Proc. n.º 389/09
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
A - Relatório
1 - O Partido Humanista (PH), dizendo-se inconformado com o Acórdão 231/2009, proferido pela 3.ª Secção, que indeferiu a reclamação deduzida pelo mesmo partido contra o Acórdão 227/2009, o qual, por sua vez, decidiu rejeitar, nos termos do artigo 28.º, n.º 2, da Lei 14/79, de 16 de Maio, a lista de candidatura à eleição para deputados do Parlamento Europeu, a realizar no dia 7 de Junho próximo, por si apresentada, dele recorre para o Plenário, terminando a pedir a revogação da decisão recorrida "mediante a admissão do candidato rejeitado e, por tabela, da lista de candidatura do Partido Humanista" e, "sem prescindir, prevendo a hipótese de não ser dado provimento ao recurso, então [que o Tribunal considere que], o recorrente procede desde já, a título subsidiário, à substituição do seu cabeça de lista do seguinte modo, ao abrigo do disposto no artigo 37.º, n.os 1 a) e 2 da citada Lei 14/79: todos os demais candidatos integrantes da sua lista subirão uma posição na mesma, pelo que a actual candidata n.º 2 passará para n.º 1, substituindo aquele, e assimsucessivamente".
2 - Nas suas alegações de recurso, o recorrente refuta a correcção do decidido com base na argumentação que condensou nas seguintes conclusões:1 - A República Portuguesa assenta no respeito e na garantia da efectivação dos direitos fundamentais e no aprofundamento da democracia participativa.
2 - O direito de concorrer a um cargo público electivo, como é o caso de deputado ao Parlamento Europeu, configura um direito e liberdade fundamental de participação
3 - A restrição a esse direito só pode ser feita por lei expressa (nos termos e condições do artigo 18.º, n.os 2 e 3 da CRP), insusceptível de interpretação extensiva ou aplicação analógica, sob pena de perversão dos princípios constitucionais estruturantesda República Portuguesa.
4 - Apesar de caber na previsão normativa do artigo 50.º, n.º 3 da CRP, o artigo 5.º f) da Lei 14/87, de 29 de Abril, não se refere expressamente aos juízes de paz, mas sim tão-só aos "juízes em exercício de funções", querendo com isso apenas limitar a inelegibilidade aos Juízes de Direito que estejam em efectividade de funções.5 - Assim, a aplicação desta norma aos juízes de paz é, no mínimo, duvidosa, devendo essa dúvida ser resolvida, em qualquer caso, a favor da prevalência dos direitos fundamentais do cidadão, isto é, da elegibilidade dos juizes de paz.
6 - Na verdade, os julgados de paz, embora sejam classificados como uma categoria de tribunais, não podem ser havidos como órgãos de soberania e não partilham a função jurisdicional com os tribunais, sendo antes uma instância não jurisdicional ou para-jurisdicional de resolução alternativa de conflitos, de criação facultativa.
7 - E os juízes de paz não têm o estatuto dos Juízes de Direito. Estes, são titulares de um órgão de soberania e têm estatuto próprio. Aqueles, são equiparados a técnicos superiores da administração pública, não passando de funcionários públicos qualificados aos quais se aplicam os direitos e deveres do funcionalismo público.
8 - Assim sendo, os juízes de paz não estão abrangidos pela norma do artigo 5.º f) da Lei 14/87, de 29 de Abril, quer porque o referido preceito não os inclui, quer porque não se podem equiparar aos "juízes em exercício de funções", sob pena de violação do princípio da igualdade (cf. artigo 13.º da CRP), na sua dupla dimensão de "tratar igual o que é igual e diferente o que é diferente".
9 - Deste modo, a decisão recorrida viola os artigos 48.º n.º 1 e 50.º, n.os 1 e 2 da CRP, devendo, pois, ser revogada mediante a admissão do candidato rejeitado e, por tabela, da lista de candidatura do Partido Humanista.
10 - Aliás, a decisão recorrida enferma de nulidade, dado não se ter pronunciado sobre todas as questões suscitadas pelo recorrente, nomeadamente quanto à inserção dos julgados de paz na previsão normativa do artigo 202.º, n.º 4 da CRP e à sua alternatividade em relação aos tribunais judiciais, bem como em relação à admissibilidade da sua lista de candidatura na hipótese de não apresentação ou
improcedência do presente recurso.
B - Fundamentação
3 - Como decorre da última conclusão das alegações, e traduzindo afirmação anteriormente exarada, o recorrente apoda o acórdão recorrido de sofrer de nulidade, por este "não se ter pronunciado sobre todas as questões suscitadas pelo recorrente, nomeadamente quanto à inserção dos julgados de paz na previsão normativa do artigo 202.º, n.º 4, da CRP e à sua alternatividade em relação aos tribunais judiciais, bem como em relação à admissibilidade da sua lista de candidatura na hipótese de não apresentação ou improcedência do presente recurso".Estando posta em causa a validade do acórdão recorrido, por aí urge começar, por razões de precedência lógico-jurídica, a apreciação do recurso.
Ao contrário, todavia, do defendido, o acórdão recorrido não padece de qualquer
nulidade por omissão de pronúncia.
Senão vejamos. E começando pela última causa de nulidade assacada. A admissibilidade da lista de candidatura do recorrente, aquando da dedução da reclamação prevista no n.º 1 do artigo 30.º da Lei 14/79, de 16 de Maio (aplicável por mor do disposto no artigo 1.º da Lei 14/87, de 29 de Abril), era uma questão que só poderia ser colocada nos termos do artigo 37.º, n.º 1, alínea a) daquela lei, ultrapassado que estava o momento previsto no artigo 28.º, n.º 2, do mesmo diploma.Na verdade, e dando execução a este preceito, o Tribunal, pelo seu Acórdão 212/2009, ordenara já a notificação do mandatário da lista para que procedesse à substituição do candidato tido por inelegível, no prazo de dois dias, sob pena de
rejeição de toda a lista.
Sendo assim, a substituição de candidatos apenas poderia ocorrer ao abrigo do disposto no referido artigo 37.º, n.º 1, alínea a), da Lei 14/79, que prevê que "apenas há lugar à substituição de candidatos até quinze dias antes das eleições em caso de eliminação em virtude de julgamento definitivo de recurso fundado nainelegibilidade".
Estando, todavia, o recorrente a reclamar da decisão de rejeição da lista e tendo anunciado que viria, ainda, recorrer da pronúncia que o tribunal fizesse sobre essa reclamação - caso não lhe fosse favorável - não podia o acórdão recorrido estar a antecipar a situação jurídica da existência de uma pronúncia definitiva sobre a questão da inelegibilidade do candidato - o que só ocorre com a prolação da decisão que conheça do recurso -, para o fim de fazer decorrer dela o efeito jurídico cuja produção a lei permite que o interessado ainda alcance nesse momento.No momento da pronúncia do acórdão recorrido, a questão colocada apresentava-se como meramente académica ou hipotética, não lhe incumbindo resolvê-la, por a resolução de questões desse tipo não caber na função jurisdicional.
Quanto à alegada nulidade por omissão de pronúncia, por o acórdão recorrido não se haver pronunciado sobre a "inserção dos julgados de paz na previsão normativa do artigo 202.º, n.º 4, da CRP, e à sua alternatividade em relação aos tribunais judiciais", a
sorte da alegação não é diferente.
O Tribunal, apenas, tem que resolver os concretos conflitos que lhe são colocados ou as questões concretas que lhe são postas. Ora, no caso, a questão concreta a resolver é a de saber se o candidato da lista de candidatura do partido recorrente - Luís Filipe Brito da Silva Guerra - à eleição para deputados do Parlamento Europeu, a realizar no dia 7 de Junho próximo, por ser juiz de paz, está ou não abrangido pela inelegibilidade prevista no artigo 5.º, alínea f) da Lei 14/87.A abordagem dessas matérias apenas poderá ter relevo como argumentos do discurso jurídico tendente a justificar, segundo a racionalidade jurídica, a correcção ou bondade da solução a alcançar sobre aquela questão. Elas não integram o concreto conflito a resolver. Elas têm a natureza de simples elementos discursivos demonstradores da justeza do efeito jurídico que a pronúncia do tribunal constitui na ordem jurídica.
A fundamentação de uma decisão, pela adição de razões de facto ou de direito, poderá ser mais ou menos extensa. Mas a sua maior ou menor extensão não é susceptível de afectar a validade da decisão judicial, mas apenas, quando muito, a sua convincência [cf. Professor José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado (reimpressão,
1984), volume V, p. 140].
Nesta óptica, tratando-se de meros argumentos, a sua não abordagem não afecta avalidade do Acórdão recorrido.
4 - A decisão recorrida estribou-se, pela reassumpção da bondade da decisão reclamada, no entendimento de que os juízes de paz em exercício de funções cabem no tipo legal de inelegibilidade recortado na referida alínea f) do artigo 5.º da Lei 14/87 - "os juízes em exercício de funções, não abrangidos pela alínea d)" -, em virtude de exercerem, partilhadamente com outros tribunais, a função jurisdicional nos julgados de paz previstos expressamente no n.º 2 do artigo 209.º, valendo para eles as razões aduzidas no artigo 50.º, n.º 3, ambos os preceitos da Constituição, para estabelecer inelegibilidades, nomeadamente, as que se relacionam com a necessidade de garantir a "isenção e independência dos respectivos cargos" e de que a solução interpretativa alcançada "cabe expressamente no sentido da expressão utilizada pelo legislador", não estando em causa qualquer aplicação analógica daquele preceito, nem qualquer restrição constitucionalmente inadmissível de um direito fundamental.Pode avançar-se, desde já, que se comunga do mesmo entendimento.
Ao enunciar as categorias de tribunais, o artigo 209.º da CRP, depois de referir, no seu n.º 1, as consubstanciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e segunda instância, o Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais e o Tribunal de Contas, dispõe, no n.º 2, que "podem existir
[...] julgados de paz".
Expressamente, pois, a Constituição configura os julgados de paz como uma categoriade tribunais.
O facto de a sua efectiva existência ser facultativa, a circunstância de a Constituição remeter para o legislador constitucionalmente competente [cf. artigos 164.º, alínea m), e 165.º, n.º 1, alínea p)], a decisão concreta sobre a criação, de resto facultativa, dos tribunais que correspondam à categoria constitucionalmente prevista, em nada belisca a sua previsão constitucional como integrante de uma das diversas categorias de tribunais, pelos quais a função jurisdicional se encontra organizacionalmente repartida.Ora, no seu artigo 202.º, n.os 1 e 2, ao caracterizar a função jurisdicional, através da explicitação dos "princípios gerais" (epígrafe do capítulo em que o preceito se insere), a Constituição define, em congruência com o estatuído no seu artigo 110.º, n.º 1, em que tipifica quais são os órgãos de soberania, os tribunais como "os órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo", mais dizendo que "na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados".
Destes preceitos constitucionais, conjugadamente interpretados, resulta, pois, que os julgados de paz administram justiça em nome do povo e asseguram a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, cumprindo assim, em face da sua fisionomia e do correlativo desiderato constitucional, uma indubitável função jurisdicional, o que conduz a integrar esses tribunais no seio da ordem e da orgânica jurisdicional (mutatis mutandis, o mesmo se diz em Espanha dos Jueces de Paz, os quais, nos termos do disposto no artigo 298.º, n.º 2, da Ley Orgânica del Poder Judicial e artigo 1.º do Reglamento n.º 3/1995 de los Jueces de Paz, "ejercen funciones jurisdiccionales sin pertencer a la Carrera Judicial" e também em Itália a propósito do Giudice di Pace a quem cabe, como "magistrato onorario" integrante da ordem judiciária, exercer "la giurisdizione in materia civile e penale", como resulta do disposto no artigo 1.º da Legge n.º 374, de 21 de Novembro de 1991).
A circunstância de, segundo o disposto no artigo 2.º da Lei 78/2001 - diploma que dispõe sobre a organização, competência e funcionamento dos julgados de paz - se indicar como "princípios gerais" de tal categoria de tribunais que "a actuação dos julgados de paz é vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes" e que "os procedimentos nos julgados de paz estão concebidos e são orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual", não tem outro sentido que não seja o de concretizar o que o legislador ordinário entende como correspondendo ao quid specificum que relevou na organização, competência e funcionamento desta categoria de tribunais, que, tal como os demais, administram justiça em nome do povo e "asseguram a defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos".
E assim é que os julgados de paz decidem os conflitos para cuja resolução têm competência (cf. artigo 9.º da Lei 78/2001) com base na aplicação das mesmas normas que são também aplicadas por outras categorias de tribunais que tenham competência para conhecer das mesmas questões de direito, apenas não estando sujeitos a critérios de legalidade estrita, "se as partes assim o acordarem" e o "valor da acção não exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância", caso em que poderão decidir segundo juízos de equidade.Por outro lado, "as decisões proferidas pelos julgados de paz têm o valor de sentença proferida por tribunal de 1.ª instância" (artigo 61.º da Lei 78/2001).
Perde assim o relevo decisivo que se vê atribuir, por alguma doutrina e jurisprudência, à circunstância de o modo de funcionamento e de o processo aplicável nos julgados de paz estar imbuído dos princípios enunciados no referido artigo 2.º da Lei 78/2001, mormente quando os julgados de paz lançam mão da mediação como forma institucionalizada de dirimição de conflitos e, por essa via de considerações, os pretendem reduzir a "instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos" cuja institucionalização o legislador ordinário pode prever, ao abrigo do artigo
202.º, n.º 4, da CRP.
Por um lado, não poderá esquecer-se que a economia processual, a simplificação do processo e a aspiração da obtenção de acordo sobre o objecto da causa constituem valores que são também prosseguidos pelo processo civil e nos tribunais judiciais, onde para além da existência de regimes processuais "mais elásticos", como são os da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias (Decreto-Lei 269/98, de 1 de Setembro) e do processo civil simplificado (Decreto-Lei 211/91, de 14 de Junho), a lei de processo civil determina, por diversas vezes, que se proceda a tentativa de conciliação (cf., por exemplo, o artigo 509.º do Código de ProcessoCivil).
Por outro lado, a inserção expressa como categorias de tribunais dos julgados de paz, levada a cabo pela revisão constitucional de 1997, no n.º 2 do artigo 209.º (na revisão anterior, 211.º), quando, então, já se encontrava consagrada a possibilidade de institucionalização de instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos no então n.º 5 do artigo 205.º (actual n.º 4 do artigo 202.º), só pode ser tida como manifestando uma clara intencionalidade constitucional de os considerar como verdadeiros tribunais, na linha da sua configuração inicial, na história pátria (para maior desenvolvimento, veja-se a súmula feita, a este propósito, no Acórdão 11/20007,do STJ).
Anote-se que o Parecer da PGR, de 21 de Abril de 2005, reconhece "que não obstante serem estruturalmente diversos dos tribunais de existência obrigatória, os julgados de paz são considerados verdadeiros e próprios tribunais e participam do exercício da função jurisdicional [...]".Deste modo, mesmo quem aceite a doutrina da alternatividade de competência material dos julgados de paz, para apreciar e decidir as acções previstas no artigo 9.º, n.º 1, da Lei 78/2001, relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial concorrente, prolatada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 11/2007, publicado no Diário da República 1.ª série, de 25 de Junho de 2007, não se vê forçado a concluir que os julgados de paz não são, em termos constitucionais, verdadeiros
órgãos jurisdicionais.
A possibilidade, dada, pelo artigo 20.º da CRP, aos cidadãos de aceder à administração da justiça, através dos julgados de paz ou dos tribunais judiciais, em nada contende com a natureza de um e de outro desses órgãos constitucionais enquanto tribunais. Pode sustentar-se que tal mais não representa do que um modo mais alargado de bem cumprir a injunção constitucional do acesso aos tribunais, consagrado como direito fundamental dos cidadãos. Seria um modo de corresponder à expansividade decorrente do direito fundamental em causa.Temos assim, de concluir que os juízes de paz são juízes que exercem uma função jurisdicional, administrando justiça em nome do povo.
E precisamente porque a exercem é que o legislador ordinário rodeou esse exercício dos meios que garantem a completa independência e imparcialidade dos juízes, aplicando aos juízes de paz o regime dos impedimentos e suspeições estabelecido na lei do processo civil para os juízes (artigo 21.º da Lei 78/2001).
Em contrário não pode ser invocado o disposto no artigo 29.º da mesma lei, face à
ressalva estabelecida na sua parte final.
É certo que os juízes de paz não estão abrangidos pelo estatuto constitucional dos juízes previsto nos artigos 215.º e segs. da Constituição, enformado segundo um "corpo único" e "regendo-se por um só estatuto", até porque são providos por um período de três anos e são nomeados pelo conselho de acompanhamento da criação e instalação dos juízes de paz, referido no artigo 65.º da Lei 78/2001, que sobre os mesmos exerce o poder disciplinar (artigo 25.º da Lei 78/2001).Mas, exercendo eles funções jurisdicionais, não a título meramente ocasional ou esporádico, mas a título permanente pelo período de tempo que dura o seu provimento (sendo que, embora de três anos, nada impede a renovação do provimento), desvela-se aqui uma situação que justifica, nos termos do artigo 50.º, n.º 3, numa restrição, assim, expressamente autorizada ao direito de acesso aos cargos públicos (aqui, electivos), consagrado no n.º 1 do artigo 50.º, ambos os preceitos da CRP, o estabelecimento, pelo legislador ordinário, das inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a "isenção e a independência do exercício dos respectivos cargos" e o exercício totalmente incondicionado do direito de voto.
E este aspecto, atento o núcleo funcional das funções exercidas e o respectivo enquadramento institucional nos termos em que a Constituição o recorta, autoriza - recte, impõe - ao legislador ordinário a adopção de critérios que permitam o exercício do poder jurisdicional nas condições exigidas pelo genoma iuris que materialmente o compõe, tendo-se definitivamente por certo que as necessárias "garantias de independência operam em todas as hipóteses do exercício do poder jurisdicional" (a expressão, referida à jurisprudência da Corte Costituzionale, é de Giuseppina Casella - Principi in materia di ordinamento giudiziario, em estudo disponível no sítio da internet do Conselho Superior da Magistratura italiano www.csm.it/quaderni/quad_92/quad_92_48.pdf -, concluindo a Autora que "também para o juiz honorário devem encontrar-se predispostas todas as medidas necessárias e idóneas a tornar a sua função autónoma e independente em relação a todos os demais
poderes").
Por esse motivo, independentemente da configuração estatutária que seja reservada aos "juízes de paz" - a qual assume, nas experiências legislativas comparadas, uma geometria variável (ao passo que na Espanha, por exemplo, existe uma quase integral sujeição ao regime estabelecido para os magistrados judiciais, já na Itália o estatuto do "magistrato onorario" é diferenciado relativamente ao da "magistratura ordinaria") -, sempre será de exigir, como decorrência da configuração constitucional, a previsão de um corpo de medidas preordenadas à garantia de independência do exercício de tais funções, sendo essa a "ratio das normas que estabelecem causas de incompatibilidade ao exercício de determinadas funções, decorrente, em regra, da necessidade de prevenir possíveis conflitos de interesses para garantia da imparcialidade dos poderes públicos e, no domínio específico da função jurisdicional, na exigência de tutelar a imagem e a substância da independência dos juízes, independentemente da categoria a que pertençam" (Corte Costituzionale, Sentenza n.º 60, de 16 de Fevereiro de 2006), sendo que, para além da referida exigência, importa levar em conta que as inelegibilidades associadas aos titulares dos órgãos que exercem a função jurisdicional levam também pressuposto o reconhecimento de que o exercício desses cargos pode determinar um condicionamento eleitoral - "captatio benevolentiae" ou por "metus publicae potestatis" (no critério da Corte Costituzionale, Sentenza n.º 5, de 1978) - constrangedor do livre exercício do direito de voto.Nessa linha de pensamento, não restam dúvidas de que a concretização legislativa da restrição constitucional tipificada no artigo 50.º, n.º 3, da CRP, ao estabelecer a inelegibilidade dos juízes de paz em exercício de funções jurisdicionais, encontra-se materialmente autorizada nos termos que decorrem da Constituição (sendo esse, também, o regime que vigora no país vizinho - art. 395, n.º 2, da LOPJ -, e em Itália,
artigo 8.º da citada Lei 374).
Assim sendo, não se verifica a alegada restrição inconstitucional do direito fundamental de acesso aos cargos públicos, na sua dimensão de participação política.5 - Sustenta, ainda, o recorrente que não se referindo expressamente aos juízes de paz, a alínea f) do artigo 5.º da Lei 14/87, de 29 de Abril, quis, apenas, limitar a inelegibilidade aos juízes de direito e que, sendo, no mínimo duvidosa, a aplicação dessa norma àqueles juízes, a dúvida interpretativa deve ser resolvida em favor dos direitos fundamentais do cidadão e, finalmente, que a equiparação dos juízes de paz aos "juízes em exercício de funções" viola o princípio da igualdade.
Vejamos, pois.
Antes de mais importa notar que, entendida a norma nos termos em que o recorrente defende - como querendo referir-se aos juízes de direito que estejam em efectividade de funções - ela seria de todo tautológica, em face do disposto na segunda parte do preceito, de juízes "não abrangidos pela alínea d)".Na verdade, da aplicação da alínea d) do mesmo artigo, pela remissão que faz para "qualquer das inelegibilidades gerais previstas na legislação aplicável à eleição dos deputados à Assembleia da República" e, decorrentemente, para o disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea a) da Lei 14/79, que estabelece que são inelegíveis os "magistrados judiciais ou do Ministério Público em efectividade de serviço" já resultava a restrição que a alínea f) do artigo 5.º da Lei 14/87 veio estabelecer.
E não vale dizer que "exercício de funções" não se equivale a "efectividade de serviço", pois quem está em exercício de funções como magistrado não pode deixar de estar na situação de juiz em "efectividade de serviço", ainda que em comissão ordinária ou eventual de serviço, quando os respectivos estatutos o permitam (cf. artigos 53.º e segs. do Estatuto dos Magistrados Judiciais e 139.º e segs. do Estatuto do Ministério
Público).
De resto, seria incongruente a posição de o legislador assumir o regime das inelegibilidades para os deputados da Assembleia da República no recorte do âmbito das inelegibilidades dos deputados para o parlamento europeu e depois vir definir em termos algo diversos o campo dessa inelegibilidade relativa aos magistrados judiciais apenas na eleição de deputado para o parlamento europeu.Note-se, aliás, relativamente a esta problemática, que o leque das inelegibilidades dos magistrados judiciais e do Ministério Público, definido na versão originária do artigo 5.º da Lei 14/87 se sobrepunha exactamente ao decorrente do artigo 5.º da Lei n.º
14/79.
A alteração introduzida no artigo 5.º da Lei 14/87, através da Lei 4/94, de 9 de Março, mediante, entre o mais, a inserção no recorte do universo das inelegibilidades "dos juízes em exercício de funções, não abrangidos na alínea d)", pretendeu fazer abarcar nesse campo as situações de juízes em exercício de funções cuja inelegibilidadenão resultasse já da Lei 14/79.
Passíveis, pelo menos, ao tempo, de inclusão nesse tipo de inelegibilidades eram as situações relativas aos juízes dos tribunais militares, que não fossem juízes de carreira, já então expressamente previstos na Constituição, nas versões existentes anteriormente à revisão de 1997 que passou, como se disse, a incluir também os julgados de paz.A circunstância de, por virtude desta revisão constitucional, se ter alargado o âmbito do conceito de "juízes em exercício de funções", por força da previsão constitucional desta nova categoria de tribunais, e, decorrentemente, de uma nova categoria de juízes não atenta contra quaisquer princípios de hermenêutica jurídica, já que o conceito assumido é um conceito funcional que está teleologicamente orientado para a salvaguarda de valores constitucionais como são os que estão contemplados no n.º 3 do artigo 50.º da CRP. Nada mais, do que um simples alargamento do âmbito factual do conceito normativo por virtude da expansão da realidade demandante da mesma tutela
constitucional.
Não se prefigura, assim, qualquer dúvida interpretativa que demande a operacionalidade, para a resolução da questão, do princípio da máxima efectividadedos direitos fundamentais.
Atentemos, agora, na questão relativa ao princípio da igualdade. O recorrente não a precisa com rigor, parecendo, no entanto, estar subjacente à sua argumentação o entendimento de que, sendo os juízes de paz juízes diferentes dos juízes de direito em efectividade de funções, diferente terá de ser o âmbito das restrições ao direito fundamental de acesso aos cargos públicos, na sua dimensão de participação política.A questão colocada parece ser, deste modo, um problema de igualdade na definição do âmbito das restrições ao direito fundamental.
Todavia, como já se viu, a restrição constitucionalmente permitida ao direito fundamental de acesso aos cargos públicos, na sua dimensão de participação política, não demanda que as pessoas que a ela possam ser sujeitas, por se verificar a situação constitucionalmente prevista que a justifica, tenham de ter o mesmo estatuto jurídico.
A circunstância de os juízes em exercício ou efectividade de funções estarem enquadrados por diferentes estatutos não obsta a que possam estar sujeitos a idênticas restrições ao referido direito fundamental, desde que, em qualquer das situações, se verifiquem as razões que constitucionalmente justificam a restrição e que se colhem, como se disse, no artigo 50.º, n.º 3, da CRP, com o qual "o legislador constituinte pretendeu estabelecer, precisamente, um critério delimitador de futuras novas causas de inelegibilidade que o legislador pretenda vir a criar", acautelando outros valores constitucionalmente tutelados como a liberdade de escolha dos eleitores e a garantia de isenção e independência no exercício dos respectivos cargos (cf. Acórdãos n.º 364/91
e 532/89).
De tudo resulta que o recurso não procede.6 - Quanto à substituição do candidato. Julgada definitivamente a inelegibilidade do candidato do partido recorrente e tendo já sido declarada a intenção de proceder à sua substituição, caberá à formação que rejeitou a lista considerar o pedido de substituição
efectuado.
C - Decisão
7 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimentoao recurso.
Lisboa, 18 de Maio de 2009. - Benjamim Rodrigues - Carlos Fernandes Cadilha - Carlos Pamplona de Oliveira - Gil Galvão - Joaquim de Sousa Ribeiro - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Maria João Antunes - Ana Maria Guerra Martins (apesar de no acórdão 212/2009 ter manifestado algumas dúvidas quanto à solução a que nele se chegou, após melhor ponderação e estudo subscrevo inteiramente o presente acórdão) - Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - José Borges Soeiro (vencido de harmonia com a declaração de voto que junto) - João Cura Mariano (vencido pelas razões constantes da declaração de voto apresentada pelo conselheiro Mário Torres) - Rui Manuel Moura Ramos.
Declaração de voto
Votei vencido, por entender que o candidato Luís Filipe Brito da Silva Guerra, pelo facto de desempenhar funções de juiz de paz, não incorre em qualquer inelegibilidade, designadamente a prevista na alínea f) do artigo 5.º da Lei 14/87, de 29 de Abril (Lei Eleitoral para o Parlamento Europeu), que declara "inelegíveis para o Parlamento Europeu [...] os juízes em exercício de funções, não abrangidos pela alínea d)".Estando em causa, na previsão das inelegibilidades, uma restrição ao direito fundamental de participação dos cidadãos na vida política, de relevantíssima importância para a própria genuinidade do sistema democrático, não só é intolerável o recurso à interpretação extensiva ou à analogia no preenchimento das categorias de inelegíveis, como, em caso de dúvida, deve prevalecer o reconhecimento da
elegibilidade: in dubio pro libertate.
O apertado prazo de decisão do presente recurso e, acrescidamente, de elaboração da presente declaração de voto inviabiliza o tratamento aprofundado das complexas questões relativas à caracterização dos julgados de paz como tribunais e à inserção da actividade por eles desenvolvida no exercício da função jurisdicional. Entendo, porém, que da eventual resposta positiva a essas duas questões não deriva necessariamente o reconhecimento da inelegibilidade em causa. Se é certo que esta inelegibilidade teria naturalmente de ser negada se se concluísse que os julgados de paz não eram tribunais nem exerciam função jurisdicional, já a situação inversa não surge como imposição lógica: há membros integrados em verdadeiros tribunais e que exercem funções jurisdicionais aos quais não se adequa a qualificação de "juízes em exercício de funções", geradora de inelegibilidade (por exemplo, os jurados que integram o tribunal de júri, os juízes sociais em tribunais de menores ou de trabalho, os árbitros dos tribunais arbitrais, quer permanentes, quer instituídos ad hoc, e quer facultativos ounecessários).
No entanto, não se pode negar que o reconhecimento, pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 11/2007, da natureza alternativa da competência dos julgados de paz, tornando a sua intervenção dependente da vontade das partes (cf. a anotação de Miguel Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, n.º 22, Abril/Junho 2008, pp.54-58), não pode deixar de abalar, pelo menos, os fundamentos da inelegibilidade que apelam ao afastamento dos riscos de captatio benevolentiae ou do metus publicae
potestatis.
No entanto, decisivo no sentido da inexistência da inelegibilidade em causa é a consideração do disposto no artigo 29.º da Lei 78/2001, de 13 de Julho, que manda aplicar subsidiariamente aos juízes de paz o regime de incompatibilidades da função pública, e não o regime de incompatibilidades dos magistrados judiciais. Daqui segue-se que não é aplicável aos juízes de paz a proibição da prática de actividades político-partidárias de carácter público (artigo 11.º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais). Inexistindo paralela proibição no regime de incompatibilidades da função pública, designadamente dos funcionários dos quadros superiores (a remuneração dos juízes de paz é a correspondente ao escalão mais elevado da categoria de assessor principal da carreira técnica superior do regime geral da Administração Pública - artigo 28.º da Lei 78/2001), não vejo como seja sustentável, pois tal representaria uma restrição não legalmente prevista do exercício de direitos fundamentais, negar aos juízes de paz o exercício de funções político-partidárias de carácter público, designadamente em órgãos de direcção de partidos políticos. Ora, seria de todo incongruente reconhecer que um juiz de paz pode exercer publicamente funções de presidente de um partido político, mas já não pode apresentar-se como candidato desse partido aquaisquer eleições.
Mário José de Araújo Torres
Declaração de voto
Os julgados de paz, na sua vertente hodierna, ou seja, na sua definição posterior à Constituição da República de 1976, tiveram como primeiro instrumento normativo oDecreto-Lei 539/79, de 31 de Dezembro.
No respectivo preâmbulo, no que concerne à sua competência material, acentuou-se o carácter da experimentalidade do passo legislativo que se estava a encetar e a não obrigatoriedade de acesso, explicitando-se, nomeadamente, referir-se "a questões susceptíveis de provocar conflitos e de empenhar os cidadãos em torno de problemas que afectam o seu quotidiano no quadro da mais pequena comunidade institucional - a freguesia - e, consequentemente, por pôr à prova e estimular pedagogicamente a capacidade de intervenção, diálogo e reconciliação".Os juízes de paz não estavam sujeitos a critérios de legalidade estrita, julgando segundo critérios de equidade, decidindo de harmonia com a solução que antevissem mais justa e adequada com vista a ser conseguida a harmonia social.
O processo era informal, o juiz de paz podia livremente investigar os factos, determinar a realização dos actos e diligências que julgasse convenientes, só sendo admissível a constituição de advogado na fase de recurso, para o tribunal de comarca.
No entanto, o referido regime legal não chegou a entrar em vigor, porque a Assembleia da República recusou a ratificação do diploma que o consagrava (Resolução n. º
177/80, de 31 de Maio).
Por sua vez, na revisão constitucional ocorrida em 1989, o texto constitucional passou a prever que a lei podia institucionalizar instrumentos e formas de composição deconflitos (artigo 202.º n. º 4).
Neste seguimento, a revisão constitucional que teve lugar em 1997 passou a preconizar poderem existir, para além dos tribunais arbitrais, os julgados de paz (artigo 209.º n.º2).
Aí se considerou serem órgãos de existência eventual, não integrados em qualquer das ordens de tribunais previstas no mencionado artigo 209.º, (n.º 1) da Constituição, incluindo a dos tribunais judiciais, ou seja, não se inseriam na categoria propriamentedita dos tribunais de primeira instância.
Por isso, a lei traça-lhe a vocação para a participação cívica dos interessados e de estímulo à justa composição dos litígios em quadro de acordo, de harmonia com a ideia que envolveu a sua criação de constituírem uma via alternativa de resolução de conflitos, com activa intervenção de mediadores, em termos de propiciarem o descongestionamento dos tribunais da ordem judicial. Mas nem da lei, nem na ideia que presidiu à sua criação, ou seja, a de propiciarem o referido descongestionamento, se pode extrair algum argumento relevante no sentido da sua competência material inicial ser exclusiva para as acções a que se reporta o artigo 9.º da lei dos Julgados de Paz (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n. º 11/2007, de 24 de Maio).Verifica-se, assim, que os julgados de paz actuais só na sua vertente de mediação se assemelham aos julgados de paz do passado, isto é, quando integravam uma determinada circunscrição judicial.
A evolução dos trabalhos preparatórios da lei dos Julgados de Paz revela a intenção de instituir um meio alternativo à via judicial para a resolução dos pequenos conflitos da vida quotidiana, com procedimentos simplificados e informais, em quadro de justiça de proximidade, economicamente acessível e de disponibilização de instrumentos de
mediação.
Assim, é inequívoco que os julgados de paz não se apresentam como tribunais judiciais, posicionando-se fora do patamar da organização judiciária portuguesa tal como ela resulta da Constituição e da Lei de Organização e Funcionamento dos TribunaisJudiciais.
Entre os julgados de paz e os tribunais da ordem judicial da primeira instância não há qualquer relação de limitação de competência, porque o nexo é de paralelismo e de concorrência e não, consequentemente de exclusividade.Os julgados de paz são, deste modo, órgãos de resolução alternativa de litígios e, pelo que fica dito, não sucederam na competência dos tribunais da ordem judicial, nem são seus substitutos, integrando-se, antes, na categoria de tribunais de resolução de
conflitos de existência facultativa.
Apresentam-se, pois, como um meio alternativo à "justiça judicial".Nesse sentido, não é, na minha perspectiva, adequado assimilar os juízes de paz aos juízes de direito, nomeadamente para efeitos do disposto no artigo 5. º alínea f) da Lei
n.º 14/87, de 29 de Abril.
Na verdade, os juízes de paz exercem um cargo não jurisdicional, pelo que não lhes é aplicável, naturalmente, o Estatuto dos Magistrados Judiciais.Com efeito, no artigo 21.º da Lei 78/2001, de 13 de Julho, os juízes de paz apenas se equiparam aos juízes, para efeito do regime de impedimentos e suspeições estabelecidos na lei de Processo Civil, isto é, aplicáveis aos processos em concreto.
Já no que concerne aos deveres, incompatibilidades e direitos (artigo 29.º), é-lhes aplicável, subsidiariamente, o regime da função pública, como é, ainda, no que se refere à remuneração, remetido para os vencimentos da função pública (artigo 28.º).
Não lhes sendo, em consequência, dirigidos os direitos e deveres aí constantes, donde que qualquer incompatibilidade direccionada aos magistrados judiciais é, em regra, estranha aos juízes de paz, por a veste apresentada por uns e outros ser manifestamente
diversa.
Assim, sendo-lhe estranha essa incompatibilidade, com o devido respeito, não rejeitava a candidatura mencionada, pelo que daria procedência ao recurso.
José Borges Soeiro
202545047