto de conformidade do Senhor Juiz Conselheiro António José da Ascensão Ramos, que subscreve a declaração de voto apresentada pelo Senhor Juiz Conselheiro José Eduardo Figueiredo Dias. Atesto o voto de conformidade da Senhora Juíza Conselheira Maria Benedita Urbano, que não assina por não estar presente. Atesto o voto de vencida, conforme declaração em anexo, da Senhora Juíza Conselheira Mariana Canotilho. Joana Fernandes Costa
Lisboa, 9 de julho de 2024. - Joana Fernandes Costa - Afonso Patrão - João Carlos Loureiro - José Eduardo Figueiredo Dias (subscrevo a decisão, mas divirjo parcialmente na fundamentação, conforme declaração que junto) - José Teles Pereira - Carlos Medeiros de Carvalho - Gonçalo Almeida Ribeiro - Dora Lucas Neto - Rui Guerra da Fonseca (vencido, nos termos da declaração em anexo) - José João Abrantes.
Declaração de voto
Estou de acordo com a decisão, bem como com a convocação do n.º 1 do artigo 219.º, da Constituição da República, como parâmetro da decisão e, ainda, com largas partes da fundamentação. Todavia, não acompanho a fundamentação nas razões que sustentam a violação daquela norma constitucional, essencialmente nos pontos 13. e seguintes do acórdão, em particular nos 19. a 22.
Na linha dos acórdãos da Segunda Secção mencionados no Acórdão - com os n.os 794/2022, 796/2022, 876/2022, 112/2023 e 113/2023 -, que subscrevi, considero que o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição deve ser interpretado no sentido de conferir ao Ministério Público uma reserva de competência tendencialmente exclusiva de representação processual do Estado no âmbito do contencioso administrativo, isto é, que a representação judicial do Estado pelo Ministério Público corresponde a uma função primária desta magistratura. O exercício dessa representação pelo Ministério Público decorre diretamente da ordem jurídico-constitucional, pelo que está vedada ao legislador ordinário a possibilidade de criação de um novo paradigma de representação judicial do Estado que ponha em causa a reserva constitucional de competência do Ministério Público, a definição de um outro modelo de representação a nível infraconstitucional, designadamente que confira um papel subsidiário, supletivo ou optativo à intervenção desta magistratura como representante judicial do Estado.
Ainda que a reserva constitucional de competência atribuída ao Ministério Público na representação judicial do Estado não tenha um carácter totalmente exclusivo, não devendo ser vista como "[...] um princípio absoluto e inderrogável ou que não conheça limites" (Acórdão 794/2022, par. 7; Acórdão 796/2022, par. 8) - no sentido de que "as especificidades estatutárias do Ministério Público e as finalidades que serve deixam espaço para a intervenção conjunta, a seu lado, de um representante estadual que mais proximamente se apresente ao litígio como portador da lógica conceptual de interesse público da estrutura administrativa, tal como é observado pelos titulares dos seus órgãos governativos" (ibidem) - a verdade é que as atribuições do Ministério Público de representação do Estado são diretamente fixadas por aquela norma constitucional, não sendo remetidas para legislação infraconstitucional.
Ora, as normas em causa configuram um novo paradigma de representação judicial do Estado, conferindo carácter facultativo à intervenção processual do Ministério Público em função de uma escolha totalmente discricionária dos titulares de cargos governativos ou de direção da administração, o que implica que a criação deste novo paradigma de representação judicial do Estado afronta diretamente a reserva constitucional de competência prevista no artigo 219.º, n.º 1, 1.ª parte, da Constituição.
Por estas razões, em meu entender, a inconstitucionalidade da norma sindicada decorre de resultar dela uma inversão do paradigma constitucional da representação do Estado em juízo. ― José Eduardo Figueiredo Dias.
Declaração de voto
Vencido. Considero que a norma objeto não é inconstitucional, pelas razões que, sinteticamente, seguem.
1 - O disposto no artigo 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) constitui, a meu ver, uma norma de função, caracterização que é auxiliada (embora não determinantemente, claro está) pela sua própria epígrafe. Neste sentido, representar o Estado, defender os interesses que a lei determinar, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal e defender a legalidade democrática são, essencialmente, atribuições do Ministério Público (doravante, “MP”), que carecem de tradução posterior em normas de competência. Deixando para já de parte o primeiro segmento, que é o que está aqui em causa, a participação na execução da política criminal pode ocorrer por diversas formas, que carecem de concretização competencial; o mesmo a respeito do exercício da ação penal. De resto, seria estranho incoerente que todos estes segmentos correspondessem a fins/funções/atribuições, e apenas o primeiro (representar o Estado) constituísse um segmento normativo específico de competência. Creio que este sentido de caracterização partilha pressupostos com os da posição protagonizada pelo Conselheiro Pedro Machete, na sua declaração de voto no Acórdão 876/2022, quando qualifica a norma em causa como "princípio".
Aliás, considerar que se tratasse de uma norma de competência em sentido próprio dificultaria - se é que não deixaria mesmo ou por explicar, ou perante outras dúvidas de constitucionalidade - várias das alterações dispositivas que o legislador foi concretizando em matéria de intervenção processual do Ministério Público. À luz de uma caracterização estritamente competencial da norma contida no primeiro segmento do artigo 219, n.º 1 da CRP, a dispositividade da solução proposta para a alteração do artigo 25.º, n.º 4 do CPTA, em 2015, não parece que fosse objeto de apreciação radicalmente distinta da que neste acórdão se analisou.
Já a questão de saber em que medida a Constituição estabelece aqui uma reserva de função, é problema diferente, que não encontra resolução através da caracterização da norma como de função ou competencial.
2 - Apesar de constituir uma norma de função, e de nessa medida comportar uma ampla margem de conformação por parte do legislador, este não poderá esvaziá-la de conteúdo útil, significando isso que a Constituição não permite que o legislador elimine da ordem jurídica infraconstitucional toda e qualquer concretização do primeiro segmento do artigo 219, n.º 1 da CRP. A este respeito, independentemente do exato significado e abrangência da expressão “Estado” no primeiro segmento do artigo 219.º, n.º 1 da CRP, é seguro dizer que o Estado-administração não esgota a norma.
3 - A função do MP a que o primeiro segmento do artigo 219.º, n.º 1 da CRP respeita tem de ser compaginada com outras constitucionalmente garantidas, se se verificar potencial de colisão ou interseção constitucionalmente problemática.
Neste contexto, importa, em primeiro lugar, sublinhar que é o Governo o órgão superior da administração pública (artigo 182.º da CRP). Em segundo lugar, que no âmbito da atividade administrativa da administração governamental ou governamentalmente dependente, se situa a administração processual, "atividade desenvolvida pelas estruturas administrativas e/ou seus mandatários como partes litigantes em processos judiciais ou arbitrais, envolvendo uma conduta processual expressa" em dois momentos essenciais, a "definição de uma estratégia processual" e a "prática de atos processuais" (cf. Paulo Otero, Manual de Direito Administrativo, I, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 211-212; Idem, Direito do Procedimento Administrativo, I, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 343 ss.). Este “Direito Administrativo Processual”, distinto do Direito Processual Administrativo, implica opções jurídico-administrativas pautadas pelo Direito Administrativo substantivo (ainda que a concretizar no plano e dentro dos limites do Direito Processual Administrativo).
Ora, tais opções, como quaisquer outras respeitantes ao Direito Administrativo substantivo (aí incluído o procedimental) têm que - legitimamente - poder ser tomadas no contexto da função administrativa. O aspeto central que aqui importa sublinhar é que, como em várias outras ocasiões já afirmei e deixei escrito, a interpretação de normas jurídicas por parte da administração pública não é politicamente neutra - num sentido de “política”, não que apele a qualquer influência partidária, mas como intencionalidade. A parcialidade que caracteriza a administração pública - no contraponto com a imparcialidade que caracteriza os tribunais e, mais abrangentemente, aqui incluída a magistratura do MP - decorre da sua vinculação à defesa do interesse público; e implica politicidade. Esta dualidade, entre intencionalidade política e intencionalidade especificamente jurídica (a dos tribunais) não só não é estranha, como é constitucionalmente assente, regulada e estrutural. No âmbito de um certo litígio que oponha particulares à administração, as suas pretensões são diversas, mas são as mesmas as normas jurídicas no centro do litígio. Não chegarem ambas as partes ao mesmo resultado deriva, justamente, da visão diferente das suas pretensões, o que no caso da administração pública é determinado pela intencionalidade política que a mesma coloca na leitura das regras aplicáveis, motivada por certa leitura da melhor forma de prosseguir o interesse público. Um tribunal, como terceiro imparcial, terá ou poderá ter uma leitura ainda diferente, pois a sua intencionalidade é especificamente jurídica e não comprometida com certa perspetiva da prossecução do interesse público.
O Governo verá erodida a sua função como órgão superior da administração pública caso seja impedido de, ou lhe seja dificultado, levar as suas opções ao nível da função administrativa material até ao momento processual e de conformar a estratégia processual e os atos processuais nos litígios em que sejam demandados ministérios em defesa daquelas opções primeiras. O “Direito Administrativo Processual” é, assim, um instrumento de opções materiais da função administrativa, pertencendo, portanto, ao núcleo desta última. A escolha da sua representação é também ela instrumental da função do Governo como órgão superior da administração pública.
4 - Os termos de citação constantes do artigo 25.º, n.º 4 do CPTA, e considerando a sua relação com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, são apenas um aspeto instrumental. Neste modo de ver, esses termos são apenas uma consequência da possibilidade que deve assistir ao Estado-administração (governamentalmente dependente) de escolher a sua representação, a partir da citação a um organismo governamental. É certo que, aqui, é o próprio legislador a fazer essa opção a priori, e não o Estado-administração (como era no projeto de 2015 de revisão do CPTA). Mas não faz sentido desvalorizar, para o que ora está em causa, que estamos perante um ato legislativo de iniciativa governamental (e que é, aliás, reversível). De resto, o CPTA continua a assegurar a intervenção do MP no contencioso administrativo (artigo 85.º), assim dando corpo neste âmbito ao complexo funcional emergente dos diversos segmentos do artigo 219.º, n.º 1 da CRP. ― Rui Guerra da Fonseca.
Declaração de voto
Vencida.
Mantenho o entendimento explanado na declaração de voto aposta ao Acórdão 794/2022, que aqui parcialmente reproduzo:
“A missão primordial do Ministério Público, que a Constituição inequivocamente lhe atribui, sem paralelo, também em sede do artigo 219.º, n.º 1, é a da defesa da legalidade democrática; é, pois, a essa luz que entendo o mandato constitucional de representação do Estado: este significa “em termos jurídico-constitucionais e simbólicos, que lhe incumbe a tarefa de defesa dos interesses da comunidade (isto é, da República) em que se possa reconhecer cada um dos cidadãos e o povo em geral, não só porque se considera necessária essa incumbência, mas também porque ela se julga justa e adequada ao bem comum” (cf. J. J. Gomes Canotilho e V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 603).
Nestes termos, atentas as dificuldades hermenêuticas e de concretização do parâmetro constitucional, bem como os conflitos e incompatibilidades que podem resultar do exercício simultâneo da função de representação do Estado-Administração e das restantes tarefas que a Constituição atribui ao Ministério Público, creio que a CRP não impõe ao legislador ordinário o dever de assegurar um reduto de representação obrigatória do Estado-Administração por aquele órgão. Por outro lado, considerando que a representação do Estado remete, na minha ótica, e em primeiro lugar, para a defesa do Estado-Coletividade (por outras palavras, para a defesa da República), menos ainda partilho a afirmação da existência de uma de reserva constitucional de competência para representação do Estado-Administração, em ações nas quais estão, sobretudo, em causa, interesses patrimoniais.
Por esta razão, entendo que a consagração constitucional da competência do Ministério Público para representar o Estado pode e dever ser lida como subsidiária, estando na disponibilidade do “representado” (o Estado-Administração) o seu concreto exercício. Ou seja, a CRP atribui àquele órgão a competência necessária para representar o Estado em juízo, pressupondo-se até que essa será a solução no caso de omissão legislativa na matéria. Todavia, a norma paramétrica em causa não prescreve ao legislador ordinário nem uma fórmula de concretização dessa representação, nem âmbitos ou matérias em que ela deva imperativamente operar. Nestes termos, julgo ser devida, neste campo, ampla margem de conformação ao legislador democrático, podendo este - como fez, através da solução normativa questionada e ora julgada inconstitucional - optar por um modelo mais próximo da representação voluntária. Isso não significa, claro está, que o Ministério Público não possa ter intervenção principal nos processos em que o Estado-Administração é demandado, representando-o em juízo, com o propósito de assegurar a tutela jurisdicional dos interesses que este deva prosseguir. Excluir essa possibilidade - instituindo, por exemplo, um “corpo de advogados do Estado” - seria, aliás, no meu entender, contrário ao disposto no artigo 219.º da Constituição. Simplesmente, a CRP não obriga a que assim seja, podendo desenhar-se soluções de recorte distinto, por via legislativa. É o que sucede no presente caso, e por esse motivo divirjo do juízo de inconstitucionalidade”.
Embora a fundamentação do presente aresto constitua, no meu entender, uma evolução positiva em relação à adotada nos Acórdãos n.os 794/2022, 796/2022 e seguintes, da 2.ª Secção, que integro, a verdade é que se mantém um juízo de desconformidade constitucional do qual me afasto. Partilho, naturalmente, da premissa segundo a qual “não é possível extrair da Constituição qualquer argumento que favoreça o entendimento de que a função cometida ao Ministério Público pelo inciso inicial do n.º 1 do artigo 219.º da Constituição integra o monopólio da representação em juízo do Estado-Administração, na defesa dos seus interesses patrimoniais”. Não creio é que isso determine uma redução da margem de conformação do legislador de forma a impor que o Ministério Público tenha de ter “por regra, intervenção principal nos processos em que é demandado o Estado”, e que essa decisão não possa estar, por escolha democraticamente legitimada, a cargo do Governo. No meu entender, nada na solução legal questionada descaracteriza o mandato constitucional que é atribuído ao Ministério Público, e não resulta das premissas assumidas no presente julgamento que assim seja, razão pela qual mantenho a minha dissidência. ― Mariana Canotilho.
118107861
Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5896392.dre.pdf .
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1984-04-27 -
Decreto-Lei
129/84 -
Ministérios da Justiça e das Finanças e do Plano
Aprova o estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (no uso da autorização conferida ao Governo pela Lei n.º 29/83, de 8 de Setembro).
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1984-11-29 -
Decreto-Lei
374/84 -
Presidência do Conselho de Ministros e Ministérios da Justiça e das Finanças e do Plano
Regulamenta o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
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1985-07-16 -
Decreto-Lei
267/85 -
Ministério da Justiça
Aprova a lei de processo nos tribunais administrativos.
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1986-03-21 -
Lei
4/86 -
Assembleia da República
Altera, por ratificação, os Decretos-Leis n.os 129/84, de 27 de Abril, e 374/84, de 29 de Novembro (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
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1986-10-15 -
Lei
47/86 -
Assembleia da República
Aprova a orgânica do Ministério Público.
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1990-01-20 -
Lei
2/90 -
Assembleia da República
Altera o sistema retributivo dos magistrados judiciais e do ministério público.
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1992-08-20 -
Lei
23/92 -
Assembleia da República
Altera a Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, que aprova a lei orgânica do Ministério Público.
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1995-12-12 -
Decreto-Lei
329-A/95 -
Ministério da Justiça
Revê o Código de Processo Civil. Altera o Código Civil e a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais
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1996-08-26 -
Lei
33-A/96 -
Assembleia da República
Altera a Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro que aprova a lei orgânica dos tribunais judiciais e altera a lei orgânica do Ministério Público, aprovada pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro.
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1998-08-27 -
Lei
60/98 -
Assembleia da República
Altera a orgânica do Ministério Público, aprovada pela Lei nº 47/86 de 15 de Outubro passando a denominar-se Estatuto, e procede à sua republicação.
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1999-10-26 -
Decreto-Lei
433/99 -
Ministério das Finanças
Aprova o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)
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2002-02-19 -
Lei
13/2002 -
Assembleia da República
Aprova o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, altera o regime jurídico das empreitadas de obras públicas, o Código de Processo Civil, o Código das Expropriações e a Lei de Bases do Ambiente.
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2002-02-22 -
Lei
15/2002 -
Assembleia da República
Aprova o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPPTA) e procede a algumas alterações sobre o regime jurídico da urbanização e edificação estabelecido no Decreto-Lei nº 555/99 de 16 de Dezembro.
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2004-01-15 -
Lei
3/2004 -
Assembleia da República
Aprova a lei quadro dos institutos públicos.
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2005-08-29 -
Lei
42/2005 -
Assembleia da República
Altera a Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) (terceira alteração), oitava alteração à Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais), quinta alteração à Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro (Estatuto do Ministério Público), e quarta alteração ao Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto (Estatuto dos Funcionários de Justiça), diminuindo o período de férias judiciais no Verão.
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2007-12-31 -
Lei
67/2007 -
Assembleia da República
Aprova o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas e altera (sexta alteração) o Estatuto do Ministério Público.
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2015-10-02 -
Decreto-Lei
214-G/2015 -
Ministério da Justiça
No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 100/2015, de 19 de agosto, revê o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código dos Contratos Públicos, o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, a Lei de Participação Procedimental e de Ação Popular, o Regime Jurídico da Tutela Administrativa, a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos e a Lei de Acesso à Informação sobre Ambiente
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2017-12-06 -
Decreto-Lei
149/2017 -
Presidência e da Modernização Administrativa
Aprova a orgânica do Centro de Competências Jurídicas do Estado
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2019-08-27 -
Lei
68/2019 -
Assembleia da República
Aprova o Estatuto do Ministério Público
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2019-09-17 -
Lei
118/2019 -
Assembleia da República
Modifica regimes processuais no âmbito da jurisdição administrativa e tributária, procedendo a diversas alterações legislativas
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