Acórdão 181/2006/T. Const. - Processo 445/2004. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Relatório. - Miguel Alexandre Lacerda Queirós Fonseca foi pessoalmente notificado, no acto de autuação, em 17 de Abril de 2002, da contra-ordenação que lhe era imputada (conduzir veículo automóvel à velocidade de 98 km/hora, sendo a velocidade máxima permitida no local de 50 km/hora), tendo lhe sido entregue, nesse acto, o triplicado do auto de contra-ordenação, do qual constavam, nomeadamente, o facto constitutivo da contra-ordenação, a legislação infringida, as sanções aplicáveis, o prazo concedido, o local para a apresentação da defesa e a possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo, bem como o prazo e o local para o efeito e as consequências do não pagamento, tudo de acordo com o estatuído no artigo 155.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis 2/98, de 3 de Janeiro e 265-A/2001, de 28 de Setembro.
Não foi apresentada defesa.
Por decisão da Direcção Regional de Viação do Algarve de 10 de Outubro de 2002, foi-lhe aplicada a coima de Euro 180 e a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artigos 27.º, n.os 1 e 3, 139.º e 146.º, alínea b), do Código da Estrada.
Esta decisão foi notificada ao arguido por carta postal simples, expedida para o domicílio indicado quer no registo individual do condutor (previsto no n.º 8 do artigo 122.º do Código da Estrada) quer no auto de contra-ordenação (Urbanização São Luís, lote G, 7, esquerdo, 8000 Faro), tendo o distribuidor do serviço postal lavrado e assinado, em 11 de Dezembro de 2002, a seguinte declaração: "No dia 11 de Dezembro de 2002 depositei no receptáculo local domiciliário da morada acima descrita [Urbanização São Luís, lote G, 7, esquerdo, 8000 Faro] a notificação-citação a ela referente."
Em 25 de Agosto de 2003, o arguido remeteu para a Direcção Regional de Viação do Algarve, endereçada ao juiz de direito do Tribunal Judicial da Comarca de Tavira, impugnação judicial da decisão administrativa, mas esta foi rejeitada, por extemporaneidade, por despacho judicial de 31 de Outubro de 2003, com a seguinte fundamentação:
"O recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa deve ser interposto no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido (artigo 59.º, n.º 3, do Decreto-Lei 433/82, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro).
Tendo o arguido sido notificado da decisão da autoridade administrativa em 16 de Dezembro de 2002 (cf. fl. 11 dos autos) e apresentado o seu recurso em 25 de Agosto de 2003, verifica-se que o mesmo é manifestamente extemporâneo.
Assim, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, do citado Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro, rejeita-se o recurso interposto pelo arguido."
Deste despacho interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Évora, em que, para além de outra questão (falta de fundamentação da condenação em custas), impugnou a decisão de rejeição da impugnação judicial, por extemporaneidade, com base em argumentos sintetizados nas seguintes conclusões da respectiva motivação:
"2 - Porque o Tribunal a quo faz prevalecer um regime processual geral (Decreto-Lei 433/82) sobre um regime processual especial (artigo 150.º, n.º 1, do Código da Estrada), viola o princípio de que uma norma geral não prevalece sobre uma norma especial. Ou melhor, um regime geral não pode prevalecer sobre um regime específico.
3 - Porque manifesta o tribunal a quo entendimento diferente de que apenas e só se, por qualquer motivo, a carta prevista no n.º 3 do artigo 156.º do Código da Estrada (carta registada) for devolvida à entidade remetente, a notificação é reenviada ao notificando, para o seu domicílio ou sede, através de carta simples, viola frontalmente o disposto no artigo 156.º, n.º 4, do Código da Estrada.
4 - Ainda que nos presentes autos existisse um comprovativo de que havia sido devolvida à entidade administrativa uma carta registada, que manifestamente não existe, entender-se como válida uma notificação feita por carta simples não é mais que interpretar deficientemente o princípio constitucional da proibição de indefesa consagrado no artigo 20.º da CRP. Logo,
5 - Também deve ser desaplicada a norma que considere válida uma notificação feita por correio simples, em observância também do princípio constitucional da efectividade dos direitos fundamentais, ínsito, v. g., no artigo 18.º, n.º 1, da CRP."
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 16 de Março de 2004, embora considerando incorrecto o entendimento perfilhado no despacho agravado, acabou por negar provimento ao recurso por reputar que a irregularidade cometida se sanara por falta de oportuna arguição. Expendeu-se nesse aresto:
"Para rejeitar, por extemporâneo, o recurso de impugnação da decisão condenatória da autoridade administrativa, considerou o tribunal a quo, com o aplauso do Ministério Público junto da 1.ª instância, que o arguido foi validamente notificado da decisão condenatória da autoridade administrativa, em 16 de Dezembro de 2002, 5.º dia posterior à data do depósito da respectiva carta simples no receptáculo postal domiciliário da morada do arguido, indicada pelo distribuidor do serviço postal, entendimento este contra o qual se insurge o recorrente.
Antecipando a resposta à questão suscitada, dir-se-á que o entendimento perfilhado pelo tribunal recorrido não pode ser acolhido.
É que o Código da Estrada estabelece um regime próprio de notificações que - por completo (além de inovador), no concernente quer às modalidades de notificação quer às formalidades a observar pelo funcionário instrutor e pelo distribuidor do serviço postal, quer, finalmente, às cominações legais aplicáveis relativamente a cada um dos procedimentos nele previstos, presumindo feita a notificação no 3.º ou no 5.º dia útil posterior à data da expedição da carta, consoante se trate de carta registada ou carta simples - afasta a aplicação subsidiária do regime das notificações em processo penal, previsto nomeadamente no artigo 113.º do CPP, ao processo contra-ordenacional por infracção rodoviária, o que não foi tido em consideração pelo tribunal recorrido.
Com efeito, estatui o artigo 156.º do CE:
'1 - As notificações efectuam-se:
a) Por contacto pessoal com o notificando no lugar em que for encontrado;
b) Mediante carta registada expedida para o domicílio ou sede do notificando;
c) Mediante carta simples expedida para o domicílio ou sede do notificando.
2 - A notificação por contacto pessoal deve ser efectuada sempre que possível no acto de autuação, podendo ainda ser utilizada quando o notificando for encontrado pela entidade competente.
3 - Se não for possível, no acto de autuação, proceder nos termos do número anterior ou se estiver em causa qualquer outro acto, a notificação pode ser efectuada através de carta registada expedida para o domicílio ou sede do notificando.
4 - Se, por qualquer motivo, a carta prevista no número anterior for devolvida à entidade remetente, a notificação é reenviada ao notificando, para o seu domicílio ou sede, através de carta simples.
5 - Para efeitos do disposto nos n.os 3 e 4, considera-se domicílio do notificando:
a) O que consta do registo a que se refere o n.º 8 do artigo 122.º, no caso previsto no n.º 1 do artigo 134.º;
b) O do proprietário, do adquirente com reserva de propriedade, do usufrutuário, do locatário em regime de locação financeira, do locatário por prazo superior a um ano ou o de quem, em virtude de facto sujeito a registo, tiver a posse do veículo, no caso previsto no n.º 2 do artigo 134.º e no n.º 1 do artigo 152.º
6 - A notificação nos termos do n.º 3 considera-se efectuada no 3.º dia útil posterior ao do envio, devendo a cominação aplicável constar do acto de notificação.
7 - No caso previsto no n.º 4, o funcionário da entidade competente lavra uma cota no processo com a indicação da data da expedição da carta e do domicílio para o qual foi enviada, considerando-se a notificação efectuada no 5.º dia posterior à data indicada, cominação que deverá constar do acto de notificação.
8 - Quando a infracção for da responsabilidade do proprietário, do adquirente com reserva de propriedade, do usufrutuário, do locatário em regime de locação financeira, do locatário por prazo superior a um ano ou de quem, em virtude de facto sujeito a registo, tiver a posse do veículo, a notificação, no acto de autuação, pode fazer-se na pessoa do condutor.
9 - Se o notificando se recusar a receber ou a assinar a notificação, o funcionário certifica a recusa, considerando-se efectuada a notificação.'
Contrariamente ao regime do CPP [artigo 113.º, n.os 1, alínea c), e 6], a notificação mediante carta simples (modalidade utilizada, in casu, na notificação do arguido), surge no domínio do CE como uma modalidade sucessiva, e não alternativa, de notificação, apenas podendo ser usada no caso de se ter frustrado a notificação pessoal ou através de carta registada e, nesta última hipótese, caso esta tenha sido, por isso, devolvida à entidade remetente.
É o que claramente flui do normativo do n.º 4 do artigo 156.º ('se, por qualquer motivo, a carta prevista no número anterior for devolvida à entidade remetente [...]') e o evidencia o proémio do Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro (que introduziu a actual redacção daquele artigo), que, de resto, se limita a reproduzir o excerto que, a propósito, já constava do exórdio do Decreto-Lei 165/2001, de 22 de Maio:
'Procedeu-se também à simplificação do regime das notificações, contemplando-se a notificação através de carta simples enviada para o domicílio do infractor, no caso de não ter sido possível proceder à notificação pessoal ou por carta registada.'
Assim, tendo-se lançado mão da notificação através de carta simples sem que tivesse sido previamente tentada, sem êxito, a notificação mediante carta registada (expedida para o domicílio do arguido) - pressuposto, como se referiu, da notificação por via postal simples -, há que concluir que não foram observadas as normas a que obedecem as notificações em processo de contra-ordenação por infracção ao Código da Estrada [sobre a questão, cf. o Parecer 19/2001, de 22 de Novembro, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 8 de Fevereiro de 2002].
O emprego da notificação por carta simples sem que se verificasse o respectivo pressuposto não constitui nulidade, seja insanável seja dependente de arguição, já que não faz parte dos respectivos catálogos constantes dos artigos 119.º e 120.º do CPP, respectivamente, nem como tais são cominadas noutras disposições legais, sendo certo que em matéria de nulidades vigora o princípio da legalidade acolhido no citado artigo 118.º, n.º 1, do CPP, cuja norma não consente a sua extensão analógica.
A notificação do arguido mediante carta simples constitui irregularidade submetida ao regime do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, devendo, pois, ter sido arguida nos três dias seguintes a contar daquele em que foi notificado através daquela carta.
Arguida apenas em 25 de Agosto de 2003, já há muito estava sanada tal irregularidade.
Efectivamente, nos termos do n.º 7 do mencionado artigo 156.º, a notificação mediante carta simples considera-se efectuada no 5.º dia posterior à data da expedição da carta indicada na cota lavrada no processo pelo funcionário da entidade competente. Compulsado o processo, dele não consta qualquer cota indicando a data de expedição da carta, constando, porém, da ficha a fl. 26 que o arguido foi notificado da decisão em 2 de Dezembro de 2002, data essa que terá sido a da expedição da carta. Na dúvida e porque mais favorável ao arguido - até porque a declaração do distribuidor do serviço postal representa uma garantia acrescida de que recebeu a carta -, há que considerar que o arguido foi notificado da decisão condenatória da autoridade administrativa em 16 de Dezembro de 2002, 5.º dia posterior à data do depósito da carta no receptáculo postal domiciliário da morada do arguido, data essa indicada pelo distribuidor do serviço postal, conforme declaração por este lavrada.
Sustenta, porém, o recorrente que 'entender-se como válida uma notificação feita por carta simples, não é mais que interpretar deficientemente o princípio constitucional da proibição de indefesa consagrado no artigo 20.º da CRP. Logo, [...] também deve ser desaplicada a norma que considere válida uma notificação feita por correio simples, em observância também do princípio constitucional da efectividade dos direitos fundamentais, ínsito, v. g., no artigo 18.º, n.º 1, da CRP'.
Salvo o devido respeito, causa alguma estranheza a argumentação pelo recorrente aduzida.
Na verdade, não refere o despacho recorrido qual a norma ou normas jurídicas em que se louva para considerar válida a notificação do arguido da decisão condenatória da autoridade administrativa. Pressupondo que 'o tribunal a quo faz prevalecer um regime processual geral (Decreto-Lei 433/82) sobre um regime processual especial (artigo 150.º, n.º 1, do Código da Estrada)', argumenta o recorrente que aquele tribunal 'viola o princípio de que uma norma geral não prevalece sobre uma norma especial. Ou melhor, um regime geral não pode prevalecer sobre um regime específico'. Censura o tribunal recorrido porque não perfilhou o entendimento 'de que apenas e só se, por qualquer motivo, a carta prevista no n.º 3 do artigo 156.º do CE (carta registada) for devolvida à entidade remetente, a notificação é reenviada ao notificando, para o seu domicílio ou sede, através de carta simples'; e porque não seguiu tal entendimento, sustenta o recorrente que o tribunal a quo 'viola frontalmente o disposto no artigo 156.º, n.º 4, do Código da Estrada". Enfim, depois de se insurgir contra o despacho recorrido porque 'faz letra morta da disposição legal contida no artigo 156.º, n.º 4, primeira parte, do Código da Estrada, ex vi artigo 150.º, n.º 1, do mesmo diploma legal', depois de pugnar pela aplicação do regime especial das notificações previsto naquele artigo 156.º e de se esforçar por demonstrar que 'é válida a notificação por carta simples, desde que exista uma carta registada devolvida', acaba por concluir que 'ainda que nos presentes autos existisse um comprovativo de que havia sido devolvida à entidade administrativa uma carta registada, [...] entender-se como válida uma notificação feita por carta simples não é mais que interpretar deficientemente o princípio constitucional da proibição de indefesa consagrado no artigo 20.º da CRP. Logo, [...] também deve ser desaplicada a norma que considere válida uma notificação feita por correio simples, em observância também do princípio constitucional da efectividade dos direitos fundamentais, ínsito, v. g., no artigo 18.º, n.º 1, da CRP'.
Centra o arguido o ataque às notificações por via postal simples ancorado no princípio da proibição da 'indefesa' e em jurisprudência do Tribunal Constitucional, que versa sobre casos que o próprio recorrente reconhece não serem idênticos ao caso vertente.
O princípio da proibição da 'indefesa', que se inscreve no princípio mais vasto do acesso ao direito e aos tribunais, a que o artigo 20.º da lei fundamental confere dignidade constitucional, 'consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância das normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses' (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164).
Também a chamada deste princípio à colação não prima pela pertinência.
É que, como se referiu, o arguido foi pessoalmente notificado da contra-ordenação que lhe é imputada no auto de contra-ordenação, em 17 de Abril de 2002, ou seja, no acto de autuação, tendo-lhe sido entregue, no acto da notificação, o triplicado do mesmo auto, do qual constam, nomeadamente, o facto constitutivo da contra-ordenação, a legislação infringida, as sanções aplicáveis, o prazo concedido, o local para a apresentação da defesa e, finalmente, a possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo mínimo, bem como o prazo e o local para o efeito e as consequências do não pagamento.
Teve, pois, o arguido ensejo de se defender. Não foi por impedimento, compressão ou cerceamento do seu inquestionável direito de defesa que o arguido não apresentou defesa.
Por outro lado, o arguido - irregularmente, é certo - foi notificado da decisão condenatória da autoridade. Não pode alegar que não teve conhecimento de tal decisão, sendo certo que, como se disse, a mencionada declaração lavrada pelo distribuidor do serviço postal representa uma garantia acrescida (pois que não exigida pelo artigo 156.º, que estabelece a presunção de que a carta foi recebida no 5.º dia posterior ao da sua expedição) de que recebeu a carta. E se tivesse arguido atempadamente a irregularidade da sua notificação, poderia recorrer da decisão que a desatendesse.
Também aqui o seu direito de defesa não sofreu qualquer intolerável compressão.
Improcede, pois, a suscitada questão das inconstitucionalidades."
É deste acórdão que vem interposto, pelo arguido, o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro - LTC), tendo, a convite do relator, identificado a norma cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada como sendo a constante do artigo 156.º do Código da Estrada, quando interpretada no sentido de que a não observância das regras aí contidas não viola o princípio constitucional da proibição da indefesa, constituindo mera irregularidade submetida ao regime do artigo 123.º, n.º 1, do CPP.
O recorrente apresentou alegações, onde consignou:
"1 - O cerne da questão suscitada nos presentes autos prende-se com a constitucionalidade do corpo da norma legal prevista no artigo 156.º do Código da Estrada ('Regras sobre as formas de notificações'), quando interpretada no sentido de que a não observância das regras aí contidas não viola o princípio constitucional da proibição da indefesa;
2 - É que, como muito bem considerou a Veneranda Relação de Évora, no douto acórdão aqui recorrido, considera-se o seguinte:
a) O tribunal de 1.ª Instância considerou que o recorrente foi validamente notificado da decisão condenatória da autoridade administrativa. Entendimento esse que não podia ser acolhido [...];
b) O regime estabelecido no Código da Estrada afasta a aplicação subsidiária do regime das notificações em processo penal, o que não foi tido em consideração pelo tribunal de 1.ª instância [...];
c) Considera ainda que a modalidade de notificação (carta simples) utilizada para com o recorrente não é uma modalidade alternativa, mas sim sucessiva [...];
d) Então, vem um dos busílis da questão. O emprego de forma de notificação diferente da prevista na lei (no CE) constitui mera irregularidade submetida ao regime do artigo 123.º, n.º 1, do CPP [...]. Ora,
3 - É exactamente esta última interpretação vertida no douto acórdão ora recorrido que é de todo violadora do princípio constitucional da proibição de indefesa. Pois que, se é certo que aquando da notificação do auto de contra-ordenação foi dada cabal possibilidade de o recorrente se defender 'administrativamente', não é menos certo que, ao não ter sido notificado, nos termos da lei, de uma decisão administrativa, se viu mesmo impedido de se defender judicialmente (as decisões administrativas, in casu, a que lhe aplicou uma sanção acessória de inibição de conduzir por dois meses, impugnam-se para os tribunais judiciais). Assim,
4 - Ao considerar a Veneranda Relação de Évora no acórdão [...], ora levado à superior fiscalização constitucional sucessiva concreta, que o arguido teve oportunidade de se defender (por via dos direitos comunicados validamente no auto de contra-ordenação), omite que essa defesa se refere a uma defesa por impugnação administrativa. Pois que,
5 - Do que se queixou exactamente o recorrente no recurso que interpôs para a Relação de Évora foi a impossibilidade de impugnar judicialmente uma decisão administrativa. E, neste aspecto, considera mesmo que se viu impedido de concretizar o direito fundamental de defesa judicial (pois que não foi mesmo notificado da decisão administrativa em causa), consagrado nos n.os 9 e 10 do artigo 32.º da nossa Grundnorm.
6 - Por outro lado, ao considerar válida, porque não impugnada, uma notificação que não obedece à lei ordinária (regime específico constante do artigo 156.º do Código da Estrada), está a violar o disposto no artigo 268.º, n.º 3, da CRP: 'Os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei.' Sic.
7 - Quanto à mera irregularidade, sanada porque não impugnada (omissão de formalidade da notificação da decisão administrativa), nem se diga que a mesma foi sanada porque não foi impugnada no prazo a que alude o artigo 123.º, n.º 1, do CPP. Pois que, tal como reconhece a Veneranda Relação de Évora, não existiu no processo administrativo qualquer cota afixada por funcionário da autoridade administrativa de onde constasse a data da expedição da notificação por carta simples. Logo, como se contariam os cinco dias a que alude o artigo 156.º, n.º 7, do CE, para se dizer que o recorrente não arguiu em tempo a irregularidade da notificação ?! Não se pode contar um prazo que esteja dependente da existência de uma cota lavrada no processo, logo que não se sabe onde começa ou acaba tal prazo (o previsto no artigo 123.º, n.º 1, do CPP). Mais uma vez se verifica violação do princípio constitucional da proibição de indefesa.
8 - Desde a decisão proferida em 1.ª instância, que não apreciou o recurso interposto de uma decisão administrativa, até ao acórdão aqui recorrido, não foi tido em atenção que, de facto, não se pode interpretar a lei ordinária de modo a restringir um direito fundamental, como é o direito ao recurso. Ainda que se procure, como se procurou, dar cobertura legal a um acto administrativo clara e ilegalmente proferido sem observância de uma formalidade legal, como foi a relativa à notificação do mesmo. Ainda que se diga que a 'cobertura legal' se faz por via de se estar perante uma 'mera irregularidade'. A ser assim, tal entendimento doutamente explanado pela Veneranda Relação de Évora viola o disposto no artigo 204.º da CRP, pois que atribui um valor superior à norma contida em lei ordinária (artigo 123.º do CPP), relativamente a norma constitucional (artigo 268.º, n.º 3).
9 - O que também não pode ser perdido de vista é que entender-se como válida uma notificação efectuada por correio simples (tal como previsto no artigo 156.º, n.º 4, do CE), onde se comunicam sanções, restrições de direitos e se comunicam direitos (especialmente ao recurso aos tribunais), não assegura de modo nenhum a garantia de que o cidadão destinatário de tal comunicação a recebe e conhece os direitos e deveres nela consignados. Logo, devia mesmo ser considerada inconstitucional tal norma, por ser demasiado incerta quanto à recepção da mesma, sob pena de sistematicamente se poder coarctar um direito inalienável num Estado de direito, como é o direito ao recurso aos tribunais judiciais para impugnar decisões administrativas, tal como se encontra ínsito no artigo 32.º, n.os 1, 9 e 10, da CRP.
10 - Acresce ainda que nem o Tribunal Judicial da Comarca de Tavira nem sequer a Veneranda Relação de Évora puseram em crise que o recorrente tivesse tido efectivamente conhecimento do acto administrativo que impugnou judicialmente, via fax (recebido em 22 de Agosto de 2003 - cujo documento consta dos autos). Esse, sim, é um momento que inequivocamente se pode considerar como certo para que o recorrente tivesse tido efectivo conhecimento do acto que impugnou. Ninguém colocou em causa tal 'momento'. A não ser assim,
11 - Preteriu-se a certeza, em favor de uma notificação presumida, da incerteza. O que contraria todo o ordenamento jurídico penal (especialmente o que vigora adjectivamente em qualquer direito sancionatório).
12 - Presumindo-se que um cidadão tomou conhecimento de uma decisão de um órgão administrativo, será o mesmo que lhe assegurar um efectivo direito ao recurso judicial ?! Ainda por cima quando se reconhece que essa própria presunção é materialmente ilegal, porque não conforme com o 'tal' artigo 156.º do Código da Estrada.
13 - Por um lado, não se pode considerar que uma notificação é ilegal para, por outro lado, atribuir-lhe efeitos na esfera jurídica do destinatário. Especialmente ao ponto de nem sequer lhe ser dada oportunidade de se defender judicialmente de uma decisão administrativa, que pelo menos é ilegal por efeito da prescrição.
14 - Em suma, o que jamais pode acontecer é considerar-se (tal como o fez doutamente a Veneranda Relação de Évora) que uma entidade administrativa efectivamente não efectuou uma notificação na forma prevista na lei (logo, de forma ilegal) e, ao mesmo tempo, decidir-se que esse mesmo acto, apesar de desconforme à lei, produza efeitos nefastos para o cidadão ora recorrente. Que na prática se consubstanciaram em impedir que fosse apreciada judicialmente uma pretensão de um cidadão.
15 - Quer dizer, na prática reconhece-se que uma autoridade administrativa pratica um acto manifestamente ilegal e, ao mesmo tempo, considera-se que o cidadão recorrente é que tem de sofrer as consequências da preterição de uma formalidade legal. Salvo o devido respeito por diferente opinião, não pode ser!
16 - Num Estado de direito, como se apregoa ser o nosso, não pode ser o cidadão a 'pagar' os 'descuidos' da Administração Pública (especialmente no que à preterição de formalidades essenciais das notificações diz respeito), in casu, da DGV."
O representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional apresentou contra-alegações, concluindo:
"1 - Face ao teor do acórdão proferido pela Relação, o recorrente é 'parte vencedora' relativamente à questão da prevalência do regime de notificações previsto no artigo 156.º do Código da Estrada, envolvendo a 'dupla' notificação ao arguido das decisões sancionatórias, mediante tentativa de notificação por carta registada com aviso de recepção e - frustrando-se esta - mediante depósito de carta simples no receptáculo postal do respectivo domicílio.
2 - Não viola o princípio constitucional da proibição da indefesa a interpretação normativa do artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual recai sobre o destinatário de notificação postal 'irregular' o ónus de, no prazo aí previsto, arguir tal irregularidade, só ulteriormente tendo cabimento a eventual via recursória.
3 - Termos em que deverá improceder o presente recurso."
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2 - Fundamentação. - 2.1 - Cumpre, antes de mais, delimitar com precisão o objecto do presente recurso, já que o discurso desenvolvido pelo recorrente, ao longo dos autos, a este respeito, nem sempre surge dotado de inequivocidade. Na verdade, a argumentação principal do recorrente foi, desde o início, centrada na ilegalidade da notificação por via postal simples sem prévia tentativa de notificação por via postal registada, o que representava a preterição do regime especial de notificação estabelecido no artigo 156.º do Código da Estrada e a indevida aplicação do regime geral de notificação vigente no regime geral das contra-ordenações, que consentiria, em determinadas circunstâncias, a utilização imediata da notificação por via postal simples, sem necessidade de prévia tentativa frustrada de notificação por via postal registada. Só como argumentação de segunda linha, aliás, não apresentada em termos peremptórios, mas antes hipotéticos e dubitativos, é que surge a impugnação da admissibilidade constitucional da figura da notificação por via postal simples, em si mesma considerada. Perante o convite do relator para identificar com precisão qual a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, o recorrente respondeu, à cabeça, que "a grande questão suscitada nos presentes autos prende-se com a constitucionalidade da norma legal prevista no artigo 156.º do Código da Estrada [...], quando interpretada no sentido de que a não observância das regras aí contidas não viola o princípio constitucional da proibição da indefesa" (itálico acrescentado); isto é, a inconstitucionalidade radicaria não no uso da notificação por via postal simples, em si mesmo considerada, pois tal modalidade de notificação está prevista entre as regras desse artigo 156.º, mas na não observância da regra, constante do seu n.º 4, de que, antes de se recorrer à notificação por via postal simples, há que tentar a notificação por via postal registada. Só no n.º 9 dessa sua resposta é que o recorrente refere, adminucularmente, que "o que também não pode ser perdido de vista é que entender-se como válida uma notificação efectuada por correio simples [...] não assegura de modo nenhum a garantia de que o cidadão destinatário de tal comunicação a recebe e conhece os direitos e deveres nela consignados", pelo que "devia mesmo ser considerada inconstitucional tal norma, por ser demasiado incerta quanto à recepção da mesma, sob pena de sistematicamente se poder ressarcir [sic] um direito inalienável num Estado de direito, como é o direito ao recurso aos tribunais judiciais para impugnar decisões administrativas, tal como se encontra ínsito no artigo 32.º, n.os 1, 9 e 10, da CRP" (itálico acrescentado).
De qualquer forma, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o objecto do recurso não pode ultrapassar a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa aplicada no acórdão recorrido como sua ratio decidendi, a saber: o entendimento de que o uso da notificação mediante carta simples sem prévia tentativa da notificação mediante carta registada, nos termos do artigo 156.º, n.os 4 e 7, do Código da Estrada (aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis 2/98, de 3 de Janeiro e 265-A/2001, de 28 de Setembro), constitui irregularidade prevista no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), que se sana se não for arguida no prazo aí cominado. O Tribunal da Relação de Évora considerou que, no caso, o recorrente não arguira tal irregularidade, juízo este cuja correcção escapa ao controlo de constitucionalidade normativa que, no caso, incumbe ao Tribunal Constitucional.
2.2 - Pode desde já adiantar-se que não se considera que a dimensão normativa aplicada na decisão recorrida haja violado as normas e princípios constitucionais invocados pelo recorrente.
Como se assinala na contra-alegação do Ministério Público, a situação ora em causa é substancialmente diferente da que tem sido suscitada a propósito da constitucionalidade do regime da citação por carta simples, cuja generalização no âmbito do processo civil foi operada pelo Decreto-Lei 183/2000, de 10 de Agosto (e já, em larga medida, derrogada pelo Decreto-Lei 38/2003, de 8 de Março), quer porque não se trata aqui de, pela primeira vez, dar conhecimento ao réu da pendência contra ele de certo processo, já que o auto de autuação que originou o processo contra-ordenacional lhe foi, na hora, pessoalmente notificado, quer porque não se suscitam agora as delicadas questões ligadas ao estabelecimento generalizado de "presunções de domicílio", tendo a carta simples sido remetida e depositada no efectivo domicílio do recorrente, constante do registo do condutor (previsto no n.º 8 do artigo 122.º do Código da Estrada) e confirmado no auto de contra-ordenação.
Por outro lado, apesar de dos autos constar uma ficha (a fl. 26) da qual se podia deduzir que a carta simples fora expedida em 2 de Dezembro de 2002, o facto de ter sido omitido o lançamento da cota no processo com indicação da data da expedição da carta, exigida pelo n.º 7 do artigo 156.º do Código da Estrada, levou as instâncias a não aplicar a regra, constante desse preceito, de que a notificação se considera efectuada no 5.º dia posterior à data indicada nessa cota, optando pelo entendimento - mais favorável para o recorrente - de reportar o início deste prazo à data indicada pelo distribuidor do serviço postal como a do depósito da carta (11 de Dezembro de 2002) e, por isso, consideraram a notificação efectuada em 16 (e não em 7) de Dezembro de 2002.
Neste contexto, não se vislumbra como o regime do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, ao impor ao arguido o ónus de invocar a irregularidade da notificação nos três dias subsequentes àquele em que tiver sido notificado para qualquer termo do processo ou àquele em que tiver intervindo em qualquer acto nele praticado, afronta qualquer princípio constitucional, designadamente o da proibição da indefesa.
Também não ocorre violação do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que estabelece o dever de notificação dos actos administrativos aos respectivos interessados "na forma prevista na lei", já que nesta remissão para a lei se compreende a definição não apenas dos modos de efectivar as notificações mas também do regime das irregularidades que venham a ser, nesse âmbito, cometidas. Assim, salvo desrazoabilidade intolerável, pode o legislador, após definir as modalidades de notificação admissíveis e os respectivos conteúdos, diferenciar as consequências de eventuais falhas, que podem ir desde a inexistência à mera irregularidade, passando pela nulidade e pela anulabilidade [da conjugação do artigo 68.º do Código do Procedimento Administrativo com o artigo 60.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos resulta que só quando a notificação não dê a conhecer o sentido da decisão é que o acto se considera inoponível ao interessado; se omitir a indicação do autor, da data ou dos fundamentos da decisão, pode o interessado requerer o suprimento da omissão, com interrupção do prazo de impugnação; se, porém, faltarem outras indicações, como, por exemplo, a do órgão competente para apreciar a impugnação do acto e o prazo para esse efeito, tal constituirá mera irregularidade, sem qualquer repercussão nas reacções impugnatórias cabíveis]. Ora, pelas razões já expendidas, o regime instituído, tal como foi entendido pelo acórdão recorrido, não afecta intoleravelmente o direito de impugnação das decisões administrativas. Motivo pelo qual também não ocorre violação do disposto no n.º 10 do artigo 32.º da CRP, que assegura ao arguido, nos processos de contra-ordenação, os direitos de audiência e defesa, surgindo como incompreensível a invocação, feita pelo recorrente, do n.º 9 do mesmo preceito constitucional, que proíbe a subtracção de uma causa ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior (princípio do juiz natural).
Não implicando o critério normativo acolhido no acórdão recorrido qualquer limitação relevante do direito de defesa do recorrente, o presente recurso tem de improceder.
3 - Decisão. - Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a interpretação normativa segundo a qual o uso da notificação mediante carta simples sem prévia tentativa da notificação mediante carta registada, nos termos do artigo 156.º, n.os 4 e 7, do Código da Estrada (aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis 2/98, de 3 de Janeiro e 265-A/2001, de 28 de Setembro), constitui irregularidade prevista no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que se sana se não for arguida no prazo aí cominado; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 8 de Março de 2006. - Mário José de Araújo Torres - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Benjamim Silva Rodrigues - Rui Manuel Moura Ramos.