Acórdão 373/91
Processo 405/91 - Plenário
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1.1 - O Presidente da República requereu, ao abrigo do disposto no artigo 278.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade dos artigos 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 13.º, 15.º, 16.º e 25.º do decreto aprovado pelo Conselho de Ministros, registado sob o n.º 412/91 na Presidência do Conselho de Ministros e recebido em 13 de Setembro na Presidência da República para efeito de promulgação, respeitante ao regime jurídico do serviço doméstico, alterando o Decreto-Lei 508/80, de 21 de Outubro.
1.2 - Fundamenta o pedido nos seguintes termos:
A revisão constitucional de 1982 proporcionou uma clarificação do regime constitucional de protecção dos direitos dos trabalhadores, dissipando dúvidas quanto à sua natureza e consistência como direitos fundamentais incluídos na categoria dos direitos, liberdades e garantias.
O projecto de diploma em apreço introduz alterações ao regime jurídico do serviço doméstico constante do Decreto-Lei 508/80, de 21 de Outubro, as quais podem afectar, de forma substantiva, o âmbito normativo do direito à segurança no emprego (artigo 53.º da Constituição da República) e de outros direitos fundamentais dos trabalhadores de natureza análoga aos seus direitos, liberdades e garantias, designadamente os direitos à retribuição do trabalho, ao limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas [artigo 59.º, n.º 1, alíneas a) e d), da Constituição da República Portuguesa].
Trata-se das normas que, no projecto de diploma em apreciação, regulam o contrato a termo (artigos 5.º e 6.º), o período experimental (artigo 8.º), a retribuição (artigo 9.º), a duração do trabalho (artigo 13.º), o descanso semanal (artigo 15.º), o direito a férias (artigo 16.º) e a suspensão do contrato de trabalho por impedimento prolongado respeitante ao trabalhador (artigo 25.º).
Se assim for, poderá estar a ser violado o disposto nos artigos 17.º e 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, na medida em que o presente projecto de diploma do Governo, versando sobre matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República, é emitido nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, logo, sem autorização legislativa.
1.3 - Termina por requerer a apreciação da conformidade constitucional dos mencionados artigos do citado decreto com o disposto nos artigos 17.º e 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República.
1.4 - De acordo com o preceituado nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, foi notificado o Primeiro-Ministro para os efeitos ali consignados, o qual respondeu, em tempo oportuno, no sentido da plena constitucionalidade das normas questionadas.
Em síntese, observa:
a) No tocante à alegada violação do disposto nos artigos 17.º e 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República, a análise evolutiva da primeira destas normas revela-nos não estarmos em presença de quaisquer direitos fundamentais análogos aos direitos, liberdades e garantias;
b) Mesmo a admitir que os direitos fundamentais dos trabalhadores com a natureza de direitos, liberdades e garantias não se limitaram aos que transitaram do título III para o título II, na 1.ª revisão constitucional, compreendendo também os elencados nos actuais artigos 58.º e 59.º da Constituição da República, nem por isso tal significa que, por via do artigo 17.º, esteja co-envolvida a competência para legislar;
c) Tendendo a doutrina a identificar os direitos análogos com a detenção de posições subjectivas individuais suficientemente concretizadas, em termos de poderem ser judicialmente sustentadas sem necessidade de mediação legislativa, não se vê como possuam essa virtualidade as normas constitucionais relativas ao direito à retribuição do trabalho, ao limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas, fora do contexto do princípio à não discriminação (artigo 59.º da Constituição da República);
d) Ainda que se sustente decorrer a analogia da concretização dos direitos por via legislativa, conferindo aos cidadãos o poder de os exigir judicialmente, é absurdo que a partir da respectiva concretização a modificação ou ampliação dos direitos fiquem sujeitas à reserva relativa da competência da Assembleia da República;
e) De resto, a prática constitucional em matérias tão relevantes como as de fixação dos salários mínimos e das prestações de desemprego é a da sua fixação por via de decretos-leis não autorizados, sem que alguma vez se tenha posto em causa a competência concorrente do Governo para legislar;
f) Aliás, o regime jurídico do serviço doméstico contido no texto em estudo mantém, no essencial, o quadro da regulamentação em vigor (Decreto-Lei 508/80), sucedendo até que, relativamente ao horário de trabalho, o n.º 2 do artigo 4.º da Lei 2/91, de 17 de Janeiro, prevê expressamente a sua extensão ao «trabalho de serviço doméstico, em termos e condições a estabelecer em legislação própria», a qual «não é, obviamente, a da Assembleia da República»;
g) As alterações introduzidas no projecto são, sobretudo, de ordem formal, por sua natureza não cobertas pela reserva;
h) Por outro lado, as questões relativas ao contrato de trabalho a termo estão para além - e fora - do sistema constitucional de segurança no emprego, ínsito no artigo 53.º da Constituição da República;
i) O mesmo se diga do período experimental, em que apenas se pretendeu aproximar o respectivo regime do que consta da lei de autorização legislativa objecto do Acórdão 64/91 deste Tribunal;
j) O que também é válido para a suspensão do contrato de trabalho por impedimento prolongado respeitante ao trabalhador, pois pretendeu-se plasmar na expressão legal um enquadramento jurídico já ditado por aplicação dos princípios gerais de direito e da analogia com referência ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, deste modo se prevenindo conflitualidades indesejáveis entre os destinatários da norma;
k) O princípio do direito à segurança no emprego desenvolve-se ao nível da proibição dos despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos, ou seja, no plano do regime de cessação do contrato de trabalho e não no da sua suspensão, prendendo-se estes com outros direitos constitucionais dos trabalhadores, contidos nos artigos 58.º e 59.º, nomeadamente o direito ao trabalho e o direito à retribuição do trabalho;
l) A vingar o entendimento constante do pedido, é bem de ver estarem em causa todas as matérias contidas nestes artigos 58.º e 59.º, o que destituiria o Governo da utilização de meios legislativos em matéria de política laboral, negando-lhe uma responsabilidade que lhe é primariamente atribuída pela Constituição, dificultando o processo legislativo e o relacionamento com os parceiros sociais, vulnerabilizando a manutenção da paz social, provocando insegurança e incerteza decorrentes da inconstitucionalização de normas fundamentais, como sejam as relativas à fixação das retribuições mínimas e o regime das prestações de desemprego, do mesmo passo obstando à concretização da obrigação de transpor para a ordem jurídica interna as directivas comunitárias.
2 - Cumpre, por conseguinte, apreciar, em sede de fiscalização preventiva, a conformidade constitucional dos artigos 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 13.º, 15.º, 16.º e 25.º do decreto registado sob o n.º 412/91 com as normas dos artigos 17.º e 168.º, n.º 1, alínea b), da lei fundamental.
II
1 - O decreto, expressamente invocando a competência legislativa do Governo, nos termos do artigo 201.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República, é acompanhado de preâmbulo que interessa reproduzir:
O Decreto-Lei 508/80, de 21 de Outubro, actualmente em vigor, definiu, pela primeira vez, no nosso ordenamento jurídico um regime específico regulamentador do contrato de serviço doméstico.
Até à data da sua entrada em vigor, as normas regulamentadoras deste tipo de contrato eram as do Código Civil de 1867, que, pela época em que foram produzidas, se mostravam completamente desfasadas da realidade social.
Talvez por se tratar da primeira tentativa de regular, global e coerentemente, a prestação de trabalho doméstico e ainda por ter aparecido numa época de profundas mutações na concepção dos regimes disciplinadores da relação de trabalho, o referido diploma não poderia deixar de ter, naturalmente, um período de vigência transitório.
Decorridos cerca de 10 anos, reconhece-se que a dinâmica das relações laborais e a melhoria das condições de vida dos agregados familiares justificam uma revisão de algumas matérias do actual regime.
A circunstância de o trabalho doméstico ser prestado a agregados familiares e, por isso, gerar relações profissionais com acentuado carácter pessoal que postulam um permanente clima de confiança exige, a par da consideração da especificidade económica daqueles, que o seu regime se continue a configurar como especial em certas matérias, mantendo-se, por isso, o quadro essencial da regulamentação actualmente em vigor, por se ajustar às características peculiares da prestação de serviço doméstico, embora com reforço dos instrumentos de protecção ao trabalhador. Pelas mesmas razões se mantêm em vigor os preceitos daquela regulamentação relativos à cessação do contrato de serviço doméstico.
Por outro lado, prevê-se a aproximação ao quadro normativo geral atinente aos regimes de faltas, de férias e do respectivo subsídio.
Como inovações, anota-se a criação de um subsídio de Natal tendo em conta a sua prática generalizada na contratação colectiva e a regulação flexível de períodos de trabalho semanais para trabalhadores alojados e não alojados, de acordo, aliás, com o previsto na Lei 2/91, de 17 de Janeiro. Por último, inserem-se prescrições gerais relativas à segurança e saúde no trabalho doméstico.
A finalizar, acrescenta-se:
Foram ouvidos os órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
O projecto foi submetido a apreciação pública através de publicação na separata n.º 4 do Boletim do Trabalho e Emprego, de 24 de Abril de 1991. Foram recebidos diversos contributos de organizações de trabalhadores, que concordam, na generalidade, com o regime contido no projecto, havendo, porém, quem sustente uma maior melhoria dos direitos sociais. Tais posições tinham sido, aliás, já manifestadas em sede do Conselho Económico e Social, reflectindo o presente regime o máximo de consenso nele obtido.
2 - Destina-se o texto a reger as relações de trabalho emergentes do contrato de serviço doméstico (artigo 1.º), revogando parte substancial do diploma vigente actualmente sobre a matéria - o Decreto-Lei 508/80, de 21 de Outubro -, e depois de, no artigo 2.º, cuidar da definição do contrato de serviço doméstico em termos não significativamente divergentes do anterior e de, nos artigos 3.º e 4.º, dispor sobre a forma do contrato e a idade mínima do prestador de serviços, respectivamente, contém os primeiros blocos de dispositivos postos em crise:
Artigo 5.º, epigrafado «Admissibilidade do contrato a termo»:
1 - O contrato de serviço doméstico pode ser celebrado a termo nos seguintes casos:
a) Natureza transitória do trabalho;
b) Carácter temporário da prestação do trabalho;
c) Situações relativas aos contratantes que enquadrem de forma transitória ou temporária motivo que o justifique.
2 - Nas situações previstas nas alíneas a) e b) do número anterior, na falta de estipulação escrita do prazo, considera-se que o trabalho é celebrado a termo incerto.
3 - Na situação prevista na alínea c) do n.º 1 o contrato de trabalho está sujeito à forma escrita, devendo ser assinado por ambas as partes e mencionar a identidade dos contratantes, a retribuição do trabalhador, o local da prestação do trabalho e a data do início e termo do contrato e, bem assim, o motivo.
4 - A falta dos requisitos de justificação a que se referem as alíneas a) e b) do n.º 1 deste artigo, bem como a falta de redução a escrito no caso da alínea c) do mesmo número, tornam nula a estipulação do termo.
Artigo 6.º, respeitante à renovação do contrato a termo:
1 - O contrato de trabalho a termo certo pode ser objecto de duas renovações, considerando-se o contrato renovado se o trabalhador continuar ao serviço para além do prazo estabelecido.
2 - Se o trabalhador continuar ao serviço da entidade empregadora após o decurso de 15 dias sobre a data do termo da última renovação do contrato ou da verificação do evento que, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior, justificou a sua celebração a termo incerto, o contrato converte-se em contrato sem termo.
3 - Ao trabalhador alojado cujo contrato caduque deve ser concedido um prazo mínimo de três dias para abandono do alojamento.
E depois de o artigo 7.º, não questionado, se debruçar sobre modalidades que o contrato pode revestir, acrescenta o artigo 8.º, sob a epígrafe «Período experimental»:
1 - No contrato de serviço doméstico há um período experimental de noventa dias, salvo estipulação escrita por via da qual seja eliminado ou reduzido.
2 - Durante o período experimental qualquer das partes pode fazer cessar o contrato sem aviso prévio ou alegação de justa causa, não havendo lugar a qualquer indemnização.
3 - No caso de cessação do contrato durante o período experimental, deve ser concedido ao trabalhador alojado um prazo mínimo de vinte e quatro horas para abandono do alojamento.
4 - O período experimental conta para efeitos de antiguidade.
E o artigo 9.º - «Conceito e modalidades de retribuição»:
1 - Só se considera retribuição aquilo a que o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho, nos termos deste diploma ou do contrato.
2 - A retribuição do trabalhador de serviço doméstico pode ser paga parte em dinheiro e parte em espécie, designadamente pelo fornecimento de alojamento e alimentação ou só alojamento ou apenas alimentação.
3 - Sempre que no dia de descanso semanal ou feriado a entidade empregadora não conceda refeição ao trabalhador alojado nem permita a sua confecção com géneros por aquela fornecidos, o trabalhador tem direito a receber o valor correspondente à alimentação em espécie que acrescerá à retribuição em numerário.
O bloco de normas seguinte respeita à duração do trabalho (artigo 13.º), descanso semanal (artigo 15.º) e direito a férias (artigo 16.º), apresentando o seguinte teor:
Artigo 13.º
[...]
1 - O período normal de trabalho semanal não pode ser superior a quarenta e quatro horas.
2 - No caso dos trabalhadores alojados, para efeitos do número anterior, apenas são considerados os tempos de trabalho efectivo.
3 - Mediante acordo do trabalhador, o período normal de trabalho referido no n.º 1 pode ser observado em termos médios.
Artigo 15.º
[...]
1 - O trabalhador alojado e o não alojado a tempo inteiro têm direito, sem prejuízo da retribuição, ao gozo de um dia de descanso semanal.
2 - Pode ser convencionado entre as partes o gozo de meio dia ou de um dia completo de descanso, além do dia de descanso semanal previsto no número anterior.
3 - O dia de descanso semanal deve coincidir com o domingo, podendo recair em outro dia da semana quando motivos sérios e não regulares da vida do agregado familiar o justifiquem.
Artigo 16.º
[...]
1 - O trabalhador de serviço doméstico tem direito a um período de férias remuneradas de 22 dias úteis em cada ano civil.
2 - O direito a férias vence-se no dia 1 de Janeiro de cada ano, salvo quando a antiguidade do trabalhador ao serviço da entidade empregadora for inferior a seis meses, caso em que só se vence no fim deste período.
3 - Quando o início do exercício de funções ocorra no 1.º trimestre do ano civil, o trabalhador tem direito, após o decurso do período experimental, a um período de férias de oito dias úteis, a gozar até 31 de Dezembro do ano da admissão.
5 - O trabalhador contratado a prazo inferior a um ano tem direito, em cada ano civil, a um período de férias de duração proporcional ao tempo de serviço efectivamente prestado.
6 - Para efeitos de férias, a contagem dos dias úteis compreende os dias da semana de segunda-feira a sexta-feira, com a exclusão dos feriados, não sendo como tal considerados o sábado e o domingo.
Finalmente, uma derradeira disposição se questiona, a do artigo 25.º, sobre suspensão do contrato de trabalho por impedimento prolongado respeitante ao trabalhador:
1 - Quando o trabalhador esteja temporariamente impedido de prestar trabalho por facto que não lhe seja imputável, nomeadamente doença ou acidente, e o impedimento se prolongue por mais de um mês, cessam os direitos, deveres e garantias das partes, na medida em que pressuponham a efectiva prestação de trabalho, sem prejuízo da observância das disposições aplicáveis na legislação sobre segurança social ou outra.
2 - O tempo de suspensão conta para efeitos de antiguidade, conservando o trabalhador o direito ao lugar e continuando obrigado a guardar lealdade à entidade empregadora.
3 - Pretende o Presidente da República confrontar a adequação das transcritas disposições aos parâmetros constitucionais invocados.
São eles a norma do artigo 17.º:
O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga.
E a norma do artigo 168.º, n.º 1, alínea b):
1 - É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
...
b) Direitos, liberdades e garantias;
...
Sublinhe-se, no entanto, competir ao Tribunal Constitucional apreciar a questão em si, pronunciando-se ou não se pronunciando pela inconstitucionalidade das normas em estudo, não se encontrando, porém, necessariamente limitado à motivação jurídica invocada e respectivo enquadramento jusconstitucional, como flui do artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82.
III
1.1 - A democraticidade do processo genético legislativo de iniciativa parlamentar revela-se, em princípio, mais forte, relativamente à elaboração normativa governamental, na medida em que índices significativos de uma concepção democrática de Estado de direito, como sejam, entre outros, o pluralismo opiniativo, a publicidade, o contraditório, nele se manifestam em condições mais favoráveis.
Consequentemente, entre nós de modo particular após a 1.ª revisão constitucional, áreas de maior sensibilidade como as directamente articuladas com a estrutura política do Estado são confiadas ao labor legislativo do Parlamento, pela aptidão para nelas intervir com respeito pelas exigências de conformação constitucional, tão mais evidentes quanto é certo assistir-se a crescente ampliação da competência legislativa do Executivo, própria ou obtida por autorização legislativa.
É assim que a Constituição da República (CR) contém uma reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (AR), elencando matérias sobre as quais é este o único órgão com competência para sobre elas legislar - CR, artigo 167.º
Outras matérias, porém, menos directamente comprometidas com a dimensão política do Estado, podem ser objecto de actuação do Governo no plano legislativo, desde que este se encontre autorizado por lei da AR - lei de autorização legislativa -, definindo-lhe os parâmetros da normação a editar - o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização.
Constituem a reserva relativa da competência legislativa da AR e, no seu âmbito, incluem-se os direitos, liberdades e garantias - CR, artigo 168.º, n.os 1, alínea b), e 2.
Nela se compreendem os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores - CR, artigo 17.º e capítulo III do título II da sua parte I -, já se discutindo se, também, os «direitos fundamentais de natureza análoga», a que alude aquele artigo 17.º
A competência legislativa do Governo reconhecida por credencial parlamentar não o vincula a exercê-la nem, no caso afirmativo, a cumpri-la integralmente - desde que não desvirtue os limites citados. Na verdade, nem por estar autorizado pode o Governo libertar-se da parametricidade constitucional.
Isto é, se bem que a AR seja considerada o órgão mais idóneo para legislar no domínio dos direitos, liberdades e garantias (que ora nos interessa), admite-se que o Governo também actue nessa área, livremente mas nos limites da autorização.
Não há, por conseguinte, nem uma «autorização de ingerência» nem uma inversão de competências, como adverte Jorge Miranda, mas sim «alargamento do âmbito subjectivo da competência dentro da elasticidade criada pela Constituição» (cf. Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, p. 469), o que, nessa medida e, obviamente, sem prejuízo da sua competência legislativa própria, torna nesse ponto o Executivo dependente do Legislativo (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, 1991, p. 798).
1.2 - A esta luz se há-de compreender o pedido apresentado.
Na verdade, se o novo regime jurídico do serviço doméstico se articula com os direitos, liberdades e garantias, repercutindo-se, de uma maneira ou outra, nos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores (e, porventura nos direitos fundamentais de natureza análoga), o Governo carece de autorização legislativa da AR, visto tratar-se de matéria da reserva relativa deste último órgão; se, pelo contrário, a actuação governamental se mostrar conforme à sua competência legislativa própria, ainda que concorrencial com a da AR, então não é exigível tal autorização.
No primeiro caso, o Governo exercerá a sua competência nos termos do artigo 201.º, alínea b), da CR; no segundo, actuará de harmonia com a alínea a) da mesma norma.
Mas, se o Governo carecer de credencial parlamentar e legislar ao abrigo da citada alínea a), gerar-se-á inconstitucionalidade orgânica, a afectar, total ou parcialmente, o texto a publicar.
2 - Tendo em conta a fundamentação do pedido, por um lado, e a resposta do Primeiro-Ministro, por outro, a abordagem dos preceitos postos em crise pressupõe uma metodologia de primeiro enfoque, que necessariamente passa:
a) Pela amplitude do artigo 53.º da CR e correlativa configuração do direito à segurança no emprego;
b) Pela temática dos direitos fundamentais de natureza análoga;
c) Pela exigência de autorização legislativa e do conteúdo inovatório das normas em referência.
O que se levará a efeito, topicamente.
2.1 - A caracterização do direito à segurança no emprego como direito fundamental dos trabalhadores, incluído no elenco dos direitos, liberdades e garantias, é hoje generalizadamente aceite, mais vincadamente após a 1.ª revisão constitucional.
Pode, no entanto, alegar-se ser impertinente ou despropositada a sua invocação no caso vertente, por se entender que o princípio do direito à segurança no emprego se desenvolve ao nível da proibição dos despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos - e tão-só -, pelo que as questões relativas ao contrato de trabalho a termo estariam para além e fora do sistema constitucional da segurança no emprego, plasmado na norma do citado artigo 53.º da CR.
Crê-se ser esta uma leitura redutora da norma.
A segurança no emprego postula a estabilidade da relação de trabalho e nessa medida sobre o legislador impende a obrigação de contribuir positivamente para a concretização dessa garantia (cf. os Acórdãos deste Tribunal n.os 148/87 e 107/88, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 5 de Agosto de 1987, e 1.ª série, de 21 de Junho de 1988, respectivamente).
Por outras palavras, não obstante a necessidade de intervenção legislativa para a sua integral conformação, a densificação do direito fundamental à segurança no emprego não se basta com a interpretação literal da norma do artigo 53.º: por um lado, a sua natureza não é atingida pela mediação legislativa que a força vinculante inerente exige; por outro lado, uma dimensão minimalista da norma despojar-lhe-ia parte da função garantística que lhe cumpre desempenhar (ou proporcionaria esse risco), pela maior capacidade atractiva da função de indirizzo político, ditada por razões técnicas, organizatórias ou de vária ordem, reconduzíveis à política legislativa.
Pretende-se, assim, significar a necessidade de ter em conta a norma do artigo 53.º sempre que uma dada medida legislativa se relacione - de algum modo - com a estabilidade no emprego, não só ao nível da semântica textual mas também ao da sua teleologia.
2.2 - Não é fácil, por seu turno, dogmatizar a respeito dos direitos fundamentais de natureza análoga («direitos equiparados», na fórmula que utilizaremos por mera comodidade expositiva).
Surpreende-se, no entanto, um denominador comum ou analogia, com a reserva devida a este tipo de generalização: para além da semelhança estrutural com os direitos fundamentais do título II da parte I da CR, estão estes direitos materialmente ligados à ideia de protecção da dignidade da pessoa humana reflectida como trabalhador.
Salienta, a propósito, J. C. Vieira de Andrade - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 204 - não poder o legislador decidir se estabelece ou não um horário máximo de trabalho diário ou o salário mínimo nacional, pois um non facere corresponderia a inconstitucionalidade por omissão. Essa obrigatoriedade de intervenção legislativa mercê do texto constitucional que, explícita ou implicitamente, lhe dita o que no essencial deve legislar - e o «como» - tem lugar sempre que o direito fundamental se não baste com a fixação primária do seu sentido normativo.
Ao legislador ordinário cabem, nas palavras do mesmo autor em obra mais recente - O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Coimbra, 1991, p. 199 -, as tarefas de garantir e de concretizar os valores jurídico-constitucionais, densificando e determinando opções fundamentais relativamente às diversas áreas da vida social tocadas pela actividade pública.
Neste «contexto de interferência e de interinfluência recíprocas» as normas editadas pelo legislador ordinário podem, directa ou indirectamente, não servir ou não prejudicar, não promover ou não restringir um ou outro direito fundamental, ou, pelo menos, não facilitar ou não dificultar o respectivo exercício (ibidem).
Na economia do acórdão não interessa teorizar a natureza e a conceituação dos direitos equiparados, problema polémico e de reconhecida dificuldade, mas tão-só determinar em que medida o Governo, no exercício da sua competência legislativa própria, pode intervir naquele trabalho de densificação sem interferência na área de reserva parlamentar.
É aspecto a considerar infra, no ponto IV-3.
2.3 - A finalizar esta aproximação à questão nuclear, observe-se poder afirmar-se que, se uma nova norma em nada afectar a reserva de lei parlamentar, tudo se passa como se esta permaneça intacta.
Indo mais longe, já se admitiu ser o Governo livre para dar novas vestes à legislação em vigor, não obstante se movimentar em área de reserva, desde que «não toque no fundo», limitando-se a reproduzir a anterior normação, a coligi-la ou a sistematizá-la.
Seja como for, já assim não sucederá, por certo, se a alteração de um anterior regime provocar implicações de enquadramento global de dado sector, actualizando-o em razão de modificações de ordem extrínseca, por exemplo, com suficiente relevo para susceptibilizar a reequacionação da defesa in casu dos direitos fundamentais (ou equiparados).
Uma coisa é, de facto, verificar que a nova norma em nada afecta a reserva de competência da Assembleia da República, tudo se passando como se o legislador se tivesse mantido inactivo - hipótese contemplada no Acórdão 212/86, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 4 de Julho de 1986, abonado em larga cópia de fontes doutrinais e jurisprudenciais nele citadas; outra coisa significará uma intervenção em que o legislador governamental penetre na reserva parlamentar - hipótese tratada no Acórdão 77/88, publicado na 1.ª série do mesmo jornal, de 28 de Abril de 1988.
O critério mais «benevolente» começou por ter a anuência da Comissão Constitucional, que defendeu a tese, ainda na vigência da versão originária da actual Constituição da República, da não existência de intromissão do sector de reserva legislativa parlamentar «desde que o Governo não crie uma outra normatividade e se limite a repetir no essencial o que já consta de textos legais anteriores, emanados do órgão de soberania competente» (cf. o parecer 17/82, de 20 de Maio de 1982, publicado no 19.º volume dos Pareceres da Comissão Constitucional, p. 256, no seguimento do parecer 2/79, de 19 de Janeiro de 1979, na mesma publicação, 7.º vol., p. 193). Reiterada esta posição no parecer 31/79, de 6 de Dezembro de 1977 (Pareceres, cits., 10.º vol., pp. 59 e seguintes), mereceu já a discordância de Jorge Miranda, então membro daquela Comissão, e sofreu inflexão posterior, tendo em conta a globalidade do regime ou do diploma em que se situa a nova norma (cf. Acórdão 407/89, de 31 de Maio de 1989, in Diário da República, 2.ª série, de 14 de Setembro de 1989).
Recentemente, aquele autor reafirmou ser a reserva de competência «tanto para a feitura de normas legislativas como para a sua interpretação, modificação, suspensão ou revogação» e «tanto para a feitura de novas normas quanto para a decretação, em novas leis, de normas preexistentes» (Funções ..., pp. 367 e 368), o que, aliás, se harmoniza coerentemente com o primado por si atribuído à competência legislativa da AR (cf. ob. cit., pp. 228, 366 e 469, entre outras) e já opinara noutros lugares (v. g. no Manual cit., t. IV, onde diz, a certo passo:
A reserva abrange a simples reprodução ou renovação de normas até então em vigor - porque a decisão de reproduzir, de renovar, de manter é já uma decisão legislativa e porque, a tal pretexto, poderia o Governo alterar na prática um regime legislativo e invadir a competência da Assembleia. [P. 332; sublinhado agora.]
No caso concreto, a tarefa hermenêutica prefigura-se facilitada: proposto um novo regime jurídico para certo tipo de contratos de trabalho em substituição - se bem que não total - do anterior, pode estar obviamente em causa o próprio regime em si, isto é, a inserção sistemática das normas do diploma globalmente apreendido revela a vontade do legislador em inovar normativamente.
IV
1 - Ao tomar a iniciativa legislativa de alterar a disciplina jurídica do serviço doméstico, estabelecendo novo regime em substituição do constante no actual Decreto-Lei 508/80, iniciativa alegadamente mais conforme com os «direitos sociais» dos trabalhadores, reforçando os instrumentos de sua protecção, respeitando, do mesmo passo, a configuração especial de certas matérias e «mantendo o quadro essencial da regulamentação actualmente em vigor», como se lê do respectivo preâmbulo, o Governo agiu expressamente ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da CR, o que vale dizer que considerou actuar em área da sua própria competência legislativa, não reservada à AR.
A peculiaridade do regime vem de longe.
O contrato de serviço doméstico foi regulado no Código Civil de 1867 em termos não inteiramente coincidentes com o contrato de trabalho propriamente dito, então chamado contrato de serviço salariado (cf. artigos 1370.º e 1391.º do Código de Seabra), especificidade que a Lei 1952, de 10 de Março de 1937, manteria (artigo 1.º) e a legislação laboral comum posterior confirmaria.
Assim, o Decreto-Lei 49408, de 24 de Novembro de 1969, ao dispor sobre o regime jurídico do contrato individual de trabalho, previu a sua extensão, total ou parcial, aos contratos de serviço doméstico e de trabalho rural, com as adaptações exigidas pela natureza destes (artigo 5.º).
A diferenciação manteve-se e o Decreto-Lei 508/80 reconheceu-o, ao criar um novo regime mais adaptado aos princípios fundamentais disciplinadores da relação jurídica do trabalho, certo que as normas anteriores se mostravam obsoletas e desfasadas da realidade económica e social.
Argumenta-se, no entanto, que as modificações a introduzir são de ordem formal ou adjectiva, não cobertas pela reserva, sendo absurdo e obstaculante da actuação do Governo que, concretizado já por via legislativa ordinária um determinado regime e os correspondentes direitos, qualquer nova intervenção, ditada por considerações de ordem técnica ou de política económica e social que o Governo entenda acolher, exija a intervenção parlamentar.
Cremos, no entanto, não ser esta a perspectiva correcta, como de seguida se tentará demonstrar.
1.2 - A análise dos preceitos postos em causa pelo Presidente da República deverá considerar dois blocos:
a) As normas dos artigos 5.º, 6.º, 8.º e 25.º respeitam à segurança no emprego, cumprindo equacioná-las face ao artigo 53.º da CR;
b) As normas dos artigos 9.º, 13.º, 15.º e 16.º têm a ver com a problemática dos direitos fundamentais de natureza análoga.
2.1 - As normas dos artigos 5.º e 6.º cuidam da admissibilidade do contrato a termo e da sua renovação, respectivamente.
Se bem que a nota preambular não se refira à contratação a termo, o aprazamento e a fixação do termo são, agora, previstos diferentemente em relação ao regime de 1980.
Com efeito, este, não submetendo o contrato a forma especial (artigo 3.º), adopta a regra da celebração sem prazo, se o contrário não resultar da natureza do trabalho, dos usos ou de acordo entre as partes (n.º 1 do artigo 5.º).
Admite, porém, a celebração a prazo, certo ou incerto, desde que, neste último caso, a termo certo (n.º 2 do mesmo preceito), para considerar ser aplicável a estes contratos a regulamentação geral sobre o contrato individual de trabalho a prazo, sem prejuízo do disposto quanto à forma (artigo 3.º), ao período experimental (artigo 7.º) e à admissibilidade dos contratos a prazo certo ou incerto, desde que a termo certo, neste último caso (n.º 3 do artigo 5.º).
Ainda o legislador de 1980 entendeu dotar o contrato de serviço doméstico de maior flexibilidade, de modo a mais o adequar às características deste tipo de trabalho, tomando, nomeadamente, a iniciativa de reintroduzir nesta área a figura do contrato de trabalho a termo incerto, prevista no artigo 10.º do Decreto-Lei 49408, que o artigo 9.º do Decreto-Lei 781/76, de 28 de Outubro, revogara.
Recentemente, e mediante autorização legislativa, o Decreto-Lei 64-A/89, de 27 de Fevereiro, sobre o novo regime da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo, voltou, a nível geral, a admitir-se esta figura.
O decreto em apreço propõe-se, no seu específico âmbito, estabelecer o paralelismo possível.
Concretamente, e além do mais:
a) Molda-se a contratação a termo de acordo com uma tipologia ditada por factores objectivos - natureza transitória do trabalho e carácter temporário da prestação do trabalho - ou subjectivos - «situações relativas aos contratantes que enquadrem de forma transitória ou temporária motivo que o justifique»;
b) Estipula-se para as situações objectivas o termo incerto, inexistindo cláusula escrita sobre prazo;
c) Sujeita-se à forma escrita e à observância de certos requisitos o contrato correspondente a uma das situações subjectivas previstas;
d) Torna-se nula a estipulação do termo nos casos da falta de requisitos de justificação a que se referem as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 5.º, o mesmo acontecendo com a falta de redução a escrito da alínea c) do mesmo número;
e) Dispõe-se quanto à renovação do contrato a termo (artigo 6.º) em termos sem correspondência com o regime anterior.
Para além da matéria inovatória contida nos preceitos, a contratação a termo implica, por natureza, precariedade no trabalho - logo, reflexo na respectiva segurança no emprego.
2.2 - A norma do artigo 8.º respeita ao período experimental.
O vigente Decreto-Lei 508/80 prevê-o no artigo 7.º, se bem que algo diferentemente.
No regime actual esse período é de dois meses, salvo estipulação escrita pela qual seja eliminado ou encurtado (n.º 1 do artigo 7.º), podendo qualquer das partes, nesse lapso de tempo, fazer cessar o contrato sem aviso prévio ou alegação de justa causa, não havendo direito a indemnização (n.º 2).
No texto do decreto a disciplina é semelhante, se bem que se alargue o prazo para 90 dias (n.º 1), cuidando-se, no entanto, de assegurar aos trabalhadores, se o contrato cessar no decurso do período experimental, um prazo mínimo de vinte e quatro horas para abandono de alojamento e dispõe-se também contar esse período para efeitos de aposentação (n.os 3 e 4).
A justificação do período experimental é usualmente alicerçada na própria natureza duradoura do contrato. Como salienta Menezes Cordeiro, a celebração de um contrato de trabalho vocacionado para a perenidade aconselha o prévio esclarecimento da situação real de trabalho e permite às partes ponderar a viabilidade da situação laboral criada e também qual a sua vontade (cf. Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, 1991, p. 577; no mesmo sentido, A. L. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, I, 7.ª ed., Coimbra, 1991, pp. 275 e seguintes).
De qualquer modo, a existência de um período experimental traduz-se na suspensão do direito à segurança no emprego, logo da garantia de estabilidade. Não que a medida seja, em si, inconstitucional: a exigência de um período experimental nos contratos de trabalho é constitucionalmente legítima, a despeito da falta de segurança, como ponderou já este Tribunal no Acórdão 64/91, já citado, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 11 de Abril de 1991.
Pode, sim, discutir-se se o prazo é desproporcionado e excessivo.
Escreveu-se nesse acórdão não o ser a ampliação de 60 para 90 dias; no caso sub judicio a modificação terá por objectivo a igualação de regimes, nada havendo a objectar por esse lado.
No entanto, pois que se trata de matéria inserida no âmbito normativo do direito à segurança no emprego, o Governo não podia actuar por iniciativa própria, como já se referiu.
Na sua resposta, observa o Primeiro-Ministro ter-se pretendido aproximar o regime do que consta do decreto objecto de fiscalização preventiva de constitucionalidade que deu lugar ao Acórdão 64/91, sendo certo que neste se considerou só se colocar a questão da conformidade constitucional para além do período experimental, mais se adiantando que, não sendo a respectiva fixação em concreto uma forma fraudulenta ou encapotada de permitir o despedimento sem justa causa, também por essa via não afectava a segurança no emprego.
Simplesmente, e ao invés do caso presente, o Governo recorrera à autorização legislativa para o efeito, dado ser sobre decreto relativo a essa autorização que, então, o Tribunal se pronunciou.
Aliás a autorização fora pedida, como se lê na exposição de motivos da proposta de lei 176/V, publicada no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 20, de 23 de Janeiro de 1991, dado versar «matérias de reserva relativa da competência da Assembleia da República, por respeitarem a direitos, liberdades e garantias».
2.3 - A norma do artigo 25.º prevê a suspensão do contrato de trabalho por impedimento prolongado respeitante ao trabalhador.
Disposição inovatória no sector em referência, também aqui se manifesta a tendência para aproximação do regime geral, como se surpreende da leitura do artigo 3.º do Decreto-Lei 398/83, de 2 de Novembro, sobre o regime jurídico da suspensão do contrato de trabalho, editado, aliás, ao abrigo das autorizações concedidas pelas Leis n.os 27/83 e 28/83, de 8 de Setembro.
A cessação dos direitos, deveres e garantias das partes, quando se prolongue por mais de um mês o impedimento temporário do trabalhador por motivo a si não imputável - casos, nomeadamente, de doença ou acidente -, cessação a que alude o n.º 1 do artigo 25.º, permite criar a ideia de caducidade que, no entanto, o n.º 2 desmente, ao prescrever contar o tempo de suspensão para efeitos de antiguidade, conservando o trabalhador o direito ao lugar e mantendo, por outro lado, obrigação de lealdade para com a entidade empregadora.
A nosso ver, e independentemente do sentido da intervenção legislativa e da valoração a dar à razoabilidade da finalidade proposta, o preceito consubstancia, em primeiro lugar, um desvio ao princípio da reserva.
O próprio Primeiro-Ministro, na sua resposta, parece reconhecer essa realidade, justificando a medida adoptada como uma forma de proporcionar aos seus destinatários, empregadores e trabalhadores, os meios adequados de, no atomismo das relações de trabalho, prevenirem conflitualidades indesejáveis (cf., máxime, o n.º 31), deste modo se projectando directamente na relação de trabalho.
O que, assim, não dispensa a observância da norma do artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da CR.
Falta ao Governo o meio instrumental - a autorização legislativa - que lhe proporcione as condições necessárias para modificar o direito material vigente (cf., a este respeito, António Barbosa de Melo, «Discussão pública pelas organizações de trabalhadores de leis de autorização legislativa», in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXXI, 1989, n.os 3-4, p. 533).
2.4 - Não está tanto em causa a precariedade do vínculo contratual, mais notória ao admitir-se o termo incerto (certus an, incertus quando), ao arrepio da tendência natural para a perenidade.
A exigir-se correspondência entre estabilidade e emprego permanente, inconstitucionalizar-se-ia, por definição, qualquer contrato a termo, como observa Bernardo da Gama Lobo Xavier - cf. «Contrato de trabalho a prazo (desnecessidade de fundamentação objectiva)», in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXX, n.º 4, 1988, p. 431.
O que fere primordialmente a atenção é o facto de o Governo legislar sobre a globalidade de todo o regime do contrato de serviço doméstico, inovando, alterando e actualizando, o que representa invasão em área de um direito fundamental da reserva relativa da AR.
Na perspectiva que temos por correcta - e à luz das considerações já expandidas - um decreto-lei não autorizado que, como é o caso do presente decreto, disponha sobre a contratação a termo e a suspensão do contrato por impedimento prolongado respeitante ao trabalhador, em termos inovatórios ou tão-só de readaptação do regime anterior, é um diploma organicamente inconstitucional mesmo que, numa apreciação geral, o texto seja mais favorável aos trabalhadores.
2.5 - Não encerraremos este ponto sem aludir ao facto de o preâmbulo do decreto subentender uma suposta macroconcertação, a nível do Conselho Económico e Social (CES).
É facto irrelevante, pois à AR não pode ser retirada competência reservada para legislar não obstante o consenso porventura alcançado entre Governo e parceiros sociais, sob pena de se ter alcançado a fórmula expedita para, contrariando a repartição de poderes e a teorética em que esta assenta, se atingir irremediavelmente o sistema de equilíbrios existente.
O CES, a este respeito, limitar-se-á, a partir da premissa «estabilidade no emprego», a concluir um processo visando a concertação social entre interesses organizados, consecução de «políticas» económicas e sociais e adaptação de novas tecnologias. Constitui, em primeira linha, a expressão de uma metodologia de actuação, através de acordos e entendimentos, com vista à obtenção de determinados objectivos e encerrará as virtualidades dos consensos e os problemas de instrumentalização política do direito, funcionando melhor quanto menos pontual for e mais genericamente se assumir, na opinião de Boaventura Sousa Santos («A concertação económica e social: a construção do diálogo social em Portugal», in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 31, 1991, pp. 11 e seguintes), sem afectar, de qualquer modo, o quadro constitucional de competência para legislar.
3 - As normas dos artigos 9.º (conceito e modalidades de retribuição), 13.º (duração do trabalho), 15.º (descanso semanal) e 16.º (direito a férias) constituem o segundo dos blocos normativos autonomizados por conveniências metodológicas.
Todas elas têm de comum respeitarem a «direitos sociais», vinculativos para o legislador que lhes deve dar execução, «concretizando-os».
Também outros traços comuns lhe assistem: consagram direitos constitucionalmente reconhecidos [artigo 59.º, n.º 1, alíneas a) e b), da CR], cuja mediação legislativa não lhes retira a aplicabilidade directa, são vinculativos genericamente, só podem ser restringidos por lei nos casos expressamente previstos na lei fundamental e à luz de interesses públicos constitucionalmente relevantes, restrições essas de carácter geral e abstracto, em princípio, sem efeitos retroactivos e, de qualquer modo, sempre proporcionadas e adequadas.
Os preceitos citados respeitam, em primeira linha, ao direito à retribuição do trabalho, ao direito a um limite máximo da jornada de trabalho, ao direito a descanso semanal e a férias periódicas, sendo certo que a doutrina constitucionalista nacional os elenca como «direitos análogos», como impressivo consenso: v. g. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., Coimbra, 1984, pp. 129 e 322; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. IV, Coimbra, 1988, pp. 143 e 144; ou Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 212.
Estes direitos são dotados de um núcleo essencial intocável que, nessa dimensão, se configura como uma verdadeira garantia, pelo que, ao menos no que a esse núcleo se refere, não se vê motivo bastante para nos afastarmos da posição expressa da doutrina quanto à sua qualificação como «direitos análogos» aos «direitos, liberdades e garantias», o que, aliás, se congraça com as considerações já tecidas no ponto III, 2.2.
Assente esta qualificação - seguramente quanto ao núcleo essencial dos direitos em causa, ou seja, quanto à sua dimensão garantística -, seguir-se-ia, naturalmente, decidir se as consequências dessa qualificação se projectam apenas no regime material ou implicam também com o sistema orgânico vigente.
Neste ponto já a doutrina não se mostra consensual.
Assim, enquanto Jorge Miranda entende que aos direitos análogos a que o artigo 17.º da CR alude só se aplica o regime material (cf. Manual, cit., t. IV, pp. 144 e seguintes), já Vieira de Andrade lhes estende o regime orgânico, de competência (cf. Os Direitos Fundamentais ..., pp. 210 e seguintes), o mesmo sucedendo com Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit. e locs. cits. e, ainda, pp. 160 e seguintes).
Ora, entende o Tribunal que, de qualquer modo, cabem necessariamente na reserva da competência legislativa da Assembleia da República, por força das disposições combinadas dos artigos 17.º e 168.º, n.os 1, alínea b), da CR, as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos «direitos análogos», por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias.
Observar-se-á que as normas em apreço não se inscrevem, em todas as respectivas dimensões, no referido núcleo essencial reservado à intervenção legislativa parlamentar.
Acontece, porém, que ao dispor sobre o direito à retribuição nesse específico domínio, definindo o que por esta se deve entender e estabelecendo-lhe modalidades (artigo 9.º), sobre o direito à jornada máxima de trabalho (artigo 13.º), o direito ao descanso semanal (artigo 15.º) e o direito a férias (artigo 16.º), o Governo, não autorizado pela Assembleia da República, está desde logo e num primeiro momento, a editar normas interferentes com o núcleo essencial dos direitos a que respeitam.
Mas, sendo assim, a sua actividade legiferante está afectada do vício de inconstitucionalidade orgânica, no que àqueles preceitos respeita. E essa inconstitucionalidade arrasta na queda tudo o que nos mesmos se contenha e se possa considerar próprio da competência legislativa do Governo, já que, expurgado o núcleo essencial, fica toda a regulamentação sem sentido.
V
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 13.º, 15.º, 16.º e 25.º do decreto registado sob o n.º 412/91 na Presidência do Conselho de Ministros, por violação do disposto na norma do artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da CR, em conjugação com os artigos 53.º, 17.º e 59.º, n.º 1, alíneas a) e d), deste diploma.
Lisboa, 17 de Outubro de 1991. - Tavares da Costa - Luís Nunes de Almeida - Bravo Serra - Mário de Brito - Armindo Ribeiro Mendes - Antero Alves Monteiro Dinis - Messias Bento - José de Sousa e Brito - Vítor Nunes de Almeida - António Vitorino (sem prejuízo de entender que, sendo a decisão de reproduzir, de renovar ou de manter uma norma preexistente a cargo do Governo uma verdadeira e própria decisão legislativa, ao incidir sobre matérias da reserva de competência legislativa do Parlamento, para tanto sempre terá de haver um título habilitador bastante do legislador parlamentar, e isto independentemente do critério da vocação inovadora global do diploma em que tal reprodução ou compilação se insere) - Maria da Assunção Esteves (com declaração de voto) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Dissenti da fundamentação do acórdão, na parte em que deixa pressuposta a tese segundo o qual não é desrespeitada a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, sempre que o Governo, ao legislar, «não inova» relativamente a normas existentes e versando matéria própria daquela competência.
Como diz Jorge Miranda, «a reserva abrange a simples reprodução ou renovação de normas até então em vigor - porque a decisão de reproduzir, de renovar, de manter, é já uma decisão legislativa e porque, a tal pretexto, poderia o Governo alterar na prática um regime legislativo e invadir a competência da Assembleia» (cf. Manual de Direito Constitucional, t. IV, Coimbra, 1988, p. 332).
A indissociável ligação entre o princípio da reserva de lei e o princípio democrático determinam que o material normativo produzido pela Assembleia da República, no exercício da sua própria competência, ou pelo Governo, ao abrigo de uma lei de autorização, não possa ser alterado «à margem» da mesma Assembleia.
De contrário, seria a desfocagem da legitimidade democrática das decisões legislativas, ao menos na vertente do procedimento.
É que a relação entre «texto e contexto» (Savigny), como elemento central da teoria da interpretação jurídica, aponta para a falácia de que «corrigir, reorganizar e compilar» não é alterar - e demonstra a evidência de aí residirem os riscos de «profanação» da reserva legislativa do Parlamento. - Maria da Assunção Esteves.