Acórdão 52/92
Processo 10/89
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I - O Provedor de Justiça requereu, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República (na redacção resultante da revisão constitucional de 1982) e do artigo 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do artigo 49.º da Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão (CGVEEAT), anexas ao Decreto-Lei 43335, de 19 de Novembro de 1960.
O pedido vem fundamentado nos seguintes termos:
1.º A versão primitiva do artigo 49.º da CGVEEAT, anexas ao Decreto-Lei 43335, de 19 de Novembro de 1960 - que se encontra em vigor após a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 296/82, de 28 de Julho, que deu nova redacção ao citado preceito (Acórdão 33/88, de 2 de Fevereiro) -, atribui ao Secretário de Estado da Indústria poderes para nomear o terceiro perito que integra a comissão encarregada de solucionar divergências que se levantarem entre o consumidor e o distribuidor acerca da execução ou da interpretação das disposições das condições gerais, do caderno de encargos da concessão ou da apólice aprovada.
2.º Tendo a referida comissão a natureza de instância arbitral necessária (artigos 5.º, 113.º, 116.º, 118.º e 120.º do citado diploma legal) e pertencendo, como pertence, à EDP, E. P., a distribuição e fornecimento, em exclusivo, da energia eléctrica de alta tensão (Decreto-Lei 205-G/75, de 16 de Abril, e Decreto-Lei 502/76, de 30 de Junho, artigo 2.º) e estando esta empresa pública sujeita à tutela económica e financeira do Estado através do departamento ministerial competente (Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril, artigos 1.º, 12.º e 13.º, e Decreto-Lei 502/76, artigos 5.º e 26.º), terá, forçosamente, de reconhecer-se que o Governo passou, perante as mutações político-legislativas operadas, a ocupar de forma mediata a posição que dantes cabia à entidade concessionária e, por conseguinte, a desempenhar o papel de parte nos diferendos surgidos no âmbito do fornecimento de energia eléctrica em alta tensão.
3.º E enquanto parte interessada, o Governo (Secretário de Estado da Indústria, hoje Secretário de Estado da Energia) deixou de gozar do estatuto de independência e de imparcialidade susceptível de justificar a faculdade de designação do terceiro perito da comissão à qual se refere o artigo 49.º das CGVEEAT.
4.º A persistência da versão originária desta norma não só contende com o artigo 23.º da Lei Orgânica do Governo - já que os secretários de Estado não dispõem de competência própria -, mas, em sede constitucional, ofende frontalmente os princípios da imparcialidade (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição) e da independência constantes dos artigos 7.º e 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicáveis por força dos disposto no artigo 16.º da Constituição.
E concluiu-se assim:
5.º O artigo 49.º das CGVEEAT, anexas ao Decreto-Lei 43335, de 19 de Novembro de 1960, é, pois, materialmente inconstitucional por violar o disposto no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição e os artigos 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aplicáveis nos termos do que estabelece o artigo 16.º da Constituição.
Em requerimento posterior, de 4 de Agosto de 1989, o Provedor de Justiça viria, porém, limitar o âmbito do pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 49.º das CGVEEAT à «parte em que o mesmo normativo defere a nomeação do terceiro árbitro a um membro do Governo».
Admitido o pedido, foi o Primeiro-Ministro notificado para se pronunciar, nos termos do artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro.
Em resposta, referiu-se assim à norma do artigo 266.º, n.º 2, da Constituição, invocada pelo Provedor de Justiça:
[...] Como resulta, aliás, da sua letra, este preceito constitucional é dirigido aos «órgãos e agentes administrativos», para o exercício da actividade administrativa.
Designadamente, o princípio da imparcialidade respeita especialmente às relações entre a Administração Pública e os particulares, traduzindo-se na necessidade de a Administração ponderar com imparcialidade e isenção os conflitos que surgem no âmbito desta actividade, procurando que as situações sejam resolvidas com equidade e igualdade perante idênticos circunstâncialismos.
[...] Fácil é, pois, concluir que esta norma constitucional visa a actividade administrativa e se dirige aos órgãos e agentes administrativos, apontando-lhes um critério genérico de actuação nas suas relações com os administrados.
E, prosseguindo na argumentação, aduziu, essencialmente, o seguinte:
Ora, a norma do artigo 49.º das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao Decreto-Lei 43335, ao regular a composição, actuações e competência de uma «instância arbitral» ou de um «tribunal necessário» [dúvidas não há sobre esta qualificação cf., por todos, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 86/87, de 25 de Fevereiro], em nada colide com o referido peceito constitucional.
Efectivamente, a possibilidade legal de nomeação pela tutela governamental não é susceptível de pôr em causa a independência e imparcialidade daquela instância arbitral, pelas seguintes razões:
Aquele perito não intervém como delegado ou representante do Governo ou em obediência a instrução deste, pois, uma vez nomeado, o perito adquire um estatuto de total independência enquanto membro de uma instância arbitral;
Assente a natureza da instância na natureza arbitral necessária da referida comissão de peritos, é inequívoco que os membros desse tribunal arbitral beneficiam do estatuto de isenção no exercício da jurisdição e de garantia de inamovibilidade, uma vez nomeados (cf. declaração de voto de Magalhães Godinho, no Acórdão 32/87, de 28 de Janeiro);
Assim, e após a sua nomeação, todos os peritos nomeados actuam como árbitros, com independência e imparcialidade (tanto o terceiro perito como os restantes dois);
O Governo não tem qualquer interesse directa na forma de composição dos litígios que opõem a EDP aos seus clientes, pelo que não é parte;
O Governo celebrou com a EDP um contrato de concessão (para venda de energia eléctrica em alta tensão) e apenas detém sobre a empresa poderes de intervenção que resultem do mero exercício de tutela, por se tratar de um serviço público essencial;
Quanto aos mais, a EDP é uma empresa pública com autonomia administrativa e financeira, e quem a administra e representa é o conselho de gerência.
Concluiu, então, o Primeiro-Ministro:
O artigo 49.º das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao Decreto-Lei 43335, de 19 de Novembro de 1960, não viola o princípio constitucional da independência e imparcialidade face à natureza da intervenção da instância arbitral necessária, que deve julgar com absoluta isenção, e ao estatuto de total independência que assiste aos respectivos membros.
II - As normas.
1 - O Decreto-Lei 43335, de 19 de Novembro de 1960, e as CGVEEAT, que lhe são anexas, surgem no quadro da Lei 2002, de 26 de Dezembro de 1944 (Lei de Electrificação do País), que dispunham, na base XXVII, que «as relações dos concessionários da produção e da grande distribuição com os adquirentes da energia serão reguladas pelas condições gerais de venda em alta tensão e respectivas apólices tipo, a publicar pelo Governo».
O artigo 49.º daquelas Condições Gerais dispõe assim:
Artigo 49.º
Comissão de peritos
As dúvidas ou divergências que se levantarem entre o consumidor e o distribuidor sobre a execução ou a interpretação das disposições destas condições gerais, do caderno de encargos da concessão ou da apólice aprovada serão decididas por uma comissão de três peritos-árbitros, um indicado por cada uma das partes e o terceiro designado pelo Secretário de Estado da Indústria.
§ 1.º A constituição da comissão referida no corpo do artigo poderá ser requerida por qualquer das partes à Direcção-Geral dos Serviços Eléctricos, que fixará um prazo não inferior a 15 dias para a indicação dos peritos-árbitros das partes. A falta de indicação do respectivo perito implica a desistência da reclamação ou a aquiescência a ela, consoante a falta for do requerente ou do requerido. Se nenhuma das partes indicar o seu perito-árbitro, extinguir-se-á o processo.
§ 2.º ...
A questão de constitucionalidade respeita à norma do artigo 49.º, que defere ao Secretário de Estado da Indústria (hoje Secretário de Estado da Energia) o poder de nomear o terceiro árbitro da comissão de peritos ali prevista.
2 - Sublinhe-se, desde logo, que a questão de constitucionalidade da norma do artigo 49.º das CGVEEAT, aqui em apreço, não convoca o princípio constitucional da imparcialidade da Administração, ao contrário do que se aduz nas conclusões do Provedor de Justiça.
Definindo aquele preceito a formação e competência de uma instância arbitral (necessária), como haverá de demonstrar-se, a análise da sua conformidade à Constituição só pode ser referida à função jurisdicional e aos princípios constitucionais a que se orienta.
Com efeito, no programa da norma contida no artigo 49.º das CGVEEAT não está em causa o exercício da função administrativa nem, por isso, o princípio da imparcialidade da Administração (Constituição da República Portuguesa, artigo 266.º, n.º 2).
Não se configura aí uma qualquer relação entre a Administração e os particulares, de tal modo que aquela age teleologicamente orientada à satisfação do interesse público (e, nesse sentido, é parte) e, ao mesmo tempo, se encontra vinculada à proibição constitucional do arbítrio (imparcialidade). Não está em causa a Administração, empenhada na satisfação das necessidades colectivas, dotada de iniciativa, parcial na prossecução do interesse público e imparcial no tratamento dos particulares.
É, antes da função jurisdicional que se trata, dirigida à solução de conflitos, passiva - «só conhecendo da lide ou controvérsia que lhe seja apresentada e só decidindo o que lhe for pedido» (Jorge Miranda) -, imparcial, pela não prossecução de quaisquer interesses próprios, neutra.
Daí que o problema da constitucionalidade da norma do artigo 49.º das CGVEEAT só possa colocar-se à luz da sua ordenação aos princípios orientadores da função jurisdicional, consagrados na Constituição da República.
III - A fundamentação.
1 - O julgamento da constitucionalidade da norma do artigo 49.º das CGVEEAT - que prevê uma comissão arbitral para o julgamento dos litígios suscitados no âmbito do contrato de fornecimento de energia - deverá aferir-se pela apreciação de se, com a competência aí deferida ao Secretário de Estado da Indústria para a nomeação do árbitro-presidente, não é afectado a garantia de independência e imparcialidade do tribunal, estabelecida no artigo 206.º da Constituição.
O que está em causa é saber se é ou não é respeitado o desiderato de exclusão de parcialismo relativamente à lide, desiderato para cuja realização concorre a garantia de independência e imparcialidade do tribunal e que se consubstancia igualmente numa exigência de paridade de tratamento das partes no processo.
2 - Em primeiro lugar, há que analisar se e como é aplicável o mandado constitucional de independência e imparcialidade dos tribunais à instância arbitral prevista no artigo 49.º das CGVEEAT.
Trata-se, aí, de uma instância arbitral necessária. Assim o reconheceu o Tribunal Constitucional ao apreciar a constitucionalidade da norma do artigo 1.º do Decreto-Lei 296/82, de 23 de Julho, que dava nova redacção ao artigo 49.º das CGVEEAT e viria a ser declarado inconstitucional (cf. os Acórdãos n.os 289/86, 32/87, 59/87, 86/87, 93/87, 94/87 e 33/88, in Diário da República, 2.ª série, n.os 5, de 7 de Janeiro de 1987, 81, de 7 de Abril de 1987, 88, de 15 de Abril de 1987, 89, de 16 de Abril de 1987, 105, de 8 de Maio de 1987, e 109, de 13 de Maio de 1987, e 1.ª série, n.º 43, de 22 de Fevereiro de 1988, respectivamente).
As considerações aí expendidas, incidindo, directa e primacialmente, sobre a nova redacção conferida ao artigo 49.º, valem também para a sua versão originária. É assim que se afirma no Acórdão 86/87:
É irrecusável - em particular face à actual redacção do preceito questionado - que a instância neste delineado se configura como um verdadeiro «tribunal arbitral», e um tribunal arbitral «necessário»: assim, de resto, vem agora expressamente qualificado no § 3.º
E que se trata de uma instância arbitral «necessária» é algo que o respectivo enquadramento institucional só confirma.
Na verdade, nos termos do Decreto-Lei 43335, o fornecimento de energia eléctrica em alta tensão é objecto de uma «concessão» [cf. os artigos 5.º, alínea d), e 113.º e seguintes do decreto-lei citado], estando, pois, reservado aos respectivos «concessionários», aos quais simultaneamente se impõe a obrigação desse fornecimento (cf. os artigos 116.º a 118.º do diploma referido); por sua vez, os contratos de fornecimento a celebrar entre esses concessionários e os respectivos consumidores não só devem obedecer a uma apólice tipo, aprovada oficialmente (cf. o artigo 120.º, ainda do mesmo diploma), como ficam sujeitos às Condições Gerais de Venda, definidas em anexo ao dito Decreto-Lei 43335 e dele fazendo parte integrante (cf. o artigo 165.º). Ora, contando-se entre essas Condições Gerais precisamente a da intervenção da «comissão» prevista no artigo 49.º na decisão das questões enunciadas neste último preceito, seguro é que o recurso a uma tal comissão - a uma tal instância arbitral - surge como imposto por lei aos interessados, e não livre e autonomamente estabelecido por estes.
3 - A Constituição da República, no artigo 211.º, n.º 2, inclui, expressamente, os tribunais arbitrais entre as diversas categorias de tribunais. E não distingue entre tribunais arbitrais voluntários e tribunais arbitrais necessários. Legítimo será concluir que, na nossa ordem constitucional, a jurisdictio não tem necessariamente de ser exercida por órgãos de Estado: certos litígios podem ser decididos por árbitros, em resultado de convenção ou disposição da lei.
E, «mesmo que os tribunais arbitrais se não enquadrem na definição de tribunais enquanto órgãos de soberania (Constituição da República Portuguesa, artigo 205.º), nem por isso podem deixar de ser qualificados como tribunais para outros efeitos constitucionais, visto serem constitucionalmente definidos como tais e estarem constitucionalmente previstos como categoria autónoma de tribunais» (cf. o Acórdão 230/86 do Tribunal Constitucional, no Diário da República, 1.ª série, de 12 de Setembro de 1986).
Com efeito, o «juiz-árbitro» desenvolve uma função jurídica pela qual declara o direito (jurisdictio), se bem que não possa executá-lo, ao invés do que se passa com o «juiz-funcionário». Mas pode dizer-se que «esta evidente ausência de potestas por parte do árbitro, enquanto não representa ou encarna a organização jurídico-política do Estado, se vê compensada com a auctoritas» (cf. José Medina e José Merchán, Tratado de Arbitraje Privado Interno y Internacional, Madrid, 1978, p. 183). «As decisões do árbitro são verdadeiras e próprias decisões jurisdicionais, dotadas de autoridade.» (Cf. Carlo Guarnieri, L'Independenza della magistratura, Pádua, 1981, p. 23.)
A decisão do árbitro sobre a controvérsia que lhe é submetida tem efeito de caso julgado. A lei confere-lhe a mesma força vinculativa de que gozam as sentenças judiciais (cf. a Lei 31/86, de 29 de Agosto, aplicável por via do artigo 1528.º do Código de Processo Civil).
Haverá, pois, que examinar a jurisdictio exercida pela instância arbitral prevista no artigo 49.º das CGVEEAT, com vista a determinar se o modo de designação do terceiro árbitro põe em causa as garantias de independência e imparcialidade do julgamento (Constituição da República Portuguesa, artigo 206.º). E, na medida em que a «imparcialidade é uma nota essencial do próprio conceito de tribunal» (cf. Castro Mendes, «Independência dos juízes», in Estudos sobre a Constituição, 3.º vol., 1979, p. 654), haverá ainda de invocar-se a norma constitucional atributiva do direito ao tribunal enquanto órgão independente e imparcial de resolução de litígios. Ou seja, o parâmetro de avaliação de constitucionalidade é dado pelas normas conjugadas dos artigos 20.º, n.º 1, e 206.º da Constituição.
4 - Não valem neste plano da arbitragem necessária as teses contratualistas de certa doutrina, segundo as quais o fundamento da auctoritas arbitral residirá na autonomia da vontade das partes (Guasp, Rocco, Satta). O tribunal arbitral necessário é um instituto distinto, pela sua origem, do tribunal arbitral voluntário; surge em virtude de acto legislativo, e não como resultado de negócio jurídico de direito privado. Daí o seu carácter tipicamente publicístico.
Por esse facto, a imparcialidade de julgamento, que na arbitragem voluntária poderia, em tese, mostrar-se assegurada pela livre concertação de vontades vertida no compromisso arbitral, postula, aqui, um outro tipo de garantias.
Uma argumentação baseada na natureza «contratualista» das cláusulas contratuais gerais anexas ao Decreto-Lei 43335, em que se inscreve o artigo 49.º, tendente a demonstrar a natureza de «cláusula compromissória» do mesmo artigo e a aproximar a instância arbitral aí prevista de uma jurisdição arbitral voluntária padece de manifesto conceptualismo.
Como se afirmou no Acórdão 86/87:
[...] não se diga que, de todo o modo, sempre fica aos consumidores a liberdade de celebrarem ou não o contrato de fornecimento de energia, de maneira que é sempre à sua «vontade contratual» que reverte, em último termo, a referida intervenção da comissão.
Com efeito, e desde logo, bem pode perguntar-se se o carácter «necessário» de uma instância arbitral não decorre sem mais da obrigatoriedade legal do recurso a essa instância em certo tipo de situações ou contratos [cf. o artigo 1525.º do Código de Processo Civil (CPC)], sendo irrelevante para o efeito a «voluntariedade» da simples celebração destes, mas depois, e além disto, ocorre que uma tal «voluntariedade» - ou seja, a liberdade de celebrar o contrato - não passa, no caso, de uma miragem, porquanto se está perante o fornecimento de um bem indispensável e que só pode ser obtido dos concessionários a que o Estado outorgue o serviço da respectiva distribuição. E, se a uma tal conclusão já havia de chegar-se face só ao clausulado no Decreto-Lei 43335 e no tempo da sua emissão, muito mais nitidamente ainda ela veio a impor-se depois, quando, nacionalizadas que foram as empresas concessionárias da grande distribuição de energia eléctrica e fusionadas seguidamente na recorrida Electricidade de Portugal (EDP), E. P., esta passou a ser o único distribuidor e fornecedor possível daquela energia em alta tensão.
E, ainda no Acórdão 289/86:
[...] uma causa imposta às partes, do exterior, que não podem recusar sob pena de não poderem celebrar o contrato de fornecimento de energia eléctrica [...] não se harmoniza com a liberdade jurídica de entrar em relação, que é essencial no conceito de contrato.
Nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 14.º da Lei 31/86, de 29 de Agosto (que regula a arbitragem voluntária e que, por força do artigo 1528.º do Código de Processo Civil, é aplicável à arbitragem necessária), o árbitro-presidente é escolhido por acordo das partes ou, na falta deste, por indicação do presidente do tribunal da relação.
Pelas razões que vêm de ser expostas, não se poderá entender que a «adesão» às CGVEEAT (e ao seu artigo 49.º) consubstanciaria, de algum modo, o acordo «[...] por escrito, até à aceitação do primeiro árbitro, noutra solução» - acordo a que se refere o artigo 14.º, n.º 1, in fine, daquela lei.
Aliás, a nova redacção do artigo 49.º das CGVEEAT, constante da norma do artigo 1.º do Decreto-Lei 296/82, de 28 de Julho, aproximava-se do processo de designação do árbitro-presidente que vem hoje acolhido na Lei da Arbitragem Voluntária. Contudo, esta norma foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão 33/88, de 2 de Fevereiro, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica - e, por isso, repristinado o artigo 49.º na sua redacção originária.
5 - Configurada a comissão arbitral a que se refere o artigo 49.º das CGVEEAT como instância arbitral necessária e considerada a natureza jurisdicional da respectiva função, há que indagar se essa norma importa violação do imperativo constitucional de o litígio ser julgado por tribunal independente e imparcial (Constituição da República Portuguesa, artigos 20.º, n.º 1, e 206.º).
Com efeito, o desiderato do asseguramento da igual probabilidade de êxito das partes em relação ao resultado da lide exige «um processo equitativo diante de um tribunal independente e imparcial» (sentença Delcout, 17 de Janeiro de 1970, in Publications de la Cour européenne des droits de l'homme, A/11, p. 15, § 28). Daí as prescrições da exclusão do iudex inhabilis e da recusa do iudex suspectus (cf. Eduard Bötticher, «L'Uguaglianza di fronte al giudice», in Jus, anno VII, Marzo 1956, pp. 479-480).
O que está em causa é saber se o mecanismo de designação do terceiro árbitro, consignado na norma do artigo 49.º das CGVEEAT, implica preponderância de uma das partes (concessionário-distribuidor) em relação à outra (consumidor) perante o tribunal arbitral.
Para o Provedor de Justiça, essa preponderância resultaria da modificação do estatuto jurídico das empresas concessionárias, operada por nacionalização, e posterior criação da EDP, E. P., a qual levaria a que o Estado ocupasse agora a posição que anteriormente cabia àquelas entidades. Daí a invocação da inconstitucionalidade da norma em apreço, na medida em que atribui a membro do Governo competência para a designação do terceiro árbitro.
6 - A independência e imparcialidade da jurisdição exigem garantias orgânicas, estatutárias e processuais.
No caso em apreço, dificilmente se poderá abstrair da forma de designação do árbitro, argumentando com a natureza jurisdicional da instituição arbitral. Está em causa a composição de um litígio de contornos previamente definidos. A designação do juiz-árbitro é dirigida a uma situação concreta que suscitou, ela própria, a constituição do tribunal. Não é, pois, suficiente a ideia de que o juiz, depois do receptum arbitri, se desvincula da sua nomeação, fundando-se a auctoritas das suas decisões no exercício de uma função de natureza jurisdicional.
E, assim, argumentar que a independência do árbitro decorre da natureza da função que exerce, quer dizer, uma função jurisdicional, configura não só um vício de conceptualismo (estabelece-se a «natureza» do instituto para dela inferir a sua configuração), como uma verdadeira e própria petitio principii: a independência do julgamento decorreria da própria essência da função jurisdicional.
É facto que assistem às partes remédios processuais no sentido de afastar a parcialidade do julgamento, nomeadamente a possibilidade de anulação da decisão arbitral, nos termos do artigo 27.º da Lei 31/86, de 29 de Agosto [cf., sobretudo, o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), e a remissão que opera para o artigo 16.º - relativo aos princípios fundamentais a observar no processo -, cuja alínea a) estabelece que as «partes serão tratadas com absoluta igualdade»].
Por outro lado, aplica-se, neste domínio da arbitragem, o regime de impedimentos e escusas estabelecido na lei de processo civil para os juízes (Lei 31/86, artigo 10.º).
Mas estes remédios processuais não afastam ou diminuem a necessidade de garantir, na sua própria constituição e funcionamento, a independência e imparcialidade do tribunal.
Sobre a necessidade do asseguramento, no plano objectivo, das condições de imparcialidade do tribunal, afirmou-se no Acórdão 135/88 do Tribunal Constitucional (Diário da República, 2.ª série, de 8 de Setembro de 1988):
[...] a independência do juiz é, acima de tudo, um dever - um dever ético-social. A «independência vocacional», ou seja, a decisão de cada juiz de, ao «dizer o direito», o fazer sempre esforçando-se por se manter alheio - e acima - de influências exteriores, é, assim, o seu punctum saliens. A independência, nessa perspectiva, é, sobretudo, uma responsabilidade que terá a «dimensão» ou a «densidade» da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz. Com o sublinhar estes pontos, não pode, porém, esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que «promova» e facilite aquela «independência vocacional».
Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nesta imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de «administrar justiça». Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.
A imparcialidade da jurisdição não é só a imparcialidade subjectiva. É também a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada antes e durante o julgamento. Afinal, «trata-se da confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às partes. [...] Deve, pois, recusar-se qualquer juiz relativamente ao qual se possa legitimamente recear a existência de uma falta de imparcialidade... O elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem ter-se como objectivamente justificadas» (Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, caso Hauschildt - 11/1987/134-188, p. 14, § 48).
7 - Importa, então, analisar em que medida o modo de designação do terceiro árbitro, nos termos do artigo 49.º das CGVEEAT, poderá importar violação do direito ao tribunal enquanto órgão independente e imparcial de soluções de conflitos (Constituição da República Portuguesa, artigos 20.º, n.º 1, e 206.º).
A imparcialidade do julgamento requer que não haja confusão de interesses entre a entidade que nomeia o terceiro árbitro e qualquer das partes intervenientes no processo. A composição global do tribunal deve assegurar que a decisão sobre o litígio se realizará do «estrito ponto de vista da juridicidade» (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, p. 148), quer dizer, não pode a sentença ser determinada por considerações de oportunidade política ou de eficiência ou racionalidade económica. A possibilidade de intervenção destes critérios anularia a própria essência da jurisdição, a qual assenta precisamente «no facto de a decisão ou sentença ser proferida de um ponto de vista estrita e exclusivamente jurídico» (Baptista Machado, ob. cit., p. 146).
Haverá, então, que ponderar as relações que intercedem entre a EDP e o Estado, detentor do capital e dos poderes de direcção que, por via disso, lhe vão ligados.
8 - A EDP foi criada pelo Decreto-Lei 502/76, de 30 de Junho, reunindo numa única entidade económico-jurídica as anteriores empresas concessionárias do serviço público de produção, transporte e distribuição de energia eléctrica, que haviam sido objecto de nacionalização.
Constituía-se em empresa pública, dispondo de estatuto próprio (aprovado pelo Decreto-Lei 502/76), que a definia como «pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial» (artigo 1.º), enquadrável no estatuto geral das empresas públicas, estabelecido pelo Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril.
À EDP, E. P., eram, pois, aplicáveis as regras sobre tutela e intervenção do Governo nas empresas públicas. O artigo 5.º, n.º 1, do estatuto aprovado pelo Decreto-Lei 502/76, de 30 de Junho, dispunha assim:
1 - O Governo assegurará a defesa do interesse público mediante o exercício dos poderes de tutela e dos demais conferidos pela lei e pelo presente estatuto.
2 - Os poderes referidos no número anterior serão exercidos pelo Ministro da Indústria e Tecnologia, salvo nos casos em que na lei ou no presente estatuto estiver expressamente previsto de outro modo.
O capítulo III definia os órgãos da empresa: o conselho geral, o conselho de gerência e a comissão de fiscalização.
O conselho geral (artigo 9.º) era composto, entre outros, por representantes de diversos ministérios e os administradores do conselho de gerência nomeados, nos termos do artigo 13.º, «pelo Conselho de Ministros, sob proposta do Ministro da Indústria e Tecnologia», sendo o seu presidente designado «[...] pelo Conselho de Ministros, sob proposta do Ministro da Indústria e Tecnologia» (artigo 13.º, n.º 2).
Integravam a comissão de fiscalização três membros «nomeados por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da Indústria e Tecnologia, sendo um efectivo e um suplente indicados pelos trabalhadores da empresa» (artigo 21.º, n.º 2).
O capítulo IV regulava a intervenção do Governo na EDP, através dos Ministros da Indústria e Tecnologia, das Finanças e do Trabalho.
O Decreto-Lei 7/91, de 8 de Janeiro, veio alterar a natureza jurídica da Electricidade de Portugal (EDP), E. P., convertendo-a de pessoa colectiva de direito público em pessoa colectiva de direito privado, com o estatuto de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos (artigo 1.º). A EDP passou, então, a reger-se por esse decreto-lei, pelo estatuto constante do anexo I do mesmo diploma, pelas normas reguladoras das sociedades anónimas e «pelas normas especiais cuja aplicação decorra do objecto da sociedade» (artigo 1.º, n.º 2).
O artigo 3.º dispõe que «as acções da EDP pertencem ao Estado e só poderão ser transmitidas para entes públicos» (n.º 1) e que «os direitos do Estado, como accionista da EDP, são exercidos por representante designado por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da Indústria e Energia» (n.º 4).
A EDP tem como órgãos sociais a assembleia geral, o conselho de administração e o conselho fiscal, com as competências fixadas na lei e nos estatutos.
Nos termos do artigo 7.º do mesmo decreto-lei, «o conselho de administração enviará aos Ministros das Finanças e da Indústria e Energia, pelo menos 30 dias antes da data da assembleia geral anual:
a) O relatório de gestão e as contas do exercício;
b) Quaisquer elementos adequados à compreensão integral da situação económica e financeira da empresa, eficiência da gestão e perspectivas de sua evolução [n.º 1].
O conselho fiscal enviará, trimestralmente, aos Ministros das Finanças e da Indústria e Energia um relatório sucinto em que se refiram os contratos efectuados, as anomalias detectadas e os principais desvios em relação às previsões» (n.º 2).
Ainda nos termos do Decreto-Lei 7/91, a «EDP procederá, por meio de cisões simples, à formação de novas sociedades anónimas» (artigo 8.º, n.º 1), para o que o conselho de administração promoverá a avaliação do património da EDP (n.º 2), a qual será feita por «entidades escolhidas de entre as previamente qualificadas pelo Ministro das Finanças para o efeito» (n.º 3) e está sujeita à aprovação do mesmo membro do Governo (n.º 5). Além disso, o plano geral das cisões a efectuar será submetido aos Ministros das Finanças e da Indústria e Energia (artigo 9.º).
Relevante para a questão de constitucionalidade que vem sendo apreciada é saber se os poderes de tutela e intervenção do Governo na EDP constituem fundamento de eventual «interesse» do Estado no modo de composição dos litígios a que se refere o artigo 49.º das CGVEEAT. O que é perguntar se a relação que intercede entre o Governo e a EDP constitui motivo objectivamente justificado de «apreensão» sobre as condições de imparcialidade do terceiro árbitro, designado pelo Secretário de Estado da Energia, na comissão arbitral a que aquele preceito se refere.
E para a questão em exame não se afigura relevante a alteração do estatuto jurídico da EDP, com a sua transformação de empresa pública, enquadrada nas bases gerais das empresas públicas, em sociedade anónima de capitais públicos, cujo figurino é o da legislação comercial. Em ambos os casos, o Estado é o único detentor do capital, o proprietário da «empresa», na acepção jurídico-económica do termo: o facto de exercer uma tutela cujo cariz é, em certa medida, inspirado pelo direito administrativo, como acontece na empresa pública, ou definir as linhas de condução dos destinos da empresa em assembleia geral, como único accionista, como acontece na sociedade de capitais públicos, não altera a circunstância de que em ambos os casos existe um nexo de dependência entre a empresa e o Estado.
Por isso, o argumento «formalista» de que a empresa tem personalidade jurídica distinta do Estado não colherá aqui. A personificação da empresa (como empresa pública ou sociedade anónima) converte-a tão-somente em centro autónomo de imputação de direitos e deveres, não põe um ponto final no interesse do Estado nos resultados da condução da actividade económica da empresa.
Se se tratasse de um problema de imputação de direitos e deveres, o argumento da distinta personalidade jurídica colheria (na hipótese de se não configurar um caso típico de admissibilidade de «desconsideração» da personalidade colectiva). Mas, tratando-se de assegurar a nomeação por fonte isenta de um juiz-árbitro, qualquer «sombra» de interesse da entidade nomeante no desfecho da lide afectará o princípio constitucional da imparcialidade dos tribunais.
Com efeito, a especial exigência de isenção no exercício da função jurisdicional não permite, ao analisar a norma do artigo 49.º das CGVEEAT, a abstracção das relações que intercedem entre o Governo e a EDP. Não é possível afirmar, com segurança, que, em quaisquer circunstâncias, o Estado não terá interesse nas controvérsias submetidas à comissão arbitral a que aquela norma se refere.
A nomeação, por membro de um órgão da Administração, do terceiro árbitro da comissão arbitral prevista no artigo 49.º das CGVEEAT não deixa inequivocamente intocadas as garantias objectivas de imparcialidade do tribunal e, por isso, não afasta os riscos de tratamento desigual das partes.
O regime de designação do terceiro árbitro, consagrado naquela norma, não se afigura adequado ao preenchimento das garantias de independência e imparcialidade.
A suspeição por parte das entidades aderentes às CGVEEAT de uma eventual parcialidade do juiz-árbitro anularia precisamente o carácter de «legitimação pelo procedimento» (Luhmann) e a função de diluição e mediatização de conflitos que é assegurada pela existência de tribunais e procedimentos jurisdicionais dotados de garantias de imparcialidade. O consumidor criaria a convicção de que a igualdade de oportunidades perante o desfecho da lide se encontrava viciada à partida, pela forma de designação do tribunal arbitral.
A norma do artigo 49.º das CGVEEAT, aqui em apreço, é, pois, inconstitucional, por violação das normas dos artigos 20.º, n.º 1, e 206.º da Constituição da República.
IV - Decisão.
Nestes termos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 49.º das Condições Gerais de Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão (CGVEEAT), anexas ao Decreto-Lei 43335, de 19 de Novembro de 1960, na parte em que atribui ao Secretário de Estado da Indústria (hoje Secretário de Estado da Energia) competência para a designação do terceiro árbitro da comissão de três peritos-árbitros aí prevista, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 206.º da Constituição da República.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 1992. - Maria da Assunção Esteves - Armindo Ribeiro Mendes - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Dinis - Fernando Alves Correia - António Vitorino - Mário de Brito - Luís Nunes de Almeida - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Vítor Nunes de Almeida (com declaração que junto) - Bravo Serra (votei o acórdão, embora não deva deixar de fazer a declaração de que me sobram dúvidas sobre se é fundada a afirmação, sem mais, e a consequenciação segundo a qual, incluindo a Constituição, no n.º 2 do seu artigo 211.º, a previsão dos tribunais arbitrais nas diversas categorias de tribunais, sendo assim legítimo concluir que como na nossa ordem constitucional a jurisdictio não tem de ser necessariamente exercida por órgãos do Estado, então estaria assegurada a legitimidade constitucional dos tribunais arbitrais necessários.
A razão de ser dessas dúvidas funda-se, precisamente, na circunstância de a respectiva jurisdição não repousar na vontade das partes, antes se lhes impondo, ainda que contra sua vontade, dessa arte afastando a possibilidade de a dilucidação dos conflitos ser efectuada pelos órgãos estaduais expressamente previstos na lei fundamental e sem que haja concreta e explícita credencial constitucional para tanto.
Foi por isso que, não obstante tais dúvidas, dado o enfoque do acórdão, substancialmente aceitando a existência dos tribunais arbitrais necessários desde que sejam asseguradas as garantias de independência e imparcialidade do julgamento, votei o presente aresto.
É que, se, no momento, me fosse possível a ultrapassagem das citadas dúvidas no sentido de propender pela inadmissibilidade dos tribunais arbitrais necessários, obviamente que a decisão constante do acórdão de que esta declaração faz parte integrante seria por mim votada, mas com divergência quanto à fundamentação, pois que, nessa hipótese, o parâmetro constitucional relevante seria o do artigo 20.º da lei básica, disposição que seria a violada pela norma ora questionada). - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
A fundamentação do presente acórdão e a consequente conclusão suscitam-me reservas muito profundas. É que não posso aderir à concepção que faz pairar sobre o Governo uma prévia e iniludível suspeição, a tal ponto intensa que leve sempre ao enquinamento da formação do tribunal arbitral com violação, note-se, do direito dos particulares ao tribunal, enquanto órgão independente e imparcial de solução de conflitos.
Parece-me inequívoca a existência de um nexo de dependência entre a empresa EDP, na sua actual configuração, e o Estado, nexo sobretudo concentrado nas relações entre aquela e o órgão do Governo que tem a tutela do sector da energia. No entanto, por essa via, não fica, sem mais, demonstrado um eventual «interesse» do Estado no modo de composição dos litígios que não possa ser afastado pela aplicação, em concreto, das normas processuais sobre suspeições e impedimentos.
O nexo aludido não tem de reflectir-se, porém, no momento prévio à composição do litígio, que é o da designação do terceiro árbitro. Nesta fase, não perfeitamente autonomizada no acórdão, o interesse do Estado é um geral interesse público na realização da justiça que bem pode por ele ser prosseguido independentemente de quaisquer relações entre o Estado e a empresa que lhe pertence. Pensar de outro modo é admitir que o Estado não exerce com isenção os diversos fins públicos que deve realizar. Mas, admitindo ainda que desse nexo consigam filtrar-se para a fase seguinte perversas partículas, é bom notar que, além do carácter então não mediato do mesmo nexo, tudo passa pela mediação de uma terceira pessoa, que é o juiz-árbitro designado. Na hipótese, sempre possível, de esse terceiro árbitro ser uma mesma pessoa, que tanto pode ser designada pelo Estado como por outra qualquer entidade eventualmente menos comprometida e mais alheada da controvérsia, acreditar-se-á que a sua atitude será influenciada pela origem da sua designação? Responder afirmativamente e sem hipótese de demonstração do contrário é, pelo menos, excessivo.
São estas as razões em que baseio as minhas reservas, subscrevendo embora o acórdão. - Vítor Nunes de Almeida.