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Acórdão 252/2016, de 13 de Outubro

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Sumário

Não julga inconstitucional a interpretação, extraída do artigo 100.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, no sentido de que, em caso de condenação do recluso pela prática efetiva de mais de uma infração disciplinar, com aplicação de sanções de idêntica natureza, lhe são aplicáveis as medidas disciplinares correspondentes a cada uma das infrações em acumulação material, sem realização de cúmulo destinado à aplicação de sanção única

Texto do documento

Acórdão 252/2016 Processo 777/15

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional, I - Relatório 1 - Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, Celso dos Santos Afonso das Neves interpôs o presente recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).

2 - A Celso dos Santos Afonso das Neves, recluso aqui recorrente, foram aplicadas, no âmbito de processo disciplinar comum, as medidas disciplinares de internamento em cela disciplinar, pelos seguintes períodos:

dez dias, pela prática de infração prevista no artigo 104.º, alínea h), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (doravante, designado por CEPMPL); quinze dias, pela prática de infração prevista no mesmo artigo 104.º, alínea j); vinte e um dias, pela prática de infração prevista no mesmo artigo 104.º, alínea m). No mesmo processo, foi aplicada ao recluso a medida cautelar de confinamento em alojamento individual por todo o dia, nos termos do n.º 2 do artigo 111.º do CEPMPL. Tal medida foi declarada cessada alguns dias depois da sua aplicação.

O recluso apresentou impugnação junto do Tribunal de Execução de Penas, inconformado com a decisão do Diretor do Estabelecimento Prisional de Coimbra, que lhe aplicou as referidas medidas disciplinares. Em tal peça processual, o recluso invocou, além do mais, a inconstitucionalidade, “por violação dos princípios da igualdade, culpa, proibição da dupla punição e proporcionalidade”, da interpretação do artigo 100.º do CEPMPL conducente ao sentido de que “quando o recluso tiver efetivamente praticado mais de uma infração disciplinar, com aplicação de sanção de idêntica natureza, [lhe] serem aplicáveis as medidas disciplinares correspondentes a cada uma das infrações em cumulação material e sem que seja operado verdadeiro cúmulo que encontre a sanção única.”

A impugnação deduzida foi julgada parcialmente procedente, tendo o Tribunal de Execução de Penas decidido reduzir o período da terceira medida disciplinar aplicada a treze dias e determinar o desconto, no cumprimento das medidas disciplinares, do período de confinamento do recluso ao seu alojamento, mantendo, no mais, a decisão disciplinar impugnada. Especificamente quanto à questão da constitucionalidade reportada ao artigo 100.º do CEPMPL, o Tribunal de Execução de Penas considerou não assistir razão ao recluso.

3 - É desta decisão judicial que o recluso Celso dos Santos Afonso das Neves interpõe o presente recurso, delimitando o objeto respetivo, nos seguintes termos:

“Tem-se por disforme à Lei Fundamental, por violação dos princípios da igualdade, culpa, proibição da dupla punição e proporcionalidade, a dimensão normativa e interpretação do art. 100.º CEP no sentido de “[Q]uando o recluso tiver efetivamente praticado mais de uma infração disciplinar, com aplicação de sanção de idêntica natureza, são-lhe aplicáveis as medidas disciplinares correspondentes a cada uma das infrações em cumulação material e sem que seja operado verdadeiro cúmulo que encontre a sanção única.”

4 - Prosseguindo o processo para conhecimento de mérito, o recorrente apresentou alegações, concluindo nos termos seguintes:

“A. Com o presente recurso não pretende o recorrente colocar em causa o exercício das mui nobres funções nas quais se mostram investidos os llustres julgadores, mas tãosomente exercer o direito de “manifestação de posição contrária”, assente numa discordância de opinião e com suporte legal no art. 20.º CRP;

5 - Notificado para o efeito, o Ministério Público igualmente juntou alegações, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida, finalizando tal peça processual com as seguintes conclusões:

“1.ª O recurso, interposto pelo recluso, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da LOFPTC, tem por objeto a apreciação da inconstitucionalidade do art. 100.º do CEPMPL, tal como interpretado e aplicado na decisão recorrida, no sentido de

«

Quando o recluso tiver efetivamente praticado mais de uma infração disciplinar, com aplicação de sanção de idêntica natureza, sãolhe aplicáveis as medidas disciplinares correspondentes a cada uma das infrações em cumulação material e sem que seja operado verdadeiro cúmulo que encontre a sanção única

»

, por violador dos princípios da igualdade, ne bis in idem, culpa, proporcionalidade e sociabilidade (arts. 2.º, 12.º, 13.º, 18.º, 29.º, n.º 5, 202.º, 203.º e 204.º da Constituição).

2.ª O art. 100.º, em causa, integra matéria inovatoriamente regulada no CEPMPL, conforme vem destacado na exposição de motivos da proposta de lei que lhe esteve na base:

«

Ainda em matéria de garantias, procedeu-se à redefinição do procedimento disciplinar com vista à adoção de princípios e regras, como a proibição da analogia para qualificar um facto como infração, a proibição da dupla punição pelo mesmo facto, a definição de reincidência disciplinar, de concurso de infrações e de infração disciplinar continuada, a enumeração taxativa das infrações disciplinares, classificadas em dois escalões, a admissão da suspensão da execução da medida disciplinar, a estatuição de regras sobre prescrição e suspensão do procedimento disciplinar e a possibilidade expressa de o recluso apresentar provas para sua defesa

»

.

3.ª A jurisprudência constitucional tem acentuado a dimensão da garantia do estatuto do recluso contida no n.º 5 do art. 30.º da Constituição (aditado pela LC 1/89, de 8 de julho), sendo unânime o entendimento de que está constitucionalmente negado conceber a relação presidiária (e a posição jurídica do recluso nessa relação) como uma “relação especial de poder”.

4.ª A tutela jurisdicional efetiva prevista no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição relativamente aos administrados também se deve estender aos reclusos, quanto aos atos da administração penitenciária lesivos dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, já que o recluso, pelo simples facto de o ser, não perde a sua posição de administrado, mantendo-a, em princípio, com um “âmbito normativo idêntico ao dos outros cidadãos”.

5.ª Tratando-se, como no caso dos autos, de ato de poder disciplinar público, mostra-se ainda coberto pela garantia contida no n.º 3 do art. 269.º da Constituição.

6.ª O regime disciplinar de que o recluso é sujeito, na aperfeiçoada redefinição operada em 2009 pelo CEPMPL, é objeto do Título XIII do Livro I, vindo sistematizado ao longo dos arts. 98.º a 115.º do diploma.

7.ª O art. 100.º do CEPMPL consagra, com clareza, em matéria de punição do recluso pela prática de uma pluralidade de infrações disciplinares, o sistema da acumulação material, apartando-se do sistema de pena conjunta estabelecido no art, 77.º, n.º 1 do Código Penal (CP).

8.ª Verificou-se, no caso, concurso real de infrações, como vem referido no segmento da decisão recorrida, acima transcrito, situação a que expressamente se circunscreve a aplicação do art. 100.º do CEPMPL:

não vindo, pois, o preceito interpretado e aplicado à mera situação de concurso aparente de infrações, não cabe apreciar da sua questionada constitucionalidade à luz de violação do princípio ne bis in idem, de

«

eventuais duplas punições

»

, a que alude o recorrente.

9.ª Improcede, igualmente, a peticionada inconstitucionalidade do art. 100.º do CEPMPL, à luz do princípio da igualdade,

«

na medida em que se verificará uma identidade face à previsão plasmada no art. 77.º, n.º 1 CP

»

, conforme consta do corpo da alegação.

10.ª Não se verifica, entre o direito penal e o direito disciplinar, o nexo identitário para o efeito suposto pelo recorrente.

11.ª A autonomia do direito disciplinar - direito administrativo sancionatório - em face do direito criminal e a independência recíproca dos respetivos sistemas processuais assentam na diversidade de pressupostos da responsabilidade criminal e disciplinar, na diferente natureza e finalidade das penas aplicáveis, podendo ser diversas as valorações dos mesmos factos e circunstâncias.

12.ª O Acórdão do TC 336/08 examinou, à luz dos princípios da culpa, proporcionalidade e sociabilidade, mas reportada à outra área do direito sancionatório - a do ilícito de mera ordenação social, e no campo tributário-, a constitucionalidade do sistema de acumulação material na punição do concurso efetivo de infrações, em oposição ao sistema de pena única ou conjunta consagrada no n.º 1 do art. 77.º do Código Penal.

13.ª Entendeu-se naquele aresto que

«

o sistema de acumulação material foi preterido pelo sistema de pena única pelo legislador penal em matéria de concurso de crimes por imposição dos princípios constitucionais da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade

»

.

14.ª Considerada a diferente natureza do ilícito e da sanção, decidiu-se no mesmo aresto que

«

os princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade não proíbem a solução da acumulação material de coimas em sede de direito de mera ordenação social tributário, sendo que não se vislumbra a incidência negativa de outra norma ou princípio constitucional

»

15.ª Resposta negativa, igualmente fundada na diversidade de pressupostos da responsabilidade criminal e disciplinar, na diferente natureza e finalidade das penas aplicáveis (supra, conclusão 11.ª), do mesmo modo deverá ser dada em matéria de ilícito administrativo disciplinar - mesmo a querer firmar-se o entendimento de que o sistema de pena única ou conjunta no concurso de crimes é imposto pelos princípios constitucionais da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade-, não resultando constitucionalmente vedada a admissibilidade do regime de acumulação material das medidas disciplinares correspondentes a cada uma das infrações, em caso de concurso efetivo das mesmas, nos termos previstos no art. 100.º do CEPMPL.

16.ª As diversas medidas disciplinares estabelecidas no n.º 1 do art. 105.º do CEPMPL são as adequadas à especial situação de reclusão do agente e sancionam os diversos ilícitos enumerados nas alíneas a) a p) do art. 103.º (infrações disciplinares simples), bem como nas alíneas a) a q) do art. 105.º (infrações disciplinares graves), ambos os artigos do mesmo código.

17.ª Tais ilícitos disciplinares estão exclusivamente recortados em razão do bom funcionamento dos serviços prisionais e primordialmente visam a correção do agente.

18.ª Presentes os princípios da necessidade e proporcionalidade nos n.os 2 (internamento em cela disciplinar só aplicável às infrações

graves) e 3 (critérios na escolha e a determinação da duração da medida disciplinar) do art. 104.º do CEPMPL.

19.ª Sendo o direito disciplinar também um direito de culpa (o grau de culpa do recluso é conjuntamente considerado, nos termos e para os efeitos do citado n.º 3 do art. 105.º do CEPMPL), tal referencial, em vista da assinalada finalidade daquele direito, não ocupa a centralidade valorativa própria do direito penal.

20.ª De relevar, finalmente, que o regime de acumulação material, previsto no art. 100.º CEPMPL, vem limitado na sua aplicação e doseado na sua execução (arts. 105.º, n.º 4 e 113.º, n.º 3 do mesmo diploma).

Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso, confirmando-se o juízo de constitucionalidade na matéria, constante da douta decisão recorrida.”

Cumpre apreciar e decidir. II - Fundamentos 6 - O recorrente definiu como objeto do presente recurso a questão de constitucionalidade extraída de interpretação do artigo 100.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, conducente ao sentido de que, em caso de condenação do recluso pela prática efetiva de mais de uma infração disciplinar, com aplicação de sanções de idêntica natureza, lhe são aplicáveis as medidas disciplinares correspondentes a cada uma das infrações em acumulação material, sem realização de cúmulo destinado à aplicação de sanção única.

Não obstante o Tribunal Constitucional ainda não se ter pronunciado sobre esta específica questão, a verdade é que já apreciou questões que apresentam algum paralelismo, ao nível dos fundamentos da diferenciação do regime do Código Penal com outros regimes sancionatórios, e igualmente quanto aos parâmetros de constitucionalidade convocados. 7 - De facto, o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a acumulação material de sanções, no âmbito do direito de mera ordenação social na área tributária, no Acórdão 336/2008 (disponível em www. tribunalconstitucional.pt, onde poderão ser encontrados os restantes arestos doravante citados), concluindo pela não inconstitucionalidade da norma constante do artigo 25.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de junho. A norma apreciada prescrevia que as sanções aplicadas às contraordenações em concurso seriam sempre cumuladas materialmente.

No aresto citado, pode ler-se o seguinte, a propósito da punição do concurso de crimes e das diferenças com o regime previsto para a punição do concurso de contraordenações:

“Segundo o sistema da acumulação material são de aplicar na sentença tantas penas quantas as que correspondem aos delitos concorrentes, ou uma pena única, correspondendo à soma aritmética das diversas penas.

De acordo com o sistema da pena unitária, a soma das penas dos crimes concorrentes é reduzida juridicamente a uma unidade que funciona como a moldura dentro da qual os factos e a personalidade do respetivo agente devem ser avaliados como um todo.

O legislador penal português adotou um sistema em que o agente é condenado numa pena única - em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente - e a pena aplicável tem como limites máximo e mínimo, respetivamente, a soma das penas e a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, sendo que a pena de prisão não pode ultrapassar 25 anos e a pena de multa não pode ultrapassar 900 dias (artigo 77.º, do Código Penal).

Qual o fundamento para se optar por uma pena unitária e não pelo cúmulo material das penas aplicadas a cada uma das infrações? Citando JOSÉ DE FARIA COSTA, dir-se-á que a razão “pela qual o sistema do cúmulo jurídico se apresenta de maior justeza reside no facto de, com ele, se evitar que os factos penais ilícitos, após a aplicação da respetiva pena, ganhem uma gravidade exponencial (.) só o sistema do cúmulo jurídico é dogmaticamente justificável porque é através dele que obtemos a imagem global dos factos praticados e, bem assim, do seu igual desvalor global (.) só através do cúmulo jurídico é possível, enfim, proceder à avaliação da personalidade do agente e, dessa maneira, perceber se se trata de alguém com tendências criminosas, ou se, ao invés, o agente está a viver uma conjuntura criminosa cuja razão de ser não se radica na sua personalidade, mas antes em fatores exógenos (.) só assim é possível chegar à pena justa (.) ou seja:

através do sistema do cúmulo jurídico a culpa é adequadamente valorada” (em “Penas acessórias - Cúmulo jurídico ou cúmulo material? [a resposta que a lei (não) dá]”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 136.º, julhoagosto de 2007, n.º 3945, pág. 326-327).

Ao invés, dir-se-á que a solução da acumulação material de penas pode conduzir à aplicação de penas manifestamente excessivas ou desadequadas, ultrapassando o limite da culpa, nomeadamente porque não têm em consideração a evolução da personalidade do agente por referência aos factos globalmente praticados e porque comprometem a natureza das finalidades das penas, em especial a reintegração do agente na sociedade, com isso se violando os princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade (vide, neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, na ob. cit., pág. 279-280).

Concluindo, o sistema de acumulação material foi preterido pelo sistema de pena única pelo legislador penal em matéria de concurso de crimes por imposição dos princípios constitucionais da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade.

Será que as considerações precedentes terão algum âmbito de aplicação em sede de direito de mera ordenação social, tanto mais que a Constituição não contém sequer quaisquer normas sobre limites das coimas? No plano infraconstitucional, à semelhança do que sucede em direito penal, o direito de mera ordenação social português também repudia a responsabilidade objetiva, pois, segundo o disposto no n.º 1, do artigo 1.º, do regime geral das contraordenações, aprovado pelo Decreto Lei 433/82, de 27 de outubro (RGCO), na redação do Decreto Lei 244/95, “constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima” (sublinhado acrescentado).

Todavia, não obstante este ponto de contacto, existem, desde sempre, razões de ordem substancial que impõem a distinção entre crimes e contraordenações, entre as quais avulta a natureza do ilícito e da sanção (vide FIGUEIREDO DIAS, em “Temas Básicos da Doutrina Penal”, pág. 144-152, da ed. de 2001, da Coimbra Editora).

A diferente natureza do ilícito condiciona, desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade.

[...] Da autonomia do ilícito de mera ordenação social resulta uma autonomia dogmática do direito das contraordenações, que se manifesta em matérias como a culpa, a sanção e o próprio concurso de infrações(vide, neste sentido, FIGUEIREDO DIAS na ob. cit., pág. 150).

[...] Aliás, em matéria de concurso de contraordenações, a lei portuguesa tem apresentado várias soluções (não se cuidando aqui de analisar, por desnecessidade, o primeiro regime de direito de mera ordenação social que foi aprovado pelo Decreto Lei 232/79, de 24 de julho).

O disposto no artigo 19.º, do Decreto Lei 433/82, de 27 de outubro, antes da revisão de 1995, consagrava a aplicação alternativa dos sistemas da exasperação e do cúmulo jurídico consoante estives-sem em causa, respetivamente, uma unidade de comportamento ou comportamentos autónomos (vide MARIA JOÃO ANTU NES, em “Concurso de contraordenações”, in RPCC, Ano I, Fasc. 3, julho-setembro 1991, pp. 473-474).

O sistema da exasperação traduzia-se na aplicação de uma única coima correspondente à coima que em abstrato fosse a mais elevada. Diferentemente, o sistema de cúmulo jurídico resultava da aplicação subsidiária das regras contidas no artigo 78.º, do Código Penal, na redação originária.

Após a revisão de 1995, aprovada pelo Decreto Lei 244/95, o artigo 19.º do regime geral das contraordenações passou a adotar exclusivamente o sistema do cúmulo jurídico vigente no direito penal, em quase tudo semelhante ao atual regime do artigo 77.º, do Código Penal, mas com um limite máximo privativo, nomeadamente o de que a coima aplicável não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contraordenações em concurso.

Posteriormente, sem que aquela solução do regime geral das contraordenações tivesse sido alterada até aos nossos dias, o artigo 136.º, n.º 2, do Código da Estrada, na versão emergente do Decreto Lei 2/98, e o artigo 25.º, do RGIT, vieram, sectorialmente, adotar o sistema da acumulação material das coimas, o que representa um manifesto desvio ao referido regime geral.

A solução do cúmulo jurídico das coimas concretamente adotada na Revisão de 1995 suscitou sérias reservas por parte de alguma doutrina, (vide FREDERICO DA COSTA PINTO, em “O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal”, in RPCC, 7 (1997), pág. 7-100, e também em “Direito Penal Económico e Europeu:

Textos Doutrinários”, vol. I, pág. 249-254, ed. de 1998, da Coimbra Editora).

Em especial, criticou-se a solução do cúmulo jurídico concretamente prevista no n.º 2, do artigo 19.º, do RGCO, segundo a qual o limite máximo de qualquer concurso de crimes será sempre o dobro da coima máxima abstrata mesmo que as infrações se repitam constantemente. Tal solução, nesta visão, permite beneficiar injustificadamente o infrator reincidente e afeta consideravelmente a proporcionalidade minimamente exigível entre a sanção das infrações e o número de factos concretamente cometidos. Especialmente em circuitos onde existe uma identidade entre a natureza da infração cometida (de natureza económica) e a sanção aplicável (de igual natureza), e em que a infração ocorre precisamente por motivações de caráter económico, o privilégio do cúmulo jurídico não tem sentido, por limitar e paralisar a proporção entre a quantidade de factos e o montante da sanção.

A solução da acumulação material das coimas, aliás prevista na lei alemã para a situação de concurso real, não padece das mesmas críticas e surge, na opinião de FREDERICO COSTA PINTO - “como uma solução mais adequada ao regime do ilícito de mera ordenação social, pelo menos para o caso de concurso real, por respeitar a proporcionalidade entre o número de ilícitos e o crescimento da sanção e por possuir neste setor do sistema sancionatório uma idoneidade preventiva a todos os títulos desejável”.

Independentemente de qual seja a melhor opção legislativa para a punição do concurso de contraordenações, é seguro que as razões que justificam a solução do cúmulo jurídico em Direito Penal não são transponíveis qua tale para o direito de mera ordenação social.

A necessidade de conter o limite das penas de prisão dentro de parâmetros de possibilidade de execução física das mesmas, de humanidade, de respeito pelas próprias opções do legislador quanto às penas máximas e à ideia de ressocialização justificam o cúmulo jurídico no sistema penal mas já não fazem qualquer sentido em caso de concurso de contraordenações sancionadas apenas com montantes pecuniários.

Por outro lado, o referente da culpa jurídicopenal que permite agregar os vários factos cometidos entre si para efeito de cúmulo jurídico não surge com a mesma importância estrutural no ilícito de mera ordenação social.

[...] [...] por referência a cada contraordenação tributária, a coima deverá ser graduada em função da gravidade do facto, da culpa do agente, da sua situação económica e, sempre que possível, exceder o benefício económico que o agente retirou da prática da contraordenação (artigo 27.º, n.º 1, do RGIT).

Isto significa, desde logo, que nenhuma das contraordenações tributárias que integram o concurso real de infrações dos autos é punida com coima fixa uma vez que é possível individualizar e fazer refletir em cada coima parcelar a responsabilidade do agente associada a cada contraordenação tributária de acordo com a sua culpa e com as circunstâncias do caso concreto.

Acresce que as coimas aplicáveis a estas contraordenações tributárias também nunca podem ultrapassar a totalidade do imposto em falta ou o limite máximo abstratamente estabelecido se este for inferior.

Assim sendo, é uma evidência que os princípios constitucionais da culpa e da proporcionalidade não são postos em causa pelo RGIT a propósito da avaliação e julgamento de cada uma das contraordenações em presença.

E é nesta avaliação e julgamento de cada uma das infrações contraordenacionais em concurso que se esgota a projeção plena dos referidos princípios.

[...] Concluindo, os princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade não proíbem a solução da acumulação material de coimas em sede de direito de mera ordenação social tributário, sendo que não se vislumbra a incidência negativa de outra norma ou princípio constitucional.”

8 - A reflexão do Acórdão 336/2008, relativa à não transposição do grau de intensidade de atuação dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da sociabilidade, do direito penal para o direito contraordenacional, é, em grande parte, aplicável em idêntico sentido, para afastar a transposição qua tale da força expansiva de tais princípios para o domínio sancionatório disciplinar, especificamente para o regime definido no CEPMPL.

De facto, o princípio da culpa, “[s]ignifica no essencial, conforme escreveu JOSÉ DE SOUSA E BRITO que “a pena se funda na culpa do agente pela sua ação ou omissão, isto é, em juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecêlo, motivar-se por ele e realizálo. A culpa pressupõe a consciência ética e a liberdade do agente, sem admissão das quais não se respeita a pessoa nem se entende o seu direito à liberdade. Implica que não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objetiva, nem medida da pena que exceda a da culpa” (em “A lei penal na Constituição”, in “Estudos sobre a Constituição”, 2.º volume, ed. de 1978, da Petrony)” (cf. Acórdão 336/2008).

O princípio da proporcionalidade, por seu lado, como se escreve no mesmo aresto, “reforça[] a exigência que a medida da pena reúna os requisitos de necessidade, adequação e justa medida, por referência às finalidades da punição.”

Por último, “o princípio da sociabilidade (artigo 2.º e 9.º, da CRP) [...] [determina que] o Estado deve procurar a socialização do condenado (vide, neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, em “Direito penal português. As consequências jurídicas do crime”, pág. 74, da ed. de 1993, da Aequitas Editorial Notícias, e MARIA JOÃO ANTUNES, em “Consequências jurídicas do crime”, Lições policopiadas, 2007-2008) (veja-se o Acórdão 336/2008).

Tais princípios, que têm o seu domínio de aplicação, por excelência, no âmbito do direito penal, não se projetam, com a mesma intensidade - reitera-se - em outros ramos do direito sancionatório, nomeadamente no âmbito do regime disciplinar definido no CEPMPL. É certo que os mesmos conformam a apreciação e determinação de cada uma das sanções disciplinares aplicadas a cada infração praticada (como resulta dos artigos 98.º, 105, n.º 3, 106.º, n.º 1 do CEPMPL). Em rigor, como se refere no Acórdão 336/2008, “é nesta avaliação e julgamento de cada uma das infrações [...] em concurso que se esgota a projeção plena dos referidos princípios”.

Salienta-se ainda que uma tal acumulação de sanções disciplinares não é desprovida de limites, conforme se extrai do n.º 4 do artigo 105.º, do CEPMPL, que estabelece limitações à duração das medidas disciplinares executadas (sendo, igualmente, fixadas restrições à sua execução sucessiva, como no caso da medida de internamento em cela disciplinar, prevista no n.º 3 do artigo 113.º, do CEPMPL), já que o contrário poderia não ser tolerado, desde logo, por uma ideia de contenção do limite da sanção dentro de parâmetros de humanidade, no caso das sanções disciplinares de confinamento.

Assim, não resulta dos analisados parâmetros uma proibição, dirigida ao legislador ordinário, de consagrar uma solução de acumulação material das sanções aplicadas pela prática de infrações disciplinares que o recluso efetivamente tenha praticado.

9 - Além da violação dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da proibição da dupla punição, - que igualmente não se verifica, já que a acumulação material de sanções, prevista na norma em apreciação, se aplica aos casos de concurso efetivo de infrações, sendo fixada uma sanção por cada infração disciplinar efetivamente praticada, em conformidade com a proibição expressa fixada no n.º 6 do artigo 98.º do CEPMPL - defende o recorrente que o critério normativo, colocado em crise, estabelece um regime desigualitário, por confronto com o estabelecido no artigo 77.º do Código Penal, comportando, assim, a violação do princípio da igualdade.

Antes de proceder à sindicância do específico critério normativo, sob esse prisma, importa compreender o verdadeiro alcance vinculativo deste parâmetro de constitucionalidade.

O Acórdão 96/2005 sintetizou-o do modo seguinte:

“O princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13.º da Lei Fundamental, tem como fundamento a igual dignidade social de todos os cidadãos. São três as dimensões que o princípio convoca:

(a) a proibição do arbítrio, que torna inadmissível a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, apreciada esta de acordo com critérios objetivos de relevância constitucional, e afastando também o tratamento idêntico de situações manifestamente desiguais;

(b) a proibição de discriminação, impedindo diferenciações de tratamento entre os cidadãos que se baseiem em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias;

(c) e a obrigação de diferenciação, como mecanismo para compensar as desigualdades de oportunidades, que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural [...].”

Na presente situação, tem pertinência a dimensão da proibição do arbítrio, enquanto limite à liberdade do legislador ordinário na conformação de regimes legais.

Não podendo o Tribunal Constitucional substituir-se à opção do legislador, nem avaliar o mérito das políticas legislativas que justificam a escolha de uma solução que determine uma diferenciação de regimes, a este cabe somente sindicar, como se referiu no Acórdão 96/2005, se a diferença é fundada e razoável, “de acordo com critérios objetivos de relevância constitucional”.

No caso, é manifesto que não se verifica a existência de uma discriminação proibida, assente nas características pessoais previstas no artigo 13.º, n.º 2, da Lei Fundamental, pelo que “o julgamento da inconstitucionalidade da lei só poderá vir a ser um julgamento fundado se se provar a inexistência de qualquer relação entre o fim prosseguido pela lei e as diferenças de regimes que, por causa desse fim, a própria lei estatui. “Inexistência” de qualquer relação entre fim (o propósito legal que justificaria a diferença) e meio (a diferença mesma e a sua medida) significa a ausência de qualquer elo de adequação objetiva e racionalmente comprovável entre uma coisa e outra” (M. LÚCIA AMARAL, “O princípio da igualdade na Constituição Portuguesa”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2004, p. 42).

No que concerne ao espaço de conformação legislativa, em matéria de apreciação do respeito pelo princípio da igualdade, o Tribunal Constitucional apenas pode sindicar se o legislador realmente adotou um critério para a diferenciação de regimes e se o seu fundamento justificante é “objetivo, compreensível e suficiente face à ratio do regime”, como se escreveu no Acórdão 129/13.

Assim, como já se referiu neste Acórdão, “o princípio da igualdade não orienta, em concreto, a opção por um ou outro critério valorativo”, pelo que a “escolha última dos critérios residirá na liberdade de conformação dos poderes públicos, não sendo o princípio da igualdade minimamente afetado por tal escolha”, desde que “o critério escolhido encontre uma justificação razoável e suficiente no fim ou na ratio do tratamento jurídico” (M. GLÓRIA F. P. D. GARCIA, “Estudos sobre o princípio da igualdade”, Almedina, 2005, p. 56).

A este propósito se refere, impressivamente, no Acórdão 370/2007:

“[...] a vinculação jurídicomaterial do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pertencendolhe, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.

E, assim, aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete verdadeiramente

«

substituírem-se

» ao legislador, ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução
«

razoável

»

,

«

justa

» e
«

oportuna

»

(do que seria a solução ideal do caso); competelhes, sim

«

afastar aquelas soluções legais de todo o ponto insuscetíveis de se credenciarem racionalmente

»

(acórdão da Comissão Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da República, de 23 de agosto de 1983, pág. 120, …).

À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico.”

Também no Acórdão 157/88 pode ler-se o seguinte:

10 - Ajuizar da razoabilidade da opção do legislador - traduzida na imposição de acumulação material das sanções disciplinares, no âmbito do CEPMPL - implica que se analisem as razões que justificam a específica diferenciação entre o regime estabelecido no domínio penal e o regime disciplinar dos reclusos.

No Acórdão 635/2015, a propósito da distinção entre os dois regimes, pode ler-se o seguinte:

“Em primeiro lugar, aos olhos da Constituição, não é confundível o domínio dos ilícitos e sanções criminais com outros tipos de ilícito, designadamente o disciplinar. A Lei Fundamental distingueos, desde logo, ao nível do âmbito da competência exclusiva reservada à As-sembleia da República. Esta reserva abrange a definição dos crimes, penas e respetivos pressupostos, bem como o respetivo processo, no primeiro caso (artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição), limitando-se a abranger o regime geral de punição das infrações disciplinares (artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição).

Esta diferenciação reflete-se também na densidade constitucional dedicada a cada um dos regimes sancionatórios, sendo que apenas o ilícito criminal e as sanções de natureza criminal se encontram extensamente regulados na Constituição ao condensar, no artigo 29.º, o essencial do regime constitucional da lei criminal. Não se ignora que os princípios ali definidos para o direito criminal propriamente dito (crimes) têm sido estendidos, na parte pertinente, aos demais domínios sancionatórios, como o do ilícito disciplinar - é o caso do princípio da legalidade, da não retroatividade, da aplicação retroativa da lei mais favorável e da necessidade e proporcionalidade das sanções. Mas esta extensão não nega a diferenciação dos domínios, antes a confirma e, nessa medida, sufraga a ausência de identidade normativa entre medidas penais e medidas disciplinares.

No mesmo sentido, também o Tribunal Constitucional assinalou de há muito, designadamente no Acórdão 263/94, n.º 7, tirado ainda na vigência de anterior Lei Penitenciária, não merecer qualquer tipo de controvérsia a afirmação das diferenças que separam o Direito e Processo Disciplinar do Direito e Processo Penal, pois ambos visam a tutela de interesses ou bens jurídicos distintos. De acordo com esse aresto, enquanto o Direito Penal tutela interesses gerais e fundamentais da comunidade, o Direito Disciplinar está ligado às específicas necessidades e ao interesse do serviço público, tutelando o vínculo específico de lealdade, diligência e eficácia no desempenho de funções no âmbito de um serviço administrativo. Nesse sentido, as sanções previstas nos dois ramos têm âmbito e natureza diversas. Refere ainda o Acórdão que:

«

Eduardo Correia acentua igualmente que o ilícito disciplinar é

«

eticamente fundado, na medida em que protege valores de obediência e disciplina, em face de certas pessoas que estão ligadas a um especial dever perante outras, no quadro de um serviço público

»

, afirmando que o serviço público “pode, antes de tudo, integrar-se no quadro geral de valores que ao Estado cumpre defender, caso em que a lesão ou o pôr em perigo desses valores, pelo mau funcionamento do serviço, constituirá um ilícito criminal (v. g. os crimes de concussão, peculato, etc.)”. Mas, a par desta reação criminal face a atos ilícitos tipificados como crimes, “o serviço público pode também - considerados os especiais fins que visa realizar - ver-se em si próprio, como unidade funcional que exige uma certa disciplina para o seu perfeito funcionamento. A violação desta disciplina constituirá então o ilícito disciplinar e as penas que dele derivam serão penas disciplinares.” (Direito Criminal, vol. I, Coimbra, 1968, reimpressão, com a colaboração de Figueiredo Dias, págs. 35-36).

Também o Direito Penitenciário - domínio em que se integra o direito sancionatório que rege a execução da sanção criminal traduzida numa pena ou numa medida de segurança privativa de liberdade - é autónomo em relação ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Na imagem de Anabela Rodrigues,

«

Do que se trata, se quisermos, é de “províncias” de um mesmo ordenamento jurídico - o ordenamento jurídico-penal. Mas de províncias diferenciadas [...]

»

(Anabela Miranda Rodrigues, Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária, Coimbra Editora, 2002, p. 22). A este respeito, a autora falanos de uma

«

“autonomia integradora” que faz ressaltar a “unidade” em que converge o direito penitenciário, enquanto instrumento de política criminal, com o direito penal e o direito processual penal

» o que significa
«

vincular o direito penitenciário aos princípios gerais do direito e processo penal, designadamente ao princípio da legalidade. Mas, simultaneamente, desenvolver e densificar princípios que lhe são próprios, como é o caso do princípio da socialização

»

(ob cit., p. 23).

[...] Existe, com efeito, uma especificidade, desde logo qualitativa, da teleologia que preside à pena criminal, orientada que é para a proteção de bens jurídicos de relevância comunitária e em defesa da sociedade, sendo distintos os fins prosseguidos pelas sanções disciplinares em geral, e em especial, pela medida disciplinar aplicada ao recluso vocacionada para preservar a ordem e a disciplina do estabelecimento e os fins da execução da medida privativa de liberdade.

[...] Marcantes são também as diferenças que separam o processo penal de qualquer outro regime sancionatório, em geral, e em especial, do processo disciplinar aplicado a reclusos, ainda que em cumprimento de pena aplicada num processo daquele primeiro tipo. Também neste campo - o processual - a Constituição distingue o domínio penal dos demais, especificando, no artigo 32.º, as garantias que deve assegurar o processo criminal e sendo a partir desta identificação especificada para o processo criminal que têm sido irradiadas algumas daquelas garantias também para outros domínios sancionatórios. Encontramos exemplo claro dessa irradiação no n.º 10 daquele artigo 32.º, acrescentado pela revisão constitucional de 1989, numa explicitação da solução já antes sufragada em boa parte da doutrina e jurisprudência.

[...] Não se ignora que na tensão imanente entre a Segurança e a Liberdade ou entre os fins da execução da pena e a posição do recluso (enquanto sujeito - e não objeto - da execução) tem sido progressiva a conquista da jurisdicionalização, com o inerente reforço das garantias dos presos na sua relação com a administração penitenciária. [...]

Esta progressão não elimina, todavia, as diferenças que separam a pena criminal da medida disciplinar. Existem razões de harmonização e de concordância prática a impor que a conformação concreta do estatuto jurídico do recluso -

«

porque se trata de garantir a existência de uma relação de vida especial - se obtenha por intermédio de uma regulação elástica. Pode - e deve - admitir-se que a “ordenação de certos setores de relações (especiais) entre os indivíduos e o poder possa fundar (dar motivo) a restrições (também especiais) de alguns direitos. O bemestar da comunidade, a existência do Estado, a segurança nacional, a prevenção e repressão criminal, entre outros, são valores comunitários com assento ou reconhecimento constitucional que não podem ser sacrificados a uma conceção puramente individualista dos direitos fundamentais”

»

(cf. Anabela Miranda Rodrigues, ob. cit., p. 89, com referência a Vieira de Andrade [Os direitos fun-damentais] e Gomes Canotilho [Direito Constitucional].”

Com base nesta diversidade, concluiu o Acórdão 635/2015 que a não repetição do regime do desconto, previsto no artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal, no domínio da aplicação de medidas disciplinares em ambiente prisional, tem uma justificação razoável, pelo que tal opção legislativa não viola o princípio da igualdade.

As considerações expendidas, no excerto transcrito do Acórdão 635/2015, conjugadas com as constantes da transcrição do Acórdão 336/2008, são mutatis mutandis transponíveis para a apreciação da norma que aqui se sindica.

Na verdade, as razões, assinaladas no Acórdão 336/2008, que justificam o cúmulo jurídico no sistema penal, nomeadamente “[a] necessidade de conter o limite das penas de prisão dentro de parâmetros de possibilidade de execução física das mesmas, de humanidade, de respeito pelas próprias opções do legislador quanto às penas máximas e à ideia de ressocialização”, não se aplicam, do mesmo modo, às sanções disciplinares definidas para os reclusos, ou seja, cidadãos que já se encontram em cumprimento de sanção penal privativa da liberdade, inseridos em espaço fechado direcionado à execução de sanções criminais, com conaturais e particulares exigências de ordem e segurança.

Aliás, por força do reconhecimento de tais especiais exigências, o artigo 6.º do CEPMPL admite limitações aos direitos fundamentais do recluso, quer nos termos fixados na decisão judicial que determina a medida privativa da liberdade, quer, igualmente, “por razões de ordem e de segurança do estabelecimento prisional”, nos termos e com as limitações fixadas no CEPMPL.

Por outro lado, a promoção do sentido de responsabilidade do recluso - que implica uma sindicância do cumprimento dos seus deveres, definidos no artigo 8.º do CEPMPL, e um eficaz sancionamento da respetiva violação - configura uma importante componente do processo de reinserção social, conforme dispõe o n.º 6 do artigo 3.º do mesmo diploma.

Assim, considerando a conjugação das especiais necessidades de manter a “ordem e segurança do estabelecimento prisional” e a pros-secução dos objetivos de promoção do sentido de responsabilidade do recluso, que se encontra em cumprimento de sanção penal cuja finalidade ressocializadora deve ser potenciada no âmbito do regime prisional, não se pode considerar desprovida de justificação a opção distintiva consagrada na norma em sindicância.

Conclui-se, do anteriormente exposto, que as diferenças entre o ilícito criminal e o ilícito disciplinar, nomeadamente no âmbito penitenciário, as características do regime jurídico especial aplicável aos reclusos, e sua respetiva finalidade, permitem concluir que a solução legislativa adotada na norma em apreciação não pode considerar-se desrazoável, devendo decidir-se pela inexistência de violação do princípio constitucional da igualdade.

11 - Não se vislumbra a violação de qualquer outro preceito constitucional, nomeadamente dos artigos 1.º;

2.º;

18.º, 26.º;

32.º, n.º 10;

202.º, n.º 2;

203.º;

204.º;

205.º;

219.º, n.º 1, ou 29.º, n.º 5 e 32.º, n.º 1, - estes últimos especificamente relativos ao âmbito penal - todos da Constituição da República Portuguesa, sendo certo que, apesar de o recorrente os referir, no requerimento de interposição de recurso, não especifica os concretos segmentos normativos ou dimensões desrespeitados.

Igualmente não se vislumbra a violação dos parâmetros de constitucionalidade, invocados pelo recorrente apenas em alegações, relativamente aos quais, aliás, não se imporia - sem prejuízo da sua consideração à luz do artigo 79.º-C, da LTC - um qualquer dever de pronúncia específica, face à circunstância de apenas terem sido invocados nesta fase processual, não tendo sido incluídos, de forma especificada, no requerimento de interposição do recurso, peça processual na qual deve ser definido o objeto de recurso (nesse sentido, Acórdãos com os n.os 107/2011, 292/2012 e 28/2016).

III - Decisão Pelo exposto, decide-se:

a) não julgar inconstitucional a interpretação, extraída do artigo 100.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, conducente ao sentido de que, em caso de condenação do recluso pela prática efetiva de mais de uma infração disciplinar, com aplicação de sanções de idêntica natureza, lhe são aplicáveis as medidas disciplinares correspondentes a cada uma das infrações em acumulação material, sem realização de cúmulo destinado à aplicação de sanção única;

b) e, em consequência, julgar improcedente o presente recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto Lei 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Lisboa, 4 de maio de 2016. - Catarina Sarmento e Castro - Carlos Fernandes Cadilha - Maria José Rangel de Mesquita - Lino Rodrigues Ribeiro - Maria Lúcia Amaral.

209918284

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2759215.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1979-07-24 - Decreto-Lei 232/79 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social.

  • Tem documento Em vigor 1982-10-27 - Decreto-Lei 433/82 - Ministério da Justiça

    Institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1988-07-26 - Acórdão 157/88 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, DA NORMA DO ARTIGO 5 DO DECRETO LEI NUMERO 336/84, DE 18 DE OUTUBRO (CRIOU A PORTLINE E A TRANSISULAR E APROVOU OS RESPECTIVOS ESTATUTOS), TAL COMO INTERPRETADO PELA ALÍNEA A) DO ARTIGO ÚNICO DO DECRETO LEI NUMERO 45/85, DE 21 DE FEVEREIRO (FIXOU O ALCANCE DO ARTIGO 5 DO DECRETO LEI NUMERO 336/84, NA PARTE EM QUE SE REFERE A 'PORTARIA DE REGULAMENTAÇÃO DO TRABALHO', POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 57, NUMERO 2 ALÍNEA A) DA CONSTITUICAO DA REPÚ (...)

  • Tem documento Em vigor 1995-09-14 - Decreto-Lei 244/95 - Presidência do Conselho de Ministros e Ministério da Justiça

    ALTERA O DECRETO LEI NUMERO 433/82, DE 27 DE OUTUBRO (INSTITUI O ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL E RESPECTIVO PROCESSO), COM A REDACÇÃO QUE LHE FOI DADA PELO DECRETO LEI NUMERO 356/89, DE 17 DE OUTUBRO. AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO PRESENTE DIPLOMA INCIDEM NOMEADAMENTE SOBRE OS SEGUINTES ASPECTOS: CONTRA-ORDENAÇÕES, COIMAS EM GERAL E SANÇÕES ACESSORIAS, PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO POR CONTRA-ORDENAÇÃO E PRESCRIÇÃO DAS COIMAS, PROCESSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO (COMPETENCIA TERRITORIAL DAS AUTORIDADES ADMINISTR (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-01-03 - Decreto-Lei 2/98 - Ministério da Administração Interna

    Altera o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio. Republicado em anexo com as alterações ora introduzidas.

  • Tem documento Em vigor 1998-10-07 - Decreto-Lei 303/98 - Ministério da Justiça

    Dispõe sobre o regime de custas no Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2001-06-05 - Lei 15/2001 - Assembleia da República

    Reforça as garantias do contribuinte e a simplificação processual, reformula a organização judiciária tributária e estabelece um novo Regime Geral para as Infracções Tributárias (RGIT), publicado em anexo. Republicados em anexo a Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98 de 17 de Dezembro, e o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/99 de 26 de Outubro.

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