Acórdão 207/2003/T. Const. - Processo 52/2003. - 1 - Não se conformando com o despacho proferido em 27 de Dezembro de 2001 pelo subinspector-geral de Jogos, em substituição do inspector-geral, que aplicou a António Rodrigues da Silva - por infracção ao disposto no artigo 83.º, alínea b), punível pelo artigo 141.º, um e outro do Decreto-Lei 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção conferida pelo Decreto-Lei 10/95, de 19 de Janeiro - a coima de 150 000$ e a sanção acessória de interdição do exercício da profissão por 30 dias, recorreu o mesmo para o Tribunal da Comarca de Espinho.
O juiz do 2.º Juízo daquele tribunal de comarca, por sentença de 18 de Dezembro de 2002, julgou procedente o recurso, absolvendo o impugnante, pois que se não provou o cometimento dos factos que estava assacado ao acoimado.
Para assim decidir, e no que ora releva, pode ler-se naquela peça processual o seguinte passo:
"[...]
c) A prova obtida por meio electrónico de vigilância é ilegal e ilícita?
Comecemos por apreciar a invocada inconstitucionalidade orgânica do artigo 52.º Lei do Jogo, aprovada pelo Decreto-Lei 422/89, de 2 de Dezembro.
Dado que a utilização de tais sistemas de vigilância contende com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), não se nos oferece [qualquer] espécie de dúvida que a matéria em apreço é da reserva relativa da Assembleia da República, por contender com a reserva da vida privada dos frequentadores de casinos e dos seus trabalhadores (como é o caso dos autos), sendo que o Governo só poderia legislar sobre tal matéria mediante prévia lei de autorização legislativa emanada pelo nosso parlamento [cf. artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da CRP, na redacção em vigor ao tempo; actualmente, artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP].
Ora, a Assembleia da República autorizou o Governo para legislar em matéria de jogos de fortuna ou azar em casinos e de exploração e prática ilícita de jogos de fortuna ou azar através da Lei 14/89, de 30 de Junho.
No âmbito e sentido da respectiva lei de autorização legislativa não consta a autorização para o Governo introduzir uma disposição legal equivalente à do artigo 52.º do Decreto-Lei 422/89.
Está ferida, por isso, de inconstitucionalidade orgânica.
Por conseguinte, tal norma não poderá ser objecto de aplicação nestes autos, o que equivale a dizer que na apreciação da prova não poderá o tribunal tomar em consideração as cassetes referidas nos autos como meio de prova ou a prova testemunhal que funda a sua razão de ciência quanto à matéria em causa exclusivamente no visionamento das mesmas.
[...]"
Do assim decidido recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, o representante do Ministério Público junto do Tribunal a quo, por intermédio do recurso pretendendo a apreciação da constitucionalidade da norma ínsita no artigo 52.º da denominada Lei do Jogo, aprovada pelo Decreto-Lei 422/89, de 2 de Dezembro.
2 - Determinada a feitura de alegações, rematou a entidade recorrente a por si formulada com as seguintes "conclusões":
"1.º A norma do artigo 52.º do Decreto-Lei 422/89, de 2 de Dezembro, versando matéria atinente a direitos, liberdades e garantias, padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea s), da Constituição (redacção então em vigor), já que o Governo legislou em matéria de reserva relativa da competência da Assembleia da República, sem que estivesse previamente autorizado, através da respectiva credencial parlamentar.
2.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida."
Por seu turno, o acoimado propugnou pela improcedência do recurso.
Cumpre decidir.
3 - Estipula-se na norma cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida (redacção conferida pelo Decreto-Lei 10/95, de 2 de Dezembro):
"Artigo 52.º
Equipamento de vigilância e controlo
1 - As salas de jogos são dotadas de equipamento electrónico de vigilância e controlo, como medida de protecção e segurança de pessoas e bens.
2 - Quando a instalação do equipamento referido no número anterior não seja contratualmente exigível às concessionárias, será a mesma feita por conta do orçamento da Inspecção-Geral de Jogos.
3 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, não é permitido nas salas de jogos, durante o período de abertura ao público destas, fazer uso dos instrumentos e aparelhos de registo a que se refere a alínea e) do n.º 2 do artigo 36.º
4 - As gravações de imagem ou som feitas através do equipamento de vigilância e controlo previsto neste artigo destinam-se exclusivamente à fiscalização das salas de jogos, sendo proibida a sua utilização para fins diferentes e obrigatória a sua destruição pela concessionária no prazo de 30 dias, salvo quando, por conterem matéria em investigação ou susceptível de o ser, se devam manter por mais tempo, circunstância em que serão imediatamente entregues ao serviço de inspecção, acompanhadas de relatório sucinto sobre os factos que motivaram a retenção.
5 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, o serviço de inspecção pode visionar as gravações de imagem ou de som efectuadas pela concessionária quando o entenda conveniente.
6 - As concessionárias devem criar um quadro de três operadores devidamente habilitados para proceder a todas as operações do sistema, por forma a assegurar uma fiscalização eficaz e regular os sectores vigiados."
O diploma no qual se insere a transcrita norma foi emitido a coberto da autorização legislativa constante da Lei 14/89, de 30 de Junho, a qual, no seu artigo 2.º, definiu o sentido e extensão da credencial pela mesma dada, sendo que, nesse preceito, se não faz qualquer referência à instalação, nas salas de jogos, de equipamento de vigilância e controlo.
De outro lado, o Decreto-Lei 10/95, que, por entre o mais, conferiu nova redacção ao artigo 52.º do Decreto-Lei 422/89, foi emitido no uso da competência conferida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição (versão anterior à revisão constitucional operada pela Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro).
4 - A questão que se coloca reside, assim, em saber se a normação que exija e regule uma tal instalação constitui reserva de competência legislativa parlamentar, porque inserida em matéria atinente a direitos, liberdades e garantias.
A respeito de normação respeitante à permissão de utilização da designada "videovigilância" e estabelecimento de regras a que a mesma deverá obedecer, teve já este Tribunal, por intermédio do seu Acórdão 255/2002 (publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 8 de Julho de 2002), ocasião de se pronunciar, não tendo aquele aresto, quanto a este particular, sofrido quaisquer votos dissidentes.
Disse-se aí em dado passo:
"[...]
A permissão da utilização dos referidos equipamentos [estava o aresto a reportar-se aos equipamentos electrónicos de vigilância e controlo] constitui uma limitação ou uma restrição do direito de reserva da intimidade da vida privada, consignado no artigo 26.º, n.º 1, da lei fundamental (sobre o conceito v. Paulo Mota Pinto, 'O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada', in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXIX, 1993, pp. 479 e segs.).
Ao autorizar a videovigilância e ao estabelecer algumas regras a que ela deve obedecer, o legislador está indiscutivelmente a tratar de uma matéria atinente a direitos, liberdades e garantias, valendo aqui as razões desenvolvidas no ponto V-B [onde, inter alia, se afirmava que o Tribunal "tem sempre reconhecido que a reserva legislativa parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias abrange 'tudo o que seja matéria legislativa, e não apenas as restrições do direito em causa'"] (para uma apreciação das numerosas questões de índole constitucional que a videovigilância pode suscitar, cf. a Decisão n.º 94-352 DC, de 18 de Janeiro de 1995, do Conselho Constitucional francês, Recueil des décisions du Conseil constitutionnel, Dalloz, 1995, pp. 170 e segs.).
[...]"
5 - Na legislação existente antes da edição do Decreto-Lei 422/89 (cf., Decreto 41 812, de 9 de Agosto de 1958, Decreto-Lei 48 912, de 18 de Março de 1969, e Decreto-Lei 22/85, de 17 de Janeiro), nada se regulava tocantemente à obrigatoriedade de instalação, nas salas de jogos, de equipamento electrónico de vigilância e controlo (cf., quanto à imposição de as empresas concessionárias manterem, durante todo o tempo de funcionamento dos casinos, junto à entrada das salas de jogos, um serviço devidamente apetrechado e dotado de pessoal competente, destinado a identificação de quem as pretenda frequentar e à sua fiscalização, o artigo 18.º do citado Decreto 41 812).
Por outro lado, como se disse acima, a Lei 14/98 é de todo silente no tocante a esta matéria.
Ora, concluindo-se, como se concluiu no já citado Acórdão 255/2002, que a matéria tocante à regulação dos equipamentos electrónicos de vigilância e controlo se inclui no direito à reserva da intimidade da vida privada e que, por isso, constitui matéria que se inclui na reserva relativa de competência legislativa parlamentar, porque respeitante a direitos, liberdades e garantias, torna-se evidente que a norma em apreciação, ao impor a videovigilância electrónica nas salas de jogos, às quais tem acesso livre a generalidade das pessoas (cf. artigos 34.º a 38.º e 42.º do Decreto-Lei 422/89), está a reger sobre aquela matéria.
É que, como se depara límpido, a instalação de tais equipamentos, e na forma como se encontra prescrito no normativo em apreço, permite a captação de imagens, sons e actuação das pessoas que se encontrem nas instalações dos casinos, com possibilidade de fazer registo dos mesmos, sem que por elas seja dado o mínimo consentimento a tal captação, o que, desta sorte, vai, inequivocamente - e ao menos - "tocar" os direitos à imagem e reserva da vida privada dessas pessoas (cf., neste sentido, Machado Dray, Justa Causa e Esfera Privada, p. 83).
Tendo em conta a postura deste Tribunal, consubstanciada em considerar que a reserva de competência legislativa parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias abrange não só os campos conexionados com a suas restrições mas também a dimensão conformadora ou concretizadora desses mesmos direitos e tudo o que seja matéria legislativa, máxime se se estatui pela primeira vez sobre tal matéria e, assim, não se limitando o legislador a reproduzir anterior normação (cf., v. g., o Acórdão 373/91, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 6 de Novembro de 1991), então teremos de ser conduzidos à conclusão segundo a qual, designadamente ponderando a respectiva prescrição, a norma sub judicio haveria de ter sido emitida sob a forma de lei parlamentar ou sob a forma de decreto-lei credenciado, para o particular efeito, pela Assembleia da República.
Como o não foi, enferma a mesma de inconstitucionalidade orgânica.
6 - Em face do exposto, este Tribunal decide:
a) Julgar organicamente inconstitucional, por violação da alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição (versão decorrente da Lei Constitucional 1/82, de 30 de Setembro), a norma ínsita no artigo 52.º do Decreto-Lei 422/89, de 7 de Dezembro; e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso.
Lisboa, 28 de Abril de 2003. - Bravo Serra - Gil Galvão - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Alberto Tavares da Costa - Luís Nunes de Almeida.