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Acórdão 865/2023, de 5 de Fevereiro

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Sumário

Decide, com respeito às contas anuais do Partido da Terra (MPT) referentes a 2015, julgar improcedente o recurso interposto da decisão de 27 de novembro de 2020, da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, e manter a condenação em coima, pela prática de contraordenação

Texto do documento

Acórdão 865/2023

Sumário: Decide, com respeito às contas anuais do Partido da Terra (MPT) referentes a 2015, julgar improcedente o recurso interposto da decisão de 27 de novembro de 2020, da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, e manter a condenação em coima, pela prática de contraordenação.

Processo 187/21

Aos doze dias do mês de dezembro de dois mil e vinte e três, achando-se presentes o Juiz Conselheiro Presidente José João Abrantes e os Juízes Conselheiros José Teles Pereira, António da Ascensão Ramos, João Carlos Loureiro, Maria Benedita Urbano, Gonçalo de Almeida Ribeiro, Mariana Canotilho, Joana Fernandes Costa, Afonso Patrão, Rui Guerra da Fonseca e Carlos Medeiros Carvalho, foram trazidos à conferência, em sessão plenária do Tribunal Constitucional, os presentes autos.

Após debate e votação, foi, pelo Exmo. Conselheiro Vice-Presidente, por delegação do Exmo. Conselheiro Presidente, nos termos do artigo 39.º, n.º 2, da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional), ditado o seguinte:

I - Relatório

1 - Nos presentes autos de recurso jurisdicional em matéria de contas dos partidos políticos, vindos da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (doravante designada apenas por «ECFP»), em que é recorrente o Partido da Terra (MPT), foi interposto o presente recurso da decisão daquela Entidade, de 27 de novembro de 2020, que sancionou contraordenacionalmente o recorrente.

2 - Por decisão de 11 de dezembro de 2018, a ECFP julgou prestadas, com irregularidades, as contas anuais do MPT, referentes a 2015 (v. artigo 26.º, n.º 2, da Lei 19/2003, de 20 de junho [Lei de Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais, referida adiante pela sigla «LFP»] e artigo 32.º, n.º 1, alínea c), da Lei Orgânica 2/2005, de 10 de janeiro (Lei da Organização e Funcionamento da ECFP, referida adiante pela sigla «LEC»).

3 - Na sequência dessa decisão, a ECFP levantou um auto de notícia e instaurou processo contraordenacional contra o MPT, pela prática das irregularidades ali verificadas. O arguido foi notificado do processo de contraordenação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 44.º, n.os 1 e 2, da LEC e no artigo 50.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro (Regime Geral das Contraordenações, referido adiante pela sigla «RGCO»), não tendo apresentado defesa.

4 - Por decisão de 27 de novembro de 2020, a ECFP aplicou ao MPT uma coima no valor de 12 (doze) SMN de 2008, perfazendo a quantia de (euro)5.112,00 (cinco mil cento e doze euros), pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.º 1, da LFP.

5 - O MPT recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 23.º e 46.º, n.º 2, da LEC, e do artigo 9.º, alínea e), da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, doravante designada apenas por «LTC»), tendo concluído as suas alegações nos seguintes termos:

«A) Vem o presente recurso interposto da decisão da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos que aplicou ao ora recorrente a sanção de coima no valor de 12 (doze) SMN de 2008, o que perfaz a quantia de 5.112,00 Eur., pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.º 1 da Lei 19/2003, de 20-06.

B) A decisão recorrida deve conter os elementos de facto que justificam a imputação, objectiva e subjectiva, da infracção ao arguido (artigos 50.º e 58.º do Regime Geral das Contra-Ordenações).

C) No caso em análise, e salvo melhor opinião, não constam tais elementos, o que significa que a decisão recorrida padece do vício da nulidade decorrente da ausência de factos que consubstanciem a imputação objectiva e subjectiva da infracção ao recorrente, nulidade que aqui se argui para todos os devidos efeitos.

D) Acresce que os factos em causa nos presentes autos foram já objecto de outro processo (ao menos parcialmente), já que os presentes autos tiveram origem na decisão da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos relativa às contas anuais do ora recorrente atinentes ao ano de 2015 e foi já proferido acórdão (755/2020) pela 4.ª Secção [sic] do Tribunal Constitucional nos autos com o n.º 72/20, relativo às contas de campanha do ora recorrente respeitantes às eleições para a Assembleia da República realizadas em 4 de Outubro de 2015 (com origem no processo da ECFP PCO 29/2018) (sendo que as contas da campanha das eleições para a Assembleia da República estão plasmadas nas contas anuais apresentadas nesse mesmo ano).

E) Situação esta que contende frontalmente com o princípio "ne bis in idem" segundo o qual ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (norma esta directamente aplicável, de acordo com o n.º 1 do artigo 18.º da Constituição) e implica a extinção do presente procedimento contraordenacional. Por outro lado,

F) Os factos descritos nos pontos 4 a 6, conjugados com os demais dos factos provados, não se subsumem à prática de uma contraordenação prevista no artigo 29.º, n.º 1 da Lei 19/2003, de 20-06.

G) Ou seja, no caso concreto não praticou a infracção pela qual foi condenado.

H) Caso não seja absolvido, deverá ser aplicada ao ora recorrente a pena de admoestação (cf. artigo 51.º do RGCO) pois as razões da menor ilicitude ou culpa que justificam a aplicação de tal medida, enquanto sanção de substituição, estão amplamente verificadas no caso sub judice, que, em última análise se enquadra fotograficamente na previsão da citada norma, pelo que se requer a substituição da coima aplicada por uma admoestação.

I) A douta decisão recorrida violou, entre outras do douto suprimento desse Tribunal, as normas contidas nos artigos l8.º, n.º l, 29.º, n.os 1, 3 e 5, 30.º, n.º l da CRP; 26.º, 29.º da Lei 19/2003, de 20-06; 27.º, al. a), 28.º, 50.º, 51.º e 58.º do Regime Geral das Contra-Ordenações».

6 - Por deliberação de 9 de fevereiro de 2021, a ECFP, ao abrigo do artigo 46.º, n.º 5, da LEC, sustentou a decisão recorrida e determinou a remessa dos autos ao Tribunal Constitucional. Recebidos os autos no Tribunal Constitucional, foi proferido despacho, datado de 3 de março de 2021, pelo qual se admitiu liminarmente o recurso interposto pelo MPT da decisão de 27 de novembro de 2020.

7 - O Ministério Público pronunciou-se, nos termos do artigo 103.º-A, n.º 1, da LTC, no sentido de ser negado provimento ao recurso. Notificado, o MPT respondeu, reafirmando os fundamentos aduzidos nas alegações de recurso.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

A) Considerações gerais

8 - A Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, veio alterar, entre outras, a LFP e a LEC, introduzindo profundas modificações no regime de apreciação e fiscalização das contas dos partidos políticos e no regime de aplicação das respetivas coimas. Considerando que, à data de entrada em vigor desta lei - 20 de abril de 2018 (artigo 10.º), os presentes autos aguardavam julgamento respeitante à legalidade e regularidade das contas, tal regime é-lhes aplicável, nos termos da norma transitória do artigo 7.º da referida Lei Orgânica.

A respeito do novo regime legal, quer quanto à competência de fiscalização, quer quanto ao regime processual, foram desenvolvidas algumas considerações no Acórdão 421/2020 (acessível, assim como os demais acórdãos adiante citados, a partir da hiperligação http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), para o qual se remete, salientando-se aqui que a alteração mais significativa diz respeito à competência para apreciar a regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, bem como aplicar as respetivas coimas que, até abril de 2018, pertencia ao Tribunal Constitucional e passou agora a ser atribuída à ECFP (artigos 9.º, n.º 1, alínea d), da LEC, e 24.º, n.º 1, da LFP). Assim, nos termos do novo regime legal, cabe ao Plenário do Tribunal Constitucional apreciar, em recurso de plena jurisdição, as decisões daquela Entidade em matéria de regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, incluindo as decisões de aplicação de coimas (artigo 9.º, alínea e), da LTC). No referido Acórdão 421/2020 esclareceu-se ainda, relativamente à competência do Tribunal em matéria de regularidade e legalidade das contas, que a apreciação deverá obedecer a critérios de legalidade, centrados na ordem de valores que o regime de financiamento dos partidos pretende tutelar, não se resumindo a uma aplicação mecânica de critérios de natureza estritamente financeira e contabilística (v., entre outros, os Acórdãos n.os 979/1996 e 563/2006).

Como resulta do relatório da presente decisão, são duas as decisões produzidas pela ECFP: (i) a decisão de 11 de dezembro de 2018, tomada no âmbito do processo PA 5/CA/15/2018, na qual julgou prestadas, com irregularidades, as contas anuais do MPT, referentes a 2015; e (ii) a decisão de 27 de novembro de 2020, proferida no processo contraordenacional n.º 9/2020, nos termos da qual foi deliberado aplicar ao arguido a sanção de coima pela prática da contraordenação prevista e punida no artigo 29.º, n.º 1, da LFP.

O MPT interpôs recurso da última decisão.

Ora, ainda que a decisão da ECFP, proferida a 11 de dezembro de 2018, e tomada no âmbito do processo PA 5/CA/15/2018, não tenha sido autonomamente impugnada, as matérias que constituem o seu objeto são convocadas no contexto do apuramento da responsabilidade contraordenacional do arguido.

A verificação da existência de infrações às regras que regem os financiamentos dos partidos políticos e das campanhas eleitorais constitui condição necessária da responsabilidade contraordenacional pelos ilícitos previstos na legislação sobre a matéria, dado que os tipos contraordenacionais estão construídos sobre a violação das regras de financiamento, aqui entendidas em sentido amplo, isto é, abrangendo a obtenção de receitas e a realização de despesas. Esta afirmação é justificada pela conjunção de duas circunstâncias. Em primeiro lugar, da verificação de que todas as infrações contraordenacionais são também, pelo menos no plano objetivo, infrações às regras que regem o financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais; em segundo lugar, da verificação de que nem todas as infrações às regras sobre financiamento implicam necessariamente ilicitude contraordenacional. Assim, não só o conjunto dos comportamentos que constituem infração às regras atinentes ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais é mais extenso do que o conjunto dos comportamentos que constituem contraordenação, como também que este segundo constitui um subconjunto do primeiro (neste sentido, cf. Acórdão 509/2023, § 9.) A decisão proferida na primeira fase do processo relativo à regularidade das contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais, que julgou prestadas as contas anuais de 2015 com irregularidades (decisão declaratória), tem como objeto, apenas, a apreciação das contas dos partidos e das campanhas eleitorais (cf. os artigos 25.º, 32.º, 35.º e 43.º da LEC), não se confundido com a decisão da ECFP que, nos termos do artigo 33.º, n.º 1, da LEC, imputa ao arguido a prática de ilícitos contraordenacionais (decisão sancionatória).

B) Questões a decidir

9 - Em face do teor da alegação, as questões a decidir a respeito do recurso da decisão sancionatória da ECFP, datada de 27 de novembro de 2020, são as seguintes:

a) Nulidade da decisão recorrida;

b) Violação do ne bis in idem;

c) Subsunção dos factos dados como provados ao ilícito imputado;

d) Medida concreta da coima.

C) Questões prévias

10 - Nulidade da decisão recorrida

O MPT invoca a nulidade da decisão recorrida, invocando que a mesma se encontra viciada pela ausência de factos que consubstanciem a imputação objetiva e subjetiva da infração pela qual foi condenado, em particular no que respeita à descrição dos factos correspondentes aos elementos típicos da infração, conforme exigido pelo artigo 58.º do RGCO. A tal respeito, sustenta que «a decisão recorrida deve conter os elementos de facto que justificam a imputação, objectiva e subjectiva, da infracção ao arguido» e que «no caso em análise [n]ão constam tais elementos, o que significa que a decisão recorrida padece do vício da nulidade decorrente da ausência de factos que consubstanciem a imputação objectiva e subjectiva da infracção ao recorrente, nulidade que aqui se argui para todos os devidos efeitos».

Cumpre sublinhar que o plano dos vícios intrínsecos de um determinado ato procedimental (sugeria a sua substituição por «procedimental») - neste caso, da decisão sancionatória - não se confunde com o plano do respetivo mérito, designadamente no que respeita ao acerto das operações de qualificação e subsunção indispensáveis para a recondução dos factos ao tipo contraordenacional. A eventual nulidade da decisão sancionatória impugnada coloca-se no primeiro dos planos enunciados, verificando-se quando esta não contenha factos que permitam sequer efetuar ou sindicar o juízo de tipicidade. Assim, a decisão de aplicação de uma coima, carecendo dos elementos referidos no artigo 58.º do RGCO, estará suficientemente fundamentada desde que se mostrem justificadas as razões pelas quais é aplicada determinada sanção ao(s) arguido(s), de modo que este(s), tomando conhecimento da decisão, possa(m) compreender, de acordo com os critérios da normalidade de entendimento, as razões pelas quais se tomou a decisão condenatória e, consequentemente, esteja(m) em condições de a impugnar.

No caso dos autos, não assiste razão ao recorrente quando defende que a decisão recorrida não contém os factos suficientes para decidir sobre a imputação da infração contraordenacional objeto dos presentes autos. Conforme resulta da leitura da decisão, é manifesto que da mesma consta a descrição da matéria factual suficiente para julgar a causa, pois foram dados como provados factos atinentes ao tipo objetivo (v., em especial, os pontos 3 a 7 dos factos provados na decisão recorrida) e ao tipo subjetivo do ilícito imputado (v. os pontos 8 e 9, ibidem), bem como factos relevantes para a graduação da medida da coima a aplicar. É igualmente manifesto que a decisão impugnada se encontra fundamentada, quer no que respeita às razões pelas quais se consideraram provados os factos pertinentes, quer no que respeita à recondução dos mesmos às normas jurídicas tidas por relevantes.

É de concluir, pois, que a decisão recorrida contém todos os elementos exigidos no artigo 58.º, n.º 1, do RGCO, designadamente aqueles a que se referem as alíneas b) e c) desse preceito.

11 - Violação do ne bis in idem

O MPT invoca a extinção do procedimento contraordenacional, por entender que está em causa a violação do princípio ne bis in idem. Refere, para tanto, que «os factos em causa nos presentes autos foram já objecto de outro processo (ao menos parcialmente), já que os presentes autos tiveram origem na decisão da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos relativa às contas anuais do ora recorrente atinentes ao ano de 2015 e foi já proferido acórdão (755/2020) pela 4.ª Secção [sic] do Tribunal Constitucional nos autos com o n.º 72/20, relativo às contas de campanha do ora recorrente respeitantes às eleições para a Assembleia da República realizadas em 4 de Outubro de 2015 (com origem no processo da ECFP PCO 29/2018) (sendo que as contas da campanha das eleições para a Assembleia da República estão plasmadas nas contas anuais apresentadas nesse mesmo ano)».

A pretensão do MPT arranca do entendimento de que existe uma relação de parcial ou total identidade entre os factos apreciados nos presentes autos e os que foram objeto de decisão anterior do Plenário do Tribunal Constitucional (v. Acórdão 755/2020), por relativa sobreposição entre as contas em causa («as contas da campanha das eleições para a Assembleia da República estão plasmadas nas contas anuais apresentadas nesse mesmo ano»).

Não lhe assiste razão.

O artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, proíbe o duplo julgamento pela prática do mesmo crime, numa formulação que corresponde ao núcleo originário do princípio ne bis in idem, mas que consente, por manifesta analogia de fundamento, a proibição de dupla condenação pelo mesmo facto em matéria contraordenacional. Neste mesmo sentido, determina o artigo 79.º do RGCO, no seu n.º 1, que «[o] carácter definitivo da decisão da autoridade administrativa ou o trânsito em julgado da decisão judicial que aprecie o facto como contra-ordenação ou como crime precludem a possibilidade de reapreciação de tal facto como contraordenação»; e, no seu n.º 2, que «[o] trânsito em julgado da sentença ou despacho judicial que aprecie o facto como contraordenação preclude igualmente o seu novo conhecimento como crime».

Note-se que está em causa, segundo a alegação do recorrente, a violação do ne bis in idem na sua vertente processual, o que determinaria a impossibilidade de os mesmos factos serem objeto de mais do que um processo. Como se lê no Acórdão 246/2017, «[o] non bis in idem tem uma vertente substantiva e outra processual. Do ponto de vista material, o princípio veta a imposição plural de consequências jurídicas relativamente a uma mesma infração. Na perspetiva processual, o non bis in idem determina a impossibilidade de reiterar um novo processo e a sujeição a julgamento quanto ao facto sobre o qual incidiu sentença firme ou arquivamento definitivo. [...] No caso do non bis in idem material, a hipótese [da norma] reconduz-se à identidade da infração e a sua consequência [evitar a] sanção punitiva. O non bis in idem processual tem, pelo contrário, como hipótese não o «crimen», mas sim o «factum», e como consequência evitar, cabalmente, o próprio processo, Ramón García Albero («Non Bis In Idem» Material y Concurso de Leyes Penales, Barcelona, 1995, p. 24)».

Aqui chegados, impõe-se esclarecer quando é que um facto se pode considerar o mesmo para que, com isso, se possa convocar a aplicação do ne bis in idem na sua vertente processual.

A identificação do que seja o mesmo facto (o idem) não se reduz à identificação de um complexo natural de factos conhecidos judicialmente, tratando-se de um verdadeiro problema de delimitação normativa da realidade. Significa isto que a identidade do facto é um conceito normativo, para o qual concorre, de forma determinante, a valoração jurídica que confere a um certo substrato naturalístico as qualidades que justificam a sua integração no processo. Numa palavra, a afirmação de que um processo tem por objeto um facto já decidido noutro processo pressupõe a comparação entre tipos juridicamente construídos.

No caso vertente, não se verifica uma situação de identidade entre os factos apreciados nos presentes autos e os que foram objeto de decisão anterior do Tribunal Constitucional (v. Acórdão 755/2020). Com efeito, não só os processos têm objetos formalmente distintos - recursos que se dirigem a diferentes atos decisórios da ECFP -, como, em cada um deles, o enquadramento jurídico das infrações, e a necessária seleção dos fragmentos de realidade que as concretizam ou lhes correspondem, são fundamentalmente diversos. Note-se bem que nos presentes autos estão em causa factos relativos à responsabilidade contraordenacional do recorrente por irregularidades identificadas nas contas anuais referentes ao ano de 2015, não se dirigindo o processo, sequer remotamente, a factos relacionados com as infrações praticadas pelo recorrente no âmbito das contas de campanha eleitoral. A responsabilidade contraordenacional do recorrente pelas contas de campanha foi apreciada noutro ato decisório da ECFP, do qual foi interposto recurso autónomo apreciado pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão 755/2020, que condenou o recorrente pela prática da contraordenação prevista e punida no artigo 31.º da LFP - em nada se relacionando, pois, com os presentes autos, em que está em causa o recurso de uma decisão da ECFP que condenou o recorrente pela prática da contraordenação prevista e punida no artigo 29.º da LFP, tendo por base factos necessariamente distintos, delimitados a partir da concreta infração imputada, exclusivamente referida a contas anuais. Ora, nem as contas anuais dos partidos políticos se confundem com as contas de campanha - o que decorre da sistemática da própria LFP, que estabelece um regime próprio para as contas anuais dos partidos políticos (v. Capítulo II) e outro para as contas de campanhas eleitorais (v. Capítulo III), compreendendo regimes sancionatórios distintos (artigos 26.º e 27.º da LFP, respetivamente) -, nem a circunstância de as contas de campanha estarem incluídas nas contas anuais é suficiente para que se conclua pela identidade entre os factos.

Por tudo o que vem dito, terá de improceder a alegação do recorrente.

12 - Mérito da decisão sancionatória

12.1 - Matéria de facto

12.1.1 - Factos provados

Com relevo para a decisão, provou-se que:

1 - O Partido da Terra (doravante, MPT) é um Partido Político português, constituído em 12 de agosto de 1993, encontrando-se registado junto do Tribunal Constitucional.

2 - O MPT apresentou, a 31 de maio de 2016, as contas relativas ao ano de 2015.

3 - Nas contas apresentadas foi registada, no balancete geral, a subconta «12131 do Banco Comercial Português (Millennium BCP) n.º 4539629934», que apresenta o saldo de (euro)73,90, relativamente à qual não foram apresentados extratos bancários.

4 - O Partido registou nas contas anuais de 2015 a subconta «12104 - Europeias 2014», que apresenta saldo no valor de (euro)2.752,18 e que corresponde à conta bancária da campanha eleitoral respeitante às eleições de Deputados ao Parlamento Europeu de 2014, com o n.º 00350100000319063312 do Banco Caixa Geral de Depósitos, a qual foi encerrada em 05/11/2014.

5 - Nas contas apresentadas, existe um depósito efetuado em 23/09/2015, na conta bancária da Caixa Geral de Depósitos n.º 0680007047230, no valor de (euro)200,00, sem a identificação do depositante.

6 - O Partido registou nas contas anuais de 2015 rendimentos e gastos respeitantes à campanha eleitoral da Assembleia da República de 2015, no valor de (euro)24.403,90, e de (euro)69.374,04 - respetivamente -, valores estes que são divergentes dos valores constantes das contas respeitantes a tal campanha eleitoral apresentadas pelo Partido, as quais evidenciam receitas no montante de (euro)45.627,16 e despesas no montante de (euro)45.867,77.

7 - O Partido integrou nas contas anuais de 2015 os gastos e a subvenção regional respeitantes ao deputado único do Partido na Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira (doravante, ALRAM), não tendo sido entregues as contas relativas a este Deputado em anexo autónomo.

8 - Ao agir conforme descrito em 3. a 7. dos factos provados, o Arguido representou como possível que não observava deveres legais cuja violação é suscetível de punição, conformando-se com essa possibilidade e apresentando as contas nessas condições.

9 - O Arguido sabia que a sua conduta era proibida e contraordenacionalmente sancionável, tendo agido livre, voluntária e conscientemente.

10 - Nas contas de 2015, o MPT registou:

10.1 - No balanço: um total do ativo de (euro)84.801,55, um total do capital próprio de - (euro)39.950,50, e um total do passivo de (euro)55.942,10.

10.2 - Na demonstração de resultados do ano: rendimentos no valor (euro)46.802,09 e gastos no valor de (euro)143.314,56.

11 - Por referência aos anos de 2015 e de 2019, o MPT não recebeu subvenção estatal.

12.1.2 - Factos não provados

Com relevância para a decisão, não se provou que:

1 - No depósito descrito no ponto 5. dos factos provados, a quantia depositada consubstancia um donativo.

12.1.3 - Motivação da decisão sobre a matéria de facto

A decisão sobre a matéria de facto resulta da análise conjugada da prova documental junta aos presentes autos, das regras da experiência e de inferências lógicas. Note-se, no mais, que dos fundamentos invocados nas alegações do recurso resulta que o recorrente não impugna a matéria de facto.

Para a prova da factualidade elencada no ponto 1., foi considerado o teor da publicação do sítio da Internet do Tribunal Constitucional https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/, da qual a mesma se extrai.

A prova dos factos constantes do ponto 2. dos factos provados resulta do teor de fls. 5 do PA 5/CA/15/2018, apenso aos presentes autos.

Para prova dos factos provados constantes do ponto 3. decorre do teor do balancete junto a fls. 4 a 5 verso dos presentes autos, conjugado com a análise dos demais elementos de prestação de contas apresentados, dos quais resulta que os aludidos documentos não foram apresentados.

A prova dos factos indicados no ponto 4. dos factos provados resulta do teor do balancete de fls. 4 a 5 verso e no teor do mapa da Base de Dados de Contas do Banco de Portugal de fls. 7 a 10 dos presentes autos.

A factualidade identificada no ponto 5. dos factos provados resulta do teor do extrato bancário de fls. 11 a 22 e, bem assim, do teor dos documentos de suporte entregues com a prestação de contas aqui em referência, juntos aos PA 5/CA/15/2018, apenso aos presentes autos, dos quais não consta qualquer documento de suporte do referido depósito.

A prova da matéria factual constante do ponto 6. dos factos provados baseia-se nos elementos de prestação de contas e os mapas constantes de fls. 23 a 25 dos presentes autos.

No que concerne à prova indicada no facto 7. dos factos provados, a mesma adveio do teor das contas apresentadas, concretamente dos documentos contabilísticos e da verificação da inexistência de contas anexas respeitantes ao deputado único do Partido na ALRAM.

A prova da factualidade elencada nos pontos 8. e 9. dos factos provados extrai-se da matéria objetiva dada como provada que, de acordo com as regras da experiência comum, deixa antever a sua verificação. Acresce que do Relatório da ECFP de fls. 45 a 59 do PA, relativo à apreciação das contas aqui em apreço, constavam já todas as situações aqui em análise, tendo o recorrente sido do mesmo notificado (v. fls. 60 e 61, do PA 5/CA/15/2018) e, apesar de lhe ter sido concedido prazo para se pronunciar ou retificar as contas, não o fez. Ora, se é certo que o dolo é, por natureza, contemporâneo do facto, a convicção na sua verificação pode ser reforçada pela conduta posterior do agente, como é o caso nos presentes autos. Para além de admissível em termos gerais, a possibilidade de estabelecer por presunção judicial certos dos factos sujeitos a julgamento é de relevância decisiva no âmbito da prova do dolo, realidade pertencente ao mundo interior do agente, apenas suscetível de prova, ressalvada a hipótese de confissão, por via indireta ou inferencial.

A prova dos factos constantes dos pontos 10. a 10.2. dos factos provados resulta de fls. 7, 8, 65 e 66 do PA 5/CA/15/2018, apenso aos presentes autos.

A prova da factualidade descrita no ponto 11. dos factos provados resulta do teor de fls. 13 a 15 do PA 5/CA/15/2018 e de fls. 26 e 29 dos presentes autos.

No que respeita ao descrito no ponto 1. dos factos não provados, não existe um único elemento nos autos que permita, com o mínimo de certeza, inferir que aquela transferência bancária constitui um donativo. Por um lado, do Relatório da ECFP junto aos autos resulta que a lista de donativos apresentada pelo recorrente nas suas contas anuais (v. o Anexo IV do Relatório da ECFP) corresponde exatamente ao montante dos donativos recebidos, no valor de (euro) 32.720,00 (trinta e dois mil e setecentos e vinte euros), o que torna implausível a existência de um donativo de (euro) 200,00 (duzentos euros) em relação ao qual não tenha sido observado o regime dos donativos. Por outro lado, não foi desenvolvida nenhuma atividade probatória tendente a apurar as circunstâncias desse depósito, designadamente se foi feito em numerário ou em valores, onde foi feito, se há registo bancário da identidade do depositante, ou quaisquer outros dados que permitam esclarecer a natureza dessa operação. Como tal, dado que a existência daquela transferência tanto pode ser explicada com um donativo, como com outra modalidade de financiamento próprio, sem que haja uma razão válida para optar por uma dessas explicações, com exclusão das demais, a decisão administrativa não pode, neste segmento, manter-se. Uma correta distribuição do ónus da prova impunha, no caso vertente, que perante a incerteza acerca da natureza da transferência bancária, não tivesse a ECFP concluído que se tratava de um donativo.

12.2 - Matéria de direito

12.2.1 - Considerações gerais

A decisão recorrida considerou que o recorrente incorreu na prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.º 1, da LFP, nos termos do qual se estabelece que «os partidos políticos que não cumprirem as obrigações impostas no capítulo II são punidos com coima mínima no valor de 10 vezes o valor do IAS e máxima no valor de 400 vezes o valor do IAS, para além da perda a favor do Estado dos valores ilegalmente recebidos».

A norma sancionatória prevista no artigo 29.º da LFP atua por remissão geral para os deveres que constam do Capítulo II, o que implica que esta infração contraordenacional se concretize sempre através da associação de, pelo menos, duas normas: a propriamente sancionatória, prevista neste artigo; e a que, descrevendo o comportamento devido, define, a contrario, o comportamento proibido.

No caso vertente, o comportamento proibido é concretizado por referência ao artigo 12.º da LFP, aplicável ex vi do artigo 14.º deste diploma, que estabelece, no seu n.º 1, que «os partidos políticos devem possuir contabilidade organizada, de modo que seja possível conhecer a sua situação financeira e patrimonial e verificar o cumprimento das obrigações previstas na presente lei», aqui se prevendo um dever genérico de organização contabilística. Em causa está, como é bom de ver, a verificação de deficiências de organização contabilística que comprometem a fiabilidade das contas apresentadas, impedindo o conhecimento da real situação financeira e patrimonial dos partidos e não possibilitando a observância dos deveres a que estão legalmente adstritos.

Ora, o conteúdo do dever de organização contabilística é concretizado através dos específicos deveres que resultam, designadamente, dos demais números e alíneas deste artigo; mas a violação do dever genérico ocorre ainda nos casos em que, não se verificando embora a violação de deveres legais específicos, se verifiquem deficiências ou insuficiências de organização contabilística que comprometam a fiabilidade das contas apresentadas. Neste mesmo sentido, tem o Tribunal Constitucional sublinhado que «o dever de organização contabilística por parte dos partidos reflete-se em diversos factos, que podem implicar quer o incumprimento de específicos deveres impostos pela LFP, quer deficiências ou insuficiências que comprometem a fiabilidade das contas apresentadas» (v., entre outros, os Acórdãos n.os 198/2010, 711/2013, e 246/2021). No Acórdão 81/2021, afirmou-se ainda que «a não apresentação da documentação de suporte dos rendimentos e gastos registados e do extrato bancário relativo à conta de depósitos bancários referentes a 2012 constitui uma violação do dever de organização contabilística que impende sobre os partidos políticos, já que, por força da remissão para o Sistema de Normalização Contabilística, constante do n.º 2 do referido artigo 12.º, a apresentação de tais documentos constitui uma obrigação legal, o mesmo sucedendo, por força da alínea a) do respetivo n.º 7, com os extratos bancários», acrescentando que «constituindo uma insuficiente comprovação das despesas e receitas do partido em violação de um dos deveres impostos no Capítulo II da LFP, tal atuação é subsumível ao tipo objetivo de ilícito previsto no n.º 1 do artigo 29.º da referida Lei, pelo qual o arguido é responsável no plano contraordenacional».

A análise dos pressupostos da responsabilidade contraordenacional prevista no artigo 29.º da LFP aconselha uma breve referência à natureza estruturalmente dolosa dos ilícitos tipificados no referido diploma legal, matéria em que se segue de perto o Acórdão 345/2013. Com efeito, sendo certo que «na ausência de uma norma específica de sentido contrário, os tipos-de-ilícito estruturados a partir da violação dos deveres impostos em matéria de financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais e de apresentação das respetivas contas encontram-se sujeitos, conforme repetidamente afirmado por este Tribunal, à incidência da regra geral constante do artigo 8.º, n.º 1, do RGCO, nos termos do qual "só é punível o facto praticado com dolo"», é igualmente seguro que «a responsabilidade contraordenacional prevista na Lei 19/2003 é compatível com qualquer forma de dolo [...] não pressupondo, além do mais, qualquer intenção especial que concorra com o dolo do tipo ou a ele se adicione com autonomia».

Por último, e no que respeita à responsabilidade contraordenacional prevista no artigo 29.º, n.º 2, da LFP, vale a pena recordar o disposto no artigo 18.º, n.º 1, da LEC, na parte em que «estabelece um mecanismo de identificação dos responsáveis partidários, primariamente dependente de indicação, pelos próprios partidos, dos indivíduos a quem tenha sido deferida a responsabilidade última pela fidedignidade das contas partidárias, ou seja, aqueles a quem se imponha, em especial, o dever de garante acima referido» (v. o Acórdão 711/2013, citando o Acórdão 301/2011). É sobre estes dirigentes que recai o dever de garantir a observância dos deveres impostos aos partidos políticos em matéria de financiamento e organização contabilística, competindo-lhes adotar, no interior das estruturas partidárias, mecanismos e procedimentos que previnam a violação das normas da LFP, designadamente no que respeita à elaboração e apresentação de contas anuais.

12.2.2 - Preenchimento do tipo contraordenacional

Através da decisão recorrida, a ECFP sancionou o arguido pela prática da contraordenação prevista no artigo 29.º, n.º 1, da LFP, consubstanciada em cinco núcleos factuais:

i) Não apresentação, nas contas anuais referentes a 2015, de extratos bancários de movimentos da subconta bancária «12131 do Banco Comercial Português (Millennium BCP) n.º 4539629934, registada no Balancete Geral» (v. ponto 3. dos factos provados);

ii) Integração, nas contas anuais referentes a 2015, da subconta «12104 - Europeias 2014», que apresenta saldo no valor de (euro)2.752,18, e que corresponde à conta da campanha eleitoral às eleições de Deputados ao Parlamento Europeu de 2014, com o n.º 00350100000319063312, da Caixa Geral de Depósitos, que foi encerrada em 05 de novembro de 2014 (v. ponto 4 dos factos provados);

iii) Existência, nas contas anuais referentes a 2015, de um depósito bancário, efetuado em 23 de setembro de 2015, na conta bancária n.º 0680007047230 da Caixa Geral de Depósitos, no valor de (euro)200,00, sem que seja possível identificar a sua origem (v. ponto 5. dos factos provados);

iv) Integração, nas contas anuais referentes a 2015, de valores de rendimentos e gastos respeitantes à campanha eleitoral do MPT para a Assembleia da República, referente ao ano de 2015, divergentes dos valores de rendimentos e gastos constantes das contas relativas a esta campanha (v. ponto 6. dos factos provados);

v) Integração, nas contas anuais referentes a 2015, dos gastos e da subvenção regional respeitantes ao deputado único do Partido na ALRAM, sem que tenham sido entregues de forma autónoma, em anexo, as contas do deputado único do MPT na ALRAM (v. ponto 7. dos factos provados).

Está em causa, no primeiro núcleo factual, a omissão de entrega de extratos de movimentos de contas bancárias, em violação do dever específico estabelecido no artigo 12.º, n.º 7, alínea a), da LFP - e, bem assim, do dever geral de organização contabilística imposto pelo artigo 12.º, n.º 1, do mesmo diploma -, o qual dispõe que «constam de listas próprias discriminadas e anexas à contabilidade dos partidos: a) os extratos bancários de movimentos das contas e os extratos de conta de cartão de crédito», dever cuja inobservância se subsume no tipo objetivo de ilícito previsto no artigo 29.º, n.º 1, da LFP.

Relativamente ao segundo núcleo factual, cumpre assinalar que se trata da integração, nas contas anuais do MPT referentes a 2015, do saldo da subconta bancária «12104 - Europeias 2014», extinta em novembro de 2014, situação reveladora de uma deficiente organização contabilística que compromete a fiabilidade das contas apresentadas, o que consubstancia uma violação do dever genérico de organização contabilística previsto no artigo 12.º, n.º 1, da LFP, sendo subsumível ao tipo objetivo de ilícito previsto no artigo 29.º, n.º 1.

Já no terceiro núcleo factual indicado está em causa a existência, nas contas anuais do MPT referentes a 2015, de um depósito bancário, efetuado em 23 de setembro de 2015, na conta bancária n.º 0680007047230 da Caixa Geral de Depósitos, no valor de (euro)200,00, sem que seja possível identificar a sua origem, designadamente a identidade do depositante, a forma do depósito e o seu propósito. A este propósito, entende-se na decisão recorrida que, estando em causa «a existência de um depósito bancário cuja origem não é possível confirmar», cabe concluir pela violação do artigo 3.º,

n.º 2, da LFP, relativo ao regime dos donativos de pessoas singulares, nos termos do qual se estabelece que «as receitas referidas no número anterior, quando em numerário, são obrigatoriamente tituladas por meio de cheque ou por outro meio bancário que permita a identificação do montante e da sua origem e depositadas em contas bancárias exclusivamente destinadas a esse efeito, nas quais apenas podem ser efetuados depósitos que tenham essa origem», conjugando ainda esta norma com o disposto no artigo 7.º e no artigo 12.º, n.º 3, alínea b), subalínea i), ambos da LFP.

Não se afigura que tal conclusão possa ser retirada, com a necessária segurança, dos factos provados. Para que se possa concluir pela violação de uma norma que se refere ao regime dos donativos, necessário é que se esteja perante um donativo, o que não se demonstrou ser o caso. Sem prejuízo da conclusão alcançada, entende-se que se mantém a relevância contraordenacional do ponto 5. dos factos provados, por se tratar de uma situação reveladora de uma deficiente organização contabilística que compromete a fiabilidade das contas apresentadas, o que consubstancia violação do dever genérico de organização contabilística previsto no artigo 12.º, n.º 1, da LFP, enquadrável no tipo objetivo de ilícito previsto no artigo 29.º, n.º 1, do mesmo diploma. Com efeito, não é admissível, do ponto de vista contabilístico, que o arguido tenha um montante a crédito na sua conta bancária sem representação e justificação idóneas no registo contabilístico.

No quarto núcleo factual, está em causa a verificação de uma discrepância entre os valores de rendimentos e gastos respeitantes à campanha eleitoral do MPT para a Assembleia da República apresentados nas contas anuais referentes a 2015 e os valores de rendimentos e gastos constantes das contas relativas a esta campanha. O facto relevante é, pois, a discrepância que se verifica nos valores apresentados nas contas anuais do recorrente, reveladora de uma deficiente organização contabilística, o que consubstancia uma violação do dever genérico do artigo 12.º, n.º 1, da LFP, enquadrável no tipo objetivo de ilícito previsto no artigo 29.º, n.º 1, do mesmo diploma.

Finalmente, quanto ao quinto núcleo factual, não foram entregues de forma autónoma, em anexo, as contas do deputado único do Partido na ALRAM, em violação do artigo 12.º, n.os 8 e 9, da LFP, que estabelece, respetivamente, que «[s]ão igualmente anexas às contas nacionais dos partidos, para efeitos da apreciação e fiscalização a que se referem os artigos 23.º e seguintes, as contas dos grupos parlamentares e do deputado único representante de partido da Assembleia da República» e que «[p]ara os efeitos previstos no número anterior, as contas das estruturas regionais referidas no n.º 4 anexam as contas dos grupos parlamentares e do Deputado único representante de partido da Assembleia Legislativa da região autónoma, assim discriminando, quanto aos apoios pecuniários para a atividade política, parlamentar e partidária, atribuídos por essa Assembleia Legislativa, os montantes utilizados pelos partidos e os montantes utilizados pelos grupos parlamentares ou Deputado único representante de partido».

Assim, as condutas do recorrente referidas nos pontos i. a v. supra integram os elementos do tipo objetivo da contraordenação prevista e punida no artigo 29.º, n.º 1, da LFP. O preenchimento do elemento subjetivo do tipo baseia-se, como é bom de ver, nos factos indicados nos pontos 8. e 9. dos factos provados.

12.2.3 - Consequências jurídicas

Para o caso de se manter a condenação, pretende o recorrente que lhe seja aplicada uma admoestação, por entender que «[a]s razões da menor ilicitude ou culpa que justificam a aplicação de tal medida, enquanto sanção de substituição, estão amplamente verificadas no caso sub judice».

Ora, a ECFP aplicou ao recorrente uma coima no valor de 12 (doze) SMN de 2008, perfazendo a quantia de (euro)5.112,00 (cinco mil, cento e doze euros), pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.º 1, da LFP. Nos termos desse preceito legal, a inobservância do dever de entrega das contas anuais do Partido é sancionável, no caso dos partidos, com coima a graduar entre 10 e 400 vezes o valor do SMN de 2008 e, no caso dos responsáveis financeiros, com coima a graduar entre 5 e 200 vezes o valor do SMN de 2008.

Segundo o disposto no artigo 51.º, n.º 1, do RGCO, quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifiquem, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação. Assim, são requisitos cumulativos da aplicação da sanção de admoestação: (i) a reduzida gravidade da contraordenação; e (ii) a reduzida gravidade da culpa do agente. No que respeita à culpa do agente, importa notar a longa experiência do recorrente em matéria de contas de partidos políticos e, ainda, a circunstância de lhe serem conhecidas infrações da mesma natureza referentes às contas anuais que antecederam as que são objeto dos presentes autos (v., entre outros, o Acórdão 296/2016). Ora, muito embora a culpa do agente constitua a modalidade menos intensa - dolo eventual -, tal circunstância não é suficiente para afirmar a reduzida gravidade da culpa, devendo aquela ser sopesada com a ponderação dos demais elementos relevantes para preencher os pressupostos de aplicação da admoestação. Não se verificando, pelas razões expostas, o requisito de reduzida gravidade da culpa do agente, e sendo cumulativos os requisitos enunciados no artigo 51.º, n.º 1, do RGCO, não tem cabimento a substituição da coima por admoestação. Acresce que a ponderação efetuada na decisão recorrida - que, além do mais, fixou a coima aplicada perto do mínimo legal - não merece censura, sendo por isso de manter a sanção concretamente aplicada.

III - Decisão

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente o recurso interposto pelo MPT da decisão de 27 de novembro de 2020, da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, e manter a condenação do arguido em coima de (euro)5.112,00 (cinco mil, cento e doze euros), correspondente a 12 (doze) SMN de 2008, pela prática da contraordenação prevista e punida pelo artigo 29.º, n.º 1, da LFP.

Sem custas, por não serem legalmente devidas.

Lisboa, 13 de dezembro de 2023. - Gonçalo Almeida Ribeiro - José Teles Pereira - António José da Ascensão Ramos - João Carlos Loureiro - Maria Benedita Urbano - Mariana Canotilho - Joana Fernandes Costa - Afonso Patrão - Rui Guerra da Fonseca - Carlos Medeiros de Carvalho - José João Abrantes.

317297862

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5636224.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 2003-06-20 - Lei 19/2003 - Assembleia da República

    Regula o regime aplicável ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

  • Tem documento Em vigor 2005-01-10 - Lei Orgânica 2/2005 - Assembleia da República

    Regula a organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

  • Tem documento Em vigor 2018-04-19 - Lei Orgânica 1/2018 - Assembleia da República

    Oitava alteração à Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional), segunda alteração à Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22 de agosto (Lei dos Partidos Políticos), sétima alteração à Lei n.º 19/2003, de 20 de junho (Lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais), e primeira alteração à Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de janeiro (Lei de Organização e Funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos)

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