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Acórdão 350/2006, de 12 de Julho

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Texto do documento

Acórdão 350/2006

Processo 376/2006

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Relatório. - Rui Jorge Pimentel Rodrigues Pereira interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de Fevereiro de 2006, que negou provimento ao recurso por ele deduzido contra o despacho da juíza do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, de 4 de Outubro de 2005, que indeferiu "arguição de irregularidade/nulidade" do despacho que lhe aplicou a medida de prisão preventiva.

Em 20 de Setembro de 2005, o recorrente foi detido, em execução de mandado de detenção emitido, em 28 de Março de 2005, pelo Ministério Público, nos termos do disposto nos artigos 191.º, n.º 1, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º, n.º 1, alínea a), 204.º, alíneas a), b) e c), 257.º, n.º 1, e 258.º do Código de Processo Penal (CPP), "por haver fortes indícios de ter praticado um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido nos termos do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto Lei 15/93, de 22 de Janeiro, ao qual corresponde a pena de 4 a 12 anos de prisão".

Em 21 de Setembro de 2005, o recorrente foi sujeito ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, tendo sido assistido por mandatário por ele constituído. No termo do interrogatório foi-lhe aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, promovida pelo Ministério Público, sem que ao arguido ou ao seu defensor tivesse sido dada oportunidade de se pronunciarem sobre essa promoção e sem que se tivesse invocado razão de impossibilidade ou inconveniência dessa audição.

Por fax expedido em 26 de Setembro de 2005, o arguido veio arguir a "irregularidade/nulidade" desse despacho, invocando que lhe devia ter sido permitido pronunciar-se sobre a medida de coacção que lhe veio a ser aplicada, para além de o dito despacho ser nulo por falta de fundamentação quanto à impossibilidade ou inconveniência dessa audição.

Por despacho de 4 de Outubro de 2005, a juíza de Instrução Criminal indeferiu, por extemporânea, essa arguição, dado que, implicando a denunciada omissão uma irregularidade, que não uma nulidade, deveria ter sido arguida no próprio acto, o que não ocorrera - consignando-se que o mandatário do arguido "assistiu não só à prolação da douta promoção, como do respectivo despacho que lhe foi de imediato notificado, devido a estar presente no próprio acto". Mais acrescentou que, em seu entendimento, nem sequer fora cometida qualquer irregularidade, uma vez que o artigo 194.º, n.º 1, do CPP apenas impõe que, antes de o juiz decidir sobre a aplicação de medida de coacção, ocorra promoção do Ministério Público, sendo "a audição do arguido previamente à aplicação de qualquer medida de coacção [...] uma mera faculdade concedida ao juiz que, casuisticamente, decidirá se deve ou não utilizá-la".

Desse despacho de 4 de Outubro de 2005, que indeferiu a arguição de nulidade, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que subiu em separado. [Foi também interposto recurso do despacho de 21 de Setembro de 2005, que decretou a prisão preventiva, cujo desfecho não está documentado nos presentes autos.]

A motivação do recurso relativo ao despacho de 4 de Outubro de 2005 termina com a formulação das seguintes conclusões:

"1.ª Não foi permitida ao arguido, através do seu defensor, pronunciar-se sobre a medida de coacção prisão preventiva, promovida pelo Ministério Público, o que impossibilitou que exercesse o seu direito de defesa.

2.ª Verificou-se, por isso, a nulidade prevista na alínea c) do artigo 119.º do CPP e nos artigos 18.º e 32.º, n.º 1, da CRP, por violação directa de uma norma constitucional.

3.ª Violou-se em concreto o n.º 1 do artigo 32.º da CRP, porque ao arguido, através do seu defensor, não foi permitido [pronunciar-se] antes de uma decisão judicial que implicou a restrição de direitos e da sua liberdade.

4.ª Por via do n.º 1 do artigo 18.º da CRP, o n.º 1 do artigo 32.º da CRP é directamente aplicável, por se estar perante uma situação que se prende com a liberdade de um cidadão.

5.ª Repare-se que o arguido foi preso preventivamente sem que pudesse ser defendido pelo seu advogado.

6.ª Acresce que o despacho censurado nem sequer invoca, quanto mais fundamenta, a desnecessidade ou impossibilidade em o arguido exercer o seu direito de defesa e de contraditar o alegado pelo Ministério Público.

7.ª É inconstitucional a interpretação dos artigos 58.º, n.º 1, alínea b), 61.º, alíneas b) e e), 63.º, n.º 1, alínea a), 64.º, n.º 1, e 194.º, n.º 2, do CPP, segundo a qual não é permitido ao arguido, através do seu defensor, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por mandado de detenção emitido fora de flagrante delito pelo Ministério Público, pronunciar-se sobre a medida de coacção promovida, especialmente tratando-se da prisão preventiva. Esta interpretação diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial das normas dos artigos 27.º e 28.º, n.º 4, nega garantias de defesa previstas no artigo 32.º, n.º 1, impede o contraditório e afronta o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

8.ª Caso não se entenda que a situação descrita tipifica a nulidade atrás exposta, estamos sempre perante uma irregularidade tempestivamente arguida.

9.ª No douto despacho que aplicou a medida de coacção não é invocada a desnecessidade ou inconveniência na audição do arguido e, muito menos, se fundamenta.

10.ª Pelo que se verifica uma completa ausência de decisão desta questão - n.º 2 do artigo 194.º do CPP.

11.ª Mas podia ter sido ouvido através do seu defensor, uma vez que ambos estavam presentes e não vislumbra qualquer inconveniência."

Por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de Fevereiro de 2006, foi negado provimento ao recurso, desenvolvendo-se, para tanto, a seguinte fundamentação:

"De acordo com o que dispõe o artigo 194.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, a aplicação de medidas de coacção é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial.

Temos por impressivo que esta expressão normativa consagra ou tem como pressuposta, quanto à audição do arguido, uma verdadeira regra, que somente cede (revestindo-se, então, como excepção) quando tal não for possível ou se perspectivar como inconveniente.

É exactamente isto que nos ensinam Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, p. 254: '[...] uma medida de coacção representa sempre a restrição da liberdade do arguido e por isso só na impossibilidade ou em circunstâncias verdadeiramente excepcionais deve ser aplicada sem que antes tenha sido dada a possibilidade ao arguido de se defender, ilidindo ou enfraquecendo a prova dos pressupostos que a podem legitimar'; e Maria João Antunes, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, p. 1250: 'na medida em que o contraditório é uma garantia de defesa do arguido, é de conceber a audição deste como regra geral do procedimento de aplicação da medida de coacção: a aplicação da medida de coacção só será impossível se tiverem sido esgotadas as diligências susceptíveis de assegurar a audição do arguido, aqui incluída a detenção, e inconveniente se a audição puder frustrar as exigências processuais de natureza cautelar que se façam sentir no caso concreto'.

Neste enquadramento, então, ou se cumpre a regra (e leva-se a cabo audição do arguido) ou se aduz a excepção (e se fundamenta a impossibilidade ou inconveniência dessa audição).

No caso, nem se deu cumprimento à regra, nem se aduziu a excepção.

Mas tal ocorreu porque, segundo consta do despacho sob recurso '[...] a lei não obriga em parte alguma, apenas prevê se possível e necessária, a presença do mandatário ou defensor e, muito menos, que os mesmos se pronunciem, após terminus do interrogatório dos arguidos, aquando da prolação da promoção ou do [...] despacho que determina a medida entendida adequada'.

Aqui chegados, fácil é a constatação de que entre este entendimento e esse outro (o nosso) há uma divergência, substancial, que se expressa, em termos claros, do seguinte modo: além, é indispensável tomar posição expressa sobre a audição do arguido (dando-lhe efectivação ou justificando a sua negação); aquém não se tem de tomar posição por se não estar perante uma legal imposição.

Ora, em coerência, de acordo com o entendimento que perfilhamos, a 'ausência' (de audição do arguido ou de decisão sobre a sua impossibilidade ou inconveniência) que acima se mencionou corresponde à inobservância daquela disposição legal (artigo 194.º, n.º 2, de Código de Processo Penal).

Então, há que ver o que ela determina.

As nulidades estão sujeitas ao princípio da legalidade, pois, como estipula o artigo 118.º, 'a violação ou a inobservância das disposições da lei ou do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei' (n.º 1) e 'nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular' (n.º 2).

Aquela omissão não está prevista, na lei processual penal, como determinando uma nulidade.

Daí que, de acordo com a mesma lei, se tenha de ver como irregularidade.

Então, intercede o artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que dispõe que 'qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto [...]'.

Ora, o que aqui se não discute é que a irregularidade em questão não foi arguida no próprio acto (interrogatório judicial de arguido detido) quando o podia ter sido (o mandatário do arguido estava presente).

O que torna fácil a conclusão: aquela inobservância do artigo 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, constituindo uma irregularidade, não acarreta a atinente invalidade por a arguição respectiva não ter sido feita atempadamente.

O arguido obtempera que a interpretação que o despacho sob recurso deu ao artigo 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal padece de inconstitucionalidade, já que violadora de normas constitucionais (indica, a propósito, as contidas nos artigos 27.º, 28.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, e 18.º da Constituição da República Portuguesa), e que, por isso, tal ('ausência de audição') configuraria uma nulidade insanável.

O primeiro rege sobre o direito à liberdade e à segurança.

O segundo estatui sobre a prisão preventiva.

O terceiro regula as garantias de processo criminal.

O quarto contempla a força jurídica dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias.

Há que dizer, liminarmente, que se não vê como essa interpretação do artigo 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal colide com as duas primeiras dessas normas constitucionais, de modo a 'diminuir a extensão e alcance do seu conteúdo essencial' (que, de todo o modo, não específica), pois a primeira, e para o que ora importa (seu n.º 4), somente impõe a informação, imediata e de forma compreensível, das razões da prisão e dos seus direitos, e a segunda, igualmente para o que presentemente releva (seu n.º 1), tem a ver, e só, com a submissão da detenção a apreciação do juiz, para determinado efeito (o que importa: imposição de medida de coacção), no âmbito da qual é obrigação daquele conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao arguido, interrogando-o e dando-lhe oportunidade de defesa (sobre elas, naturalmente).

Já quanto à terceira (e à quarta, por incidência positiva, necessária), pode-se dizer, em tese, que essa interpretação comprime o que se pode ter por garantias de defesa (no que se refere ao contraditório, especificamente, o n.º 5 desse artigo 31.º, não o reporta a situações como a presente), pela singela razão de que não há lugar (necessariamente) à dita audição - como ensina Jorge Miranda, in Constituição Portuguesa Anotada, t. I, p. 354, são garantias de defesa 'todos os meios que em concreto se mostrem necessários para que o arguido se faça ouvir pelo juiz sobre as provas e razões que apresenta em ordem a defender-se da acusação que lhe é movida', sendo que 'os direitos a uma ampla e efectiva defesa não respeitam apenas à decisão final, mas a todas as que impliquem restrições de direitos ou possam condicionar a solução definitiva do caso'.

Mas não de modo a ter essa compressão como excessiva, desmesurada, inaceitável, significativa, já que o arguido (o que é, neste domínio, significativo, assim dando valia ao que é essencial nas garantias de defesa) é submetido a interrogatório judicial, a coberto do qual pode (querendo), e para lá do direito de recurso, prestar declarações sobre os factos que estão em destaque e que vão sustentar, na base, os indícios que determinam a conformação da medida de coacção a aplicar, deve ser notificado da decisão que aplica a medida de coacção pelo modo exigente que consta do artigo 194.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e, a todo o tempo, pode ser revogada ou alterada, como se colhe do artigo 212.º, n.os 1, alíneas a) e b), e 3, do Código de Processo Penal (como emanação do princípio de adequação e proporcionalidade consagrado no artigo 193.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal), isto, claro, para lá da eventualidade (por impossibilidade ou inconveniência) de tal audição não vir a ocorrer.

Dito isto, mais se deve dizer, em conclusão: não se verifica a suscitada inconstitucionalidade e, por isso, a invocada nulidade insanável."

É contra este acórdão que, como se referiu, vem interposto o presente recurso, tendo por objecto, de acordo com o respectivo requerimento de interposição, a questão da inconstitucionalidade, "por contender com o disposto nos artigos 18.º, 27.º, 28.º, n.º 4, e 32.º, n.os 1 e 5, da CRP", da interpretação, que se imputa ao acórdão recorrido, dos "artigos 61.º, alíneas a), b) e c), 118.º, 119.º, 120.º, 123.º e 194.º, n.º 2, todos do CPP, com o sentido de que, no acto do primeiro interrogatório de arguido detido e após este ter prestado declarações, requerendo o Ministério Público a aplicação da medida de coacção prisão preventiva, a não audição do arguido sobre a aplicação da medida de coacção e não fundamentação da sua desnecessidade ou inconveniência, constitui uma mera irregularidade, não sendo as normas constitucionais referentes aos direitos, liberdades e garantias directamente aplicáveis ao caso concreto".

No Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:

"1 - Não foi permitido ao arguido, através do seu defensor, pronunciar-se sobre a medida de coacção prisão preventiva, promovida pelo Ministério Publico em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido - o que impossibilitou que exercesse o seu direito de defesa.

2 - A situação ocorrida não pode consistir numa simples irregularidade, reservada para interesses de menor gravidade.

3 - Então, salvo o devido respeito por diversa opinião, estamos na presença de uma nulidade insanável, prevista na alínea c) do artigo 119.º do CPP e ainda por via directa da violação de uma norma de natureza constitucional artigos 18.º e 32.º da CRP.

4 - Violou-se o n.º 1 do artigo 32.º da CRP, porque ao arguido, através do seu defensor, não foi permitido que, antes de uma decisão judicial que implicou a restrição de direitos e da sua liberdade, exercesse a sua defesa, contraditando a posição do Ministério Público - o que coloca ainda em causa o princípio da igualdade das partes.

5 - Por via do n.º 1 do artigo 18.º da CRP, o n.º 1 do artigo 32.º da CRP é directamente aplicável, por se estar perante uma situação que se prende com a liberdade de um cidadão e os seus direitos de defesa.

6 - É inconstitucional a interpretação dos artigos 58.º, n.º l, alínea b), 61.º, alíneas b) e e), 63.º, n.º 1, alínea a), 64.º, n.º 1, e 194.º, n.º 2, do CPP, segundo a qual não é permitido ao arguido, através do seu defensor, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido por mandado de detenção emitido fora de flagrante delito pelo Ministério Público, pronunciar-se sobre a medida de coacção promovida, especialmente tratando-se da prisão preventiva. Esta interpretação diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial das normas dos artigos 27.º e 28.º, n.º 4, nega garantias de defesa previstas no artigo 32.º, n.º 1, impede o contraditório e afronta o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, todos da Constituição da Republica Portuguesa.

7 - Está em causa a liberdade do arguido e os seus direitos de defesa, pelo que, nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da CRP, a violação daqueles princípios e direitos implica que as normas constitucionais que os protegem sejam directamente aplicáveis, configurando-se como uma nulidade insanável.

8 - Prescindir da importância dos valores, direitos e interesses em causa, para qualificar como irregularidade a consequência da sua violação, é configurar o processo penal com injusto, não equitativo, e, como tal, lesivo dos direitos de defesa do arguido, garantidos pelo artigo 32.º, n.º 1, da CRP."

O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional contra-alegou, concluindo:

"1 - Não é inconstitucional uma interpretação normativa segundo a qual, no acto de interrogatório judicial de arguido detido, devidamente assistido por advogado com procuração nos autos, a sua não audição relativamente à aplicação da medida de prisão preventiva, promovida pelo Ministério Público, acompanhada pela ausência de fundamentação quanto à sua desnecessidade e inconveniência, constitui mera irregularidade prevista no artigo 123.º, com referência à omissão do estabelecido no artigo 194.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

2 - Termos em que deverá não proceder o presente recurso."

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

2 - Fundamentação.

2.1 - Cumpre, antes de mais, precisar o objecto do presente recurso, cuja delimitação é, desde logo, feita no respectivo requerimento de interposição (sem possibilidade de alargamento nas subsequentes alegações), mas que, além disso, se há-de circunscrever à dimensão normativa que, coincidentemente, tenha sido arguida de inconstitucional pelo recorrente e tenha sido aplicada, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido.

Nos autos, foram defendidas, sobre a questão ora em causa, três posições: i) segundo a juíza de Instrução, em rigor, nem sequer era devida a audição do arguido sobre a promoção do Ministério Público quanto à medida de coacção a aplicar; ii) segundo o arguido, essa audição é devida (a menos que se invocasse e justificasse a sua impossibilidade ou inconveniência), gerando a sua omissão uma nulidade insuprível; e iii) segundo o acórdão recorrido, essa audição é devida (salvo invocação fundamentada de impossibilidade ou inconveniência), mas a sua omissão é considerada mera irregularidade, que se sana se não for arguida no próprio acto.

É esta última a dimensão normativa cuja conformidade constitucional cumpre apreciar, quer por ter sido ela a identificada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (nos termos do qual se considerava contender com o disposto nos artigos 18.º, 27.º, 28.º, n.º 4, e 32.º, n.os 1 e 5, da CRP a interpretação reportada aos artigos 61.º, alíneas a), b) e c), 118.º, 119.º, 120.º, 123.º e 194.º, n.º 2, todos do CPP, com o sentido de que constitui uma mera irregularidade a não audição do arguido, sem fundamentação da desnecessidade ou inconveniência dessa audição, sobre a aplicação da medida de coacção requerida pelo Ministério Público no termo do primeiro interrogatório de arguido detido), quer por ter sido a aplicada, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido.

Constitui, assim, objecto do presente recurso a questão de constitucionalidade da interpretação das normas dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b) ["1 - O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de: [...] b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte; [...]"], 118.º, n.os 1 e 2 ("1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei. 2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular [...]"), 119.º [que enumera as nulidades insanáveis, referindo, na alínea c), "a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência"), 120.º (que enumera as nulidades dependentes de arguição], 123.º, n.º 1 ("1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado"), e 194.º, n.º 2 ("2 - A aplicação referida no número anterior [aplicação de medida de coacção, por despacho do juiz, sob promoção do Ministério Público] é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial"), do CPP, no sentido de que constitui mera irregularidade, a arguir no próprio acto, a prolação de despacho judicial a determinar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva do arguido, na sequência de promoção do Ministério Público, sem que ao arguido, representado por mandatário constituído, presente ao acto, tenha sido dado oportunidade de se pronunciar sobre essa promoção, e sem se invocar razão justificativa da impossibilidade ou inconveniência dessa audição.

2.2 - O Tribunal Constitucional ainda não foi chamado a pronunciar se sobre a específica questão de inconstitucionalidade ora em causa, mas podem encontrar-se, em anteriores decisões, elementos úteis para a apreciação do presente recurso, designadamente versando sobre casos em que igualmente se discutia a constitucionalidade da consequência (nulidade insanável, nulidade dependente de arguição ou mera irregularidade) ligada a nulidades processuais praticadas na presença do arguido e do seu defensor, a saber:

Acórdão 429/95, que não julgou inconstitucional, face aos princípios do contraditório e das garantias de defesa do arguido, constantes dos n.os 1 e 5 do artigo 32.º da CRP, as normas do artigo 343.º, n.º 4, conjugada com a do artigo 120.º, do CPP, interpretadas no sentido de que a nulidade prevista na primeira das referidas normas ("Respondendo vários co-arguidos, o presidente determina se devem ser ouvidos na presença uns dos outros; em caso de audição separada, o presidente, uma vez todos os arguidos ouvidos e regressados à audiência, dá-lhes resumidamente conhecimento, sob pena de nulidade, do que se tiver passado na sua ausência") é sanável;

Acórdão 208/2003, que não julgou inconstitucionais, face ao artigo 32.º, n.º 1, da CRP, as normas dos artigos 363.º e 123.º do CPP, interpretadas no sentido de que a omissão da documentação das declarações orais prestadas em audiência perante o tribunal colectivo constitui mera irregularidade, que tem de ser invocada até ao final da audiência em 1.ª instância; e

Acórdão 203/2004, que julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a norma constante do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de ela impor a arguição, no próprio acto, de irregularidade cometida em audiência de julgamento (no caso, a falta de documentação da prova produzida em julgamento por deficiência técnica de videoconferência), perante tribunal singular, independentemente de se apurar da cognoscibilidade do vício pelo arguido, agindo com a diligência devida.

2.3 - Antes de referenciarmos essas decisões, interessará precisar os parâmetros constitucionais relevantes no presente caso, já que o recorrente invocou o artigo 18.º (enquanto consagrador do princípio da proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais), 27.º (sem indicação específica de qualquer dos seus cinco números), 28.º (com menção específica do seu n.º 4) e 32.º, n.º 1, da CRP.

Ora, entende-se que, tal como nos anteriores acórdãos citados, o princípio constitucional mais relevante é o das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, associado ao princípio do contraditório e sempre iluminado pelo princípio da proporcionalidade. Na verdade, a dimensão normativa ora em causa não contende directamente com o direito à liberdade (com este estão mais directamente ligadas as normas utilizadas no despacho que decretou a prisão preventiva, objecto de diferente recurso), consagrado e desenvolvido no artigo 27.º, nem com a disposição do n.º 4 do artigo 28.º, invocada pelo recorrente, que estabelece que a prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos pela lei. Deste preceito, poderia, à primeira vista, surgir com relevância o disposto no seu n.º 1, que estabelece: "A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa." No entanto, há que distinguir, como realidades processuais distintas que são, por um lado, o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, a que respeita este artigo 28.º, n.º 1, da CRP, e se encontra regulado no artigo 141.º do CPP, relativamente ao qual nenhuma questão de constitucionalidade foi suscitada, e, por outro lado, a audição do arguido sobre a promoção que o Ministério Público, depois de findo o interrogatório do arguido, formule quanto à medida de coacção a aplicar, a que se refere o artigo 194.º, n.º 2, do CPP, ora em causa.

A questão de constitucionalidade em apreço há-de, pois, ser apreciada tendo fundamentalmente em causa o princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, conjugado com o princípio do contraditório, tendo, a este propósito, este Tribunal reiteradamente expendido o entendimento que o citado Acórdão 429/95 formulou do seguinte modo:

"9 - Nos termos do artigo 32.º da Constituição, "o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa" (n.º 1), estabelecendo o n.º 5 do preceito que "o processo penal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório".

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista, 1993, Coimbra, p. 202), "a fórmula do n.º 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal".

Porém, ao invocar-se no preceito em questão o próprio princípio da defesa, está-se a chamar à colação o "núcleo essencial" de tal princípio, podendo assim atribuir-se a tal norma "um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em caso limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária" (cf. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, p. 51, e o Acórdão 164, da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário da República, 1.ª série, de 30 de Dezembro de 1986).

A norma do n.º 1 do artigo 32.º, enquanto "cláusula geral" que permita identificar outras possíveis concretizações judiciais do princípio da defesa não referenciadas no preceito, não pode deixar de configurar o processo criminal como um due process of law que considere ilegítimas quer normas processuais quer procedimentos decorrentes das mesmas que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (neste sentido, Acórdãos n.os 337/86 e 61/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º e 11.º vols., pp. 277 e 611, respectivamente).

Por outro lado, o princípio do contraditório, expressamente referido no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição, deve subordinar não só a audiência de julgamento como também todos os actos instrutórios que a lei determinar.

O processo penal de um Estado de direito deve realizar primordialmente dois objectivos essenciais: por um lado, permitir que o Estado realize o direito de punir e, por outro, permitir que, na realização de tal finalidade, sejam concedidas aos cidadãos as garantias indispensáveis para os proteger contra eventuais abusos de tal poder de punir. Para concretizar tais fins, as garantias de defesa impõem a observância de princípios processuais criminais constitucionalizados, como é o caso do princípio do acusatório (um dos princípios estruturantes da constituição processual penal), do princípio do contraditório, do princípio da igualdade de armas, dos princípios da oralidade e da imediação.

No que respeita ao princípio do contraditório aqui em questão, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (ibidem, p. 206): "Relativamente aos destinatários, ele significa: a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir lhes uma influência executiva no desenvolvimento do processo; c) em particular, o direito de o arguido intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 54/87 e 154/87)."

Os mesmos autores referem que "quanto à sua extensão processual, o princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição, e em especial a audiência de discussão e julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar, devendo estes ser seleccionados sobretudo de acordo com o princípio da máxima garantia de defesa do arguido" (ibidem).

O princípio traduz-se, assim, na estruturação da audiência e dos outros actos instrutórios que a lei determinará, como uma discussão entre a acusação e a defesa, em que se procura também realizar a igualdade de armas entre os sujeitos do processo, cada um apresentando os seus argumentos e as suas provas, submetendo uns e outros ao controlo das razões e das provas apresentadas pelos outros sujeitos, assim participando activamente na formação da decisão que vier a ser tomada pelo juiz."

2.4 - Este mesmo Acórdão 429/95, a propósito do regime das invalidades processuais penais, apresentou a seguinte síntese:

"7 - O artigo 118.º do CPP estabelece que "a violação ou a inobservância das disposições da lei" do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei' (n.º 1); quando assim não suceder, o acto ilegal é irregular (n.º 2). A norma enuncia o princípio da tipicidade ou da legalidade, pelo qual só algumas das violações das normas processuais é que têm como consequência a nulidade do respectivo acto, sendo razões de economia processual as que baseiam tal diferenciação.

Dentro das nulidades, o Código de Processo Penal distingue as nulidades insanáveis (ou absolutas), a que se refere o artigo 119.º, e as nulidades dependentes de arguição (ou nulidades relativas), a que se referem os artigos 120.º e 121.º O artigo 122.º regula os efeitos de declaração de nulidade e o artigo 123.º estabelece o regime das irregularidades.

As nulidades insanáveis são as que constam do artigo 119.º do CPP e ainda as que forem, como tal, identificadas em outras disposições do Código. Os comportamentos elencados nas seis alíneas do artigo 119.º respeitam à constituição do tribunal colectivo ou às regras que regulam a sua composição [alínea a)], à falta de promoção do processo pelo Ministério Público e à ausência deste em actos a que devia estar presente [alínea b)], à ausência do arguido e seu defensor quando devam estar presentes [alínea c)], à falta de inquérito ou de instrução quando sejam obrigatórios [alínea d)], à violação das regras de competência do tribunal, com ressalva do n.º 2 do artigo 32.º [alínea e)], e, por fim [alínea f)], refere a norma, como fundamento de nulidade insanável, o emprego de forma de processo especial em casos não previstos legalmente.

De acordo com o n.º 1 do artigo 120.º, "qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte".

Ao contrário das nulidades ditas insanáveis, as restantes nulidades ficam sanadas se os interessados renunciarem expressamente à sua arguição, tiverem aceite expressamente os efeitos do acto ou se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia. Também não é possível conhecer oficiosamente das nulidades ditas relativas, que funcionam apenas ope exceptionis, mostrando que elas tutelam predominantemente interesses privados, decorrendo também de tal estrutura funcional que o acto processual é originalmente válido, assim se mantendo se e enquanto a pessoa interessada o não invalidar, exercitando o direito de arguição. Com efeito, só podendo ser conhecidas mediante suscitação de quem tem interesse na observância da disposição processual violada ou omitida, se o interessado não proceder à sua arguição dentro do prazo legalmente fixado, a lei considera o acto como válido, pese embora o vício que o afecta.

De acordo com o preceituado no n.º 3 do artigo 120.º do CPP, são as seguintes as regras quanto à oportunidade de arguição das nulidades relativas: se a nulidade respeitar a acto a que o interessado assiste, deve argui-la antes que a realização do acto seja dada por finda; se o não fizer, fica precludida a possibilidade de o fazer mais tarde [alínea a)]; se a nulidade consistir em erro na forma do processo, o prazo de arguição é de cinco dias a contar da notificação do despacho que designou dia para a audiência [alínea b)]; se a nulidade disser respeito ao acto de inquérito ou de instrução a que o interessado não tenha estado presente, o prazo de arguição é o proferimento da decisão instrutória; não tendo havido instrução, o prazo é de cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito [alínea c)], se a nulidade disser respeito a acto relativo a uma forma de processo especial (sumário e sumaríssimo), o prazo da sua arguição é o início da audiência [alínea d)].

De acordo com o preceituado no artigo 122.º do CPP, "as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar" (n.º 1), devendo a declaração de nulidade determinar quais os actos inválidos e ordenar - se necessário e possível - a sua repetição com custas por quem, culposamente, deu causa à nulidade (n.º 2), aproveitando todos os actos que puderem ser salvos (n.º 3)."

2.5 - Foi no contexto assim delineado que, como se referiu, o Tribunal já foi chamado a apreciar distintas situações de invalidades processuais praticadas na presença do arguido, assistido por defensor.

No caso do Acórdão 429/95, o juízo de não inconstitucionalidade então emitido foi assim alicerçado:

"8 - Voltando ao caso dos autos, constata-se que da acta de julgamento não decorre que, tendo os co-arguidos sido ouvidos separadamente, o Presidente do Tribunal os tenha informado, uma vez regressados todos à audiência, do que na sua ausência se tinha passado. Esta omissão - a ter de facto ocorrido, como os recorrentes referem - consubstancia uma nulidade que, na falta de referência expressa da lei, se tem de ter por uma nulidade dependente de arguição e, por isso mesmo, sanável até ao termo da audiência, à face do Código de Processo Penal - artigos 119.º, 120.º e 121.º

Os recorrentes, porém, questionam esta interpretação feita na decisão, propugnando a sua inconstitucionalidade, por entenderem que ela viola o princípio das garantias de defesa do arguido e o princípio do contraditório, constantes do artigo 32.º, n.os 1 e 5, da Constituição, na medida em que tal nulidade depende de arguição dentro de um prazo.

Vejamos se assim é, de facto.

9 - [Transcrito supra, n.º 2.3.]

A consideração da omissão de informação por parte do Presidente do Tribunal do que se passou na audiência durante a ausência dos arguidos, no caso de prestação de declarações separadas, como nulidade dependente de arguição e sanável se não for arguida até ao final da audiência, implicará a violação destes princípios da defesa do arguido e do contraditório?

10 - O que os recorrentes verdadeiramente questionam é a conformidade constitucional das normas que estabelecem nulidades relativas, dependentes de arguição e sanáveis, designadamente quando tais nulidades resultem de violação do princípio do contraditório e possam afectar as garantias de defesa do arguido.

As nulidades a que se referem os artigos 118.º a 123.º do CPP reportam-se apenas aos vícios formais, isto é, à inobservância das prescrições legais estabelecidas para a prática dos actos processuais. Uma vez que estes actos se inserem e constituem a complexa unidade que é o processo, em que cada acto é condicionado pelo precedente e condiciona o [subsequente], um acto viciado contamina os subsequentes e pode afectar o termo do próprio processo - a decisão. Porém, não pode ignorar-se que, face à comunicação de um vício formal aos actos subsequentes, os danos resultantes da declaração de nulidade podem ser muito graves, levando inclusivamente à perda do direito que se pretende obter, desde logo, por exemplo, por se não poderem já repetir certas provas.

Assim, exigências deste tipo levam a que o legislador não coloque todos os vícios formais no mesmo plano e venha a graduar os seus efeitos de acordo com a respectiva gravidade, função que tem o princípio da tipicidade dos vícios.

Ora, a omissão do dever de informação, que parece ter ocorrido nos presentes autos, envolve claramente um vício processual que a lei qualifica de nulidade e que, tendo ocorrido no decurso de um acto - a audiência - a que os recorrentes estiveram presentes (salvo durante a audiência dos co-arguidos), tinha de ser arguida pelos interessados até ao termo da respectiva audiência - o que não foi feito.

É manifesto que não tendo o Presidente informado os arguidos do que se tinha passado na audiência durante a sua ausência logo que todos a ela regressaram, tal omissão podia afectar o direito de defesa de cada um dos co-arguidos, impedindo o exercício do direito destes de contraditarem o que fora dito, visto tratar-se de matéria de que lhes não fora dado conhecimento.

Mas o direito de defesa, e o direito ao contraditório que neste se tem de considerar incluído, está, no caso, garantido pela cominação legal de uma nulidade, cujo prazo de exercício dura tanto tempo quanto tempo durar a própria audiência. Assim, cada um dos co-arguidos, devidamente representado pelo defensor, pôde, enquanto durou a audiência de discussão e julgamento da causa e até ao seu termo, arguir tal nulidade, que, a ter-se de facto praticado, levaria a que o Presidente reparasse a omissão praticada e assim repusesse, em pleno, o direito de contraditar o que fora dito pelos co-arguidos na ausência do arguente.

Com efeito, como bem faz ressaltar o procurador-geral-adjunto neste Tribunal nas suas alegações, no processo penal existem outros valores relevantes para além do direito da defesa à obtenção de uma sentença absolutória:

O dever de diligência do arguido e, muito em particular, do defensor que obrigatoriamente o deve assistir ao longo do processo (e da audiência) - que obviamente deverão de imediato reagir contra as nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspectiva de defesa, não podendo naturalmente escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber;

Dever de boa fé processual, que naturalmente impedirá que possam - arguido e defensor - ser tentados a aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando a como um "trunfo" para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado.

Mas, para além destas considerações, o que importa ponderar é que, em casos como o dos autos, em que o defensor esteve sempre presente em todos os actos da audiência, o facto de a lei de processo cominar com a sanção da nulidade a omissão do dever de informação por parte do Presidente do Tribunal do teor das declarações dos co-arguidos a que cada um deles não assistiu, logo que todos tenham regressado à audiência, é forma suficiente de dar cumprimento ao direito do contraditório.

Com efeito, praticada nulidade na audiência, estando presentes todos os co-arguidos interessados na sua eventual arguição, fica esta apenas dependente de um acto do interessado, concedendo a lei um prazo suficientemente dilatado para o fazer: até ao termo da audiência.

Torna-se, assim, manifesto que o procedimento em causa, ao impor ao interessado a arguição da nulidade dentro de um prazo razoável para poder dar-se plena exequibilidade ao direito de defesa do arguido não informado do teor das declarações dos outros co-arguidos, não implica um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do mesmo arguido. Verdadeiramente, nem sequer se poderá falar de qualquer "encurtamento", pois o direito de contraditório apenas necessita para se desenvolver de pleno, como se referiu, da dedução pelo interessado da nulidade praticada.

É que a garantia do direito de defesa está ressalvada pela norma em causa; apenas exige que seja o arguido a desencadear atempadamente tal direito, arguindo o acto de nulo, ou logo após o cometimento da omissão da exigência legal ou até ao termo de respectiva audiência.

Os recorrentes não deixaram, por isso, de ver garantido o seu direito de conhecerem e de se pronunciarem sobre todos os factos, meios de prova, razões ou argumentos carreados para a audiência de julgamento, tendo tido a possibilidade de participarem na formação da decisão, quer pela forma positiva quer pelo seu comportamento de, podendo arguir a nulidade em causa, não o terem feito dentro do respectivo prazo.

Entende-se, nestas circunstâncias, que deve improceder a arguição de inconstitucionalidade da norma do artigo 343.º, n.º 4, conjugada com a do artigo 120.º, ambos do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a nulidade expressamente prevista no referido n.º 4 é sanável se arguida até ao termo da audiência, pois tal entendimento não viola nem o princípio do contraditório nem o das garantias de defesa, constantes dos n.os 1 e 5 do artigo 32.º da Constituição da República."

No Acórdão 208/2003, confrontado com a questão de saber "se é materialmente inconstitucional, designadamente por violação do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a interpretação normativa dos artigos 123.º e 363.º do Código de Processo Penal, que se traduz em considerar que a omissão de documentação das declarações orais prestadas em audiência perante o tribunal colectivo constitui mera irregularidade, que deve ser arguida até ao final da audiência", o Tribunal Constitucional, após recordar a sua jurisprudência sobre o sentido e alcance do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, consignou:

"Do que antecede decorre que a resposta à questão de constitucionalidade que agora vem colocada depende da questão de saber se a imposição ao arguido de que suscitasse, durante a audiência perante o tribunal colectivo, o vício procedimental nela verificado e traduzido na omissão de documentação das declarações orais nela prestadas, traduz ou não uma "diminuição inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável" (para usar as palavras do citado Acórdão 61/88), das suas garantias de defesa.

Julgamos, efectivamente, que não.

Desde logo haverá que referir que a solução se justifica, manifestamente, por evidentes razões de celeridade e economia processuais. Na realidade, não se perceberia que, agindo o arguido ou o seu defensor com a devida diligência e boa fé e tendo detectado o vício procedimental, ou tendo obrigação de o detectar, nessa fase processual, pudessem deixar que a audiência continuasse a decorrer como se nada de irregular se passasse, para só mais tarde, já em fase de recurso, o virem então invocar.

Acresce - como, bem, evidencia o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto na sua alegação - que a imposição ao arguido, necessariamente assistido no processo por um defensor, do ónus de invocar no decurso da audiência - que, no caso dos presentes autos, até se prolongou por vários meses - um vício procedimental que nela está precisamente a acontecer - e que, portanto, não deveria passar despercebido a um acompanhamento diligente dessa fase processual - manifestamente não implica um cerceamento inadmissível ou insuportável das suas possibilidades de defesa que se tenha de considerar desproporcionado ou intolerável, em termos de consubstanciar solução constitucionalmente censurável, na perspectiva do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

Não poderá, por isso, sequer afirmar-se que aqueles objectivos de celeridade e economia processuais sejam, neste caso, alcançados à custa de uma intolerável diminuição das garantias de defesa do arguido."

Finalmente, no Acórdão 203/2004, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a norma constante do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de ela impor a arguição, no próprio acto, de irregularidade cometida em audiência de julgamento (no caso, a falta de documentação da prova produzida em julgamento por deficiência técnica de videoconferência), perante tribunal singular, independentemente de se apurar da cognoscibilidade do vício pelo arguido, agindo com a diligência devida. Começando por recordar a anterior jurisprudência do Tribunal, terminando com a citação do Acórdão 208/2003, ponderou se:

"Atendendo, em particular, a este último acórdão [o Acórdão 208/2003], importa salientar que decisivo para o juízo de não inconstitucionalidade ali formulado foi o entendimento de que impende sobre o arguido ou seu defensor, agindo com a devida diligência e boa fé, a obrigação de detectar o vício procedimental que ocorre no decurso da audiência de julgamento perante tribunal colectivo e consistente na omissão de documentação das declarações orais nela prestadas.

É diversa a situação no caso em que a omissão se traduz, como se disse, na não gravação de depoimento oral prestado em videoconferência durante uma audiência de julgamento que decorre perante juiz singular e onde não ocorreu renúncia ao recurso em matéria de facto.

E vale para iluminar essa mesma situação que dos autos resulta ter o defensor do recorrente solicitado - e com insistência - à juíza que presidia ao julgamento a verificação do efectivo registo da gravação em perfeitas condições técnicas, o que sempre foi recusado.

Ora, se a qualificação como "irregularidade", para efeitos do disposto no artigo 123.º, n.º 1, do CPP, pressupõe, como se diz no acórdão do STJ de fixação de jurisprudência 5/2002, in Diário da República, 1.ª série-A, de 17 de Julho de 2002, uma "violação de lei processual" que se reporta "a uma norma que tutela interesses de menor gravidade", tal não significa que seja sempre assim, podendo até a "irregularidade" pôr em causa a validade do acto processual, caso em que o n.º 2 do preceito permite a sua reparação oficiosa.

Não se quer com isto dizer que, no caso, a "irregularidade" afectasse a validade do julgamento. De todo o modo, ela pode afectar interesses ou direitos constitucionalmente protegidos dos arguidos.

O caso é, aliás, disso exemplo, pois, segundo o recorrente - que não tinha renunciado ao recurso em matéria de facto - era importante para a sua defesa, por via de recurso, o depoimento que não foi registado na gravação da videoconferência.

Mas, sendo assim, não pode deixar de se reconhecer que prescindir da indagação sobre a diligência e zelo do interessado no conhecimento da omissão verificada, tida como irregularidade, para decretar a intempestividade da arguição por não ter sido feita no acto, é modelar o processo penal com um unfair process, não equitativo, e, como tal, lesivo dos direitos de defesa do arguido garantidos pelo artigo 32.º, n.º 1, da CRP.

Mesmo que a exigência de arguição de irregularidade no próprio acto seja eventualmente justificada por estarem em jogo "interesses de menor gravidade", sempre será desproporcionada a restrição daqueles direitos quando se considera irrelevante a cognoscibilidade do vício em causa."

2.6 - No presente caso, diferentemente da situação sobre que recaiu o Acórdão 203/2004, é patente e não vem sequer questionada a cognoscibilidade da irregularidade cometida e, por outro lado, está assente que o arguido, assistido pelo mandatário constituído, esteve presente no acto em que foi proferido o decretamento da prisão preventiva, sem que previamente, sobre a promoção do Ministério Público nesse sentido, tivesse sido ouvida a defesa nem invocada qualquer razão para considerar impossível ou inconveniente essa audição.

Saliente-se que o defensor do arguido era um advogado por ele constituído, o que indicia uma relação de confiança pessoal e de reconhecimento de competência técnica por parte do arguido, e não um defensor oficioso, designadamente defensor nomeado ad hoc para o acto.

Tratando-se de um vício de fácil detecção, directa e imediata, e encontrando-se o arguido pessoalmente assistido no acto por profissional forense por ele constituído, não se afigura que constitua um ónus excessivo, intolerável ou desproporcionado a imposição da arguição, no próprio acto, da irregularidade efectivamente cometida, em termos de fulminar a interpretação normativa seguida no acórdão recorrido com um juízo de inconstitucionalidade, por violação das garantias de defesa e dos princípios do contraditório e da proporcionalidade.

3 - Decisão. - Em face do exposto, acordam em:

a) Não julgar inconstitucional a interpretação das normas dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), 118.º, n.os 1 e 2, 119.º, 120.º, 123.º, n.º 1, e 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no sentido de que constitui irregularidade, a arguir no próprio acto, a prolação de despacho judicial a determinar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva do arguido, na sequência de promoção do Ministério Público formulada após o termo do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, sem que este, assistido por mandatário por ele constituído, presente ao acto, tenha sido ouvido sobre essa promoção, sem invocação fundamentada de impossibilidade ou inconveniência dessa audição; e, em consequência,

b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.

Lisboa, 31 de Maio de 2006. - Mário José de Araújo Torres (relator) - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Benjamim Silva Rodrigues - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1500460.dre.pdf .

Ligações deste documento

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  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1993-01-22 - Decreto-Lei 15/93 - Ministério da Justiça

    Revê a legislação do combate à droga, definindo o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2002-07-17 - Jurisprudência 5/2002 - Supremo Tribunal de Justiça

    Fixa a seguinte jurisprudência: a não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123º do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer. (Processo nº 2979/2001-3ªSecção)

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