Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 868/2023, de 12 de Fevereiro

Partilhar:

Sumário

Decide, com respeito às contas anuais do Partido LIVRE, referentes a 2015, julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela responsável financeira, da decisão de 21 de setembro de 2021, da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, e revogando-a no seu segmento sancionatório, admoestar a arguida pela prática de contraordenação

Texto do documento

Acórdão 868/2023

Sumário: Decide, com respeito às contas anuais do Partido LIVRE, referentes a 2015, julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela responsável financeira, da decisão de 21 de setembro de 2021, da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, e revogando-a no seu segmento sancionatório, admoestar a arguida pela prática de contraordenação.

Processo 25/22

Aos doze dias do mês de dezembro de dois mil e vinte e três, achando-se presentes o Juiz Conselheiro Presidente José João Abrantes e os Juízes Conselheiros José Teles Pereira, António da Ascensão Ramos, João Carlos Loureiro, Maria Benedita Urbano, Gonçalo de Almeida Ribeiro, Mariana Canotilho, Joana Fernandes Costa, Afonso Patrão, Rui Guerra da Fonseca e Carlos Medeiros Carvalho, foram trazidos à conferência, em sessão plenária do Tribunal Constitucional, os presentes autos.

Após debate e votação, foi, pelo Exmo. Conselheiro Vice-Presidente, por delegação do Exmo. Conselheiro Presidente, nos termos do artigo 39.º, n.º 2, da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional - referida adiante pela sigla «LTC»), ditado o seguinte:

I. Relatório

1 - Nos presentes autos de recurso jurisdicional em matéria de contas dos partidos políticos, vindos da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (doravante designada apenas por «ECFP»), em que é recorrente Marisa Galiza Filipe, na qualidade de responsável financeira do LIVRE nas contas anuais deste Partido Político referentes a 2015, foi interposto o presente recurso da decisão daquela Entidade, de 21 de dezembro de 2021, que sancionou contraordenacionalmente a recorrente.

2 - Por decisão de 22 de novembro de 2018, a ECFP julgou prestadas, com irregularidades, as contas anuais, referentes a 2015, do LIVRE (v. artigo 26.º, n.º 2, da Lei 19/2003, de 20 de junho [Lei de Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, referida adiante pela sigla «LFP»] e artigo 32.º, n.º 1, alínea c), da Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro [Lei da Organização e Funcionamento da ECFP, referida adiante pela sigla «LEC»]). A irregularidade apurada foi a «deficiência no processo de prestação de contas - demonstrações financeiras - deficiências essas que atingem dimensão tal que impede a análise das contas do Partido e, necessariamente, a aferição da realidade a elas subjacente, situação atentatória do artigo 12.º da Lei 19/2003».

3 - Na sequência dessa decisão, a ECFP levantou um auto de notícia e instaurou processo contraordenacional contra o LIVRE e contra Marisa Galiza Filipe, na qualidade de responsável financeira do Partido nas contas anuais de 2015, pela prática das irregularidades verificadas naquela decisão. Os arguidos foram notificados do processo de contraordenação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 44.º, n.os 1 e 2, da LEC e no artigo 50.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro (Regime Geral das Contraordenações, referido adiante pela sigla «RGCO»), tendo a arguida Marisa Galiza Filipe apresentado a sua defesa.

4 - Por decisão de 21 de setembro de 2021, a ECFP aplicou:

a) Ao LIVRE, uma coima no valor de 10 (dez) SMN de 2008, perfazendo a quantia de (euro)4.260,00 (quatro mil duzentos e sessenta euros), pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.º 1, da LFP;

b) A Marisa Galiza Filipe, enquanto responsável financeira do Partido nas contas anuais de 2015, uma coima no valor de 5 (cinco) SMN de 2008, perfazendo a quantia de (euro)2.130,00 (dois mil cento e trinta euros), pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.os 1 e 2, da LFP.

5 - A arguida Marisa Galiza Filipe recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 23.º e 46.º, n.º 2, da LEC, e do artigo 9.º, alínea e), da LTC, através de requerimento com o seguinte teor:

«Foi aplicada ao arguido "LIVRE" a coima de 4.260,00(euro), correspondente ao valor de 10 salários mínimos nacionais de 2008;

Da mesma forma, foi aplicada à arguida Marisa Galiza Filipe, enquanto responsável financeira do partido nas contas anuais de 2015 a coima de 2.130,00(euro), correspondente ao valor de 5 salários mínimos nacionais de 2008;

A ambos foram imputadas insuficiências na apresentação de contas anuais do partido relativas ao ano de 2015;

O partido LIVRE foi legalizado em março de 2014;

Conforme reconhecido na factualidade provada e na fundamentação da decisão, no momento de apresentação das referidas contas o partido tinha pouco mais de dois anos;

Sendo certo que a apresentação das referidas contas anuais se revelaram de extrema dificuldade tendo em conta as especificidades do regime da contabilidade dos partidos políticos;

A factualidade em causa não foi praticada com dolo, porquanto os atos em causa foram praticados na convicção de serem suficientes e necessários à correta entrega das contas anuais do partido;

No momento da entrega das contas em causa o partido passava uma situação financeira extremamente delicada, tendo, como aliás resulta das contas anuais de 2015, encerrado o ano com um passivo substancial, resultante da campanha para as eleições legislativas;

Ora, tal significou que não foi possível o partido contratar serviços especializados em contabilidade de partido políticos (ou qualquer outro tipo de contabilidade);

Tendo em conta a falta de conhecimentos técnicos as contas em causa foram apresentadas na convicção de que tais documentos seriam os suficientes e necessários para a correta apresentação de contas;

Ora, de tal facto resulta que no momento da entrega das contas anuais de 2015 desconhecia-se a virtualidade da possibilidade de conduta ilícita por parte dos agentes;

Porquanto inexistia qualquer dolo;

Inexistindo dolo na prática dos factos imputados, não se encontra verificado um dos pressupostos para a aplicação de uma contraordenação;

Pelo que a decisão de deliberou aplicar uma coima aos recorrentes deve ser revogada e substituída por uma que os absolva;

Caso assim não se entenda, o que se equaciona por mera hipótese de raciocínio, sempre se dirá igualmente o seguinte:

A própria decisão reconhece excepcionais situações atenuantes, sejam a idade recente do partido aquando da apresentação das contas anuais de 2015, seja igualmente o facto de a posteriori a responsável pela apresentação destas contas ter corrigido os documentos em falta;

Ora, tendo tais factos presentes, a aplicação das coimas em causa, pelos seus montantes, revela-se desproporcionada e excessiva;

Até por comparação com a situação financeira do partido no momento a que se reportam os factos em causa;

Pelo que, para obviar à repetição dos factos em causa a admoestação revelar-se-ia como uma sanção mais razoável e proporcional, pelo que, em alternativa, se requer a V. Exas. a revogação da decisão proferida e a sua substituição por decisão que aplique aos recorrentes a sanção de admoestação.

CONCLUSÕES

A. Os factos imputados aos recorrentes não foram praticados com dolo;

B. Porquanto foram praticados na convicção de serem suficientes e necessários ao cumprimento das obrigações legais;

C. Ora, a inexistência de dolo exclui, por maioria de razão, a aplicação de qualquer sanção;

D. Pelo que a decisão de aplicação de coima deve ser revogada e substituída por outra que absolva os arguidos;

E. Caso assim não se entenda:

F. Deverá a decisão ser revogada e substituída pela aplicação de simples admoestação;

G. Porquanto a coima aplicada revela-se desproporcionada face à gravidade da situação;

H. Existindo inclusivamente factores atenuantes extremamente relevantes, conforme reconhecido na própria decisão, seja a inexperiência e o facto do partido ser muito recente no momento da prática dos mesmos, seja por terem a posteriori sido entregues os documentos necessários, seja por fim face à situação financeira dos recorrentes».

6 - Por deliberação de 5 de janeiro de 2022, a ECFP, ao abrigo do artigo 46.º, n.º 5, da LEC, sustentou a decisão recorrida e determinou a remessa dos autos ao Tribunal Constitucional.

7 - Recebidos os autos no Tribunal Constitucional, foi proferido despacho, datado de 18 de janeiro de 2022, que determinou a notificação da recorrente para que demonstrasse dispor de poderes para apresentar o recurso em representação do LIVRE, uma vez que «[d]a leitura do requerimento de interposição de recurso, verifica-se que, embora no respetivo introito se refira que o mesmo é interposto pelo Partido Livre e pela sua responsável financeira, Marisa Galiza Filipe, o referido requerimento apenas se encontra assinado por esta, sem qualquer menção de que o tenha feito, também, em representação do Partido».

8 - Por despacho datado de 8 de abril de 2022, o Tribunal Constitucional considerou sem efeito o recurso apresentado por Marisa Galiza Filipe na parte em que representa o LIVRE, tendo admitido liminarmente o recurso interposto na parte respeitante à coima aplicada à recorrente, na qualidade de responsável financeira do Partido nas contas anuais de 2015.

9 - O Ministério Público pronunciou-se, nos termos do artigo 103.º-A, n.º 1, da LTC, no sentido de ser negado provimento ao recurso. Notificada, Marisa Galiza Filipe apresentou resposta ao parecer do Ministério Público, reiterando os argumentos que já havia aduzido no processo.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

A. Considerações gerais

10 - A Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, veio alterar, entre outras, a LFP e a LEC, introduzindo profundas modificações no regime de apreciação e fiscalização das contas dos partidos políticos e no regime de aplicação das respetivas coimas.

Considerando que, à data de entrada em vigor desta lei - 20 de abril de 2018 (artigo 10.º), os presentes autos aguardavam julgamento respeitante à legalidade e regularidade das contas, tal regime é-lhes aplicável, nos termos da norma transitória do artigo 7.º da referida Lei Orgânica.

A respeito do novo regime legal, quer quanto à competência de fiscalização, quer quanto ao regime processual, foram desenvolvidas algumas considerações no Acórdão 421/2020 (acessível, assim como os demais acórdãos adiante citados, a partir da hiperligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), para o qual se remete, salientando-se aqui que a alteração mais significativa diz respeito à competência para apreciar a regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, bem como aplicar as respetivas coimas que, até abril de 2018, pertencia ao Tribunal Constitucional e passou agora a ser atribuída à ECFP (artigos 9.º, n.º 1, alínea d), da LEC, e 24.º, n.º 1, da LFP).

Assim, nos termos do novo regime legal, cabe ao Plenário do Tribunal Constitucional apreciar, em recurso de plena jurisdição, as decisões daquela Entidade em matéria de regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, incluindo as decisões de aplicação de coimas (artigo 9.º, alínea e), da LTC).

No referido Acórdão 421/2020 esclareceu-se ainda, relativamente à competência do Tribunal em matéria de regularidade e legalidade das contas, que a apreciação deverá obedecer a critérios de legalidade, centrados na ordem de valores que o regime de financiamento dos partidos pretende tutelar, não se resumindo a uma aplicação mecânica de critérios de natureza estritamente financeira e contabilística (v., entre outros, os Acórdãos n.os 979/1996 e 563/2006).

B. Questões a decidir

11 - Em face do teor da motivação, as questões a decidir a respeito do recurso da decisão sancionatória da ECFP, datada de 21 de setembro de 2021, são as seguintes:

a) Definitividade de decisão declaratória da ECFP, de 22 de novembro de 2018, que julgou prestadas, com irregularidades, as contas anuais apresentadas pelo LIVRE;

b) Subsunção dos factos dados como provados ao ilícito imputado;

c) Espécie e medida concreta da sanção.

C. Questão prévia: definitividade da decisão declaratória

12 - A questão que se coloca é a de saber se, não tendo sido interposto recurso da decisão declaratória da ECFP, datada de 22 de novembro de 2018, a mesma tem, no âmbito da subsequente fase sancionatória, efeito de caso decidido quanto aos factos que consubstanciam as irregularidades nela apuradas.

A resposta é inequivocamente negativa.

Como resulta do relatório da presente decisão, são duas as decisões tomadas pela ECFP: (i) a decisão de 22 de novembro de 2018, tomada no âmbito do processo PA 17/CA/15/2018, na qual julgou prestadas, com irregularidades, as contas anuais, referentes a 2015, do LIVRE; e (ii) a decisão de 21 de setembro de 2021, proferida no processo contraordenacional n.º 5/2020, nos termos da qual foi deliberado aplicar à arguida a sanção de coima pela prática da contraordenação prevista e punida no artigo 29.º, n.os 1 e 2, da LFP.

A arguida Marisa Galiza Filipe interpôs recurso da última decisão.

Ora, ainda que a decisão de 22 de novembro de 2018, tomada no âmbito do processo PA 17/CA/15/2018, não tenha sido autonomamente impugnada, as matérias que constituem o seu objeto são convocadas no contexto do apuramento da responsabilidade contraordenacional da arguida. Com efeito, a verificação da existência de infrações às regras que regem os financiamentos dos partidos políticos e das campanhas eleitorais constitui condição necessária da responsabilidade contraordenacional pelos delitos previstos na legislação sobre a matéria, dado que os tipos contraordenacionais estão construídos sobre a violação das regras de financiamento, aqui entendidas em sentido amplo, isto é, abrangendo a obtenção de receitas e a realização de despesas. Esta afirmação é justificada pela conjunção de duas circunstâncias. Em primeiro lugar, da verificação de que todas as infrações contraordenacionais são também, pelo menos no plano objetivo, infrações às regras que regem o financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais; em segundo lugar, da verificação de que nem todas as infrações às regras sobre financiamento implicam necessariamente ilicitude contraordenacional. Assim, não só o conjunto dos comportamentos que constituem infração às regras atinentes ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais é mais extenso do que o conjunto dos comportamentos que constituem contraordenação, como também que este constitui necessariamente um subconjunto do primeiro (neste sentido, cf. Acórdão 509/2023, § 9.).

A decisão proferida na primeira fase do processo relativo à regularidade de legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, que julgou prestadas as contas anuais de 2015 com irregularidades (decisão declaratória), tem como objeto, apenas, a apreciação das contas dos partidos e das campanhas eleitorais (v. os artigos 25.º, 32.º, 35.º e 43.º da LEC). Nessa decisão, a ECFP limitou-se a sindicar o cumprimento da obrigação de prestação de contas e a existência ou não de irregularidades nas mesmas (v. os artigos 32.º e 43.º da LEC). Em suma, conforme se refere no citado Acórdão 421/2020, tal decisão «esgota-se na identificação («discriminação», na letra da lei) das irregularidades detetadas nas contas (dos partidos ou das campanhas), sem lhes fixar qualquer tipo de efeito ou consequência jurídica».

Assim, muito embora a decisão declaratória proferida pela ECFP seja autonomamente recorrível, a sua não impugnação não se projeta diretamente na fase subsequente, que tem por objeto o apuramento da responsabilidade contraordenacional, designadamente do partido político e do responsável financeiro, bem como a definição das respetivas consequências jurídicas. Dito de outro modo, a não impugnação da decisão que se pronunciou sobre a irregularidade das contas apresentadas não tem como consequência que a matéria de facto nela apurada se deva ter por definitivamente fixada para efeitos da aplicação de coimas.

Precisamente porque a existência de infrações às regras que regem os financiamentos dos partidos políticos e das campanhas eleitorais é condição necessária da responsabilidade contraordenacional pelos delitos previstos na legislação sobre a matéria, poderá a ECFP, depois de proferida a decisão declaratória, instaurar procedimento contraordenacional, assim iniciando uma segunda fase em que lhe compete apurar se as irregularidades apuradas configuram a prática de ilícitos contraordenacionais. Nesse caso, é levantado um auto de notícia, que deve observar os requisitos do artigo 243.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (aplicável ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO), dele constando, entre o mais, os factos que constituem a contraordenação imputada, de forma que o arguido possa, em relação aos mesmos, ser ouvido e exercer a sua defesa (v. o artigo 50.º do RGCO e o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição). Por outro lado, cumprida a instrução do processo, a decisão condenatória que venha a ser proferida - devendo conter os elementos referidos no artigo 58.º do RGCO -, se vier a ser impugnada judicialmente, vale como acusação (v. o artigo 62.º do RGCO).

Daí decorre que, no caso de impugnação da decisão proferida pela ECFP sobre a aplicação de coimas em matéria de contas dos partidos ou de campanhas eleitorais, o Tribunal Constitucional, ao apreciar tal decisão em recurso de plena jurisdição, pode escrutinar a impugnação da matéria de facto nela dada como provada, não estando limitado na sua apreciação pela circunstância de não ter sido impugnada a decisão declaratória proferida por aquela Entidade. Acresce que, mesmo nos casos em que tenham sido impugnadas ambas as decisões - declaratória e sancionatória -, «a repartição do ónus da prova tem de ser diversa [em matéria contraordenacional], deslocando-se o encargo de demonstração cabal dos elementos típicos da infração para a esfera pública». Com efeito, o estalão probatório do in dubio pro reo impõe-se no plano sancionatório, na medida em que «o princípio da presunção de inocência pertence àquela classe de princípios materiais do processo penal que, enquanto constitutivos do Estado de direito democrático, são extensíveis ao direito sancionatório público, nomeadamente o processo contraordenacional, nos termos do artigo 32.º, n.os 2 e 10, da Constituição» (§ 15.2.2.4. do Acórdão 509/2023).

Em suma, tendo o procedimento de natureza contraordenacional um objeto e uma finalidade diferentes do procedimento inicial relativo à verificação da regularidade das contas, a decisão declaratória proferida pela ECFP, mesmo que - não tendo sido impugnada - venha a tornar-se definitiva, não impede o Tribunal Constitucional de, no quadro do recurso da decisão da ECFP em matéria contraordenacional, apreciar todas as questões relevantes, inclusive a matéria de facto. A não interposição de recurso da decisão proferida na primeira fase do processo apenas torna definitiva tal decisão no que respeita ao seu objeto específico - as irregularidades verificadas -, sendo certo que, como se referiu, tais irregularidades poderão nem ter relevância contraordenacional. A não impugnação da decisão proferida na primeira fase do processo não tem, pois, nenhum efeito preclusivo sobre a defesa do arguido em relação aos factos que lhe tenham sido imputados.

D. Mérito da decisão sancionatória

13 - Matéria de facto

13.1 - Factos provados

Com relevo para a decisão, provou-se que:

1 - O Partido LIVRE (L) é um Partido Político português, tendo sido constituído em 19 de março de 2014, encontrando-se registado no Tribunal Constitucional.

2 - Por comunicação eletrónica de 29 dezembro de 2015, foi identificada como Responsável Financeira pelas contas do Partido de 2015, Marisa Galiza Filipe.

3 - O LIVRE apresentou, a 31 de maio de 2016, as contas relativas ao ano de 2015.

4 - Nas contas anuais de 2015, Partido não entregou a demonstração dos fluxos de caixa e o anexo às demonstrações financeiras.

5 - Nas contas apresentadas existem, à data de 31 de dezembro de 2015, as seguintes divergências entre os seguintes valores constantes do balanço e da demonstração de resultados e os seguintes valores constantes do balancete analítico:

5.1 - No balanço, a rubrica «caixa e depósitos bancários» apresenta o valor de (euro)663,34. No balancete analítico, a rubrica «Caixa» apresenta o valor de (euro)-2.826,61 e a rubrica «Depósitos à Ordem» apresenta o valor de (euro)100.250,76, pelo que o somatório do saldo de ambas perfaz o valor total de (euro)97.424,15.

5.2 - No balanço, o resultado líquido dos fundos patrimoniais apresenta o saldo negativo no valor de (euro) 66.273,00, sendo que o somatório das parcelas que compõem tais fundos no balancete analítico apresenta o valor total de (euro)92.414,09 (a classe 1 - Disponibilidades apresenta o valor de (euro)97.424,15; a classe 2 - Terceiros apresenta o valor (euro) 1013,68; e a classe 5 - Capital, Reservas e Resultados Transitados apresenta o valor (euro) 3.096,38).

5.3 - No balanço, o passivo não corrente apresenta o valor de (euro)63.404,48, sendo que o valor apresentado no balancete analítico (rubrica outros credores) é de (euro)1.404,48.

5.4 - A subclasse «fornecedores» apresenta um saldo no balanço no valor de (euro)196,29, e o balancete analítico, na subclasse «fornecedores», apresenta um saldo no valor de (euro)269,90.

5.5 - Na demonstração de resultados, a rubrica «Vendas e Serviços Prestados» apresenta saldo no valor de (euro)117.357,26, sendo que o valor que consta no balancete analítico apresenta um saldo no valor de (euro)127.118,07.

5.6 - Na demonstração de resultados, a rubrica «Fornecimentos e Serviços Externos» apresenta o valor de (euro)177.663,02, sendo que o valor indicado na mesma rubrica do balancete analítico é de (euro)28.736,63.

6 - Nas contas apresentadas, o Partido registou, na rubrica de depósitos à ordem, a sub-rubrica «121 - MG9 003602659910002287970», que apresenta saldo no valor de (euro)67.887,31, e a sub-rubrica «122 - M G5 265.10.002369-5», que apresenta o saldo no valor (euro)26.554,73, relativamente às quais não apresentou os respetivos extratos dos movimentos bancários.

7 - Nas contas apresentadas, foi registado, em 31 de dezembro de 2015, na sub-rubrica de depósitos à ordem «123-CGD Quotas 0257017275530» o saldo no valor de (euro)5.808,72, divergente do saldo constante do extrato bancário da conta 0257017275530, da Caixa Geral de Depósitos, S. A. que, naquela data, apresenta o valor (euro)2.646,75.

8 - Ao agir conforme descrito nos pontos 4. a 7. dos factos provados, a arguida representou como possível a inobservância de deveres legais suscetível de punição, conformando-se com essa possibilidade e apresentando as contas nessas condições.

9 - A arguida sabia que a sua conduta era proibida e contraordenacionalmente sancionável, tendo agido livre, voluntária e conscientemente.

10 - Nas contas de 2015, o LIVRE registou:

10.1 - No balanço: um total do ativo de (euro)7.078,01; um total do capital próprio de (euro) 61.09,67; e um total do passivo de (euro)69.007,68.

10.2 - Na demonstração de resultados do ano: rendimentos no valor (euro)112.076,15 e gastos no valor (euro)175.555,03.

11 - Por referência ao ano de 2015, o LIVRE não recebeu subvenção estatal.

12 - Por referência ao ano de 2019, o LIVRE recebeu subvenção estatal no valor de (euro)30.325,99.

13 - Em 8 de junho de 2020, no âmbito dos presentes autos, a arguida Marisa Galiza Filipe apresentou os seguintes documentos:

13.1 - Balanço respeitante às contas anuais de 2015 retificado.

13.2 - Balancete Razão respeitante às contas anuais de 2015, à data de dezembro, retificado.

13.3 - Balancete Analítico respeitante às contas anuais de 2015, à data de dezembro, retificado.

13.4 - Demonstração de Resultados respeitante às contas anuais de 2015 retificada.

13.5 - Extratos dos movimentos bancários respeitantes ao período de 1 de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 2015 da conta 0257017275530, da Caixa Geral de Depósitos.

13.6 - Extratos de movimentos bancários respeitantes ao período de 1 de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 2015, sem identificação da conta bancária a que respeitam, encontrando-se o ficheiro eletrónico identificado com a designação «Extrato-Montepio-Total- 9-2015».

13.7 - «Demostração (individual/consolidada) de fluxos de caixa período findo em: res/2015».

13.2 - Factos não provados

Com relevância para a decisão, não há factos não provados.

13.3 - Motivação da decisão sobre a matéria de facto

A decisão sobre a matéria de facto resulta da análise conjugada da prova documental junta aos presentes autos, das regras da experiência e de inferências lógicas. Note-se, no mais, que dos fundamentos invocados no requerimento de interposição do recurso resulta que a recorrente não impugna a matéria de facto.

Para prova do facto 1. foi consultado o sítio público da Internet do Tribunal Constitucional - http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/partidos.html - do qual a mesma se extrai.

A prova do facto mencionado em 2. resulta do teor de fls. 3 do PA 17/CA/15/2018, apenso aos presentes autos.

A prova do facto mencionado em 3. resulta do teor de fls. 7 do PA 17/CA/15/2018, apenso aos presentes autos.

A prova da matéria factual elencada no ponto 4. teve por base as contas apresentadas no âmbito do PA 17/CA/15/2018, apenso aos autos, concretamente o teor dos documentos contabilísticos e bem assim dos documentos de suporte apresentados, dos quais se extrai a ausência de entrega dos sobreditos elementos.

A prova dos factos elencados nos pontos 5. a 5.6. dos factos provados, extrai-se da análise conjugada da demonstração de resultados de fls. 5, do balanço de fls. 6 e do balancete analítico junto a fls. 7 e 8, constantes dos presentes autos.

A prova dos factos enunciados do ponto 6. adveio do teor de fls. 7 e 8 dos presentes autos conjugado com os elementos de prestação de contas apresentados pelo Partido no âmbito do PA 17/CA/15/2018, apenso aos presentes autos, de cuja análise se extrai a ausência dos sobreditos extratos dos movimentos bancários.

A prova da matéria factual descrita no ponto 7. dos factos provados resulta da análise conjugada do balancete de fls. 7 e 8 com os extratos bancários de fls. 9, constantes dos presentes autos.

Embora a recorrente não questione a prática dos factos imputados (tanto mais considerando o envio dos documentos complementares e retificativos constante dos pontos 13. a 13.7. dos factos provados), contesta que a prática da infração lhe possa ser subjetivamente imputada a título de dolo, questionando a factualidade descrita nos pontos 8. e 9. dos factos provados.

A recorrente sustenta que agiu na convicção de ter tomado as diligências suficientes e necessárias à observância dos deveres legais (v. ponto B. das Conclusões do recurso), razão pela qual os factos não foram praticados com dolo, devendo a decisão de aplicação de coima ser substituída por outra que a absolva (v. pontos A e C das Conclusões do recurso). O principal argumento da recorrente - ««tendo em conta a falta de conhecimentos técnicos as contas em causa foram apresentadas na convicção de que tais documentos seriam os suficientes e necessários para a correta apresentação de contas» - é usado para sustentar a exclusão do dolo e, subsidiariamente, a atenuação especial da sanção.

Ora, o que vem alegado não afasta o dolo do tipo contraordenacional, relevando, quando muito, em matéria de consciência da ilicitude do facto. É que a recorrente não contesta que tenha representado e querido o facto descrito no tipo contraordenacional, antes alegando que não representou a sua ilicitude, por estar convencida de que os documentos apresentados nas contas anuais do LIVRE, referentes a 2015, «seriam os suficientes e necessários para a correta apresentação de contas».

Não lhe assiste razão.

Por um lado, a atuação dolosa da arguida - que consiste na atuação com conhecimento de que daí pode resultar, como consequência, o facto punível, e conformando-se o agente com tal possibilidade -, resulta perfeitamente demonstrada na matéria de facto, de acordo com as regras da experiência e inferências lógicas, daí se extraindo que a arguida representou como possível o resultado da sua conduta e conformou-se com essa possibilidade. Considere-se, em particular, que do Relatório da ECFP de fls. 28 a 38 do procedimento administrativo relativo à apreciação das contas constavam já as situações aqui em análise, sendo que a arguida foi do mesmo notificada (cf. fls. 39 e 40 do PA 17/CA/15/2018, apenso aos presentes autos) e, apesar de lhe ter sido concedido prazo para se pronunciar ou retificar as contas, não o fez. Note-se que o dolo, realidade pertencente ao mundo interior do agente, apenas é suscetível de prova, ressalvada a hipótese de confissão, por via indireta ou inferencial.

Por outro lado, as alegações da recorrente são compatíveis com a prática dos factos a título de dolo eventual. Esta refere que, devido à «situação financeira extremamente delicada do partido», «não foi possível o partido contratar serviços especializados em contabilidade de partido políticos (ou qualquer outro tipo de contabilidade)» e que «tendo em conta a falta de conhecimentos técnicos as contas em causa foram apresentadas na convicção de que tais documentos seriam os suficientes e necessários para a correta apresentação de contas». Daqui resulta que, não obstante a arguida ter consciência do risco associado, decidiu elaborar e apresentar as contas anuais de 2015 sem recorrer a serviços técnicos especializados, conformando-se com a possibilidade de as contas anuais apresentadas violarem a LFP. A convicção formada quanto à licitude da atuação («tais documentos seriam os suficientes e necessários para a correta apresentação de contas») funda-se, pois, numa assumida ignorância («tendo em conta a falta de conhecimentos técnicos»), que não afasta o preenchimento do elemento subjetivo do tipo contraordenacional. Assim, encontram-se verificados, na modalidade de dolo eventual, o conhecimento e a vontade exigidos pelo tipo subjetivo previsto no artigo 29.º, n.os 1 e 2, da LFP, pelo que se deve dar como provada a atuação dolosa (facto 8.) da arguida.

Quanto à consciência da ilicitude, constante do ponto 9. dos factos provados, refere a decisão recorrida que a arguida sabia que a conduta praticada era proibida e sancionável como contraordenação, tendo agido livre, voluntária e conscientemente. Vêm indicadas, na motivação da decisão da matéria de facto, as razões para tal juízo, devendo recordar-se que, também aqui, a prova destes factos se faz por via indireta, repousando nas regras da experiência comum e processos inferenciais, designadamente de natureza abdutiva. Em boa verdade, decorre do artigo 9.º do RGCO que a falta de consciência da ilicitude do facto não exclui o dolo, apenas podendo afastar a culpa, quando o erro não for censurável ao agente - o que, no caso, não aconteceria, uma vez que a arguida não poderia desconhecer, sem censura alguma, as obrigações que para si decorrem em matéria de financiamento, em concreto no que respeita à matéria das contas anuais. Como o Tribunal Constitucional tem desde sempre afirmado (v. Acórdãos n.os 77/2011 e 86/2012), estando em causa a observância de regras específicas relativas ao financiamento e apresentação de contas dos partidos políticos, os partidos e os seus responsáveis financeiros não podem, em consciência, deixar de conhecer as normas a que estão vinculados, pelo que a inobservância dos deveres que para eles decorrem da LFP deve, na ausência de motivos justificativos - que neste caso não foram apresentados -, ser-lhes imputado a título de dolo. Assim, a prova da consciência da ilicitude (facto 9.) resulta da matéria objetiva dada como provada, de acordo com as regras da experiência comum e de inferências lógicas.

A prova dos factos constantes dos pontos 10. a 10.2. dos factos provados resulta do teor do balanço e da demonstração de resultados retificados, apresentados no âmbito dos presentes autos a fls. 49 e 52.

A prova da matéria factual descrita no ponto 11. dos factos provados resulta do teor de fls. 14 e 15 do PA 17/CA/15/2018, apenso aos presentes autos.

A prova da factualidade descrita no ponto 12. dos factos provados resulta do teor de fls. 26 dos presentes autos.

A prova dos factos elencados nos pontos 13. a 13.7. dos factos provados adveio do teor de fls. 46 a 121.

14 - Matéria de direito

14.1 - Considerações gerais

A decisão recorrida considerou que a arguida incorreu na prática da contraordenação prevista no artigo 29.º, n.os 1 e 2, da LFP, com fundamento na violação do dever de organização contabilística, imposto pelo artigo 12.º do mesmo diploma, violação essa consubstanciada na «deficiência no processo de prestação de contas - demonstrações financeiras - deficiências essas que atingem dimensão tal que impede a análise das contas do Partido e, necessariamente, a aferição da realidade a elas subjacente».

O artigo 29.º da LFP dispõe, no seu n.º 1, que «os partidos políticos que não cumprirem as obrigações impostas no capítulo II são punidos com coima mínima no valor de 10 vezes o valor do IAS e máxima no valor de 400 vezes o valor do IAS, para além da perda a favor do Estado dos valores ilegalmente recebidos», acrescentando, no seu n.º 2, que «os dirigentes dos partidos políticos que pessoalmente participem na infração prevista no número anterior são punidos com coima mínima no valor de 5 vezes o valor do IAS e máxima no valor de 200 vezes o valor do IAS».

A norma sancionatória prevista no artigo 29.º da LFP atua por remissão geral para os deveres que constam do Capítulo II, o que implica que esta infração contraordenacional se concretize sempre através da associação de, pelo menos, duas normas: a propriamente sancionatória, prevista neste artigo; e a que, descrevendo o comportamento devido, define, a contrario, o comportamento proibido.

No caso vertente, o comportamento proibido é concretizado por referência ao artigo 12.º da LFP, aplicável ex vi do artigo 14.º deste diploma, que estabelece, no seu n.º 1, que «os partidos políticos devem possuir contabilidade organizada, de modo que seja possível conhecer a sua situação financeira e patrimonial e verificar o cumprimento das obrigações previstas na presente lei», aqui se prevendo um dever genérico de organização contabilística. Em causa está, como é bom de ver, a verificação de deficiências de organização contabilística que comprometem a fiabilidade das contas apresentadas, impedindo o conhecimento da real situação financeira e patrimonial dos partidos e não possibilitando a verificação do cumprimento das obrigações a que eles estão legalmente adstritos.

Ora, o conteúdo do dever de organização contabilística é concretizado através dos específicos deveres que resultam, designadamente, dos demais números e alíneas deste artigo; mas a violação do dever genérico ocorre ainda nos casos em que, não se verificando embora a violação de deveres legais específicos, se verifiquem deficiências ou insuficiências de organização contabilística que comprometam a fiabilidade das contas apresentadas. Neste mesmo sentido, tem o Tribunal Constitucional sublinhado que «o dever de organização contabilística por parte dos partidos reflete-se em diversos factos, que podem implicar quer o incumprimento de específicos deveres impostos pela LFP, quer deficiências ou insuficiências que comprometem a fiabilidade das contas apresentadas» (v., entre outros, os Acórdãos n.os 198/2010, 711/2013, e 246/2021). No recente Acórdão 81/2021, afirmou-se que «a não apresentação da documentação de suporte dos rendimentos e gastos registados e do extrato bancário relativo à conta de depósitos bancários referentes a 2012 constitui uma violação do dever de organização contabilística que impende sobre os partidos políticos, já que, por força da remissão para o Sistema de Normalização Contabilística, constante do n.º 2 do referido artigo 12.º, a apresentação de tais documentos constitui uma obrigação legal, o mesmo sucedendo, por força da alínea a) do respetivo n.º 7, com os extratos bancários», acrescentando que «constituindo uma insuficiente comprovação das despesas e receitas do partido em violação de um dos deveres impostos no Capítulo II da LFP, tal atuação é subsumível ao tipo objetivo de ilícito previsto no n.º 1 do artigo 29.º da referida Lei, pelo qual o arguido é responsável no plano contraordenacional».

A análise dos pressupostos da responsabilidade contraordenacional prevista no artigo 29.º da LFP aconselha uma breve referência à natureza estruturalmente dolosa dos ilícitos tipificados no referido diploma legal, matéria em que se segue de perto o Acórdão 345/2013. Com efeito, sendo certo que «na ausência de uma norma específica de sentido contrário, os tipos-de-ilícito estruturados a partir da violação dos deveres impostos em matéria de financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais e de apresentação das respetivas contas encontram-se sujeitos, conforme repetidamente afirmado por este Tribunal, à incidência da regra geral constante do artigo 8.º, n.º 1, do RGCO, nos termos do qual "só é punível o facto praticado com dolo"», é igualmente seguro que «a responsabilidade contraordenacional prevista na Lei 19/2003 é compatível com qualquer forma de dolo [...] não pressupondo, além do mais, qualquer intenção especial que concorra com o dolo do tipo ou a ele se adicione com autonomia».

Por último, e no que respeita à responsabilidade contraordenacional prevista no artigo 29.º, n.º 2, da LFP, vale a pena recordar o disposto no artigo 18.º, n.º 1, da LEC, na parte em que «estabelece um mecanismo de identificação dos responsáveis partidários, primariamente dependente de indicação, pelos próprios partidos, dos indivíduos a quem tenha sido deferida a responsabilidade última pela fidedignidade das contas partidárias, ou seja, aqueles a quem se imponha, em especial, o dever de garante acima referido» (v. o Acórdão 711/2013, citando o Acórdão 301/2011). É sobre estes dirigentes que recai o dever de garantir a observância dos deveres impostos aos partidos políticos em matéria de financiamento e organização contabilística, competindo-lhes adotar, no interior das estruturas partidárias, mecanismos e procedimentos que previnam a violação das normas da LFP, designadamente no que respeita à elaboração e apresentação de contas anuais.

14.2 - Preenchimento do tipo contraordenacional

Através da decisão recorrida, a ECFP sancionou a arguida pela prática da contraordenação prevista no artigo 29.º, n.os 1 e 2, da LFP, com fundamento na violação do dever de organização contabilística, imposto pelo artigo 12.º do mesmo diploma, violação essa consubstanciada em quatro núcleos factuais:

i) Omissão de entrega, nas contas anuais de 2015, da demonstração dos fluxos de caixa e do anexo às demonstrações financeiras;

ii) Divergências, nas contas anuais de 2015, entre valores constantes do balanço e da demonstração de resultados, face a valores constantes do balancete analítico;

iii) Omissão de entrega, nas contas anuais de 2015, de extratos de movimentos bancários relativos à rubrica de depósitos à ordem;

iv) Divergência, nas contas anuais de 2015, entre o saldo que consta da sub-rubrica de depósitos à ordem «123-CGD Quotas 0257017275530», constante do balancete analítico, e o saldo constante do extrato bancário da conta 0257017275530, da Caixa Geral de Depósitos, S. A.

Está em causa, no primeiro núcleo factual, a violação do dever genérico de organização contabilística previsto no artigo 12.º, n.º 1, da LFP, já que, por força da remissão para o Sistema de Normalização Contabilística, constante do n.º 2 do referido artigo 12.º, a entrega da demonstração dos fluxos de caixa e do anexo às demonstrações financeiras constitui dever legal dos partidos, pelo que a respetiva inobservância integra o tipo objetivo de ilícito previsto no artigo 29.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma.

Quanto ao segundo núcleo factual, note-se bem que se trata da verificação de divergências entre valores inscritos em instrumentos financeiros elaborados pelo Partido (em concreto, entre o balancete analítico, que serve de base à elaboração do balanço e da demonstração de resultados, e estes dois últimos instrumentos), situação reveladora de uma deficiente organização contabilística, que compromete a fiabilidade das contas apresentadas, o que consubstancia uma violação do dever genérico de organização contabilística previsto no artigo 12.º, n.º 1, da LFP, enquadrável no tipo objetivo de ilícito previsto no artigo 29.º, n.os 1 e 2, da referida Lei.

O terceiro núcleo factual, consistente na omissão da entrega de extratos bancários de movimentos de contas, corresponde à violação do dever específico previsto no artigo 12.º, n.º 7, alínea a), da LFP - e, bem assim, do dever geral de organização contabilística imposto pelo artigo 12.º, n.º 1 -, nos termos do qual «constam de listas próprias discriminadas e anexas à contabilidade dos partidos: a) os extratos bancários de movimentos das contas e os extratos de conta de cartão de crédito», facto que preenche o tipo objetivo de ilícito previsto no artigo 29.º, n.os 1 e 2, da referida Lei.

Finalmente, o quarto núcleo factual respeita a divergências entre saldos constantes de contas bancárias, revelando uma situação de deficiente organização contabilística que compromete a fiabilidade das contas apresentadas, o que consubstancia uma violação do dever genérico de organização contabilística previsto no artigo 12.º, n.º 1, da LFP, subsumível no tipo objetivo de ilícito previsto no artigo 29.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma

Em face do exposto, conclui-se que as condutas da arguida integram os elementos do tipo objetivo da contraordenação prevista e punida pelos n.os 1 e 2 do artigo 29.º da LFP. Quanto ao elemento subjetivo, o respetivo preenchimento baseia-se nos factos provados nos pontos 8. e 9.

14.3 - Consequências jurídicas

Para o caso de se manter a condenação, pretende a recorrente que lhe seja aplicada uma admoestação, atendendo a determinadas circunstâncias atenuantes - a inexperiência organizativa do Partido, a entrega de documentos retificativos e a situação financeira dos recorrentes. A ECFP aplicou à arguida Marisa Galiza Filipe uma coima de (euro)2.130,00 (dois mil cento e trinta euros), equivalente a 5 (cinco) SMN de 2008, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.os 1 e 2, da LFP. Tal infração é sancionável, no caso dos partidos, com coima que varia entre 10 e 400 vezes o valor do SMN de 2008; e, no caso dos responsáveis financeiros, com coima que varia entre 5 e 200 vezes o valor do SMN de 2008.

Segundo o disposto no artigo 51.º, n.º 1, do RGCO, quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifiquem, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação. Assim, são requisitos cumulativos da aplicação da sanção de admoestação: (i) a reduzida gravidade da contraordenação; e (ii) a reduzida gravidade da culpa do agente. Ora, não obstante a elevada importância de que o regime legal do funcionamento e organização das contas dos partidos se reveste no quadro da democracia constitucional, a proporcionalidade das sanções aplicadas implica a ponderação de todas as circunstâncias relevantes. No caso vertente, está em causa uma única infração contraordenacional, fundada na verificação de irregularidades de natureza formal, de cuja prática não resultou, para a arguida, benefício económico algum. Acresce que, conforme resulta dos factos provados, o Partido não recebeu, no ano a que a prática da infração diz respeito, nenhuma subvenção estatal. Na ponderação da culpa, importa relevar a circunstância de a arguida ter procedido ao envio de documentos retificativos - o que, manifestando a intenção de contribuir para a remoção da ilicitude, reduz as exigências de punição -, a juventude da organização na data da ocorrência dos factos e, em especial, não lhe serem conhecidas outras infrações desta índole. Por tudo isto, encontram-se reunidos os pressupostos de aplicação da sanção de admoestação pela prática da contraordenação, constituindo tal sanção a justa medida reclamada pelo caso concreto.

III. Decisão

Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto por Marisa Galiza Filipe, da decisão de 21 de setembro de 2021, da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, e revogando-a no seu segmento sancionatório admoestar a arguida Marisa Galiza Filipe pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.os 1 e 2, da LFP.

Sem custas, por não serem legalmente devidas.

Lisboa, 13 de dezembro de 2023. - Gonçalo Almeida Ribeiro - José Teles Pereira - António José da Ascensão Ramos - João Carlos Loureiro - Maria Benedita Urbano (vencida quanto à aplicação de admoestação ao invés da aplicação de coima pelo mínimo legal) - Mariana Canotilho (vencida quanto à aplicação da pena de admoestação, nos termos da declaração de voto do Sr. Conselheiro Afonso Patrão) - Joana Fernandes Costa (vencida quanto à escolha da sanção aplicada, conforme declaração em anexo) - Afonso Patrão (vencido quanto à substituição da sanção, nos termos da declaração de voto junta) - Rui Guerra da Fonseca - Carlos Medeiros de Carvalho - José João Abrantes

Declaração de voto

Ao contrário da posição que fez vencimento, considero não estarem verificados os pressupostos de que depende a aplicação da admoestação. De acordo com o artigo 51.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro, tal aplicação apenas pode ter lugar quando forem reduzidas a gravidade da infração e a culpa do agente, o que, não obstante a juventude do partido político na data da ocorrência dos factos, me parece dificilmente conciliável com o nível de incumprimento do regime do financiamento dos partidos políticos, globalmente considerado, que os autos evidenciam, tendo em conta o número de irregulares verificadas nas contas apresentadas, bem como a sua diversa tipologia. Joana Fernandes Costa

Declaração de voto

Vencido quanto à substituição da coima por uma simples admoestação.

Em meu juízo, os argumentos mobilizados pelo acórdão (a juventude da organização, a posterior entrega de documentos retificativos, a circunstância de o Partido não ser beneficiário da subvenção estatal no ano da prática da infração e não ter havido benefício económico para a arguida) não conduzem à conclusão da reduzida gravidade da contraordenação. Os partidos políticos são associações privadas com uma função constitucional; e o cumprimento das normas legais de contabilidade - sobretudo em sede da prestação das suas contas anuais - tem importância preponderante, mostrando-se essenciais para que seja possível conhecer a sua situação financeira e patrimonial e verificar o cumprimento das obrigações legais (artigo 12.º/1 da LFP). Nessa medida, a violação das regras formais de organização contabilística aqui em causa - omissão de entrega da demonstração dos fluxos de caixa, do anexo às demonstrações financeiras e dos extratos de movimentos bancários relativos à rubrica de depósitos à ordem; existência de divergências entre valores constantes entre balanço, balancete analítico e saldo da conta à ordem - é, em meu entender, grave, por comprometer a fiabilidade das contas apresentadas e os propósitos inerentes à transparência da contabilidade dos partidos políticos.

As circunstâncias ali referidas devem ser (e foram) ponderadas pela ECFP para fixação da coima no seu mínimo legal. Razão pela qual creio, ao contrário do que decidiu a maioria, que a decisão recorrida deveria ter sido mantida e confirmada. Afonso Patrão.

317324575

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5645714.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 2003-06-20 - Lei 19/2003 - Assembleia da República

    Regula o regime aplicável ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

  • Tem documento Em vigor 2005-01-10 - Lei Orgânica 2/2005 - Assembleia da República

    Regula a organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

  • Tem documento Em vigor 2018-04-19 - Lei Orgânica 1/2018 - Assembleia da República

    Oitava alteração à Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), segunda alteração à Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos Partidos Políticos), sétima alteração à Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais), e primeira alteração à Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei de Organização e Funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda