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Acórdão 391/2015, de 16 de Novembro

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Sumário

Não julga inconstitucionais as seguintes normas do Código de Processo Penal: norma constante do artigo 194.º, n.º 4, na interpretação segundo a qual é dispensável a audição pessoal do arguido relativamente à proposta de aplicação da medida de prisão preventiva, quando ele tenha sido ouvido para os efeitos do artigo 141.º do mesmo diploma; norma constante do artigo 97.º, n.º 5, na interpretação segundo a qual a fundamentação da decisão que decreta a medida de prisão preventiva pode ser feita por remissão para a promoção do Ministério Público; norma constante do artigo 127.º, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal; não conhece do recurso quanto às demais questões de inconstitucionalidade

Texto do documento

Acórdão 391/2015

Processo 526/15

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

Nos autos de inquérito n.º 122/13.8TELSB foram emitidos, por determinação do Juiz de Instrução Criminal, a requerimento do Ministério Público, mandados de detenção fora de flagrante delito de José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, os quais foram cumpridos em 21 de novembro de 2014.

O detido foi constituído arguido, tendo sido presente para interrogatório judicial no Tribunal Central de Instrução Criminal em 22 de novembro de 2014.

Terminado o interrogatório em 24 de novembro de 2014, foi dada a palavra ao Magistrado do Ministério Público, o qual promoveu a aplicação ao ora Recorrente da medida de prisão preventiva.

Seguidamente foi dada a palavra ao mandatário do Recorrente, o qual se pronunciou pela rejeição da medida proposta.

O Juiz de Instrução Criminal proferiu despacho em que determinou a aplicação ao Recorrente da medida de prisão preventiva.

O Recorrente impugnou esta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão proferido em 17 de março de 2015, julgou improcedente o recurso.

O Recorrente reclamou desta decisão, arguindo várias nulidades, tendo a reclamação sido indeferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por novo acórdão proferido em 28 de abril de 2015.

O Recorrente dirigiu então ao Tribunal Constitucional um requerimento que, no essencial, tem o seguinte conteúdo:

"Engenheiro José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, recorrente nos autos, tendo sido notificado do douto Acórdão que, julgando improcedente a reclamação apresentada pelo recorrente, confirma o igualmente douto Acórdão que manteve, parcialmente, a decisão de 24 de novembro de 2014 do Senhor Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal que decretou a sua prisão preventiva, vem nos termos dos artigos 70.º n.º 1 alínea b), 71.º, 72.º n.º 1 alínea b) e n.º 2, 75.º n.º 1, e 75.º-A, n.os 1 e 2, da Lei 28/82 de 15 de novembro, dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, para serem julgadas inconstitucionais as seguintes normas do Código de Processo Penal em que o Acórdão recorrido e as decisões por ele mantidas se basearam:

1 - A norma do artigo 194.º n.º 6 alínea a) do Código de Processo Penal, na parte em que impõe a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, na interpretação, acolhida no Acórdão recorrido e nas decisões por ele mantidas, de que não é necessário descrever o comportamento criminal legalmente tipificado que é, em concreto, imputado ao arguido - inconstitucionalidade por violação do direito de defesa garantido pelo artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, invocada na conclusão U da motivação do recurso;

2 - A norma do artigo 194.º n.º 6 alínea c) do Código de Processo Penal, na interpretação, acolhida no Acórdão recorrido e nas decisões por ele mantidas, de que a referência à qualificação jurídica dos factos imputados não implica a referência às normas incriminadoras que sejam concretamente aplicáveis - inconstitucionalidade ainda por violação do direito de defesa garantido pelo artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, invocada na conclusão X;

3 - A norma do artigo 194.º n.º 4 do Código de Processo Penal, na interpretação, acolhida no Acórdão recorrido e nas decisões por ele mantidas, segundo a qual é dispensável a audição pessoal do arguido ali prevista, quando ele tenha sido ouvido para o efeito previsto no artigo 141.º - inconstitucionalidade também por violação do direito de defesa garantido pelo artigo 32.º n.º 1 e por violação do disposto nos artigos 28.º n.º 1 e 32.º n.º 6 da Constituição da República Portuguesa, invocada na conclusão PP;

4 - A norma do artigo 97.º n.º 4 do Código de Processo Penal na interpretação, acolhida no Acórdão recorrido e nas decisões por ele mantidas, segundo a qual a fundamentação dos atos decisórios do juiz, quando disponham sobre matérias atinentes aos direitos fundamentais, designadamente quanto à indiciação e às medidas de coação privativas da liberdade, pode ser feita por remissão para a promoção do Ministério Público - inconstitucionalidade por violação da reserva de juiz e do dever de fundamentar, garantidos pelos artigos 32.º, n.º 4, e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, invocada na conclusão PPP;

5 - As normas dos artigos 32.º n.º 1, 33.º n.º 1, 119.º alínea e) e 410.º do Código de Processo Penal na interpretação, acolhida no Acórdão recorrido e no Acórdão por ele mantido, segundo a qual a questão da competência ou incompetência material do Tribunal não pode ser reconhecida pelo tribunal de recurso por não ter sido expressamente tratada na decisão recorrida e não ter sido invocada na motivação do recurso, não obstante tal questão ter sido invocada pelo recorrente na resposta (prevista no artigo 417.º n.º 2 do Código de Processo Penal) ao parecer do Ministério Público (previsto no n.º 1 da mesma norma), com a justificação de que só havia conhecido os factos e circunstâncias dela determinantes após a apresentação do recurso, com a notificação da resposta do Ministério Público à sua motivação, e de o recorrente só nesse momento ter tido oportunidade processual de sobre ela se pronunciar e de a invocar - inconstitucionalidade por violação ou pelo menos limitação inaceitável do direito de recurso, consagrado no artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, e por violação do direito ao juiz legal, consagrado no respetivo n.º 9.

6 - As normas do artigo 11.º, n.º 3, alínea a) e n.º 7 do Código de Processo Penal na interpretação restritiva, pressuposta na decisão recorrida e nas decisões por ela mantidas, de que a competência material nelas prevista não é determinada pelo momento da prática dos atos (objeto de julgamento e de inquérito) e se limita aos casos e períodos temporais em que as entidades ali referidas estejam ou se mantenham em funções aquando do início do inquérito ou da prolação da acusação ou do despacho de pronúncia - inconstitucionalidade por violação do princípio constitucional do juiz legal ou natural (artigo 32.º, n.º 9, da Constituição) e por violação do direito de acesso ao Direito e a uma tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º).

7 - As normas dos artigos 219 n.º 1 e 413 n.º 3 do Código de Processo Penal na interpretação, pressuposta ou aparentemente acolhida na decisão recorrida, no acórdão reclamado, na Resposta e no Parecer do MP e pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal, no despacho de sustentação e no despacho de instrução do recurso, que concede ao MP. na resposta ao recurso, ou a Juiz de Instrução, no despacho de sustentação e no despacho para instrução do recurso, a faculdade de contrariar o recurso de impugnação de prisão preventiva invocando uma nova e, eventualmente, mais profunda e fundamentada argumentação factual contra o arguido - por violação dos princípios consagrados nos n.os 1 e 5 do artigo 32 da Constituição.

As inconstitucionalidades agora referidas em 5, 6 e 7 precedentes foram invocadas apenas na Reclamação que veio a ser decidida pejo Acórdão recorrido, e não antes, porque só com a notificação do Acórdão que teve tal Reclamação por objeto é que o recorrente foi surpreendido com tais questões.

Por outro lado. a própria questão da competência ou incompetência material do Tribunal apenas se colocou ao recorrente perante a resposta do Ministério Público ao recurso, já que até esse momento, face aos factos imputados na decisão de 24 de novembro que decretou a prisão preventiva (a decisão recorrida), a questão da competência não se colocava: só na citada resposta ao recurso e com a notificação dela e do despacho de sustentação da decisão que decretou a sua prisão preventiva, que a dá por reproduzida, é que o recorrente ficou ciente que os factos em causa respeitavam ao período em que exerceu as funções de Primeiro-Ministro e ao exercício de tais funções.

Parece mostrar-se mesmo indiciada (como se referiu na resposta ao parecer do Ministério Público) a ocultação pelo Senhor Procurador Geral Adjunto titular do processo, na imputação dos factos, e pelo Senhor Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal na decisão de 24 de novembro, que integra e reproduz essa imputação, do verdadeiro quadro factual da investigação.

Só na Resposta ao recurso o MP veio apresentar uma nova imputação de factos, fixada temporalmente em momento completamente diferente do que aquele em que o foi na imputação de factos apresentada ao arguido no seu interrogatório, que baseou a promoção do MP para enumerar os pretensos fortes indícios de factos criminosos e foi, assim, considerada para fundamentar a Decisão de prisão preventiva de 24 de novembro. E tal diferente localização temporal e qualificação funcional indiciam uma efetiva manipulação pelo MP da competência do Tribunal, e a escolha pela acusação de um Tribunal que lhe terá parecido mais favorável.

É que na imputação de factos com que o arguido foi confrontado no interrogatório a que foi sujeito entre 22 e 24 de novembro, nos termos e para os efeitos do artigo 141.º, n.os 1 e 3, do CPP - factos em que se baseou a decisão de 24 de novembro que decretou a sua prisão preventiva e nos quais o arguido ora recorrente foi baseando a sua defesa e o seu recurso -, se bem que o MP tenha começado por identificar e situar no tempo as funções públicas, notórias e de conhecimento geral, exercidas pelo arguido, como Ministro e como Primeiro-Ministro, certo é que, quando começa a alinhar referências a determinadas circunstâncias que qualificou como crimes de corrupção e fraude fiscal, situou-as no período entre 2000 e 2005, e quando invocou determinados factos que significou indiciarem o crime de branqueamento situou-os depois de junho de 2011.

Isto é, antes e depois do exercício pelo recorrente das suas funções de Primeiro-Ministro.

Com efeito, resulta muito claramente dos factos e elementos do processo com que o arguido foi confrontado naquele seu interrogatório e que estiveram na base da decisão de 24 de novembro que o dito "património financeiro formado na Suíça" teria sido formado desde 2000 até 31 de dezembro de 2004, não mais do que isso sendo possível concluir dessa imputação de factos (designadamente, na parte que aqui seguidamente se transcreve. do último parágrafo da página 1 ao segundo parágrafo da página 3. do documento em que foi apresentada ao arguido e ao seu defensor):

[...]

Parece assim legítimo ao recorrente invocar o efeito surpresa para suscitar aqui, para os efeitos previstos no artigo 70.º n.º 1 alínea b) da lei do Tribunal Constitucional, as inconstitucionalidades apontadas.

8 - A norma do artigo 125.º do CPP na interpretação, acolhida no Acórdão recorrido e pressuposta nas decisões por ele mantidas, de que as presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil são provas e são provas admissíveis em processo penal - inconstitucionalidade por violação da presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

9 - A norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal na interpretação, acolhida na decisão recorrida e pressuposta nas decisões por ela mantidas, de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a adágios populares, à sabedoria popular do homem médio, e às presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil, por violação da presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º n.º 2, e do dever de fundamentar, consagrado no artigo 205.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Ou, autonomizando (por precaução de patrocínio) as duas dimensões normativas aqui em causa,

10 - A norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal na interpretação, aparentemente acolhida ou pressuposta na decisão recorrida e nas decisões por ela mantidas, de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a adágios populares, à sabedoria popular do homem médio por violação da presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º n.º 2, e do dever de fundamentar, consagrado no artigo 205.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

11 - A norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal na interpretação, aparentemente acolhida ou pressuposta na decisão recorrida c nas decisões por ela mantidas, de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso às presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil por violação da presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º n.º 2, e do dever de fundamentar, consagrado no artigo 205.º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

E ainda, autonomizando (também por precaução de patrocínio) a concreta interpretação vertida na decisão reclamada confirmada pelo Acórdão recorrido.

12 - A norma do citado artigo 127.º na interpretação acolhida nessas decisões e pressuposta no despacho que decretou a prisão preventiva, de que a fundamentação da livre convicção do Tribunal e a invocação das regras de experiencia se podem reconduzir em processo penal, para efeito de julgar verificados os fortes indícios a que se refere o artigo 202.º n.º 1, à invocação de aforismos e expressões como "amizade sem limites", "estilo de vida luxuoso", "sólidas fontes de rendimento", "quem cabritos vende c cabras não tem, de algum lado lhe vêm", "milagre de altruísmo", "gato escondido com rabo de fora" e a argumentos como "a franja de prova", "regras de presunção lícitas aceitáveis", "ser altamente provável" a existência de indícios, "a prova de factos [...] resultar de outros factos que não se comprovam em si próprios, mas de ilações, retiradas face ao facto c às circunstâncias concretas do seu cometimento", "presunções ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência", "ilações", "presunções [...] (judiciais) que atuam como meios de prova", "adequação presuntiva" ou indícios "com elevado grau de probabilidade" - por violação das garantias de defesa e da presunção de inocência, consagradas no artigo 32.º n.os 1 e 2 da CRP.

13 - E a norma do mesmo artigo 127.º na interpretação acolhida nessas decisões e pressuposta no despacho que decretou a prisão preventiva, de que tal disposição legal permite ao juiz, para além da apreciação dos diferentes meios de prova e para efeito de julgar verificados os fortes indícios a que se refere o artigo 202.º n.º 1, a própria criação, suposição ou invenção de factos, ou de indícios deles, baseando a livre convicção em regras da experiência que se reconduzem a adágios populares e à sabedoria popular do homem médio, e por recurso às presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil.

Estas inconstitucionalidades, indicadas em 9, 10, 11, 12 e 13 precedentes, também não foram expressamente invocadas na motivação recurso, porque também não o podiam ter sido, já que respeitam a interpretação ou interpretações da norma legal em causa (do artigo 127.º do Código de Processo Penal) que não havia(m) sido expressamente invocada(s) na fundamentação da decisão do Senhor Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal que decretou a prisão preventiva e que o recorrente não entendeu e não podia ter entendido como tendo sido ali acolhida(s).

Por outro lado, trata-se de interpretações normativas daquela disposição legal com as quais o recorrente não podia razoavelmente ter contado, tendo sido com elas absolutamente surpreendido no Acórdão recorrido e no Acórdão que este veio a confirmar.

Na verdade, só com a notificação destas decisões é que foi possível perceber que a decisão recorrida e as decisões por ela confirmadas pressupõem uma interpretação restritiva da presunção de inocência que a limita ao "in dubio pro reo" e que limita este princípio à "dúvida razoável", que, depois, afastam a razoabilidade da dúvida por recurso a aforismos populares: e, finalmente, que recorrem às presunções legais de prova previstas no direito civil, considerando estas como se provas fossem (para efeitos do artigo 125.º) e como se fossem, como tais, admissíveis em processo penal para formar (nos termos do artigo 127.º) a convicção do tribunal quanto à verificação dos factos indiciários que no caso integrariam o crime de corrupção e o crime de tráfico de influência.

Ou seja, que tais decisões começaram assim por afastar a razoabilidade de qualquer dúvida quanto à verificação dos indícios dos factos (de todos os factos) que integram os tipos legais em causa; que o fizeram por recurso a aforismos populares, à sabedoria popular do homem médio: que desse modo afastaram a aplicação ao caso da presunção de inocência; e que, assim, abriram caminho a aplicar as presunções de prova e ilações previstas no Código Civil, como se de provas se tratasse e como se fossem admissíveis em processo penal.

Acresce que não se conhece jurisprudência ou doutrina no sentido aqui criticado, sendo certo que mesmo a citação, feita no Acórdão confirmado pela decisão sob recurso, do primeiro parágrafo da página 53 das Lições de M. Cavaleiro de Ferreira e a invocação do Acórdão da Relação do Porto de 23 de fevereiro de 1983, são absolutamente deslocadas e descontextualizadas, já que se referem, não à prova ou à indiciação de factos objetivos integradores de hipóteses previstas em tipos legais de crime, mas muito diferentemente aos indícios subjetivos, da negligência ou do dolo, no cometimento dos mesmos.

Parece por isso também legítimo ao recorrente invocar o efeito surpresa para suscitar, ainda a este propósito, para os efeitos previstos no artigo 70.º n.º 1 alínea b) da lei do Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade ou inconstitucionalidades apontadas."

O Recorrente apresentou alegações que concluiu nos mesmos termos do requerimento de interposição de recurso.

O Ministério Público contra-alegou, tendo concluído do seguinte modo:

1 - A Relação de Lisboa, nos acórdãos recorridos, não aplicou, como ratio decidendi, as "interpretações" que o recorrente considera inconstitucionais e que identifica nos pontos 1,2, 5, 6 e 7 do requerimento de interposição do recurso.

2 - Assim, nesta parte, não deverá conhecer-se do recurso.

3 - Quanto às questões de inconstitucionalidade identificadas nos pontos 8, 9, 10,11,12 e 13 do requerimento de interposição do recurso, as mesmas não têm natureza normativa - o que é particularmente evidente quanto à do ponto 12 -, antes constituem manifestação de discordância com a valoração da prova efetuada e com a fundamentação.

4 - Acresce que, como, quanto ao essencial, a Relação de Lisboa confirmou a decisão recorrida, não se vislumbra que tivesse sido adotada qualquer interpretação anómala, inesperada ou surpreendente que justificasse o não cumprimento do ónus da suscitação prévia.

5 - Aliás, é o próprio recorrente que, implicitamente, o reconhece quando na enunciação das questões de inconstitucionalidade refere que a Relação adotou interpretações já "pressupostas" nas decisões que manteve.

6 - Ainda quanto a estas questões, as "interpretações" identificadas pelo recorrente não foram aplicadas, como ratio decidendi, nas decisões recorridas, sendo aqui de realçar que a referência a adágios e expressões populares, quando vistos no conjunto da decisão, constituem um obiter dictum, meramente ilustrativo.

7 - Se alguma questão de inconstitucionalidade normativa é possível extrair do afirmado pelo recorrente nos pontos 8 a 13, só pode ser a da norma do artigo 127.º do CPP, enquanto estabelece o regime de livre apreciação da prova.

8 - Ora, como o Tribunal Constitucional tem entendido numa jurisprudência que fixa o alcance e limites daquele princípio, aquela norma, naquela dimensão, não é inconstitucional.

9 - Assim, seja porque não vem enunciada a questão de inconstitucionalidade de natureza normativa, seja porque o recorrente não cumpriu o ónus de suscitação prévia (artigo 72.º, n.os 1, alínea b) e 2 da LTC), seja porque as "interpretações" questionadas não foram aplicadas nas decisões recorridas, como ratio decidendi, não deve conhecer-se do recurso, nesta parte.

10 - A conhecer-se, deverá ser-lhe negado provimento, pois a norma do artigo 127.º do CPP, enquanto estabelece o regime da livre apreciação da prova, não é inconstitucional.

11 - No ponto 3, o recorrente enuncia, como devendo constituir objeto do recurso a norma do artigo 194.º, n.º 4 do CPP, na interpretação segundo a qual é dispensável a audição pessoal do arguido ali prevista, quando ele tenha sido ouvido para o efeito previsto no artigo 141.º, inconstitucionalidade por violação do direito de defesa garantido pelo artigo 32.º n.º 1 e por violação do disposto nos artigos 28.º n.º 1 e 32.º n.º 6, da Constituição.

12 - A Relação de Lisboa, no acórdão recorrido, entende que não ser ouvido pessoalmente o arguido antes de ser aplicada a medida de coação de prisão preventiva poderá ser considerada como preterição de uma formalidade, constituindo, eventualmente, uma irregularidade ou uma nulidade, que não foram arguidas.

13 - Efetivamente, como o mandatário do arguido esteve sempre presente e pronunciou-se sobre o requerimento do Ministério Público que pediu a aplicação daquela medida de coação, foi plenamente exercido o contraditório, mostrando-se respeitadas as garantias de defesa do arguido, sendo ainda certo que o arguido nunca pediu para ser ouvido e que, a existir qualquer vicio, o mesmo era facilmente detetável e também de fácil arguição.

14 - De salientar que a medida de coação foi aplicada na sequência do interrogatório do arguido detido, que obedeceu ao regime previsto no artigo 141.º do CPP, e em relação ao qual não foram levantadas quaisquer dúvidas de natureza constitucional, não sendo, pois, convocável o artigo 28.º, n.º 1, da Constituição.

15 - Assim, nesta parte, deverá negar-se provimento ao recurso, porque não se mostra violados os artigos 32.º, n.º 1, e 32.º, n.º 6, da Constituição.

16 - No ponto 4, vem levantada a questão da constitucionalidade da norma do artigo 97.º n.º 4, do CPP, na interpretação segundo a qual a fundamentação dos atos decisórios do juiz, quando disponham sobre matérias atinentes aos direitos fundamentais, designadamente quanto à indiciação e às medidas de coação privativas da liberdade, pode ser feita por remissão para a promoção do Ministério Público - inconstitucionalidade por violação da reserva de juiz e do dever de fundamentar, garantidos pelos artigos 32.º, n.º 4, e 205.º, n.º 1, da Constituição.

17 - O Tribunal Constitucional, numa jurisprudência uniforme, tem entendido que não viola o dever de fundamentação constitucionalmente consagrada (artigo 205.º, n.º 1 da Constituição), a possibilidade de o despacho que determinou a prisão preventiva ser fundamentado por remissão para a promoção do Ministério Público.

18 - Não inconstitucionalidade que na situação dos autos é ainda mais evidente porque a promoção do Ministério Público mostrava-se pormenorizada e desenvolvida e a remissão - apenas em parte - não foi por mera adesão e acrítica, ficando assim criadas todas as condições para que o recorrente pudesse impugnar amplamente a decisão, como viria a fazer, de forma exaustiva, na motivação do recurso interposto para a Relação.

19 - Assim, nesta parte, deve negar-se provimento ao recurso.

Fundamentação

1 - Da delimitação do objeto do recurso

1.1 - Dos pressupostos do recurso de constitucionalidade

No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo, ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.

Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC - como ocorre no presente processo -, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.

Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, em princípio, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida, abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Daí que só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha suscitado previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional.

Contudo, este requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) considera-se dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excecionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.

Por outro lado, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.

O objeto do recurso constitucional é definido, em primeiro lugar, pelos termos do requerimento de interposição de recurso. Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção de uma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.

Expostos, sumariamente, os pressupostos essenciais ao conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto nos termos do artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, cumpre verificar o seu preenchimento, relativamente às questões colocadas pelo Recorrente neste processo.

1.2 - Das decisões recorridas

O Recorrente, no requerimento de interposição de recurso, suscita a inconstitucionalidade de diversas interpretações, as quais imputa à "decisão recorrida" e às "decisões por ela mantidas". No ponto 7. desse requerimento, quando enumera as várias "decisões por ela mantidas", assim como, no ponto 5, quando se refere "ao Acórdão recorrido e ao Acórdão por ele mantido", constata-se que a "decisão recorrida" nas palavras do Recorrente é o Acórdão proferido em 28 de abril de 2015 pelo Tribunal da Relação de Lisboa que decidiu a reclamação do anterior Acórdão de 17 de março de 2015 do mesmo Tribunal.

Contudo, o Recorrente, ao imputar a autoria das interpretações que considera feridas pelo vício da inconstitucionalidade não só à decisão recorrida, mas também às "decisões por ela mantidas", revela a sua vontade de as impugnar a todas.

Mas, sendo o recurso interposto ao abrigo da competência definida no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, apenas as decisões que não admitam recurso ordinário, podem ser objeto de recurso (artigo 70.º, n.º 2, da LTC), pelo que apenas podem considerar-se objeto do presente recurso os Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa nos presentes autos em 17 de março de 2015 e 28 de abril de 2015.

1.3 - Das questões suscitadas no requerimento de interposição de recurso

O Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional fiscalize a constitucionalidade:

1) do artigo 194.º, n.º 6, alínea a), do Código de Processo Penal, na parte em que impõe a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, na interpretação de que não é necessário descrever o comportamento criminal legalmente tipificado que é, em concreto, imputado ao arguido;

2) do artigo 194.º, n.º 6, alínea c), do Código de Processo Penal, na interpretação de que a referência à qualificação jurídica dos factos imputados não implica a referência às normas incriminadoras que sejam concretamente aplicáveis;

3) do artigo 194.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é dispensável a audição pessoal do arguido ali prevista, quando ele tenha sido ouvido para o efeito previsto no artigo 141.º do mesmo diploma;

4) do artigo 97.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a fundamentação dos atos decisórios do juiz, quando disponham sobre matérias atinentes aos direitos fundamentais, designadamente quanto à indiciação e às medidas de coação privativas da liberdade, pode ser feita por remissão para a promoção do Ministério Público;

5) dos artigos 32.º, n.º 1, 33.º, n.º 1, 119.º, alínea e), e 410.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a questão da competência ou incompetência material do Tribunal não pode ser reconhecida pelo tribunal de recurso por não ter sido expressamente tratada na decisão recorrida e não ter sido invocada na motivação do recurso, não obstante tal questão ter sido invocada pelo recorrente na resposta (prevista no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) ao parecer do Ministério Público (previsto no n.º 1 da mesma norma), com a justificação de que só havia conhecido os factos e circunstâncias dela determinantes após a apresentação do recurso, com a notificação da resposta do Ministério Público à sua motivação, e de o recorrente só nesse momento ter tido oportunidade processual de sobre ela se pronunciar e de a invocar;

6) do artigo 11.º, n.º 3, alínea a), e n.º 7, do Código de Processo Penal, na interpretação de que a competência material nelas prevista não é determinada pelo momento da prática dos atos (objeto de julgamento e de inquérito) e se limita aos casos e períodos temporais em que as entidades ali referidas estejam ou se mantenham em funções aquando do início do inquérito ou da prolação da acusação ou do despacho de pronúncia;

7) dos artigos 219.º, n.º 1, e 413.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação que concede ao Ministério Público, na resposta ao recurso, ou a Juiz de Instrução, no despacho de sustentação e no despacho para instrução do recurso, a faculdade de contrariar o recurso de impugnação de prisão preventiva invocando uma nova e, eventualmente, mais profunda e fundamentada argumentação factual contra o arguido;

8) do artigo 125.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que as presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil são provas e são provas admissíveis em processo penal;

9) do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a adágios populares, à sabedoria popular do homem médio, e às presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil;

10) do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a adágios populares, à sabedoria popular do homem médio;

11) do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso às presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil;

12) do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a fundamentação da livre convicção do Tribunal e a invocação das regras de experiencia se podem reconduzir em processo penal, para efeito de julgar verificados os fortes indícios a que se refere o artigo 202.º, n.º 1, à invocação de aforismos e expressões como "amizade sem limites", "estilo de vida luxuoso", "sólidas fontes de rendimento", "quem cabritos vende cabras não tem, de algum lado lhe vêm", "milagre de altruísmo", "gato escondido com rabo de fora" e a argumentos como "a franja de prova", "regras de presunção lícitas aceitáveis", "ser altamente provável" a existência de indícios, "a prova de factos [...] resultar de outros factos que não se comprovam em si próprios, mas de ilações, retiradas face ao facto e às circunstâncias concretas do seu cometimento", "presunções ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência", "ilações", "presunções [...] (judiciais) que atuam como meios de prova", "adequação presuntiva" ou indícios "com elevado grau de probabilidade";

13) do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que tal disposição legal permite ao juiz, para além da apreciação dos diferentes meios de prova e para efeito de julgar verificados os fortes indícios a que se refere o artigo 202.º, n.º 1, a própria criação, suposição ou invenção de factos, ou de indícios deles, baseando a livre convicção em regras da experiência que se reconduzem a adágios populares e à sabedoria popular do homem médio, e por recurso às presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil.

1.4 - Do não conhecimento parcial do recurso

1.4.1 - Da Questão 1)

O Recorrente invoca a inconstitucionalidade do artigo 194.º, n.º 6, alínea a), do Código de Processo Penal, na parte em que impõe a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, na interpretação de que não é necessário descrever o comportamento criminal legalmente tipificado que é, em concreto, imputado ao arguido.

No recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal que determinou a sua prisão preventiva, o Recorrente alegou que o mesmo não continha a descrição de factos constitutivos dos crimes que lhe eram imputados.

A este respeito pode colher-se, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 17 de março de 2015, o seguinte:

"Uma coisa é haver despacho sem fundamentos, outra, bem diferente, é haver despacho com fundamentos dos quais se discorda. A defesa percebeu perfeitamente o âmbito e razões do despacho recorrido.

Não há nele omissão alguma de fundamentos gerador de nulidade.

Quando muito, poderia em tese entender-se, no plano do confronto de perspetivas, que esses fundamentos seriam insuficientes, inadequados ou insuscetíveis de conduzir à indiciação e qualificação operada pelo tribunal.

Mas, perante este quadro compreensivo, sobre esta questão mais adiante desenvolveremos a nossa posição, pois toca diretamente no problema da correta avaliação dos indícios e das razões cautelares que levaram à aplicação da medida de coação.

Não é pois uma questão... de ausência de fundamentação."

Esta decisão não reconheceu, pois, existirem insuficiências na descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, não tendo, por isso, sustentado a interpretação de que o despacho que determina a aplicação de uma medida de coação possa omitir o comportamento criminal legalmente tipificado que, em concreto, é imputado ao arguido.

E o Acórdão proferido em 28 de abril de 2015 não abordou esta temática, tendo apenas negado que no anterior acórdão tivesse ocorrido uma omissão de pronúncia sobre esta questão de constitucionalidade.

O Tribunal Constitucional não tem competência para verificar se a decisão que decretou a prisão preventiva se encontra suficientemente fundamentada quanto à descrição dos factos que considerou indiciados, nem para controlar a correção das decisões recorridas quanto à apreciação da existência desse vício, como pretende o Recorrente nas suas alegações. No domínio da fiscalização concreta, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional pela Constituição cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas aplicadas pelas decisões das quais seja interposto recurso para este Tribunal.

Assim, não tendo nenhum dos acórdãos recorridos integrado na sua ratio decidendi a interpretação normativa arguida de inconstitucional, não é possível conhecer desta questão de constitucionalidade, atenta a natureza instrumental do recurso para o Tribunal Constitucional.

1.4.2 - Da questão 2)

O Recorrente invoca a inconstitucionalidade do artigo 194.º, n.º 6, alínea c), do Código de Processo Penal, na interpretação de que a referência à qualificação jurídica dos factos imputados não implica a referência às normas incriminadoras que sejam concretamente aplicáveis.

O Recorrente, no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação do Lisboa do despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal que determinou a sua prisão preventiva, alegou que o mesmo não continha uma qualificação jurídica certa dos factos que lhe eram imputados.

O Acórdão proferido em 17 de março de 2015 não tratou especificamente esta questão, tendo-se cingido a afirmar genericamente que não havia no despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal "omissão alguma de fundamentos geradora de nulidade" e o mesmo aconteceu com o Acórdão proferido em 28 de abril de 2015.

A não abordagem específica da existência do vício invocado não significa uma adesão implícita a uma leitura segundo a qual a situação integradora desse vício é admissível.

Por outro lado, por razões já acima explicadas, o Tribunal Constitucional não tem competência para verificar se a decisão que decretou a prisão preventiva efetuou uma qualificação jurídica dos factos com uma certeza que permita aferir a gravidade e a natureza do crime imputado, nem para controlar a correção das decisões recorridas quanto à apreciação da existência desse vício, como pretende o Recorrente nas suas alegações.

Assim, não tendo nenhum dos acórdãos recorridos integrado na sua ratio decidendi a interpretação normativa arguida de inconstitucional, não é possível conhecer desta questão de constitucionalidade, atenta a natureza instrumental do recurso para o Tribunal Constitucional.

1.4.3 - Da questão 5)

O Recorrente invoca a inconstitucionalidade dos artigos 32.º, n.º 1, 33.º, n.º 1, 119.º, alínea e), e 410.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a questão da competência ou incompetência material do Tribunal não pode ser reconhecida pelo tribunal de recurso por não ter sido expressamente tratada na decisão recorrida e não ter sido invocada na motivação do recurso, não obstante tal questão ter sido invocada pelo recorrente na resposta (prevista no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) ao parecer do Ministério Público (previsto no n.º 1 da mesma norma), com a justificação de que só havia conhecido os factos e circunstâncias dela determinantes após a apresentação do recurso, com a notificação da resposta do Ministério Público à sua motivação, e de o recorrente só nesse momento ter tido oportunidade processual de sobre ela se pronunciar e de a invocar.

Efetivamente, na resposta ao Parecer do Ministério Público apresentado no Tribunal da Relação de Lisboa, o Recorrente veio suscitar a questão da violação das regras da competência do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria de foro especial do Recorrente, por parte do Tribunal Central de Instrução Criminal.

O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 17 de março de 2015 não abordou expressamente esta questão.

O Recorrente na reclamação deste aresto, alegou, então, a existência de uma omissão de pronúncia sobre a incompetência material do Tribunal Central de Instrução Criminal e do Tribunal da Relação de Lisboa para conhecer e decidir o recurso que era geradora de nulidade do acórdão proferido.

O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de abril de 2015 que conheceu desta reclamação não sustentou que não era possível conhecer da questão de competência por esta não ter sido expressamente tratada na decisão recorrida e não ter sido invocada na motivação do recurso. Embora refira que estas circunstâncias processuais retiram tal questão do objeto do recurso e que, por essa razão, o Tribunal da Relação não estava vinculado a expressamente abordar essa problemática, admite que, oficiosamente, lhe era imposto esse conhecimento, o que, nas suas palavras, fez tacitamente.

Lê-se neste aresto:

"Esta Relação cingiu-se ao âmbito das conclusões objeto do recurso e nelas, como reconhece a defesa, não foi alegada a exceção de incompetência.

Foi-o em relação à matéria de resposta do MºPº na 1.ª instância, resposta essa que não era o objeto do recurso.

E ao entender que havia por aí um problema de competência, a defesa veio então, "per saltum", levantar no tribunal superior o problema, criando aqui uma perspicaz oportunidade de recurso ordinário para o STJ, se houvesse na Relação uma decisão (e aqui sê-lo-ia em 1.ª instância) desfavorável à sua pretensão, em vez de o fazer, como lhe competia, a partir do tribunal a quo (TCIC), negando-se-lhe oportunidade também a este último para se pronunciar sobre a questão e, a fazê-lo positivamente, então recorrer derradeiramente para o Tribunal superior.

Nada disso aconteceu, vindo agora revelar uma "surpresa" de confronto com novos factos, mas que não convence originariamente e que nem sequer mereceria maior atenção do Tribunal ad quem.

Contudo, dir-se-ia que haveria de conhecer aqui da questão oficiosamente.

Desde logo, o tribunal da Relação, face àquelas circunstâncias e, ainda para mais estando pendente no STJ um pedido de habeas corpus incidente sobre alegação de prisão ilegal por incompetência do tribunal, entendeu como ser pressuposto dever poder colocar-se tacitamente numa posição de assumpção positiva de competência para decidir sobre o único problema colocado nas conclusões: análise dos indícios dos crimes imputados com vista à manutenção ou não da medida de coação e tendo em conta os factos conhecidos e as provas produzidas até dia 24 de novembro.

Tendo assumido tacitamente essa competência sobretudo dada a natureza e autonomia dos crimes de fraude fiscal e de branqueamento (mesmo sem acusação por corrupção a fraude fiscal e branqueamento mantêm autonomia, já que a sua formação originária poderá sempre assentar em factos que até acabem por nem se conexionar com crimes de corrupção) mas sobretudo tendo em conta o estado inicial da investigação e a polémica que a discussão sobre o alcance do artº 110 n.º 7 do CPP estava a gerar noutra instância superior.

Ainda assim, essa aceitação tácita de competência era revelativa de que este Tribunal iria então decidir como decidiu sobre a matéria das questões trazidas no recurso à sua apreciação e, portanto, não pode agora vir dizer o reclamante que não se tomou posição, pois se não se tivesse tomado, este Tribunal ad quem não se teria pronunciado sobre tais problemas levantados no recurso e, consequentemente, ter-se-ia declarado incompetente para delas conhecer.

Alegar a partir daqui sinal de uma omissão de pronúncia é dar um salto jurídico de gigante.

De todo o modo, poderá dizer-se então que se considerou competente mas deveria ter sido mais explícito nas razões."

E, seguidamente, o mesmo Acórdão explica as razões pelas quais não se decidiu pela declaração de incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal para decretar a prisão preventiva do Recorrente e do Tribunal da Relação para conhecer do respetivo recurso.

Da leitura do Acórdão de 28 de abril de 2015 resulta que o Tribunal recorrido, apesar de entender que a questão da competência do Tribunal Central de Instrução Criminal para decretar a prisão preventiva e dele próprio para conhecer do recurso desta decisão não integrava o objeto do recurso, dado só ter sido suscitada na resposta ao Parecer do Ministério Público apresentado no Tribunal da Relação, não deixava de ser uma questão do conhecimento oficioso que teve uma decisão tácita com o próprio conhecimento do recurso, em que se assumiu essa competência, admitindo-se que, se fosse outro o entendimento não se deixaria de reconhecer a incompetência do Tribunal Central de Instrução Criminal para decretar a prisão preventiva do Recorrente e do Tribunal da Relação para conhecer do respetivo recurso.

A posição do Tribunal recorrido não é, pois, a de que a falta de tratamento da questão da competência pela decisão da qual foi interposto recurso e a falta de invocação na motivação desse recurso dessa mesma questão impede o seu conhecimento pelo tribunal de recurso, mas sim a de que essas razões justificam que a apreciação dessa questão não tenha uma solução expressa, não deixando de ter uma decisão tácita.

Esta posição não corresponde assim à interpretação enunciada pelo Recorrente, segundo a qual a questão da competência ou incompetência material do Tribunal não pode ser reconhecida pelo tribunal de recurso por não ter sido expressamente tratada na decisão recorrida e não ter sido invocada na motivação do recurso, pelo que tal interpretação não integrou a ratio decidendi dos acórdãos recorridos, não sendo por isso possível conhecer desta questão de constitucionalidade, atenta a natureza instrumental do recurso para o Tribunal Constitucional.

1.4.4 - Da questão 6)

O Recorrente invoca a inconstitucionalidade do artigo 11.º, n.º 3, alínea a), e n.º 7, do Código de Processo Penal, na interpretação de que a competência material nelas prevista não é determinada pelo momento da prática dos atos (objeto de julgamento e de inquérito) e se limita aos casos e períodos temporais em que as entidades ali referidas estejam ou se mantenham em funções aquando do início do inquérito ou da prolação da acusação ou do despacho de pronúncia.

Como já se referiu no ponto anterior, no Acórdão proferido em 17 de março de 2015 a questão da violação das regras da competência do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria de foro especial do Recorrente, por parte do Tribunal Central de Instrução Criminal, não foi expressamente tratada, apesar da sua invocação pelo Recorrente na resposta ao Parecer do Ministério Público. A abordagem desta questão só veio a ser feita no Acórdão proferido em 28 de abril de 2015 quando se decidiu a existência de uma alegada omissão de pronúncia sobre o tema. E aí o tribunal não tomou posição na querela onde se insere a interpretação indicada pelo Recorrente.

Na verdade, nesse Acórdão, o tribunal recorrido explica as razões pelas quais não se declarou incompetente e nenhuma delas coincide com a interpretação enunciada pelo Recorrente.

Lê-se no acórdão proferido em 28 de abril de 2015:

"Numa visão prudencial do problema da competência para análise dos indícios, face ao estado inicial em que se encontrava a investigação, tendo em conta a ausência de conhecimento de provas obtidas ainda durante o exercício do cargo, a polémica dogmática do assunto e que a densificação material e temporal da ocorrência dos factos atinentes à corrupção imputada careceria de complementar apuramento (daí a relevância da espera para obtenção dos dados solicitados às autoridades helvéticas), aquela referência de indiciação atinente à comissão de crimes de corrupção ou mesmo de tráfico de influência durante o exercício do mandato foi a mera consequência lógica possível mas não exclusivante, dos sinais de ausência de manifestação de património relevante conhecido ao arguido mesmo durante o exercício do respetivo mandato.

Serve isto para dizer que, na fase e altura em que decidiu sobre o recurso do reclamante, no âmbito da polémica sobre a interpretação da extensão ou não da previsão de foro especial prevista no artº 110 n.º 3 e 7 do CPP ao ex primeiro-ministro, ainda que este Tribunal pudesse ter (e tendencialmente não a tinha, dizemo-lo aqui sem tibiezas) a convicção que seria em abstrato, incompetente (sendo-o o STJ nos termos do artigo 11.º n.º 7 do CPP) para analisar indícios de crime exercidos durante o exercício do cargo de primeiro-ministro, mesmo ocorrendo tal análise num momento processual em que o arguido já não seria primeiro-ministro manteria a sua competência para decidir como decidiu.

A análise urgente do recurso sobre medidas de coação seria sempre possível nos termos do artº 33º n.º 3 do CPP e elas conservariam a sua eficácia até serem convalidadas ou infirmadas pelo tribunal competente. Portanto, nunca lhe estaria vedado fazê-lo nesses termos e estender ao crime de corrupção a análise indiciária que fez pelas inferências retiradas da prática indiciada dos crimes de fraude fiscal e de branqueamento. Mas, principalmente, a partir do momento em que a defesa se apercebeu ou diz ter apercebido de uma alteração de factos, ainda que só alegadamente através da resposta do MºPº ao recurso que interpôs, nessa altura deveria ter colocado o problema da exceção de incompetência na primeira instância, onde os alegados factos novos teriam sido invocados, e não diretamente per saltum, nesta Relação.

Ademais, face à excecionalidade da norma do artº 110 n.º 3 e 7 do CPP, o evidente impacto processual que essa questão poderia ter na validade das posteriores diligências efectuandas e até mesmo nas anteriores, eventual recurso de despacho, fosse ele num ou noutro sentido, poderia implicar até muito provavelmente uma subida imediata nos termos do artº 407º n.º 1 com efeito suspensivo do processo e senão mesmo da decisão. Mesmo que tal regime assim não fosse tido como o melhor, teria a decisão o efeito operativo imediato, não parecendo curial que, em paralelo, num recurso apenas versando medidas de coação, viesse a defesa querer que se apreciasse novamente matéria em discussão no recurso pendente sobre a decisão da 1.ª instância quanto à exceção de incompetência.

Várias foram pois as razões implícitas, mas ponderadas, subjacentes à cautela tida na assumpção tácita de competência por parte deste Tribunal da Relação, o qual não tinha razões seguras, de direito, evidentes para se pronunciar desde logo oficiosamente como incompetente e, dado o estado dos autos, face à necessidade de melhor densificação investiganda dos atos de corrupção e das razões peticionadas no processo de Habeas Corpus perante o STJ, pressupôs tacitamente e por prudência que o momento processual não era o certo nem o adequado para se posicionar mais ativamente na polémica e tanto mais que ela nem fazia parte do núcleo de questões delimitadas pelo recurso do reclamante."

O Tribunal da Relação de Lisboa, segundo a sua explicação, não se declarou incompetente por não ter dados seguros e evidentes da sua incompetência e, por entender prudente, dado o estado dos autos, que o momento processual não era o certo nem o adequado para se posicionar na polémica sobre o âmbito da competência do Supremo Tribunal de Justiça prevista no artigo 11.º, n.º 3, a), e n.º 7, do Código de Processo Penal, e não por perfilhar o entendimento que essa competência se limita aos casos e períodos temporais em que as entidades referidas naqueles preceitos estejam ou se mantenham em funções aquando do início do inquérito ou da prolação da acusação ou do despacho de pronúncia.

Assim, nenhum dos acórdãos recorridos integrou na sua ratio decidendi a interpretação normativa arguida de inconstitucional, pelo que não é possível conhecer desta questão de constitucionalidade, atenta a natureza instrumental do recurso para o Tribunal Constitucional.

1.4.5 - Da questão 7)

O Recorrente invoca a inconstitucionalidade dos artigos 219.º, n.º 1, e 413.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação que concede ao Ministério Público, na resposta ao recurso, ou a Juiz de Instrução, no despacho de sustentação e no despacho para instrução do recurso, a faculdade de contrariar o recurso de impugnação de prisão preventiva, invocando uma nova e, eventualmente, mais profunda e fundamentada argumentação factual contra o arguido.

O Recorrente na Resposta ao Parecer do Ministério Público apresentado no Tribunal da Relação de Lisboa suscitou a questão de na resposta ao recurso, sustentando a medida de prisão preventiva que havia sido decretada, terem sido invocados novos factos que não haviam sido comunicados ao arguido pelo que a sua utilização não era admissível.

No Acórdão proferido em 17 de março de 2015, o Tribunal da Relação de Lisboa limitou-se a expressar o reconhecimento que o Ministério Público, na resposta ao recurso, tinha referenciado "elementos posteriores", "com algum excesso de oportunidade contestante", mas sem formular qualquer juízo de validação desse comportamento processual, revelando antes que esses elementos não seriam considerados na decisão do recurso.

Lê-se na fundamentação deste aresto:

"No referido despacho faz-se essencialmente remissão para os fundamentos e factos imputados pelo MºPº, terminando ele com uma breve indicação da convicção formada em face dos indícios recolhidos.

No tocante à fundamentação do despacho e à sua compreensibilidade, não temos dúvidas, já o dissemos, em como os argumentos essenciais foram comunicados adequadamente à defesa por forma a saber o que lhe era imputado e poder exercer adequadamente o contraditório.

Mas sem dúvida, outrossim, isso não significa que a defesa tivesse que estar de acordo com a avaliação jurisdicional efetuada.

Da nossa parte, reapreciada a prova apenas disponível até à data (oral, gravada e documental) e em que poderia assentar o juízo jurisdicional contido no despacho recorrido, acompanhamos em sintonia, também, no essencial, a avaliação global efetuada na 1.ª instância, em face da leitura dos autos e dos dados recolhidos até ao interrogatório, inclusive...

...A dita avaliação dos indícios e provas confrontadas ou com elas conexas no e até ao interrogatório, ainda que se possa reconhecer que o MºPº, efetivamente, na sua resposta ao recurso, acabou por desenvolver algumas ideias e referenciar elementos posteriores, com algum excesso de oportunidade contestante, mas atinentes aos itens conexos com o núcleo original dos factos imputados dados a conhecer, não se opõe ainda assim, minimamente ao âmbito em que a livre convicção fundamentada do juiz inscrita no artº 127º do CPP se deve pautar e desenvolver nem às regras da experiência, perante as características e circunstâncias particulares do caso concreto."

Já no Acórdão proferido em 28 de abril de 2015, em resposta à arguição de omissão de pronúncia sobre esta questão, o Tribunal recorrido foi mais explícito sobre a sua posição, negando que se tenha admitido a ponderação de factos novos relevantes que pudessem considerar-se uma "surpresa" para a defesa.

Na verdade, lê-se neste acórdão:

"O tribunal ad quem não tem poderes de inspeção ou controle sobre a iniciativa e teor das promoções do MºPº, a não ser quanto à sua legitimidade e tempestividade processuais, já que aquelas não são nem despachos vinculativos nem produzem em si quaisquer efeitos decisórios, configurando-se apenas como meros instrumentos escritos de auxilio ao raciocínio judiciário, tal como o são as posições da defesa.

O âmbito do conteúdo e extensão das razões da promoção é incontrolável em si, e o MºPº tem o direito de dizer o que entender, com acerto ou mesmo sem ele, tal como a defesa o tem, com ou sem razão de forma ou de fundo, nas afirmações que produzam.

Outrossim, bem diferente seria, se essas razões fossem depois acolhidas em despachos judiciais e, aí sim, a serem acolhidos argumentos e interpretações inconstitucionais, estas teriam o controlo próprio por via de recurso, visando a constitucionalidade do sentido dessas decisões judiciais e não a da promoção ou parecer que as inspirasse previamente.

Por outro lado ainda, não se encontram no despacho recorrido nem na decisão reclamada "factos novos" relevantes que tenham sido tidos e considerados como uma surpresa" para a defesa, sendo certo que a referência dos indícios do crime de corrupção eventualmente atinentes ao tempo em que o arguido foi primeiro-ministro surgiu como sequência lógica do raciocínio analítico fonte da indiciária convicção acerca do alcance da ação do arguido, permitido extrair do contexto em que os outros crimes (fraude fiscal e branqueamento) foram considerados e tendo em atenção o desconhecimento, ao arguido, de património substancial anterior a essas funções, matéria essa que ainda estava numa fase inicial de investigação e que, já por altura do primeiro interrogatório judicial, a defesa do arguido foi disso esclarecida até pelo MºPº, com indicação do ponto em que se encontrava com o pedido de informações bancárias, nomeadamente à Suíça, acerca da origem e titularidade dos fundos transferidos para Portugal pelo coarguido Carlos."

O Tribunal recorrido verificou que o Ministério Público se excedeu ao alegar factos novos na resposta ao recurso, reconheceu a sua incapacidade para controlar o conteúdo dessas alegações, mas negou que esses factos alegados em excesso tenham sido utilizados na fundamentação da decisão do recurso.

Quanto à possibilidade dessa alegação ser efetuada nos despachos de sustentação do despacho que decretou a prisão preventiva e de instrução do recurso desse despacho nada foi referido pelas decisões recorridas.

Assim sendo, mais uma vez se verifica que a interpretação normativa cuja constitucionalidade o Recorrente pretende ver fiscalizada não integrou a ratio decidendi dos Acórdãos recorridos pelo que não é possível conhecer desta questão de constitucionalidade, atenta a natureza instrumental do recurso para o Tribunal Constitucional.

1.4.6 - Da questão 9)

O Recorrente pretende que o Tribunal fiscalize a constitucionalidade do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a adágios populares, à sabedoria popular do homem médio, e às presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil.

O Recorrente após colocar esta questão, por precaução de patrocínio, autonomizou as duas dimensões normativas que estavam incluídas nesta fórmula, enunciando-as separadamente nas duas questões seguidamente enunciadas nos pontos 10) e 11).

Efetivamente a questão de constitucionalidade colocada no ponto 9) continha duas dimensões normativas distintas: uma relativa à admissibilidade da utilização de adágios populares e à sabedoria popular do homem médio na formação da livre convicção do julgador em processo penal, e outra relativa à admissibilidade da utilização de presunções na formação dessa mesma convicção.

Uma vez que o Recorrente, por sua iniciativa, pediu, em alternativa, a apreciação separada destas duas dimensões, o que se entende preferível, atenta a sua autonomia, fica prejudicado o conhecimento, em globo, desta questão, sendo aquelas duas dimensões apreciadas na análise das questões colocadas nos pontos 10) e 11).

1.4.7 - Da questão 10)

O Recorrente pretende que o tribunal fiscalize a constitucionalidade do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a adágios populares e à sabedoria popular do homem médio.

O Recorrente alega que a sustentação desta interpretação se encontra subentendida na decisão recorrida, uma vez que esta, no seu entender, recorre a aforismos populares para daí considerar suficientemente indiciada a prática de determinados crimes.

Se é verdade que a fundamentação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 17 de março de 2015 faz referência a adágios e expressões populares, tais como "quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vêm", ou "gato escondido com rabo de fora", não resulta do discurso argumentativo que esses aforismos tenham funcionado como fator de convicção no apuramento da existência de indícios fortes da prática de crimes, sendo apenas utilizados pelos subscritores da decisão como figuras de estilo ilustrativas dos raciocínios desenvolvidos na demonstração da existência daqueles indícios.

Aliás, no Acórdão de 28 de abril de 2015 do Tribunal da Relação de Lisboa nega-se expressamente um papel fundamentador a tais expressões, referindo-se que "é por demais evidente que não foram tais aforismos o centro e o núcleo da fundamentação, mas elementos concludentes da plasticidade e transparência do discurso judiciário utilizado".

Por esta razão não é possível concluir que o tribunal recorrido, quando verificou nas provas que lhe foram apresentadas a existência de indícios fortes da prática pelo arguido de ilícitos criminais tenha implicitamente adotado o critério segundo o qual a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a adágios populares e à sabedoria popular do homem médio.

Não tendo a interpretação normativa cuja constitucionalidade o Recorrente pretende ver fiscalizada integrado a ratio decidendi dos Acórdãos recorridos e não tendo o Tribunal Constitucional competência para efetuar uma censura à utilização de tal tipo de expressões no discurso judiciário, não é possível conhecer desta questão de constitucionalidade, atenta a natureza instrumental do recurso para o Tribunal Constitucional.

1.4.8 - Da questão 12)

O Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional fiscalize a constitucionalidade do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a fundamentação da livre convicção do Tribunal e a invocação das regras de experiencia se podem reconduzir em processo penal, para efeito de julgar verificados os fortes indícios a que se refere o artigo 202.º, n.º 1, à invocação de aforismos e expressões como "amizade sem limites", "estilo de vida luxuoso", "sólidas fontes de rendimento", "quem cabritos vende cabras não tem, de algum lado lhe vêm", "milagre de altruísmo", "gato escondido com rabo de fora" e a argumentos como "a franja de prova", "regras de presunção lícitas aceitáveis", "ser altamente provável" a existência de indícios, "a prova de factos [...] resultar de outros factos que não se comprovam em si próprios, mas de ilações, retiradas face ao facto e às circunstâncias concretas do seu cometimento", "presunções ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência", "ilações", "presunções [...] (judiciais) que atuam como meios de prova", "adequação presuntiva" ou indícios "com elevado grau de probabilidade".

Este enunciado não tem conteúdo normativo, uma vez que se reporta à utilização de determinadas e concretas expressões na fundamentação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 17 de março de 2015, não sendo posto em causa um qualquer critério adotado por esta decisão, dotado de generalidade e abstração, mas sim a própria utilização de determinados termos na fundamentação daquela decisão.

Não sendo impugnada a constitucionalidade de uma qualquer interpretação normativa, mas sim os termos como se mostra redigida a fundamentação de uma das decisões recorridas, não tem o objeto do recurso, nesta parte, conteúdo normativo, pelo que não pode o Tribunal Constitucional apreciar esta questão de constitucionalidade.

1.4.9 - Da questão 13)

O Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional fiscalize a constitucionalidade do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que tal disposição legal permite ao juiz, para além da apreciação dos diferentes meios de prova e para efeito de julgar verificados os fortes indícios a que se refere o artigo 202.º, n.º 1, a própria criação, suposição ou invenção de factos, ou de indícios deles, baseando a livre convicção em regras da experiência que se reconduzem a adágios populares e à sabedoria popular do homem médio, e por recurso às presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil.

Da leitura dos acórdãos recorridos verifica-se que em parte alguma se sustentou que para efeitos de julgar verificados os fortes indícios a que se refere o artigo 202.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, é possível ao juiz criar, supor ou inventar factos, ou indícios deles.

Também já se verificou no ponto 1.4.7. que o tribunal recorrido, quando verificou nas provas que lhe foram apresentadas a existência de indícios fortes da prática pelo arguido de ilícitos criminais tenha implicitamente adotado o critério segundo o qual a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a adágios populares e à sabedoria popular do homem médio.

Na verdade, no Acórdão proferido em 17 de março de 2015 apenas se lê o seguinte:

"Como diz o adágio popular, "gato escondido, com rabo de fora".

Se a franja de prova (o rabo do gato) está já muito visível, por força também (mas não só) de regras de presunção lícitas aceitáveis como cimento importante da convicção sobre a prova indiciária, podemos também concluir, em face das circunstâncias e contornos do caso, ser altamente provável que os fundos financeiros em causa, no todo ou pelo menos em parte, pudessem ser originados nas ou pelas suas ligações políticas e do seu amigo como gestor, ao grupo Lena, a negócios de favor, (o corpo do gato escondido) e à atividade do arguido mesmo, quiçá, durante o exercício das suas funções políticas em que aqueles negócios se firmaram ou desenvolveram.

É por isso que os tribunais, quantas vezes sem prova direta, tenham de se socorrer de presunções.

Na verdade, sabemos já que, em muitas situações, a prova dos factos, tem de resultar de outros factos que não se comprovam em si próprios, mas de ilações, retiradas face ao facto e às circunstâncias concretas do seu cometimento - cf., a este respeito, M. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Vol. 1, Lisboa/S. Paulo, Ed. Verbo, 1992, págs. 297 e 298.

É o que acontece, com frequência, a título de exemplo, com o elemento intencional, dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, insuscetível de direta apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, podendo de facto comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência" - Ac. RP de 23/02/1983, BMJ 324, 620 - ou também com aquele conjunto de factos dos quais só num processo lógico e concatenado, como se de um "puzzle" se tratasse, se pode retirar ilações, desde que coerentes, que os demonstrem ou tornem fortemente admissíveis, mesmo sem prova direta, de acordo com as habituais regras da experiência, presunções essas (judiciais) que atuam como meios de prova que assentam no raciocínio do julgador, inspirando-se nas máximas daquela experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana, inscrevendo-se na regra da livre convicção tal como é proposta pelo art.º 127.º, do Código Penal.

Por força desta adequação presuntiva, quer o crime de tráfico de influência quer, principalmente, o de corrupção passiva imputado (parte do verdadeiro corpo do gato escondido) se podem intuir como já indiciados com um elevado grau de probabilidade, a determinar, claro, com maior segurança e certeza nas circunstâncias, temporalidade e contextualização, nas investigações posteriores, acentuando-se assim a força da razão subjacente ao despacho."

Deste excerto apenas resulta que a decisão recorrida admite que em processo penal a convicção do julgador sobre a prova de determinados factos pode resultar do recurso a presunções judiciais, constando esta interpretação normativa já das questões 8) e 11) enunciadas no ponto 1.3. deste Acórdão.

Não coincidindo a interpretação normativa em análise com a ratio decidendi dos acórdãos recorridos, com exceção da dimensão cuja constitucionalidade já se encontra impugnada noutras questões colocadas neste recurso, não é possível conhecer desta questão, atenta a natureza instrumental do recurso para o Tribunal Constitucional.

1.5 - Questões a conhecer

Restam as seguintes questões:

- do artigo 194.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é dispensável a audição pessoal do arguido ali prevista, quando ele tenha sido ouvido para o efeito previsto no artigo 141.º do mesmo diploma (Questão 3);

- do artigo 97.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a fundamentação dos atos decisórios do juiz, quando disponham sobre matérias atinentes aos direitos fundamentais, designadamente quanto à indiciação e às medidas de coação privativas da liberdade, pode ser feita por remissão para a promoção do Ministério Público (Questão 4);

- do artigo 125.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que as presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil são provas e são provas admissíveis em processo penal (Questão 8);

- do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso às presunções de prova previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil (Questão 11).

A referência ao n.º 4, do artigo 97.º, do Código de Processo Penal, na questão 3, resulta de um lapso do Recorrente, que já advém do requerimento de arguição de nulidades do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de março de 2015 e que o Acórdão de 28 de abril de 2015 já havia corrigido, uma vez que o disposto nesse número transitou para o n.º 5 do mesmo artigo com as alterações introduzidas pela Lei 48/2007 de 29 de agosto. Deve, assim proceder-se à devida correção, considerando-se a referência feita para o n.º 5, do artigo 97.º, do Código de Processo Penal.

Relativamente à redação do enunciado das interpretações dos artigos 194.º, n.º 4, e 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal (questões 3 e 4), importa restringir o âmbito das questões à decisão que determina a aplicação da medida de prisão preventiva, uma vez que é apenas uma decisão desta natureza que está em causa na presente situação.

Quanto às questões 8) e 11), o Ministério Público nas suas contra-alegações pronunciou-se pelo não conhecimento do recurso, alegando, por um lado, que o Recorrente não havia cumprido o ónus da suscitação prévia perante o tribunal recorrido destas questões de constitucionalidade, e por outro lado, que as interpretações normativas impugnadas não integravam a ratio decidendi dos Acórdãos recorridos.

Se é verdade que o Recorrente não invocou perante o tribunal recorrido a inconstitucionalidade destas interpretações, também é verdade que não lhe era exigível que o fizesse. Com efeito, apesar de ser detetável que a decisão do Juiz de Instrução Criminal que decretou a prisão preventiva fazia uso de juízos presuntivos na determinação dos factos considerados suficientemente indiciados, em nenhum trecho dessa decisão se assumia expressamente o uso de tal meio probatório e se sustentava a sua admissibilidade em processo penal. Tal só ocorreu com o Acórdão da Relação de Lisboa de 17 de março de 2015, como acima se transcreve no ponto 1.4.9., pelo que não era exigível que o Recorrente tivesse antecipadamente questionado a constitucionalidade do critério normativo aí sustentado.

Quanto à alegação de que tal critério não integra a ratio decidendi daquele aresto, o Ministério Público apenas refere, no que respeita às questões 8) e 11), que o mesmo nunca aludiu às presunções previstas nos artigos 349.º e 350.º do Código Civil. O Acórdão da Relação de Lisboa de 17 de março de 2015, conforme resulta da transcrição do excerto constante do ponto 1.4.9. deste Acórdão, apenas se reporta às "presunções judiciais", isto é às ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, e às quais se refere, a par das presunções legais, o artigo 349.º do Código Civil, sendo certo que o artigo 350.º do mesmo diploma dispõe sobre o regime civilístico destas últimas.

Uma vez que a referência constante do enunciado normativo alegado pelo Recorrente às presunções mencionadas no artigo 349.º do Código Civil não deixa de abranger as presunções judiciais, as quais são objeto da interpretação normativa sustentada pela decisão recorrida, não deve o recurso deixar de ser conhecido nesta parte, restringindo-se o seu objeto à utilização das presunções judiciais em processo penal.

As questões 8) e 11) têm o mesmo conteúdo, apesar da interpretação questionada se encontrar reportada a diferentes preceitos legais. Dado que o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental e a decisão recorrida sustentou a possibilidade de utilização de presunções judiciais no âmbito do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, e não no disposto no artigo 125.º do mesmo diploma, deve adotar-se a referência àquele dispositivo.

Assim, as interpretações normativas cuja constitucionalidade deve ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional neste processo são as seguintes:

- a norma constante do artigo 194.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é dispensável a audição pessoal do arguido, relativamente à proposta de aplicação da medida de prisão preventiva, quando ele tenha sido ouvido para os efeitos do artigo 141.º do mesmo diploma;

- a norma constante do artigo 97.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a fundamentação da decisão que decreta a medida de prisão preventiva pode ser feita por remissão para a promoção do Ministério Público;

- a norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal.

2 - O mérito do recurso

2.1 - Da interpretação do artigo 194.º, n.º 4, do Código de Processo Penal

O recorrente questiona a constitucionalidade do artigo 194.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é dispensável a audição pessoal do arguido, relativamente à proposta de aplicação da medida de prisão preventiva, quando ele tenha sido ouvido para os efeitos do artigo 141.º do mesmo diploma.

Alega que esta interpretação, ao não conferir ao arguido a oportunidade de se pronunciar pessoalmente sobre a proposta de aplicação da medida de prisão preventiva efetuada pelo Ministério Público, viola os direitos de defesa do arguido, genericamente reconhecidos no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, designadamente o direito ao contraditório.

O procedimento para aplicação de medidas de coação em processo penal encontra-se genericamente previsto no artigo 194.º do Código de Processo Penal, onde se dispõe, na parte que para a resolução desta questão de constitucionalidade releva:

1 - À exceção do termo de identidade e residência, as medidas de coação e de garantia patrimonial são aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito a requerimento do Ministério Público e depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o Ministério Público, sob pena de nulidade.

[...]

4 - A aplicação referida no n.º 1 é precedida de audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no ato de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141.º

[...]

6 - A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:

a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;

b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;

c) A qualificação jurídica dos factos imputados;

d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º

7 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do número anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 3.

8 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 6, o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição de recurso.

9 - O despacho referido no n.º 1, com a advertência das consequências do incumprimento das obrigações impostas, é notificado ao arguido.

10 - No caso de prisão preventiva, o despacho é comunicado de imediato ao defensor e, sempre que o arguido o pretenda, a parente ou a pessoa da sua confiança.

Quando estamos perante uma situação de arguido detido que não deva ser de imediato julgado, deve o mesmo ser interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de 48 horas após a detenção, e se no ato do primeiro interrogatório resultar a necessidade de adotar medidas de coação, designadamente a prisão preventiva, devem estas ser imediatamente aplicadas após decisão nesse sentido, conforme prevê o artigo 194.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.

Os trâmites do interrogatório encontram-se regulados no artigo 141.º do Código de Processo Penal, o qual dispõe:

1 - O arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam.

2 - O interrogatório é feito exclusivamente pelo juiz, com assistência do Ministério Público e do defensor e estando presente o funcionário de justiça. Não é admitida a presença de qualquer outra pessoa, a não ser que, por motivo de segurança, o detido deva ser guardado à vista.

3 - O arguido é perguntado pelo seu nome, filiação, freguesia e concelho de naturalidade, data de nascimento, estado civil, profissão, residência, local de trabalho, sendo-lhe exigida, se necessário, a exibição de documento oficial bastante de identificação. Deve ser advertido de que a falta de resposta a estas perguntas ou a falsidade das respostas o pode fazer incorrer em responsabilidade penal.

4 - Seguidamente, o juiz informa o arguido:

a) Dos direitos referidos no n.º 1 do artigo 61.º, explicando-lhos se isso for necessário;

b) De que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova;

c) Dos motivos da detenção;

d) Dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; e

e) Dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;

ficando todas as informações, à exceção das previstas na alínea a), a constar do auto de interrogatório.

5 - Prestando declarações, o arguido pode confessar ou negar os factos ou a sua participação neles e indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida da sanção.

6 - Durante o interrogatório, o Ministério Público e o defensor, sem prejuízo do direito de arguir nulidades, abstêm-se de qualquer interferência, podendo o juiz permitir que suscitem pedidos de esclarecimento das respostas dadas pelo arguido. Findo o interrogatório, podem requerer ao juiz que formule àquele as perguntas que entenderem relevantes para a descoberta da verdade. O juiz decide, por despacho irrecorrível, se o requerimento há de ser feito na presença do arguido e sobre a relevância das perguntas.

7 - O interrogatório do arguido é efetuado, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, ou a documentação através de auto, quando aqueles meios não estiverem disponíveis, o que deverá ficar a constar do auto.

8 - Quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual devem ser consignados no auto o início e o termo da gravação de cada declaração.

9 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 101.º

No presente caso, o Recorrente após ter sido detido fora de flagrante delito, na sequência da emissão dos respetivos mandados, foi constituído arguido e foi presente para interrogatório judicial. Terminado o interrogatório, foi dada a palavra ao Magistrado do Ministério Público, o qual promoveu a aplicação da medida de prisão preventiva, tendo sido dada a palavra ao mandatário do arguido o qual se pronunciou pela rejeição da medida proposta. O Juiz de Instrução Criminal proferiu de imediato despacho em que determinou a aplicação da medida de prisão preventiva.

No recurso interposto deste despacho o Arguido invocou a nulidade da falta da sua audição pessoal sobre a proposta de aplicação da medida de prisão preventiva deduzida pelo Ministério Público e acolhida pela decisão do Juiz de Instrução Criminal.

Da análise do caso concreto efetuada pela decisão aqui recorrida - o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 17 de março de 2015 - decorre que esta considerou que, relativamente a arguido que já foi sujeito a interrogatório com cumprimento do disposto no artigo 141.º do Código de Processo Penal, é dispensável a sua audição pessoal sobre a proposta de aplicação da medida de prisão preventiva deduzida nesse ato de interrogatório pelo Ministério Público, revelando-se suficiente para assegurar o contraditório a pronúncia do defensor do arguido, uma vez que o arguido já foi confrontado, durante o interrogatório, com os pressupostos fácticos que podem fundamentar a aplicação da medida de prisão preventiva.

Note-se que está implícito na decisão recorrida que ela não considera que nestas circunstâncias a não audição pessoal do arguido constitua uma irregularidade processual, antes entende que cabe nos poderes do juiz de instrução criminal dispensar essa audição ou determiná-la, se a entender necessária ou conveniente, designadamente a requerimento do arguido.

É esta a interpretação normativa cuja constitucionalidade importa apurar.

O Ministério Público invoca como precedente o decidido no Acórdão 350/2006 do Tribunal Constitucional (acessível em www.tribunalconstitucional.pt). Nesse aresto julgou-se não inconstitucional a interpretação das normas dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), 118.º, n.os 1 e 2, 119.º, 120.º, 123.º, n.º 1, e 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no sentido de que constitui irregularidade, a arguir no próprio ato, a prolação de despacho judicial a determinar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva do arguido, na sequência de promoção do Ministério Público formulada após o termo do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, sem que este, assistido por mandatário por ele constituído, presente ao ato, tenha sido ouvido sobre essa promoção, sem invocação fundamentada de impossibilidade ou inconveniência dessa audição.

Contudo, a norma apreciada nesse aresto distancia-se da interpretação em apreço no presente recurso, uma vez que se reporta a uma situação em que, após a realização de interrogatório de arguido detido se aplicou a medida de prisão preventiva sem ouvir o arguido e o seu defensor, tendo a decisão recorrida considerado que essa omissão constituía uma mera irregularidade processual que necessitava de ser arguida pelo interessado no ato. Neste processo está apenas em causa a não audição pessoal do arguido em igual situação, uma vez que o defensor deste, presente no ato, teve oportunidade e pronunciou-se sobre a proposta de aplicação da medida de prisão preventiva proposta pelo Ministério Público, tendo a decisão recorrida considerado dispensável a audição pessoal do arguido, não entendendo que tivesse ocorrido qualquer atropelo à tramitação legalmente prevista e reconhecendo ao juiz que preside ao interrogatório o poder de legitimamente dispensar essa audição.

A questão de constitucionalidade em apreço deve ser analisada à luz do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, conjugado com o princípio do contraditório, ao qual o n.º 5, do mesmo artigo 32.º subordina o processo penal.

A norma do n.º 1 do artigo 32.º, enquanto «cláusula geral» que permite identificar outras possíveis concretizações judiciais do princípio da defesa não referenciadas no texto constitucional, configura o processo criminal como um due process of law, determinando a ilegitimidade das normas processuais e dos procedimentos dela decorrentes que impliquem uma diminuição inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.

Por outro lado, o princípio do contraditório, expressamente referido no n.º 5, do artigo 32.º, da Constituição, enquanto direito de audiência, deve ser observado relativamente a todos os atos suscetíveis de afetarem a pessoa ou a posição do arguido ao longo do processo, obrigando a que este tenha a oportunidade de se pronunciar sobre as decisões a tomar com essas características, assegurando-se, assim, não só o direito de defesa daquele, mas também "a sua participação constitutiva na declaração do direito do caso e, através dela, na conformação da sua situação jurídica futura" (Figueiredo Dias, em "Direito processual penal", 1.º vol., pág. 159, ed. de 1974, da Coimbra Editora).

Um desses atos é seguramente a aplicação ao arguido de medida de coação que afeta no grau máximo a sua liberdade, como sucede com a prisão preventiva. Se é hoje pacífica a opinião que, por imposição constitucional (artigo 32.º, n.º 1 e 5), as medidas de coação que se traduzam em restrições à liberdade do arguido não podem ser aplicadas, em regra, sem que antes tenha sido dada a oportunidade ao arguido de se defender, ilidindo, refutando ou enfraquecendo a prova dos pressupostos que as podem legitimar, através da apresentação da sua versão sobre os factos, da demonstração da inexistência de exigências cautelares que justifiquem a medida, ou ainda da sua inadequação ou desproporcionalidade (cf., por todos, Nuno Brandão em "Medidas de coação: o procedimento de aplicação na revisão do C.P.P.", na Revista do CEJ, n.º 9 (especial), 1.º semestre de 2008, pág. 77), necessariamente a decisão que pondere a colocação do arguido em prisão preventiva, em regra, tem que ser precedida da audição deste. E esta oportunidade do arguido se pronunciar sobre a eventual aplicação de uma medida que irá privá-lo da liberdade tem que ser efetiva e eficaz, pois, só assim se mostrará garantido o direito de defesa do arguido e a sua participação no processo formativo da decisão que o pode vir a afetar.

O critério normativo subjacente à análise que a decisão recorrida efetuou do caso concreto foi o de que, quando a proposta para aplicação da prisão preventiva é deduzida na sequência de interrogatório de arguido detido, sujeito às regras do artigo 141.º do Código de Processo Penal, a audição daquele pode ser efetuada na pessoa do seu defensor, sendo dispensável a audição pessoal do arguido.

Conforme resulta da fundamentação daquela decisão, esta entendeu que propiciando o interrogatório do arguido detido a possibilidade deste se pronunciar sobre a factualidade que integra os crimes indiciados e as necessidades de aplicação de eventuais medidas de coação, já não é necessário que o arguido seja pessoalmente confrontado com a proposta de aplicação da medida de prisão preventiva, sendo suficiente que essa oportunidade seja dada ao seu defensor, uma vez que é este que se encontra especialmente habilitado para abordar as "questões técnicas e jurídicas em sede de jus fundamentação das medidas de coação".

Segundo os n.º 4 e 5, do artigo 141.º, do Código de Processo Penal, o arguido, além do mais, deve ser informado dos motivos da detenção, dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo, e dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime, ficando todas estas informações a constar do auto de interrogatório. E, sendo desejo do arguido prestar declarações, pode este confessar ou negar os factos ou a sua participação neles e indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida da sanção.

Pressupondo, pois, a interpretação normativa em análise, que ao arguido, por força do disposto no artigo 141.º, do Código de Processo Penal, lhe é dada a oportunidade de pessoalmente se pronunciar durante o interrogatório sobre todos os factos que integram os requisitos da aplicação da medida de prisão preventiva que se encontram enunciados nos artigos 193.º, 202.º e 204.º do Código de Processo Penal -pressuposto da norma que é um dado que não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar, assim como não tem competência para controlar se ele se verificou no interrogatório do Recorrente neste processo - apenas fica subtraída à obrigatoriedade da audição pessoal, nos termos daquela interpretação, a valoração jurídica dos factos que fundamentam a aplicação da prisão preventiva.

Ora, estando naquele ato o arguido obrigatoriamente acompanhado de defensor, por imposição da lei processual vigente (artigo 144.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), o exercício por este, em representação do arguido, do direito de audição relativamente ao juízo jurídico sobre a verificação dos pressupostos da prisão preventiva satisfaz as exigências de efetividade e eficácia das condições de exercício de tal direito.

Na verdade, expor, na perspetiva do arguido, a avaliação sobre se os factos cuja verificação este teve oportunidade de se pronunciar indiciam com o grau de probabilidade suficiente a prática de um qualquer crime, e sobre a adequação, a necessidade e a proporcionalidade da aplicação de uma medida de prisão preventiva no caso concreto, é uma tarefa que, para ser desempenhada com eficácia, exige especiais conhecimentos jurídicos, estando para tal, em princípio, mais vocacionado o defensor do arguido do que este.

Assim, estando em causa uma pronúncia que exige, para que se mostre suficientemente garantido o direito de defesa do arguido e a sua participação relevante no processo formativo da decisão que o pode vir a afetar, especiais conhecimentos técnico-jurídicos, a escolha de um defensor dotado desses conhecimentos para o exercício do direito de audição nessa matéria revela-se adequada para garantir a eficácia da respetiva pronúncia, não constituindo a possibilidade de dispensa da audição pessoal do arguido, em tais condições, uma debilitação dos seus direitos constitucionais.

Daí que o entendimento segundo o qual, nestas circunstâncias, é dispensável a audição pessoal do arguido, não se mostre ofensivo dos direitos de defesa do arguido e do princípio do contraditório, consagrados nos n.º 1 e 5, do artigo 32.º, da Constituição.

2.2 - Da interpretação do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal

O Recorrente questiona a constitucionalidade da norma constante do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a fundamentação da decisão que decreta a medida de prisão preventiva, pode ser feita por remissão para a promoção do Ministério Público.

Alega que esta interpretação viola o princípio da reserva de juiz, consagrado no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, e o dever de fundamentação das decisões judiciais imposto no artigo 205.º da Constituição.

O artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, dispõe que toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática de atos instrutórios que não se prendam diretamente com os direitos fundamentais.

Se a identificação processual da "instrução", a que se refere este preceito, impondo a sua judicialização, suscita algumas dificuldades, a existência de uma reserva do juiz na prática de atos durante a fase investigatória que afetem os direitos, liberdades e garantias é indiscutível. Só um juiz, dotado de independência e imparcialidade, é que nessa matéria pode assumir o papel de garante dos cidadãos. Daí que a decisão de aplicar a um arguido em processo penal a medida de coação de prisão preventiva só possa ser tomada por um juiz.

A função de tutela preventiva dos direitos fundamentais que o Juiz de Instrução Criminal desempenha impõe seguramente que ele ajuíze, de forma crítica e autónoma, as razões de facto e de direito invocadas pelo Ministério Público para promover a medida de prisão preventiva. Na verdade, só uma decisão que resulte de uma ponderação própria dá conteúdo material efetivo à reserva de juiz.

A satisfação, em grau máximo, desta exigência, só se dá quando o juiz "subjetiva" a fundamentação da prisão preventiva, formulando, através de palavras suas, a convicção, que o determinou, de que qualquer outra das medidas de coação é inadequada e insuficiente. Quando assim é, fica patente aos olhos de todos, sem margem para qualquer dúvida, que estamos perante uma decisão pessoal do juiz, cujo conteúdo é da sua responsabilidade e não "preformatado" pelo requerimento do Ministério Público. Como se deixou escrito no Acórdão 189/99 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt): «[...] É óbvio que o despacho, que melhor espelha a responsabilização pessoal do juiz pela ordem de prisão que dá, é aquele em que o juiz enuncia, ele próprio, os motivos de facto da decisão tomada, em vez de se remeter para as razões invocadas pelo Ministério Público».

Mas a circunstância da fundamentação da decisão que coloca um arguido em prisão preventiva, proferida por um juiz, remeter para anterior promoção do Ministério Público, não permite, só por si, retirar a conclusão que ela não traduz uma opção livre, autónoma e independente do seu subscritor, uma vez que o quadro em que é feita a remissão pode revelar que a decisão tomada não deixou de ser o resultado duma ponderação própria. A adoção de tal técnica na exposição dos motivos que fundamentam a escolha dessa medida de coação pode significar que o seu autor considerou boas as razões que o Ministério Público invocou para fundamentar a sua proposta de decisão, pelo que as acolheu e fez suas, não tendo visto necessidade de recorrer a outras linhas de fundamentação ou de as expor em redação própria.

Daí que, independentemente do juízo quanto à forma mais correta de dar cumprimento ao dever constitucional de fundamentação, não se possa concluir, em abstrato, que a opção de remeter para o conteúdo de anterior promoção do Ministério Público requerendo a aplicação da medida de prisão preventiva atente, sem mais, contra o princípio da reserva de juiz. Nessa medida, a interpretação segundo a qual a fundamentação dessa decisão pode ser feita para a promoção do Ministério Público não é, em si mesma, inconstitucional, como já anteriormente decidiram os Acórdãos n.os 189/99 e 396/2003 (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Só em concreto se poderá avaliar se a decisão proferida, neste ou em qualquer outro processo, pelo Juiz de Instrução Criminal é suscetível de originar dúvidas sobre se a mesma transmite um juízo autónomo e pessoal do seu subscritor ou representa um simples «"ir atrás" do Ministério Público» (Acórdão 189/99). E esse é um juízo que cabe exclusivamente às instâncias, não tendo o Tribunal Constitucional competência para o formular.

Quanto à observância do dever de fundamentação, o artigo 205.º da Constituição impõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente devam ser fundamentadas na forma prevista na lei.

Como é consabido e tem sido referido em variados arestos deste Tribunal, o cumprimento do dever de fundamentação das decisões judiciais pode assumir, conforme os casos, uma certa geometria variável, sendo entregue ao legislador ordinário a tarefa de definir as formas e o grau de fundamentação exigível.

Relativamente às medidas de coação, com exceção do termo de identidade e residência, o artigo 194.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, exige que a fundamentação do despacho que as aplique contenha, sob pena de nulidade:

"a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;

b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;

c) A qualificação jurídica dos factos imputados;

d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º".

Constitucionalmente é exigível que na fundamentação seja visível uma racionalização dos motivos da decisão, revelando-se aos sujeitos processuais e à comunidade o conhecimento das razões que subjazem ao concreto juízo decisório, devendo, para isso, a fundamentação revelar uma aptidão comunicativa na exteriorização das premissas que presidem à sua conclusão, assim como o respetivo juízo de valoração, de modo a transmitir, como condição de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial do decidido. E numa decisão como a que decreta a prisão preventiva de uma pessoa, dado estar em causa a aplicação de uma medida que restringe de uma forma particularmente intensa o direito à liberdade do detido, a necessidade de observância daqueles requisitos faz-se sentir de uma forma mais intensa.

Contudo, tais exigências não ficam materialmente prejudicadas quando uma decisão que decrete a prisão preventiva, perante uma pronúncia anterior fundamentada sobre a questão a decidir emitida por um dos intervenientes processuais, designadamente o Ministério Público, remeta para as razões aí invocadas, subscrevendo um juízo que se considera totalmente adequado. Na verdade, nada impede que o resultado de uma avaliação crítica efetuada com total autonomia pelo julgador acabe por conduzir ao acolhimento integral dos argumentos explicitados previamente pelo Ministério Público, remetendo-se a fundamentação da decisão, por economia de meios, para aquela pronúncia, o que não deixa de permitir aos interessados e à comunidade o cabal conhecimento das razões determinantes do que se decidiu. Elas são as que foram avançadas pelo Ministério Público na sua promoção e que o juiz acolheu e declarou fazê-las suas, constituindo uma fundamentação cognoscível da decisão tomada.

E se é verdade que, estando em causa a aplicação de uma medida que restringe severamente o direito à liberdade, as exigências de explicitação da fundamentação são maiores, também é verdade que a necessidade dessa decisão ser proferida imediatamente ao termo do interrogatório do arguido e após audição dos intervenientes processuais, sem demoras nem hiatos que acarretem uma dilação desrazoável da decisão (vide Acórdão 135/2005, deste Tribunal, acessível em www.tribunalconstitucional.pt), justifica que se recorra a técnicas de fundamentação que privilegiem uma economia de meios.

Por estas razões é de manter a jurisprudência deste Tribunal no sentido de que não viola qualquer parâmetro constitucional, designadamente o princípio da reserva de juiz e o dever de fundamentação das decisões judiciais, a norma constante do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a fundamentação da decisão que decreta a medida de prisão preventiva, pode ser feita por remissão para a promoção do Ministério Público, assim improcedendo este fundamento do recurso.

2.3 - Da interpretação do artigo 127.º do Código de Processo Penal

O Recorrente questiona a constitucionalidade da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal.

Alega que esta interpretação é incompatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, e com o dever de fundamentar as decisões judiciais imposto no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição.

Na apreciação desta questão, não se pode ter em atenção os argumentos invocados pelo Recorrente relativamente ao modo como, em concreto, foi efetuada pela decisão recorrida a apreciação da prova no que respeita à avaliação da existência dos indícios a que se refere o artigo 202.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, uma vez que esse plano extravasa as competências do Tribunal Constitucional. Ou seja, este Tribunal apenas poderá apreciar a referida questão de constitucionalidade enquanto esta tem por objeto o critério normativo da decisão consubstanciado numa regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo sindicar o puro ato de julgamento do tribunal a quo, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, nem apreciar a constitucionalidade do resultado da operação de apreciação e valoração da prova neste caso concreto, face aos princípios da presunção da inocência e ao dever de fundamentação das decisões judiciais.

Para melhor análise da questão de constitucionalidade sub judicio, importa começar por tecer algumas breves considerações sobre o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, bem como sobre o conceito de presunção judicial.

O artigo 125.º do Código de Processo Penal consagra a regra da "não taxatividade dos meios de prova" dispondo que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei». Por sua vez, no que respeita à apreciação da prova, o artigo 127.º do aludido Código consagra o princípio da livre apreciação da prova, estabelecendo que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

Como é sabido, no que respeita à apreciação da prova produzida e ao modo como esta deve ser valorada no sentido de o julgador formar a sua convicção sobre os factos relevantes para a decisão, ao sistema da prova legal (em que a apreciação da prova tem por base regras legais que pré-determinam o valor a atribuir-lhe) opõe-se o sistema da prova livre, caracterizado pela circunstância de tal apreciação ser efetuada com base na livre valoração do juiz e na sua convicção pessoal.

Conforme refere Figueiredo Dias (cf. ob. cit., págs. 202-203) o princípio da livre apreciação da prova «não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida», acrescentando ainda que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada "verdade material" -, de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e de controlo».

Neste mesmo sentido, Castanheira Neves (Cfr., Sumários de Processo Criminal (1967-68), Coimbra, 1968, págs. 50-51), escreve que «a liberdade de que aqui se fala não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionisto-emocional que se furte, num incondicional subjetivismo, à fundamentação e à comunicação. Trata-se antes de uma liberdade para a objetividade - não aquela que permita uma "intime conviction", meramente intuitiva, mas aquela que se determina por uma intenção de objetividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objetiva, i. é, uma verdade que transcenda a pura subjetividade e que se comunique e imponha aos outros».

Também o Tribunal Constitucional em várias decisões em que estava em causa a constitucionalidade do artigo 127.º do Código de Processo Penal disse o seguinte:

"...O atual sistema da livre apreciação da prova não deve definir-se negativamente pela ausência das regras e critérios legais predeterminantes do seu valor, havendo antes de se destacar o seu significado positivo.

[...]

A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e portanto imotivável. há de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão.

[...].

A regra da livre apreciação da prova em processo penal [...] não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável» (cf. Acórdão 1164/96, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).

Já no que respeita ao conceito de presunções judiciais, não existe no Código de Processo Penal qualquer menção expressa ao mesmo. A referência legal ao conceito de presunções pode ser encontrada no Código Civil, cujo artigo 349.º as define como «ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido».

Vaz Serra (Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 108.º, n.º 3559, pág. 352), caracterizando esta figura, referiu que as presunções «pressupõem a existência de um facto conhecido (base das presunções), cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita pelos meios probatórios gerais; provado esse facto, intervém a lei (no caso de presunções legais) ou o julgador (no caso de presunções judiciais) a concluir dele a existência de outro facto (presumido), servindo-se o julgador, para esse fim, de regras deduzidas da experiência de vida».

Na verdade, a utilização de presunção judicial permite que perante um ou mais factos conhecidos, por um procedimento lógico de indução, se adquira ou se admita a realidade de um facto não diretamente demonstrado, na convicção, apoiada nas regras da ciência, da experiência ou da normalidade da vida, de que certos factos são a consequência de outros. E é no valor da credibilidade do id quod e na consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta que está o fundamento racional da presunção, residindo na medida desse valor e dessa consistência a maior ou menor validade da inferência efetuada.

No âmbito da apreciação da prova em processo penal, durante muito tempo, foram escassas na doutrina e jurisprudência portuguesas as referências à possibilidade de recurso a presunções judiciais, embora a sua utilização nos tribunais fosse uma prática comum. Nos tempos mais recentes registam-se algumas abordagens teóricas da prova denominada de "indireta", "indiciária", "circunstancial" ou "por presunções", procurando-se definir os critérios que devem presidir à sua utilização de forma a que esta seja compatível com o princípio da presunção de inocência (cf. Euclides Dâmaso Simões, em «Prova indiciária», na Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 203 e ss., José Santos Cabral em «Prova indiciária e as novas formas de criminalidade», na Revista Julgar, n.º 17, 2012, pág. 13, Marta Sofia Neto Morais Pinto, em «A prova indiciária no processo penal, na Revista do Ministério Público, n.º 128, Out.-Dez. 2011, pp. 185-222, Luís Campos, em «A corrupção e a sua dificuldade probatória - o crime de recebimento indevido de vantagem», na Revista do Ministério Público, n.º 137, Jan.-Mar. 2014, pp. 132 e ss., André Lamas Leite, em "Nótulas sobre o crime de administração danosa", na Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Ano IX - 2012, pág. 56, e na jurisprudência, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2007, de 6-10-2010 e de 7-4-2011, todos acessíveis em www.dgsi.pt).

A questão a apreciar é precisamente a de saber se a interpretação sustentada pelo Acórdão proferido nestes autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 17 de março de 2015, segundo a qual o artigo 127.º do Código de Processo Penal permite o recurso a presunções judiciais, é compatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, e ainda com o dever de fundamentar as decisões judiciais, imposto pelo artigo 205.º, n.º 1, da Constituição.

O Tribunal Constitucional já se debruçou sobre problemas de constitucionalidade de normas que estabelecem presunções legais em matéria penal, tendo concluído pela sua admissibilidade, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustenta e que baste para tal a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário.

É o caso do Acórdão 38/86 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), que decidiu não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 169.º, § 1.º, e 557.º do Código de Processo Penal (de 1929) e as do artigo 2.º, n.º 2 e seu § único, do Decreto-Lei 35 007, de 13 de outubro de 1948, que se referiam à "fé em juízo" do auto de notícia em processo sumário.

Também o Acórdão 448/87 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), entre outros, no mesmo sentido, sobre a mesma questão, que decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 26.º, n.º 3, do Decreto-Lei 85-C/75, de 26 de fevereiro (Lei de Imprensa), na medida em que determinava que, no caso de escritos ou imagens não assinados, publicados na imprensa periódica e consubstanciando um crime de abuso de liberdade de imprensa, fosse havido como autor do escrito ou imagem o respetivo diretor, o que o responsabilizava como autor do crime, a não ser que provasse que não conhecia o dito escrito ou imagem ou lhe não tivesse sido possível impedir a respetiva publicação. Considerou o Tribunal que não se mostrava violado o princípio da presunção de inocência, referindo, na fundamentação, o seguinte:

«Na verdade, pode dizer-se que a dimensão deste princípio suscetível de estar em causa na hipótese - tratando-se nela, como se trata, da presunção de um puro facto - seria, não a que proíbe o estabelecimento de presunções de "culpabilidade" (não é, com efeito, a culpa do agente que aí se presume), mas antes a que respeita ao tema da prova em processo penal e se exprime [...] na regra segundo a qual uma situação de non liquet na questão de facto deverá ser valorada e resolvida em favor do réu. Ora, o que sucede é que, sendo a presunção em apreço meramente relativa - pois sempre o diretor é admitido a fazer prova de que não teve conhecimento do escrito (ou de que não pôde impedir a respetiva publicação), a mesma presunção redunda em não mais do que uma simples prova de ínterim ou de primeira aparência, pelo que ainda quanto aos factos a que respeita pode operar, bem vistas as coisas, a mencionada regra in dubio pro reo: basta, para tanto, que através da prova trazida ao processo o diretor do periódico crie uma situação de incerteza (de non liquet) acerca da questão de facto, ou seja, acerca dos factos integrados na presunção».

Ainda neste mesmo sentido se pronunciou o Acórdão 246/96 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), no qual se decidiu não julgar inconstitucionais as normas do artigo 22.º, n.os 1 e 2, do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Aduaneiras, na sua interpretação conjugada, segundo a qual se presumem não nacionais as mercadorias que forem colocadas ou detidas em circulação no interior do território aduaneiro sem o processamento das competentes guias ou outros documentos legalmente exigíveis ou sem a aplicação de selos, marcas ou outros sinais legalmente prescritos.

E é ainda o caso do Acórdão 276/2004, que decidiu interpretar, nos termos do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o n.º 1 do artigo 152.º, do Código da Estrada, no sentido de que este preceito se limita a estabelecer uma presunção ilidível de que o proprietário ou possuidor do veículo é o seu condutor, desde que não identifique outrem como tal, tendo-se considerado, remetendo para jurisprudência anterior do Tribunal, que a existência de presunções, mesmo em direito penal, não é constitucionalmente inadmissível, desde que ilidíveis.

Todas estas decisões revelam que concluir-se pela prova de um facto em resultado do funcionamento de uma presunção é compatível, em processo penal, com uma presunção geral de inocência e com o princípio in dubio pro reo.

O princípio da presunção da inocência, tendo sido consagrado pela primeira vez na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, veio a ter posterior acolhimento no artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, encontrando-se previsto no n.º 2, do artigo 32.º, da Constituição, no qual se dispõe que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa».

Da consagração constitucional do princípio da presunção de inocência decorre que o processo penal tem de ser estruturado de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido, tido à partida como inocente, por não haver qualquer fundamento para que aquele não se considere como tal enquanto não for julgado culpado por sentença transitada em julgado. Em matéria de prova, este princípio é identificado por muitos autores com o princípio in dubio pro reo, o qual se traduz numa imposição dirigida ao julgador no sentido de que qualquer situação de dúvida a respeito dos factos relevantes para a decisão da causa ou da culpabilidade do arguido deve ser valorada a favor deste, resolvendo-se desta forma os casos de non liquet em matéria de prova (sobre as diferentes opiniões defendidas na doutrina acerca das relações entre o princípio da presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo, cf. Helena Magalhães Bolina, «Razão de ser, significado e consequências do princípio da presunção da inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP»), Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXX, Coimbra, 1994, págs. 440-442). No entanto, mesmo a nível probatório, ele tem um sentido e alcance mais amplos que o princípio in dubio pro reo, como explica Helena Magalhães Bolina (cit., págs. 443-446):

«O princípio in dubio pro reo só se aplica no caso de surgir a dúvida quanto à apreciação da matéria de facto. O princípio da presunção de inocência, atento o objetivo que visa atingir, intervém em momento anterior, condicionando o surgimento dessa dúvida, impondo-o em todas as situações em que, à luz da verdade material, a culpabilidade do arguido não possa considerar-se afirmada com certeza.

A dúvida é, assim, por imposição do princípio de presunção de inocência, uma dúvida legal: uma dúvida que deve surgir em determinadas circunstâncias e constitui também matéria de direito, não só a questão de saber se a dúvida surgida na apreciação da prova foi resolvida favoravelmente ao arguido - caso em que se está perante a verificação do respeito do princípio in dubio pro reo -, mas também se, em face da prova produzida, a dúvida surgiu quando devia, ou, noutra perspetiva, se o juízo de certeza foi bem fundado. Nesse caso, o princípio cujo respeito se avalia é, não já o in dubio pro reo, mas, mais rigorosamente, o princípio da presunção de inocência.

O princípio da presunção de inocência distingue-se, assim, do princípio in dubio pro reo, não só pela sua relevância no tratamento do arguido ao longo de todo o processo e pelo seu reflexo extraprocessual como critério dirigido ao legislador ordinário, mas também, em sede de prova, impondo que a dúvida surja em determinadas circunstâncias, assim possibilitando, em momento lógico posterior, a aplicação do princípio in dubio pro reo».

No presente recurso não se trata de verificar a constitucionalidade de uma qualquer previsão legal de determinada presunção de facto, como ocorreu com os anteriores Acórdãos acima referidos, incidindo a fiscalização de constitucionalidade sobre a possibilidade de, nos termos da interpretação normativa sindicada, se entender ser genericamente admissível o recurso a presunções judiciais como meio de prova em processo penal.

Segundo se depreende das alegações do Recorrente, este sustenta que, no domínio do processo penal, na insuficiência de prova direta, o julgador estaria impedido, por força do princípio da presunção da inocência, de recorrer a presunções judiciais. Ou seja, nesses casos de inexistência de prova direta, impor-se-ia, segundo o Recorrente, por força do princípio da presunção de inocência, o surgimento da dúvida a respeito dos factos relevantes para a decisão, dúvida essa que, por força do princípio in dubio pro reo, teria de ser valorada em favor do arguido.

Ora, na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.

Se, no caso concreto, houve lugar à utilização de presunções sem a necessária credibilidade ou consistência é uma questão que o Tribunal Constitucional não tem competência para avaliar.

Mas, no entender do Recorrente, a norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, seria ainda inconstitucional, por violação "dos princípios do Estado de direito democrático, da vinculação à Lei e da fundamentação das decisões dos tribunais, consagrados respetivamente nos artigos 2.º, 203.º e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa".

O que está em causa na questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso é, essencialmente, a alegada violação da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, consagrada no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, o qual determina que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".

Como já acima se disse, no ponto 2.2., constitucionalmente é exigível que na fundamentação seja visível uma racionalização dos motivos da decisão, revelando-se às partes e à comunidade o conhecimento das razões que subjazem ao concreto juízo decisório, devendo, para isso, a fundamentação revelar uma aptidão comunicativa na exteriorização das premissas que presidem à sua conclusão, assim como o respetivo juízo de valoração, de modo a transmitir, como condição de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial do decidido.

Ora, tendo em consideração as características acima apontadas à utilização de presunções judiciais, verifica-se que a prova indireta ou por presunções assenta num processo lógico de inferência que não pode ser entendido como uma operação puramente subjetiva, emocional e imotivável, mas sim como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos e proceder a uma efetiva motivação da decisão. Daí que a utilização de presunções judiciais não seja incompatível com o dever de fundamentação das decisões judiciais, antes exigindo uma explicação mais rigorosa que seja claramente explicitadora do processo lógico que lhe é inerente.

Se no caso concreto o rigor exigível foi ou não observado já é uma questão que excede as competências do Tribunal Constitucional.

Por estas razões se conclui que a interpretação da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal não viola qualquer parâmetro constitucional.

2.4 - Conclusão

Resultando da análise efetuada que nenhuma das interpretações normativas cuja constitucionalidade podia ser fiscalizada viola a Constituição deve o presente recurso ser julgado improcedente.

Decisão

Nestes termos, decide-se:

a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 194.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é dispensável a audição pessoal do arguido, relativamente à proposta de aplicação da medida de prisão preventiva, quando ele tenha sido ouvido para os efeitos do artigo 141.º do mesmo diploma;

b) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a fundamentação da decisão que decreta a medida de prisão preventiva, pode ser feita por remissão para a promoção do Ministério Público;

c) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal.

d) não conhecer do recurso quanto às demais questões de inconstitucionalidade invocadas pelo Recorrente; e, em consequência,

e) julgar improcedente o recurso interposto por José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa para o Tribunal Constitucional.

Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Lisboa, 12 de agosto de 2015. - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro.

209089443

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