Acórdão 4/2005
AG - n.º 3951/2004 (ver nota 1) - 4.ª Secção. - Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, no plenário da Secção Social:
I - Em acção emergente de acidente de trabalho, movida por Maria José Soares da Rocha, residente no lugar do Pereiro, São Paio da Portela, Entre-os-Rios, por si e como legal representante de seus filhos, Fábio José Soares Ferreira e Rui Daniel Soares Ferreira, na altura menores, contra GRANIRAIA - Granitos da Raia, Lda., com sede em Nave, Soito, no concelho do Sabugal, foi esta condenada a pagar, em duodécimos, as seguintes pensões anuais, vitalícias e actualizáveis:
À autora Maria José, a pensão de 442512$00;
Aos menores Fábio e Rui, a de 590016$00, pensões devidas desde 26 de Abril de 1996 e acrescidas de valor igual ao montante do duodécimo de tais pensões, a pagar no mês de Dezembro de cada ano.
Uma vez que a ré, entidade patronal, foi declarada em estado de falência, o Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) passou a assegurar, a partir de 26 de Abril de 1996, o pagamento das pensões devidas aos beneficiários.
Informando o FAT, por ofício datado de 2 de Janeiro de 2004, que, nessa data, o valor da pensão anual devida à beneficiária Maria José, da sua inteira responsabilidade, era de (euro) 2553,61, o Exmo. Magistrado do Ministério Público promoveu que se procedesse ao cálculo do capital de remição dessa pensão, com fundamento em que a mesma se tornara obrigatoriamente remível a partir de 1 de Janeiro de 2004.
Por despacho proferido em 19 de Janeiro de 2004, foi admitida tal remição.
Inconformado, o FAT agravou deste despacho, mas sem sucesso, pois o Tribunal da Relação negou-lhe provimento.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso.
Eis as conclusões do agravante FAT:
"a) A remição de pensões fixadas na vigência da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, beneficiam, nos termos do artigo 41.º, n.º 2, alínea a), da Lei 100/97, de um regime transitório, quando digam respeito a incapacidades permanentes inferiores a 30% ou a pensões vitalícias de reduzido montante e às remições previstas no artigo 33.º, n.º 2 (remições parciais).
b) Tratando-se de incapacidades permanentes superiores a 30% ou pensões por morte, como é o caso dos autos, há que aferir em primeiro lugar se a pensão é de reduzido montante, ou seja, inferior a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão, para depois escalonar a sua remição no tempo, conforme os escalões previstos no artigo 74.º do Decreto-Lei 143/99, de 30 de Abril.
c) A pensão anual fixada à beneficiária Maria José Soares da Rocha, viúva do sinistrado de morte Rui Manuel Ferreira da Silva, no valor de (euro) 2207,24 (442512$00), com início em 26 de Abril de 1996, não é de reduzido montante e como tal não é remível, por ser superior a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão.
d) Vencendo o entendimento do acórdão recorrido, isso teria efeitos devastadores, já que seriam remíveis em massa todas as pensões emergentes de acidentes de trabalho, ocorridos antes de 1 de Janeiro de 2000.
e) Restariam, apenas, as pensões já fixadas ao abrigo da nova LAT (Lei 100/97, de 13 de Setembro), quando resultantes de incapacidades superiores a 30% e não fossem de reduzido montante.
f) Não foi certamente esse o entendimento do legislador ao estabelecer os escalões previstos no artigo 74.º do Decreto-Lei 143/99, nem será, com certeza, aquele que atenderá aos interesses dos sinistrados/beneficiários, em particular os que possuem incapacidades que não permitam auferir outro rendimento.
g) Deve, por isso, ser revogado o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que declare a pensão em causa não remível.»
Nas contra-alegações, o Ministério Público defendendo que a remição das pensões vitalícias fixadas ao abrigo da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, está apenas sujeita ao regime transitório de remição previsto no artigo 74.º do Decreto-Lei 143/99, de 30 de Abril - posição assumida no acórdão recorrido - termina sugerindo que nos termos e para os efeitos do artigo 732.º-A, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, na actual redacção (aqui aplicável - artigos 17.º e 25.º, ambos do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro), o presente recurso seja julgado com intervenção do plenário da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, fixando-se a seguinte jurisprudência:
"A remição das pensões vitalícias fixadas ao abrigo da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, está apenas condicionada pelo regime transitório de remição previsto no artigo 74.º do Decreto-Lei 143/99, de 30 de Abril.»
Fundamenta-se no facto de haver um grande número de decisões já proferidas, que identifica, e existir uma diversidade de posições tomadas sobre a mesma questão fundamental de direito e no domínio da mesma legislação.
Concordando com o parecer da relatora, a fls. 242 e seguintes, o Exmo. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça decidiu que o julgamento se fizesse com intervenção do plenário da Secção Social.
A Exma. Magistrada do Ministério Público, depois de fazer uma resenha histórica do acidentado percurso das questões suscitadas no âmbito do regime de remição de pensões, pronuncia-se no sentido de que a jurisprudência seja uniformizada relativamente ao critério a atender para saber se uma pensão fixada ao abrigo da Lei 2127 é ou não remível, propondo a seguinte formulação ou outra equivalente:
"1 - O critério a atender para se saber se uma pensão fixada ao abrigo da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, é ou não remível deverá fundamentar-se nos dois pressupostos estabelecidos no artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 143/99, de 30 de Abril, reportando-se ambos os pressupostos à data da fixação da pensão.
2 - A pensão considera-se fixada no dia seguinte àquele em que foi declarada terminada a incapacidade do sinistrado ou, em caso de morte deste, no dia seguinte ao do óbito.
3 - O disposto no artigo 74.º do referido Decreto-Lei 143/99, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 382-A/99, de 22 de Setembro, apenas impõe o quadro em que deve ser efectuada a concretização gradual das pensões a remir nos termos do artigo 56.º atrás referido, relevando para o efeito, o valor actualizado da pensão.»
No estrito âmbito do recurso de agravo, emite parecer no sentido de o mesmo obter provimento, considerando-se que a pensão em causa não é remível.
II - Como refere Amâncio Ferreira (ver nota 2), "a uniformização da jurisprudência, no caso da nossa lei processual civil, comum e laboral, faz-se presentemente por meio da revista» e do agravo interpostos na 2.ª instância, que para o efeito se ampliam, em plena tramitação, com intervenção no seu julgamento do plenário ou das secções cíveis ou da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, como resulta dos artigos 732.º-A e 762.º, n.º 3, segunda parte, do Código de Processo Civil e do artigo 87.º do Código de Processo de Trabalho».
Assim, impõe-se decidir o objecto do presente agravo, ou seja, se a pensão devida à beneficiária Maria José é ou não remível e, ao mesmo tempo, uniformizar a jurisprudência quanto à questão que lhe está subjacente - o critério a atender para esse efeito.
III - Factos considerados provados:
1) O sinistrado Rui Manuel Ferreira da Silva sofreu um acidente de trabalho mortal no dia 25 de Abril de 1996;
2) Deixou como beneficiária legal a viúva Maria José Soares da Rocha, a quem, com início no dia 26 de Abril de 1996, foi fixada a pensão anual e vitalícia de 442512$00;
3) Tal pensão é paga pelo FAT, a qual se encontra actualizada para o montante anual de (euro) 2553,61;
4) Por despacho a fl. 157 foi ordenada a remição de tal pensão com efeitos reportados a 1 de Janeiro de 2004.
IV - Apreciando.
Na 1.ª instância, entendeu-se que, sendo o montante actualizado da pensão não superior a (euro) 2992,79, a mesma tornara-se obrigatoriamente remível desde 1 de Janeiro de 2004, em consonância com o disposto no artigo 74.º do Decreto-Lei 143/99, de 30 de Abril, este na redacção que lhe foi dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei 382-A/99, de 22 de Setembro.
O acórdão recorrido confirmou o decidido.
Eis, em síntese, a sua fundamentação:
O disposto no artigo 56.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei 143/99, de 30 de Abril, porque não diz respeito a qualquer regime transitório, só poderá ser aplicado a acidentes ocorridos depois da sua entrada em vigor;
A prevalecer o entendimento da recorrente, ficaria sempre a questão de saber a que valor atender (como termo de comparação) no caso de a pensão ter sido fixada em anos anteriores à instituição do salário mínimo nacional (só instituído em 1974 pelo Decreto-Lei 217/74, de 27 de Maio);
Logo, relativamente aos acidentes ocorridos antes de 1 de Janeiro de 2000, portanto na vigência da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, e do Decreto 360/71, de 21 de Agosto, e para efeitos de saber se a pensão é ou não remível há que atender apenas aos valores que constam do artigo 74.º (com a epígrafe "Regime transitório de remição de pensões») do Decreto-Lei 143/99, de 30 de Abril.
O agravante discorda deste entendimento.
Vejamos se tem razão (ver nota 3).
À data do acidente de trabalho e da fixação da pensão estava em vigor a Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, e o respectivo regulamento (Decreto 360/71, de 21 de Agosto).
Este o teor da base XXXIX daquela lei:
"Salvo tratando-se de doenças profissionais, serão obrigatoriamente remidas as pensões de reduzido montante, e poderá ser autorizada a remição quando deva considerar-se economicamente mais útil o emprego judicioso do capital.»
No regulamento (Decreto 360/71), a remição de pensões estava contemplada no seu capítulo VII (artigos 64.º e seguintes, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 459/79, de 23 de Novembro).
A remição podia ser obrigatória e autorizada pelo tribunal, atendendo-se, nesta graduação, não só ao quantitativo das pensões, mas também ao grau de desvalorização dos sinistrados.
Nos termos daqueles diplomas, seriam obrigatoriamente remidas as pensões devidas a sinistrados [...] que, cumulativamente, correspondessem a desvalorizações não superiores a 10% e não excedessem o valor da pensão calculada com base numa desvalorização de 10% sobre o salário mínimo nacional.
Eram facultativamente remidas, com autorização do tribunal, as pensões correspondentes a desvalorizações superiores a 10% e inferiores a 20%, desde que não excedessem o valor da pensão calculada com base numa desvalorização de 20% sobre o salário mínimo nacional e se considerasse economicamente mais útil o emprego judicioso do capital (artigo 64.º do citado Decreto 360/71).
Em suma, na vigência da Lei 2127, as pensões por morte ou resultantes de incapacidade permanente igual ou superior a 20% não eram remíveis.
A Lei 100/97 e o seu decreto regulamentar vieram alterar profundamente este regime: as pensões resultantes de incapacidades permanentes inferiores a 30% passaram a ser obrigatoriamente remidas [artigo 17.º, n.º 1, alínea d) da Lei 100/97 e artigo 56.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei 143/99], o mesmo acontecendo com as pensões vitalícias devidas por morte ou por incapacidade permanente igual ou superior a 30% desde que de reduzido montante [artigo 33.º da citada lei e artigo 56.º, n.º 1, alínea a) do decreto regulamentar].
O novo regime também veio permitir a remição parcial destas pensões (pensões vitalícias devidas por morte ou por incapacidade permanente igual ou superior a 30%), desde que respeitados os seguintes limites: a pensão sobrante não podia ser inferior a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada; o capital de remição não podia ser superior ao que resultaria de uma pensão calculada com base numa incapacidade de 30% (citado artigo 56.º, n.º 2).
A pensão devida à beneficiária Maria José não era obrigatoriamente remível à face da Lei 2127 e do seu regulamento.
Acontece que o novo regime de remição de pensões [introduzido pela Lei 100/97, de 13 de Setembro (LAT), e Decreto-Lei 143/99, de 30 de Abril (RLAT)], também se aplica às "pensões em pagamento, à data da sua entrada em vigor» (ver nota 4).
É o que resulta do artigo 41.º, n.º 2, alínea a), em articulação com o artigo 33.º, n.º 1, ambos daquela lei.
E a questão que se coloca é saber se a pensão vitalícia fixada nestes autos é obrigatoriamente remível, face ao novo regime.
Para o acórdão recorrido, a resposta encontra-se no artigo 74.º do Decreto-Lei 143/99, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 382-A/99, de 22 de Setembro; para o recorrente resultará da articulação desse preceito com o disposto na alínea a) do n.º 1 do citado artigo 56.º Por outras palavras, para saber se a pensão em causa nestes autos - pensão vitalícia por morte - é, ou não, obrigatoriamente remível deve atender-se apenas às datas e valores que constam do quadro referido naquele artigo (74.º) ou deve atender-se também à noção de reduzido montante dada neste preceito [artigo 56.º, n.º 1, alínea a)]?
Estamos, assim, perante uma questão de interpretação e de articulação de normas.
Concretamente:
Do artigo 41.º, n.º 2, alínea a) da Lei 100/97, onde se dispõe que o diploma regulamentar estabelecerá o regime transitório a aplicar à remição de pensões em pagamento, à data da sua entrada em vigor, e que digam respeito a incapacidades permanentes inferiores a 30% ou a pensões vitalícias de reduzido montante e às remições previstas no artigo 33.º, n.º 2;
Do artigo 74.º onde se estabelece que as remições das pensões previstas na alínea d) do n.º 1 do artigo 17.º e no artigo 33.º da lei, serão concretizadas gradualmente, nos termos do quadro seguinte: até Dezembro de 2000 (igual ou menor que) 80 contos ((euro) 399,04); até Dezembro de 2001 (igual ou menor que) 120 contos ((euro) 598,56); até Dezembro de 2002 (igual ou menor que) 160 contos ((euro) 798,08); até Dezembro de 2003 (igual ou menor que) 400 contos ((euro) 1995,19); até Dezembro de 2004 (igual ou menor que) 600 contos ((euro) 2992,79); até Dezembro de 2005 (igual ou menor que) 600 contos ((euro) 2992,79);
Do artigo 33.º, n.º 1, da Lei 100/97, onde se preceitua que, sem prejuízo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 17.º, são obrigatoriamente remidas as pensões vitalícias de reduzido montante, nos termos que vierem a ser regulamentados; e
Do artigo 56.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei 143/99, onde se dispõe que são obrigatoriamente remidas as pensões anuais devidas a sinistrados e a beneficiários legais de pensões vitalícias que não sejam superiores a seis vezes a remuneração mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão.
Interpretar, em matéria de leis, significa não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão literal, como também eleger, dentre as várias significações cobertas pela expressão, a verdadeira e decisiva.
O artigo 9.º do Código Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete.
"A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade o sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.» (N.º 1 da citada disposição.)
Com este limite, não pode "ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso».
Além disso, "na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.os 2 e 3 da mesma disposição).
O facto de o artigo 9.º afirmar que "a reconstituição do pensamento legislativo deve fazer-se a partir dos textos não significa, de modo nenhum, que o intérprete não possa ou não deva socorrer-se de outros elementos para esse efeito, nomeadamente do espírito da lei [...] (ver nota 5).»
A ratio legis é, justamente, o elemento da interpretação que estabelece o contacto entre a lei e a vida real, conferindo-lhe uma plasticidade que lhe permite não só disciplinar novas situações como carregar-se de sentidos novos, com que se vai acomodando a novas necessidades práticas e a novos ideais de justiça (ver nota 6).
Porém, se a lei a interpretar é actual, a sua razão (fim determinante) há-de coincidir "com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios.» (ver nota 7) (ver nota 8).
Olhando, antes de mais, à letra da lei, constata-se que o citado artigo 41.º, n.º 2, alínea a), embora remeta para o decreto regulamentar a definição do regime transitório da remição de pensões em pagamento, à data da sua entrada em vigor, não deixa de indicar as pensões (anteriores) que ficam sujeitas a esse regime transitório: as pensões que digam respeito a incapacidades permanentes inferiores a 30% ou a pensões vitalícias de reduzido montante e às remições previstas no artigo 33.º, n.º 2 (sublinhado nosso).
Por seu turno, o n.º 1 deste artigo 33.º, ao consagrar a remição obrigatória de pensões, refere expressamente que são obrigatoriamente remíveis as pensões vitalícias de reduzido montante, acrescentando "nos termos que vierem a ser regulamentados».
É o artigo 56.º, n.º 1, alínea a), que nos dá a noção de pensões vitalícias de reduzido montante (as que não sejam superiores a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão).
Finalmente, o artigo 74.º refere expressamente que ficam abrangidas pelo regime transitório "as remições das pensões previstas na alínea d) do n.º 1 do artigo 17.º e no artigo 33.º da lei». Logo, (também) as de reduzido montante, nos termos que vierem a ser regulamentados.
Daqui resulta que não se mostra conforme à letra da lei a interpretação do acórdão recorrido (na linha da orientação que defende que relativamente às pensões em pagamento em 1 de Janeiro de 2000, o reduzido montante se define apenas pelos valores referidos no quadro constante do artigo 74.º), na medida em que faz letra morta da referência expressa feita no corpo deste artigo aos citados preceitos.
Por outro lado, refere-se expressamente no preâmbulo do Decreto-Lei 143/99 que o regime transitório estabelecido no citado artigo 74.º (vontade real do legislador) visa permitir a "progressiva adaptação das empresas de seguros, que assim não se confrontarão com um pedido generalizado de remições com a inerente instabilidade que lhe estaria associada.»
Fica assim clara a "intenção do legislador», ao inserir naquele artigo um quadro com datas e valores: permitir uma concretização gradual das remições de pensão do regime transitório, sem grande perturbação para as entidades pagadoras.
Por outro lado, não é crível que com aquele regime transitório o legislador pretendesse consagrar um regime mais amplo - e substancialmente mais gravoso, no que toca à obrigatoriedade de remição - do que o que decorre da Lei 100/97 e seu regulamento, o que, além de atentar contra o princípio da igualdade, seria discrepante se tivermos presente que o regime de remição da Lei 2127 era muito mais restritivo que o actual. Seguindo a interpretação do acórdão recorrido, chegaríamos a este resultado: a partir de 1 de Janeiro de 2005, todas as pensões (em pagamento) de valor superior a (euro) 2992,79 (600000$00) seriam remíveis (quer fossem pensões por morte, quer resultantes de incapacidade permanente igual ou superior a 30%).
Acresce que admitir a consagração duma dualidade de critérios - às novas pensões aplicava-se o critério do reduzido valor que decorre do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), enquanto às anteriores o que resulta do artigo 74.º - seria reconhecer, sem explicação plausível, uma desarmonia dentro do próprio sistema, o que não se coaduna com a ideia de um legislador razoável, nem com o espírito da lei. Como ensina Inocêncio Galvão Telles (in Introdução ao Estudo do Direito, reimpressão, com notas actualizadas, 1990, p. 169), a interpretação tem de se fazer, "teleologicamente, em vista do fim prático a que a lei se destina, de maneira a esta poder satisfazer convenientemente esse fim e ser coerentemente e correctamente aplicada».
Não pesa o argumento invocado no acórdão recorrido de que, a aplicar-se o critério consagrado no citado artigo 56.º, n.º 1, alínea a), as pensões fixadas antes de 1974 (ano em que foi instituído o salário mínimo nacional - Decreto-Lei 271/74) nunca poderiam ser remidas. Como sabemos, a lei prevê mecanismos para fazer face a tais situações.
Assim e como vem sendo decidido unanimemente por este Supremo Tribunal, entende-se que para saber se uma pensão vitalícia resultante de acidente ocorrido antes de 1 de Janeiro de 2000 é de reduzido montante atende-se ao critério que resulta do citado artigo 56.º, n.º 1, alínea a); para efeitos de concretização gradual das remições de pensão, releva o quadro estabelecido no citado artigo 74.º (ver nota 9).
Logo, contrariamente ao defendido no acórdão recorrido, a solução não está apenas neste preceito, mas passa pela sua articulação com o preceituado naquele artigo 56.º E segundo esta disposição, a remição obrigatória está dependente de dois factores: o valor da pensão vitalícia e o valor da remuneração mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão.
Recentemente, o Tribunal Constitucional decidiu "julgar inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, o artigo 74.º do Decreto-Lei 143/99, de 30 de Abril, na redacção do Decreto-Lei 382-A/99, de 22 de Setembro), interpretado no sentido de impor a remição obrigatória total de pensões vitalícias atribuídas por incapacidades parciais permanentes nos casos em que estas excedam 30%» (Acórdão 56/2005, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 3 de Março de 2005).
Esta tomada de posição, vinculada à formulação da questão concretamente suscitada perante o Tribunal Constitucional, representa um contributo importante para a resolução do caso em apreço, na medida em que repudia o entendimento defendido no acórdão recorrido de que, relativamente aos acidentes ocorridos antes de 1 de Janeiro de 2000, portanto na vigência da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, e do Decreto 360/71, de 21 de Agosto, e para efeitos de saber se a pensão é ou não remível, haverá apenas que atender aos valores que constam do artigo 74.º
Assente que ao caso dos autos se aplica o critério consagrado no citado artigo 56.º, n.º 1, alínea a), impõe-se, agora, interpretar a expressão "à data da fixação da pensão».
Antes de mais, ela não pode ser entendida como a data da decisão judicial que a fixou, mas antes a data a partir da qual a pensão é devida: em caso de morte, o dia seguinte ao falecimento do sinistrado - cf. artigo 49.º, n.º 7, do Decreto-Lei 143/99 - em caso de incapacidade permanente, o dia seguinte ao da alta - cf. artigo 17.º, n.º 4, da LAT -, sendo certo que já assim era na lei anterior - artigo 56.º do Decreto-Lei 360/71 e base XVI, n.º 4, da Lei 2127, de 3 e Agosto de 1965.
Isto porque, a ser de outro modo, estaríamos a introduzir na solução do problema um factor tão aleatório como a celeridade da tramitação processual, permitindo que as pensões com o mesmo valor e a mesma data de início fossem ou não obrigatoriamente remíveis consoante a data em que, pelas mais variadas vicissitudes, tivesse sido proferida a decisão judicial a reconhecer o direito (neste sentido, Carlos Alegre, em anotação ao artigo 56.º do Decreto-Lei 143/99, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais - Regime Jurídico Anotado, 2.ª ed., p. 239).
O que significa que, no caso dos autos, à data de tal fixação (26 de Abril de 1996, momento a partir do qual a pensão passou a ser devida), a remuneração mínima mensal garantida mais elevada era de 54600$00 (Decreto-Lei 21/96, de 19 de Março), correspondendo 327600$00 ((euro) 1634,06) ao sêxtuplo dessa quantia.
Mas outra questão se suscita que é a de saber se, como termo de comparação, se deve atender ao valor da pensão à data da sua fixação (no caso concreto Abril de 1996) ou ao valor actualizado (a 2004).
Há que reconhecer que a letra da lei não é clara e inequívoca, pois, em tese, a expressão "à data da fixação da pensão» tanto poderá referir-se a ambos os factores (valor da pensão e do valor da remuneração mínima mensal garantida), como apenas a um deles (o último).
Contudo, se é verdade que a letra da lei não é clara, também é certo que não repudia que se atribua àquela expressão o sentido mais abrangente. O que permite dizer que, se for este o pensamento legislativo, ele tem correspondência verbal na letra da lei (artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil).
No caso dos autos, trata-se de aplicar um regime transitório.
Como resulta claramente do preâmbulo do Decreto-Lei 143/99, de 30 de Abril, foi intenção do legislador alargar o regime da remição das pensões fixadas no domínio da anterior LAT (vontade real do legislador).
Sendo este o fim do regime transitório, contraria-o uma interpretação que reporte os dois mencionados elementos - valor da pensão vitalícia e valor da remuneração mínima mensal garantida - a momentos temporais bem diferenciados (o valor da remuneração mínima mensal garantida referido à data da fixação da pensão vitalícia e o valor desta, à actualidade, já depois de verificadas sucessivas actualizações), na medida em que seria difícil encontrar uma pensão vitalícia que fosse remível, com fundamento no seu reduzido valor [artigo 41.º, n.º 2, alínea a), segunda parte, da Lei 100/97].
Por outro lado, a seguir tal critério também aqui se criaria uma desarmonia dentro do sistema. Com efeito, ocorrendo o acidente de trabalho na vigência do novo regime, o valor da pensão vitalícia e o valor da remuneração mínima garantida a ter em conta para efeitos de remição obrigatória, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), seriam reportados, temporalmente, à data da fixação da pensão, isto é, ao mesmo momento; já, numa situação como a dos autos, os valores atendíveis decorreriam de momentos distintos e muito distanciados no tempo (2004 e 1993). E, tudo, no âmbito de aplicação do mesmo preceito.
Além disso, a utilização deste critério conduziria a uma flagrante desigualdade de tratamento entre os sinistrados/beneficiários de pensões fixadas ao abrigo da LAT anterior e os beneficiários de pensões fixadas ao abrigo da LAT actual, na medida em que seriam obrigatoriamente remíveis pensões novas de valor significativamente mais elevado do que outras pensões antigas, que ficariam por remir, o que não se coaduna com a ideia de um legislador razoável, nem com o espírito da lei.
De sublinhar, ainda, que aquela desigualdade de tratamento seria tanto mais gravosa quanto mais antiga fosse a pensão, sabido que o valor da remuneração mínima mensal garantida se toma progressivamente mais baixo à medida que se recua no tempo.
Igualmente, não vale esgrimir com o estatuído no artigo 74.º, n.º1, da RLAT.
Desde logo, porque se o mesmo impusesse que, no âmbito do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), se jogasse com o valor actualizado da pensão fixada, no pressuposto de que os valores actualizados mais não são do que os estabelecidos inicialmente, corrigidos de acordo com a inflação verificada ao longo dos tempos, isso não podia deixar de arrastar a correspondente actualização do valor da RMMG.
Depois, porque uma coisa são os requisitos exigidos para a remição obrigatória das pensões (de reduzido montante), por via do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), da RLAT, outra é o faseamento estabelecido para a remição de tais pensões.
No caso dos autos e seguindo este entendimento, verifica-se que a pensão inicialmente fixada (no montante de 442512$00), porque superior ao sêxtuplo do salário mínimo nacional, vigente na altura [327600$00 ((euro) 1634,06) = 54600$00 x 6], não é de reduzido montante e por isso não é obrigatoriamente remível.
V - Decidindo.
Nestes termos, concedendo provimento ao agravo, acordam em revogar o acórdão recorrido, considerando não remível a pensão devida à beneficiária Maria José Soares da Rocha.
Mais se acorda em uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos:
"I - Para determinar se uma pensão vitalícia anual resultante de acidente de trabalho ocorrido antes de 1 de Janeiro de 2000 é de reduzido montante para efeitos de remição, atende-se ao critério que resulta do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei 143/99, de 30 de Abril, devendo os dois elementos - valor da pensão e remuneração mínima mensal garantida mais elevada - reportar-se à data da fixação da pensão.
II - Para efeitos de concretização gradual da remição dessas pensões, atende-se à calendarização e aos montantes estabelecidos no artigo 74.º do mesmo diploma, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 382-A/99, de 22 de Setembro, relevando, neste âmbito, o valor actualizado da pensão.»
(nota 1) N.º 33/2004 - relatora, Maria Laura C. S. Maia T. Leonardo.
(nota 2) Manual dos Recursos em Processo Civil, 5.ª ed., pp. 272 e segs.
(nota 3) Vamos seguir de perto os acórdãos de 13 de Julho de 2004, de 14 de Dezembro de 2004 e de 27 de Janeiro de 2005, da mesma relatora, proferidos, respectivamente, nos recursos n.os 1015/2004, 3680/2004 e 3685/2004, da 4.ª Secção.
(nota 4) Concretamente às pensões devidas por acidentes ocorridos antes de 1 de Janeiro de 2000 - Acórdão, de uniformização de jurisprudência, n.º 7/2002, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18 de Fevereiro de 2002.
(nota 5) Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, em anotação ao artigo 9.º
(nota 6) Manuel A. Domingues de Andrade, "Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis», p. 22.
(nota 7) Obra citada no n.º 2.
(nota 8) J. Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1996, pp. 217 e 218, desvaloriza a "vontade do legislador», sustentando que a descoberta desta vontade só faz algum sentido quando estamos perante leis medida ou leis providência, de natureza administrativa.
(nota 9) No mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, proferidos nos processos n.os 2850/2004 e 3958/2004, da 4.ª Secção, relatados, respectivamente, pelos Exmos. Juízes Conselheiros Sousa Peixoto e Paiva Gonçalves.
Sem custas.
Lisboa, 16 de Março de 2005. - Maria Laura Leonardo - Vítor Mesquita - Carlos Fernandes Cadilha - Mário Manuel Pereira - Paiva Gonçalves.