Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Requerente e objecto do pedido. - O Procurador-Geral da República vem, nos termos do disposto nos artigos 281.º, n.os 1, alínea a), e 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa, 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, e 12.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei 60/98, de 27 de Agosto, requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do n.º 11 do n.º 10.º da Portaria 1391/2002, de 25 de Outubro.
A norma em causa, cuja epígrafe é "Taxas pela concessão de zonas de caça", dispõe nos seguintes termos:
"10.º
11 - Sempre que o pagamento das taxas tenha lugar fora dos prazos referidos no n.º 1, o valor das mesmas é agravado em 10% por cada mês ou fracção, até o pagamento ser efectivado."
2 - Fundamentos do pedido. - Para fundamentar o seu pedido, o Procurador-Geral da República alegou o seguinte:
"A norma a que se reporta o pedido em apreço - incluída no diploma regulamentar acima assinalado - estabelece que "a falta de pagamento pontual das taxas devidas pela concessão e manutenção das zonas de caça implica que o valor das mesmas seja agravado em 10% por cada mês ou fracção, até o pagamento ser efectuado". Ao fazê-lo, agrava substancialmente a "responsabilidade patrimonial do devedor, visando alcançar um ressarcimento acrescido para a mora, relativamente ao que decorreria da aplicação do regime geral referente ao vencimento e cômputo dos juros de mora, no caso de incumprimento de débitos ao Estado e demais entidades públicas".
Efectivamente, partindo da conjugação do artigo 44.º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei 398/98, de 17 de Dezembro (doravante LGT), com os artigos 1.º e 3.º do Decreto-Lei 73/99, de 16 de Março (que estabelece o regime jurídico dos juros de mora por dívidas ao Estado), resulta "que a taxa de juros moratórios seria de 1% ao mês".
O agravamento do valor da taxa estabelecido pelo diploma regulamentar em análise foi "determinado exclusivamente em função da mora do devedor", pelo que "o valor da própria taxa devida pela concessão e manutenção das zonas de caça" passa a resultar "não apenas da ponderação da área total da zona de caça concessionada [...], mas também do âmbito temporal da mora do devedor, com directa incidência na determinação do montante da taxa devida". Assim sendo, "não pode considerar se como enquadrável na figura jurídico-constitucional de 'taxa' o segmento ou parcela de débito, na parte em que visa tão-somente ressarcir a administração pelas consequências da mora no pagamento do valor da taxa originariamente devida". Isto porque, um dos elementos caracterizadores da figura tributária das taxas é a sua estrutura bilateral, devidamente assinalada pela doutrina, a qual implica que "o pagamento de uma qualquer taxa tem necessariamente como contrapartida os 'custos' globais da actividade administrativa - con substanciados, no caso, na fiscalização subjacente à concessão ou manutenção de uma zona de caça - bem como a 'utilidade' daquela contraprestação para o respectivo beneficiário". Ora, "a problemática do ressarcimento da Administração Pública pelos danos associados à mora do devedor no pagamento da quantia pecuniária devida a título de taxa extravasa totalmente aquele plano de 'cobertura de custos' de uma actividade administrativa e do 'valor de utilidade' alcançável pelo respectivo beneficiário, não se destinando a satisfazer nenhuma das finalidades típicas que a Lei Geral Tributária assinala às taxas no n.º 2 do respectivo artigo 4.º"
Além disso, "não se vislumbra fundamento material bastante para tão drástico agravamento da responsabilidade patrimonial do devedor em mora, no âmbito de uma determinada e peculiar taxa". A medida adoptada pelo diploma regulamentar em apreço, manifestamente agravadora da taxa de juros de mora, configura-se como violadora do "princípio constitucional da 'proporcionalidade', no que toca à determinação do seu valor".
A disciplina relativa aos efeitos da mora do devedor constitui matéria de lei, não podendo "um diploma de índole regulamentar [...] legitimamente inovar" neste domínio. No que se refere à fixação das taxas de juros de mora, vale o princípio "da primariedade ou precedência da lei sobre o regulamento, decorrente do artigo 112.º da Constituição"."
3 - A resposta do órgão autor da norma. - Notificado do pedido, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção dada pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (Lei do Tribunal Constitucional - doravante LTC), vem o Secretário de Estado do Desenvolvimento Rural e das Florestas responder, invocando os seguintes argumentos:
"O n.º 10.º, n.º 1, da Portaria 1391/2002, de 25 de Outubro, estipula que 'pela concessão e manutenção de ZCA e ZCT é devido o pagamento de uma taxa anual, a efectuar no período de Janeiro a Maio;
A falta de pagamento da taxa no período acima referido tem como única consequência directa a suspensão da actividade cinegética, podendo, no entanto, a entidade gestora da ZC fazer cessar esta suspensão a qualquer momento, desde que, no prazo de 90 dias, efectue o pagamento da taxa anual em falta, suportando o consequente agravamento;
Tal significa que o pagamento da taxa anual no período compreendido entre Junho a Dezembro do ano a que respeita implica o respectivo agravamento';
Um tal agravamento poderá ser determinado pelo Governo, o qual, 'nos termos do artigo 156.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei 227-B/2000, de 15 de Setembro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei 338/2001, de 26 de Dezembro', podendo 'fixar os valores das taxas devidas pela concessão de zonas de caça dentro dos parâmetros estabelecidos na lei [v. alíneas n) e o) do artigo 38.º da Lei 173/99, de 21 de Setembro], nada obsta a que o faça, como fez, fazendo variar o seu valor consoante o momento em que o pagamento tenha lugar';
A 'taxa de juro' em questão 'foi assim estabelecida ao abrigo da faculdade de fixação da taxa legalmente conferida ao abrigo dos diplomas acima referidos'."
4 - Elaborado o memorando a que alude o artigo 63.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional e fixada a orientação do Tribunal, cumpre decidir nos termos do artigo 65.º
II - Fundamentação. - a) Questão prévia.
5 - A Portaria 1391/2002, donde consta a norma impugnada, foi expressamente revogada pelo n.º 11.º da Portaria 431/2006, de 3 de Maio. Por força do princípio do pedido, consagrado no artigo 51.º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional e de acordo ainda com a jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional, não pode operar-se a convolação do objecto do processo - o mencionado n.º 11 do n.º 10.º - nas normas do diploma revogador que tenham um conteúdo normativo correspondente ou semelhante ao da norma que constitui objecto do presente controlo da constitucionalidade (cf. Acórdãos n.os 57/95, 140/2000, 404/2003 e 19/2007 publicados, respectivamente, no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Abril, de 26 de Outubro, de 20 de Novembro e de 14 de Fevereiro, e 531/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Não pode, deste modo, o Tribunal Constitucional apreciar idêntica norma contida no n.º 8.º, n.º 9, da Portaria 431/2006.
Todavia, o facto de a norma em causa ter sido revogada não é suficiente para se concluir de imediato pela inutilidade do pedido.
No que se refere aos efeitos temporais das declarações de inconstitucionalidade proferidas em sede de fiscalização abstracta sucessiva rege o artigo 282.º, n.º 1, da Constituição, o qual estabelece, como regra, os efeitos retroactivos (ex tunc) deste tipo de decisões, ou seja, os efeitos da decisão do Tribunal Constitucional retroagem à data da entrada em vigor da norma que agora se pretende declarar inconstitucional.
Já a revogação de uma norma tem, em princípio, eficácia prospectiva (ex nunc) - eficácia para o futuro -, pelo que os efeitos que produziu enquanto esteve em vigor não serão eliminados da ordem jurídica.
Dito isto, resulta claro que pode haver interesse ou utilidade na eliminação dos efeitos produzidos pela norma revogada enquanto esteve em vigor. Isso mesmo foi já por diversas vezes afirmado pelo Tribunal Constitucional, o qual sustenta que se mantém o interesse numa declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral "desde que tal se mostre indispensável para corrigir ou eliminar efeitos por elas entretanto produzidos durante o período da respectiva vigência" (v. Acórdão 19/2007, já citado, e, ainda, os Acórdãos n.os 497/97, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 10 de Outubro, 531/2000, já citado, 32/2002, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 18 de Fevereiro, 404/2003, já citado, e 76/2004, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 6 de Março).
Haverá, então, e antes de mais, que averiguar se existe interesse ou utilidade no conhecimento do mérito do pedido de fiscalização abstracta sucessiva da inconstitucionalidade da norma em apreciação, entretanto, como se viu, revogada.
6 - Na esteira do que tem sido a jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional relativamente ao conhecimento de pedidos de fiscalização que tenham por objecto normas já revogadas, a declaração com força obrigatória e geral das mesmas só se justificará quando for evidente a sua indispensabilidade.
Mais concretamente, pode retirar-se do Acórdão 497/97, citado, os termos em que o conhecimento de um pedido de fiscalização de normas revogadas se afigura pertinente:
"Com efeito, pode haver interesse na eliminação dos efeitos produzidos pela norma revogada no período da sua vigência. De acordo com a jurisprudência, reiterada e uniforme, deste Tribunal, face à revogação de uma norma, manter-se-á o interesse na declaração da sua eventual inconstitucionalidade 'toda a vez que ela for indispensável para eliminar efeitos produzidos pelo normativo questionado, durante o tempo em que vigorou' e essa indispensabilidade seja evidente, por se tratar da eliminação de efeitos produzidos constitucionalmente relevantes (por todos, citem-se os Acórdãos n.os 804/93, 806/93, 186/94 e 57/95, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 31 de Março, de 29 de Janeiro, de 14 de Maio e de 12 de Abril, respectivamente)."
Já, porém, não existe - neste modo de ver - interesse jurídico relevante no conhecimento de um pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de uma norma entretanto revogada, naqueles casos em que não se vislumbre nele qualquer alcance prático, atendendo à circunstância de o Tribunal, a declarar eventualmente a inconstitucionalidade, não dever deixar de, por razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público de excepcional relevo, limitar os seus efeitos, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, de modo a deixar incólumes os efeitos produzidos pela norma antes da sua revogação. Em tais situações, como vem entendendo este Tribunal (e acompanhamos de perto o citado Acórdão 57/95), "em que é visível a priori que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de qualquer sentido útil a declaração de inconstitucionalidade que viesse eventualmente a proferir, bem se justifica que conclua, desde logo, pela inutilidade superveniente de uma decisão de mérito".
Para além disso, como se afirmou, nomeadamente no Acórdão 413/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, não existe, do mesmo modo:
"Um interesse jurídico relevante - um interesse prático apreciável - no conhecimento do pedido, por exemplo, quando os meios concretos de defesa postos à disposição dos interessados são suficientes para acautelar os seus direitos ou interesses, impedindo a aplicação da norma inconstitucional".
7 - In casu, poder-se-ia admitir a existência de um interesse suficientemente relevante no conhecimento do mérito do pedido de controlo, em sede de fiscalização abstracta sucessiva, "se acaso se soubesse da pendência de um número elevado de processos em que esta questão tivesse sido suscitada e fosse decisiva para o respectivo desfecho" (cf. Acórdão 32/2002, já citado). Não é este manifestamente o caso. Efectivamente, apesar do número significativo de situações em que foi aplicada a norma objecto de controlo, a verdade é que, segundo informações prestadas, essa aplicação não gerou grande litigiosidade, apenas se tendo verificado um caso de contestação judicial.
E, de todo o modo, se ainda estiver pendente algum recurso contencioso em que a questão da inconstitucionalidade da norma a que se reportam estes autos seja decisiva, sempre restará aos interessados a via da fiscalização concreta (v. Acórdãos n.os 531/2000, 32/2002 e 19/2007, já citados).
Se juntarmos à circunstância, acabada de demonstrar, de que uma eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, seria inteiramente desprovida de qualquer alcance prático, aqueloutra de que a fixação de efeitos retroactivos (ex tunc) no caso em análise iria acarretar a realização de inúmeras e custosas operações de natureza administrativa e burocrática, certamente com acentuada repercussão a nível orçamental, forçoso é admitir que o caso dos autos consubstancia uma daquelas situações em que é previsível que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de alcance prático a declaração de inconstitucionalidade que porventura viesse a proferir, fixando, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, efeitos temporais mais restritos (efeitos prospectivos ou ex nunc em vez dos efeitos retroactivos). A limitação dos efeitos temporais seria justificada, ainda à luz daquela disposição, pela existência de um interesse público de excepcional relevância. Assim sendo, o prosseguimento do presente processo revelar-se-ia desproporcionado.
8 - Face ao exposto, há que concluir pela inexistência de interesse jurídico relevante e a consequente inutilidade superveniente no conhecimento do mérito do pedido.
III - Decisão. - Pelos fundamentos expendidos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 11 do n.º 10.º da Portaria 1391/2002, de 25 de Outubro de 2002.
Lisboa, 9 de Outubro de 2007. - José Borges Soeiro - Gil Galvão - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Ana Maria Guerra Martins - Joaquim Sousa Ribeiro Mário José de Araújo Torres - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Carlos Fernandes Cadilha - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano - Rui Manuel Moura Ramos.