Acórdão 160/88
Processo 297/87
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - O Provedor de Justiça, à sombra do disposto nos artigos 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição e 51.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio requerer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 5.º do Decreto-Lei 118/85, de 19 de Abril, na parte em que revoga o artigo 9.º, alínea e), do Decreto-Lei 595/74, de 7 de Novembro, nos termos e com os fundamentos seguintes:
Por força do disposto no artigo 9.º, alínea e), do Decreto-Lei 595/74, os partidos políticos beneficiam de isenção fiscal respeitante a preparos e custas judiciais;
O Governo, através do Decreto-Lei 118/85, alterou a redacção de vários artigos do Código das Custas Judiciais (CCJ);
Tal diploma veio declarar isentas de custas certas instituições, salvaguardando ainda as hipóteses de, para o futuro, a lei vir especialmente a conceder o benefício de isenção [artigo 3.º, alínea h)];
Todavia, e desde logo por força do artigo 5.º, ficou revogada toda a legislação que estabelecesse isenções não previstas no CCJ;
Resultou, assim, do disposto no artigo 5.º que o artigo 9.º, alínea e), do Decreto-Lei 595/79 veio a ser revogado;
Embora o Governo, com o diploma referido, tivesse procurado legislar apenas e só em matéria de custas judiciais, a verdade é que com o teor daquele preceito foi afectado um direito dos partidos políticos respeitante à matéria dos preparos e custas judiciais;
Integrando o direito à isenção de custas e preparos o estatuto dos partidos políticos, é inequívoco que a regulamentação de tal direito constitui reserva absoluta da Assembleia da República (AR), por força do disposto no artigo 167.º, alínea d), da Constituição;
Assim sendo, a norma em causa acha-se ferida de vício de inconstitucionalidade orgânica, mercê da invasão, por parte do Governo, da esfera de competência legislativa reservada da AR.
2 - Em cumprimento do estatuído no artigo 54.º da Lei 28/82, foi notificado o Governo, como órgão autor da norma questionada, limitando-se, na subsequente resposta, a oferecer o merecimento dos autos. Cumpre agora apreciar e decidir.
II - A fundamentação
1 - Considerando que «os partidos políticos constituem uma forma particularmente importante das associações de natureza política» e também que «a necessidade de se criarem condições para aperfeiçoamento, por forma institucional, da via democrática da participação dos cidadãos na vida política torna imperioso regular-se imediatamente essa forma associativa», o III Governo Provisório editou o Decreto-Lei 595/74, de 7 de Novembro (lei dos partidos políticos).
Este diploma veio definir o estatuto jurídico geral dos partidos políticos quando ainda não existia a sua consagração formalmente constitucional, acentuando-se desde logo a sua especificidade face ao regime mais amplo das associações em geral, definido no Decreto-Lei 594/74, também de 7 de Novembro.
Mantém-se aquele diploma em vigor, na ausência de desconformidade substancial com a Constituição, que assegura a liberdade de associação, na qual se compreende o direito de constituir ou participar em associações ou partidos políticos (cf. os artigos 46.º e 51.º).
O Decreto-Lei 595/74 atribui aos partidos políticos, como «corolário do reconhecimento da importância e significado da sua acção na vida política», diversos benefícios e isenções a conceder pelo Estado, entre eles se incluindo a isenção de «preparos e custas judiciais» estatuída no artigo 9.º, alínea e).
Desta forma estabeleceu-se a favor dos partidos políticos uma isenção de natureza pessoal em matéria de custas judiciais, a esse tempo abrangendo o imposto de justiça, os selos e os encargos, do mesmo modo que se dispensaram os preparos, como consequência automática da isenção do imposto de justiça (cf. o artigo 1.º do CCJ, aprovado pelo Decreto-Lei 44329, de 8 de Maio de 1962).
2 - Atendo-se à consideração da «necessidade de sanear a legislação dos numerosos casos de isenção de custas criados após o CCJ, se não para a todos recusar o benefício, ao menos para possibilitar a revisão de critérios e a justificação de cada caso», o Decreto-Lei 118/85, de 19 de Abril, aprovado pelo Governo ao abrigo da autorização legislativa conferida pelo artigo 66.º da Lei 2-B/85, de 28 de Fevereiro, veio introduzir diversas alterações no regime das custas judiciais, dispondo no seu artigo 5.º do modo seguinte:
O presente diploma entra em vigor 90 dias depois da sua publicação e na mesma data ficarão revogados o Decreto-Lei 45698, de 30 de Abril de 1964, a sua legislação complementar e ainda as disposições legais que estabeleçam isenções de custas não previstas no Código das Custas Judiciais.
O alcance deste preceito, para além da revogação do Código das Custas Judiciais do Trabalho, traduziu-se na supressão de diversas isenções estatuídas em matéria de custas judiciais, entre elas se incluindo as criadas pelo Decreto-Lei 595/74, pois que no plano de previsão das isenções contempladas no diploma de 1962 não figuravam os partidos políticos, desde logo pela razão de o regime jurídico-constitucional então vigente consagrar um sistema político antipartidário e antipluralista.
Destarte, aquela disposição revogatória, na parte em que modificou a injunção contida na lei dos partidos políticos, acabou por atingir a própria estrutura estatutária destes últimos, seguro como é que «o estatuto das associações e dos partidos políticos (cf. o artigo 51.º) abrange não apenas o regime específico quanto à sua constituição, registo, extinção, etc., mas também a definição dos seus direitos e regalias, incluindo a regulamentação a que haja lugar relativa aos direitos dos partidos da oposição (cf. o artigo 117.º)» (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., p. 193).
E, assim sendo, há-de concluir-se que apenas a AR, por força do disposto no artigo 167.º, alínea d), da Constituição, na qual se estabelece uma reserva de competência legislativa absoluta em matéria de «associações e partidos políticos», podia proceder à alteração do regime estatutário dos partidos políticos instituído pelo Decreto-Lei 595/74, nomeadamente no plano das isenções fiscais abarcadas pela norma agora questionada.
É que, como aliás este Tribunal teve ensejo já de afirmar nos seus Acórdãos n.os 30/87 (Diário da República, 2.ª série, de 1 de Abril de 1987), 140/88, de 16 de Junho de 1988, e 151/88, de 29 de Junho de 1988, ainda inéditos, a norma instituidora da reserva de competência absoluta, para além de abranger tanto a regulamentação positiva quanto a revogação de lei anterior, compreende todo o complexo normativo respeitante à estrutura organizatória e ao conjunto de direitos e obrigações que são inerentes à específica natureza dos partidos políticos.
Ora, à luz deste entendimento, não pode deixar de se considerar inserida na gama dos direitos tutelados pela regra da reserva absoluta a norma que concede isenção de «preparos e custas judiciais» aos partidos políticos, desde logo porque esta isenção traduz um direito ou regalia derivado da sua própria estrutura estatutária, devendo assim a sua definição ou modificação pertencer ao único órgão legislativo com competência para dispor sobre a matéria.
Não poderá assim dizer-se, dissentindo deste discurso, que a norma do artigo 5.º do Decreto-Lei 118/85, visando tão-somente matéria de custas judiciais e estabelecendo um regime de isenções que, aliás, foi substancialmente mantido no Decreto-Lei 387-D/87, de 29 de Dezembro (que introduziu profundas alterações no CCJ), não deve haver-se como integradora daquele específico complexo normativo.
É que a existência ou inexistência desta isenção, para além de traduzir uma regalia integrada na esfera dos direitos que compõem aquele complexo normativo, há-de derivar de um certo entendimento legislativo sobre o estatuto das associações e dos partidos políticos que, manifestamente, está reservado à AR.
III - A decisão
Nestes termos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 5.º do Decreto-Lei 118/85, de 19 de Abril, na parte em que revoga a alínea e) do artigo 9.º do Decreto-Lei 595/74, de 7 de Novembro, por violação do disposto no artigo 167.º, alínea d), da Constituição.
Lisboa, 12 de Julho de 1988. - Antero Alves Monteiro Dinis - José Martins da Fonseca - José Manuel Cardoso da Costa - Raul Mateus - Vital Moreira - Messias Bento - José Magalhães Godinho - Luís Nunes de Almeida - Mário de Brito - Armando Manuel Marques Guedes.