Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2015
Processo 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1-A
Acordam em pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório:
Marisa Isabel Justino Cansado deduziu contra Augusto António Carga Resina incidente de incumprimento, por apenso aos autos de regulação de responsabilidades parentais relativos ao filho menor de ambos, José Augusto Cansado Resina, com fundamento na falta de pagamento pelo requerido da prestação alimentícia fixada em (euro) 75,00 mensais, actualizável anualmente, a partir de Janeiro de 2013, de acordo com o aumento dos índices de inflação divulgados pelo INE para o ano anterior.
Foi provocada a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores e, após realização das diligências pertinentes, foi proferida decisão, em 7 de Junho de 2013, atribuindo, a título provisório e ao abrigo do disposto no artigo 3º nº 2 da Lei 75/98, de 19 de Novembro, a prestação alimentícia no valor de (euro) 100,00 mensais, a suportar pelo FGAM em substituição do requerido, a actualizar anualmente a partir de Janeiro de 2014 (caso inexista decisão definitiva) de acordo com o aumento da taxa de inflação anunciado pelo INE para o ano anterior.
Inconformado, apelou o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, pedindo que se declarasse que o montante da prestação provisória de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores está limitado pelo valor da prestação fixada judicialmente ao progenitor do menor, e, consequentemente, a revogação do despacho recorrido na parte em que estabelece uma prestação provisória substitutiva de alimentos a pagar pelo FGADM superior à fixada judicialmente para o obrigado a alimentos
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 14 de Novembro de 2013, julgou a apelação improcedente e confirmou a decisão recorrida.
Deste acórdão interpôs o Ministério Público recurso de revista excepcional, que foi admitido, pedindo a sua revogação com base no entendimento de que a prestação de alimentos a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores em caso de incumprimento da obrigação previamente fixada judicialmente não pode ser estabelecida em montante superior a esta.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão proferido em 17 de Junho de 2014, negou a revista, considerando, em suma, que:
- O Estado, através da Lei 75/98 e do seu diploma regulamentar, veio instituir uma garantia dos alimentos devidos a menores, através da atribuição de uma prestação social destinada a suprir as situações de carência decorrentes do incumprimento por parte da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos, dando assim concretização prática ao direito de protecção às crianças que deriva do artigo 69º da Constituição da Republica.
- Trata-se uma prestação autónoma a cargo da segurança social, atribuída de acordo com critérios objectivos: existência de sentença que fixe os alimentos; residência do devedor em território nacional; inexistência de rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional de que o menor possa beneficiar; não pagamento pelo devedor da obrigação de alimentos.
- Pelo seu carácter de subsidiariedade, o montante da prestação substitutiva do Estado está dependente da situação económica e familiar em que se encontra inserido o menor, das necessidades deste, relevando indicativamente o valor da prestação de alimentos que antes foi fixada judicialmente.
- Na linha do que antes foi referido a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores pode ser fixada em montante inferior, igual ou superior ao da prestação alimentar que havia sido fixada ao progenitor incumpridor.
O Ministério Público veio interpor recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos do disposto nos artigos 688º nº 1 e 691º do Código de Processo Civil, por este acórdão de 17 de Junho de 2014, proferido na Revista nº 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1 (acórdão recorrido) se encontrar em total oposição com o acórdão deste Supremo Tribunal de 29 de Maio de 2014, proferido na Revista nº 257/06.3TBORQ-B.E1.S1 (acórdão fundamento), no qual se julgou que, tendo o progenitor devedor de alimentos a filho menor deixado de cumprir essa obrigação, a prestação de alimentos a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não pode ser de valor superior à prestação incumprida, propondo a seguinte fixação de jurisprudência:
"Nos termos do artigo 2º da Lei 75/98, de 19.11, e artigo 3º do DL nº 164/99, de 13.05, a prestação a suportar pelo FGADM não pode ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário".
Formulou na sua alegação de recurso a seguinte síntese conclusiva:
"1) O preâmbulo do Projecto de Lei 340/VII mostra que o que esteve subjacente ao aparecimento Lei 75/98, de 19.11, foi a compreensão de que a sociedade, ao nível da realidade familiar, tinha vindo a sofrer transformações sociais, tal como o aumento "do número de crianças que vivem e são educadas na companhia só da mãe ou só do pai, quer por terem nascido fora do casamento, quer por força da separação ou divórcio dos pais" e a percepção de que, algumas dessas transformações, se vieram a repercutir negativamente no direito a alimentos das crianças e jovens.
2) Daquele texto resulta que, ao tempo, se entendeu existir uma «inadequação da lei» em dar resposta à repercussão negativa que tais transformações tiveram no direito a alimentos a crianças e jovens, o que colocava em causa direitos garantidos pela Constituição e por instrumentos internacionais aos quais Portugal está vinculado.
3) Tal inadequação prendia-se com o facto de «a Organização Tutelar de Menores tal como se encontra, continuar a não dar cumprimento a essas directrizes e tão pouco se adequa aos princípios que enformaram a reforma do Código Civil no que toca à família e ao instituto dos Alimentos».
4) Nesse contexto, naquele Projecto, realçou-se a obrigatoriedade do Estado em garantir aos menores o adiantamento das pensões alimentares fixadas judicialmente quando a pessoa obrigada ao seu pagamento não cumpra os seus deveres.
5) E, para alcançar tal desiderato, «para os casos de incumprimento de uma decisão judicial relativa a alimentos devidos a menor residente no território nacional, propõe-se que o Estado assegure a prestação necessária para suprir as que tenham ficado em falta e não tenha sido possível obter através dos mecanismos do artigo 189º do Decreto-lei 314/78, de 27 de Outubro (Organização Tutelar de Menores)» - cfr. ponto 3 do preâmbulo.
6) Resulta, pois, expressa e explicitamente do preâmbulo que se pretendeu assegurar o pagamento, pelo FGADM, da prestação necessária para suprir as que tenham ficado em falta e em relação às quais não tenha sido possível obter através dos mecanismos coercivos do artº 189º da OTM.
7) Daí que o FGADM apenas assegura o pagamento das prestações quando a pessoa judicialmente obrigada não cumpre e só o faz até ao início do efectivo cumprimento e daí a sua natureza subsidiária.
8) Decorrendo do nº 3 do artº 6º que o Fundo, substituto provisório, fica sub-rogado na titularidade do direito de crédito que pertencia ao credor primitivo, resulta claro que o montante pelo qual poderá ser reembolsado é tão só o equivalente àquele que o menor não conseguiu obter através dos mecanismos coercivos do artº 189º da OTM.
9) É inadmissível, face ao princípio da separação de poderes, uma interpretação que permita ao Tribunal obrigar o FGADM a pagar uma prestação superior à fixada ao devedor originário, na medida em que, em termos práticos, isso daria azo a que, na parte em que o Fundo não ficasse sub-rogado, fossem os Tribunais a disporem de dinheiros públicos, integrados no Orçamento da Segurança Social, quando esta é uma competência dos Centros Distritais de Segurança Social, integrados no Instituto da Segurança Social, IP.
10) E por esta ordem de ideias se afasta o entendimento que, admitindo que a prestação do Fundo possa ser superior à prestação de alimentos fixada ao primitivo devedor, considera que, nestes casos, haverá uma sub-rogação legal parcial e ser esta justificável na medida em que o não reembolso caracteriza, em regra, as prestações sociais.
11) Perante a opção de consagrar o instituto da sub-rogação como mecanismo de o Fundo reaver as quantias pagas, e não esquecendo os princípios subjacentes a este instituto, só é possível extrair do nº 3 do artº 5º, conjugado com o nº 1 do preceito, que a execução judicial para pagamento "das quantias pagas" só abrange as quantias em relação às quais o Fundo substituiu o devedor originário.
12) Admitir-se que o FGADM possa ficar sub-rogado em quantias superiores àquelas a que está obrigado o devedor originário, como fez o acórdão recorrido, conduzirá ao incompreensível desfecho de o devedor originário se ver, em fase de execução judicial, surpreendido com uma execução para pagamento de quantias em relação às quais não foi ouvido e nem havia sido obrigado pelo tribunal.
13) Estando em causa matéria relativa à atribuição de uma prestação social, há que fazer a relacionação dos preceitos a interpretar com o conjunto de normas e princípios relativos à atribuição de prestações sociais, pelo Estado, de modo a que haja uma harmonia na unidade do sistema tendo em conta ainda as condições específicas do tempo em que a lei é aplicada.
14) Face às diversas respostas de índole assistencial que o Estado oferece, no quadro da política social, como é o caso do RSI, abono de família, bolsas de estudo e FGADM, não se pode admitir que o FGADM possa ser obrigado a pagar uma pensão de alimentos superior ao devedor originário de alimentos a simples pretexto de que a pensão tem "natureza eminentemente social/assistencial" e porque visa fazer face a "situação de grande debilidade económica do agregado familiar".
15) No actual contexto social e de crise económica, em que são escassos os recursos orçamentais face às situações de carência e em que o Estado tem de acudir a todos aqueles que estejam em especial situação de necessidade, a sustentabilidade do FGADM só será possível, a médio e longo prazo, se o recurso ao mesmo for gerido com temperança.
16) A sustentabilidade do FGADM só será alcançável num quadro legal em que se preveja o reembolso total de tais quantias, pelos devedores originários, ao Fundo com vista ao futuro e constante financiamento deste.
17) Facilmente se antevê que o FGADM rapidamente entraria em ruptura num sistema que permitisse a cada tribunal, em cada momento, fixar a pensão de alimentos que julgasse necessária à satisfação das necessidades do menor sem que fosse totalmente reembolsado desses valores.
18) Na interpretação da lei devemos presumir que o legislador, para situações em que a pessoa que está judicialmente obrigada a prestar alimentos não o faz, procurou assegurar, através do FGADM, o pagamento de tais prestações de molde e na medida de suprir tal incumprimento, mas na expectativa de garantia de reembolso de tais quantias com vista ao constante financiamento e sustentabilidade do Fundo tendo, aliás, previsto tais reembolsos como receitas próprias do mesmo (artº 8º do DL 164/99, de 13.05).
19) Como o DL 164/99, de 13.05, mais não faz do que regular a Lei 75/98, de 19.11, quando alude no preâmbulo à criação de uma nova prestação social e, no artº 2º nº 2, estabelece que compete ao Fundo assegurar o pagamento de prestações de alimentos nos termos dos artigos 1º e 2º da Lei 75/98, de 19.11, está-se a referir somente à atribuição do montante das prestações devidas e não pagas pelo progenitor incumpridor, nas situações em que a execução não foi viável.
20) O tribunal, mediante a notícia de um incumprimento da prestação de alimentos por parte do devedor de alimentos, para ponderar se a situação do menor, face ao seu contexto familiar e às suas necessidades específicas, justifica a intervenção do FGADM, mandará que se proceda às diligências de prova necessárias para averiguar.
21) Portanto, embora as necessidades específicas do menor seja um dos critérios que o tribunal tem de ter em conta na fixação da prestação a pagar pelo Fundo, considera-se que ele terá de ser interpretado no contexto atrás descrito.
22) Foram violadas as normas previstas no artigo 2º nº 2 do DL 75/98, de 19.11, e no artigo 3º nº 3 do DL 164/99, de 13.05.
23) Deverá, pois, ser fixada jurisprudência no sentido de que, nos termos do artigo 2º da Lei 75/98, de 19.11, e artigo 3º nº 3 do DL 164/99, de 13.05, a prestação a suportar pelo FGADM não pode ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário".
Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
De facto:
O Tribunal da Relação julgou provados os seguintes factos:
1) O jovem José Augusto Cansado Resina nasceu no dia 29 de Junho de 1997 e encontra-se confiado judicialmente à guarda e cuidados da sua mãe, nestes autos requerente.
2) O pai ficou obrigado, por sentença datada de 30.07.2012, proferida no apenso A, a pagar-lhe uma pensão de alimentos no valor mensal de (euro) 75,00 (setenta e cinco euros) actualizável anualmente a partir de Janeiro do ano de 2013, de acordo com o aumento dos índices de inflação divulgados pelo INE para o ano anterior.
3) O progenitor não liquidou nenhuma das prestações alimentícias devidas.
4) O progenitor encontra-se desempregado, não lhe sendo conhecido o recebimento de prestação social substitutiva da remuneração.
5) Atentas as actuais condições económicas do mesmo, tudo indicia que é inviável o desconto da prestação alimentar devida.
6) O jovem encontra-se integrado no agregado familiar da mãe, constituído por três menores (José António Cansado Resina, Maria dos Anjos Cansado e Francisco José Cansado Noronha) e dois adultos (a requerente e o companheiro).
7) O rendimento do agregado familiar, no qual se insere o jovem cifra-se no montante global de (euro) 799,00, tendo a seguinte proveniência:
a) (euro) 575,00 referentes ao salário do companheiro da requerente;
b) (euro) 129,00 de abono de família;
c) (euro) 65,00 de rendimento de reinserção social atribuído a requerente;
d) (euro) 30,00 de pensão de alimentos de que é credora a filha Maria dos Anjos Cansado.
8) Não são conhecidos rendimentos prediais à requerente e ao seu filho José Cansado.
De direito:
1. O thema decidendi no presente Acórdão Uniformizador de Jurisprudência resume-se à questão de saber se pode, ou não, o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores (doravante, designado de FGADM) ser condenado numa prestação de alimentos de valor superior ao da prestação judicialmente fixada no âmbito de um processo de regulação das responsabilidades parentais não satisfeita pelo progenitor obrigado.
Esta questão tem sido objecto de controvérsia jurisprudencial, tanto ao nível das Relações, como do Supremo Tribunal de Justiça.
Ao nível das Relações decidiram no sentido de que o tribunal, na fixação da prestação a satisfazer pelo FGADM, não tem de ficar limitado - enquanto tecto máximo e inultrapassável - ao montante de prestação de alimentos fixada ao obrigado, entre outros, os seguintes acórdãos: Ac. Relação de Lisboa de 11-07-2013, proc. 5147/03.9TBSXL-B.L1.S1; Ac. da Relação de Lisboa de 02-10- -2014, proc. n.º 140/09.0TMPDL-D.L1.S1; Ac. Relação do Porto de 15-10-2013, proc. n.º 37/12.7TBCNF; Ac. Relação do Porto de 15-10-2013, proc. n.º 151/12.9TBARC.P1; Ac. da Relação do Porto de 28-11-2013, proc. n.º 3255/11.1TBPRD-A.P1; Ac. Relação do Porto de 11-03-2014, proc. n.º 112/12.8TBPRD.1P1; Ac. Relação de Coimbra de 24-06-2008, proc. n.º 29- -A/2000.C1; Ac. da Relação de Coimbra, de 22-10-2013, proc. 2441/10.6TBPBL-A.C1; Ac. Relação de Coimbra de 10-12-2013, proc. n.º 3310/08.5TB VIS-E.C1; Ac. da Relação de Guimarães de 14-11-2013, proc. n.º 699/11.2TBCTB-A.G1; Ac. da Relação de Guimarães de 10-12-2013, proc. n.º 290/08.8TBMNC-E.G1; Ac. da Relação de Relação de Évora de 31-10-2013, proc. n.º 257/06.3TBORQ-E.E1 e Ac. da Relação de Évora de 10-12-2013, proc. n.º 38-E/2000.E1.
Em sentido inverso - de que a prestação a suportar pelo FGADM não pode ser superior à fixada para o progenitor - encontramos, entre muitos outros e a título exemplificativo, o Ac. da Relação do Porto de 18-02-2014, proc. n.º 2247/05.4TBPRD-A.P1; Ac. da Relação de Lisboa de 12-12-2013, proc. n.º 2214/11.9TMLSB-A.L1; Ac. Relação de Lisboa de 08-11-2012, proc. n.º 1529/03.4TCLRS-A.L1; Ac. da Relação de Lisboa de 30-01-2014, proc. n.º 306/06.5TBAGH-A.L1; Ac. da Relação de Lisboa de 13-03-2014, proc. n.º 848/11.0TBLNH-A.L1; Ac. da Relação de Lisboa de 10-04-2014, proc. n.º 175/08TBRMR-A.L1; Ac. da Relação de Lisboa de 11-09-2014, proc. n.º 3699/03.2TBSXL-G.L1.S1; Ac. Relação de Coimbra de 25-05-2004, proc. n.º 70/04; Ac. da Relação de Évora de 27-02-2014, proc. n.º 739/12.8TBSTR-A.E1;
Também ao nível do Supremo Tribunal de Justiça a questão tem sido tratada de forma díspar e controvertida.
Assim, pronunciaram-se, explicita ou implicitamente, no sentido de que o montante da prestação em que o progenitor foi condenado constitui apenas um elemento a atender na fixação da prestação a pagar pelo FGADM, podendo esta, não obstante, ser inferior, igual ou superior, os seguintes acórdãos: Ac. STJ de 27-09-2007, proc. n.º 2498/07; Ac. do STJ de 30-09-2008, proc. 08A2953/08; Ac. STJ de 04-06-2009, proc. n.º 91/03.2TQPDL.S; Ac. de 17-10-2014, Proc. n.º 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1 (acórdão recorrido); Ac. STJ de 28-10-2014, proc. n.º 621/07.0TBVLC-C.P1.S1.
Em sentido oposto, ou seja, no de que a prestação a fixar ao FGADM não poderá ser superior àquela que foi fixada ao progenitor, pronunciaram-se os seguintes acórdãos deste Supremo Tribunal: Ac. STJ de 07-04-2011, proc. n.º 9420/06.6TBCSC.L1.S1 (a questão tratada e decidida não foi exactamente a mesma, podendo extrair-se, contudo, da respectiva fundamentação ser esse o entendimento prevalente); Ac. STJ de 29-05-2014, proc. n.º 257/06.3TBORQ- -B.E1.S1 (acórdão fundamento); Ac. do STJ de 13-11-2014, proc. n.º 415/12.1TBVV-A.E1.S1; Ac. STJ de 17-12-2014, proc. n.º 1860/08.2TBPRD- -4.P1.S1.
Ao nível doutrinário a questão está, igualmente, longe de ser pacífica.
No entendimento de J. P. Remédio Marques (in Algumas Notas sobre Alimentos (devidos a Menores) Versus o Dever de Assistência dos Pais para com os Filhos (em Especial Filhos Menores), Coimbra Editora, 2000, pág. 221) «O Fundo de Garantia não visa substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida a menor, antes propiciar uma prestação a forfait de um montante, por regra equivalente ao que fora fixado judicialmente - mas que pode ser menor, posto que as prestações atribuídas não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de quatro unidades de conta...)», acrescentando adiante que «no que toca ao quantum da prestação substitutiva do Estado, ainda que os alimentos judicialmente fixados ao menor sejam, por cada mês, de montante inferior a 4 unidades de conta de custas, nem por isso o juiz deve condenar o Estado a pagar esse montante, já que o montante das prestações de alimentos já fixadas é, tão-só, um dos índices de que o julgador se pode servir (art. 2.º, n.º 2 da Lei 75/98).». Este mesmo autor («Aspectos sobre o cumprimento coercivo das obrigações de alimentos, competência judiciária, reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras», in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, pág. 645 e ss.) admite a fixação de um montante superior ao da prestação que fora fixada anteriormente, desde que não seja ultrapassado o limite de 4 unidades de conta por devedor.
Este parece ser também o entendimento de Helena Bolieiro e Paulo Guerra (in A criança e a família - uma questão de direitos, Coimbra Editora, 2009, pág. 233) ao referirem que «Só no montante alimentício fixado em anterior decisão fica o Estado sub-rogado nos direitos do credor, mesmo que pague mais, o que parece possível, desde que não ultrapasse a baliza das 4 UC...». Referem ainda que «No fundo, o critério de fixação dos alimentos que o Estado assegura não é o mesmo que vigora no âmbito das responsabilidades parentais...».
Em igual sentido se pronuncia Ana Sofia Gomes (in Responsabilidades Parentais, Quid Juris, 2.ª edição, pág. 52) e Helena Gomes de Melo, João Vasconcelos Raposo, Luís Baptista Carvalho, Manuel do Carmo Bargado, Ana Teresa Leal e Felicidade d'Oliveira (in Poder Paternal e Responsabilidades Parentais, Quid Juris, 2009, pág. 106.
Em sentido inverso, pronuncia-se Tomé d'Almeida Ramião (in Organização Tutelar de Menores Anotada e Comentada», Quid Juris, 2012, pág. 198 e ss.) ao afirmar que «Temos entendido que a prestação a fixar, a cargo do Fundo de Garantia não poderá ultrapassar o montante da prestação fixada a cargo do devedor» e daí entender-se que «a obrigação de prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia configura uma verdadeira obrigação autónoma, mas dependente e subsidiária da do devedor originário dos alimentos, podendo o valor dessas prestações não coincidir, mas seguramente que o não pode exceder. (...)».
Neste mesmo sentido se pronuncia António José Fialho («Contributo para uma desjudicialização dos processos de atribuição de pensão de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Crianças», in Separata de Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, ano 10, n.º 19, Janeiro/Junho 2013, Coimbra Editora) ao referir «Adopta-se o princípio de que a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia não pode ser superior à prestação colocada a cargo do devedor de alimentos na medida em que a lei não prevê a hipótese que, tendo o devedor originário retomado o pagamento da prestação de alimentos, sendo a prestação inferior à que era paga pelo Fundo de Garantia, esta entidade continuaria vinculada a pagar alimentos ao menor, agora no montante equivalente à diferença entre a prestação que o FGADM estava a pagar e aquela que o devedor recomeçou a pagar, ao invés de prever simplesmente a cessação da obrigação a cargo do Fundo».
2. A obrigação ou dever de alimentos estabelecido a favor dos filhos menores assume contornos particulares face à natureza dos direitos envolvidos, que encontram suporte no artigo 36º nº 5 da Constituição, normativo que impõe aos pais o dever de educação e manutenção dos filhos. Trata-se de um dever fundamental, constitucionalmente autonomizado, que tem por beneficiários imediatos os filhos, vinculando o progenitor que não tem a guarda do filho ao dever de lhe prestar alimentos.
Não obstante a estrutura obrigacional do vínculo de alimentos, esta prestação alimentícia é integrante de um dever privilegiado que, segundo Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3ª ed., pág. 169), constitui um caso nítido de deveres reversos dos direitos correspondentes, de direitos deveres ou de poderes-deveres com dupla natureza, em que se elevou um dever elementar de ordem social e jurídico a dever-direito fundamental.
O superior interesse da criança está claramente afirmado e prevalece sobre qualquer outro em matérias que respeitem à sua segurança, saúde, educação e sustento, comprimindo, se necessário, o próprio direito dos pais à sobrevivência condigna. Aos pais compete partilhar com os filhos o pouco que possam ter e colocar-se em posição de angariar os meios necessários e indispensáveis ao sustento do filho menor.
Na linha das Recomendações do Conselho da Europa R(82)2, de 4 de Fevereiro de 1982, relativa à antecipação pelo Estado de prestações de alimentos devidos a menores, e R(89)l, de 18 de Janeiro de 1989, relativa às obrigações do Estado, designadamente em matéria de prestações de alimentos a menores em caso de divórcio dos pais, bem como do estabelecido na Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela ONU em 1989 e assinada em 26 de Janeiro de 1990, o legislador, ciente da expressa consagração constitucional do direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (artigo 69º nº 1 da Constituição), estabeleceu na lei ordinária uma tutela especial no âmbito dos alimentos, instituindo, através da Lei 75/98, de 19 de Novembro, o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, com a função de assegurar o pagamento das prestações de alimentos a menores em caso de incumprimento da obrigação pelo respectivo devedor (cfr. preâmbulo do DL n.º 164/99, de 13 de Maio, que regulamentou aquela lei).
Criou-se uma nova prestação social, que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado, ao mesmo tempo que se deu cumprimento ao objectivo de reforço da protecção social devida a menores (cfr. citado preâmbulo).
O legislador não foi, porém, suficientemente claro, designadamente, quanto à questão agora colocada e que é, apenas e tão-somente, esta: em caso de incumprimento do pagamento da pensão de alimentos a menor, por parte do progenitor a tal obrigado, pode a prestação a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores ser fixada em montante superior ao fixado ao progenitor incumpridor?
São válidos e consistentes os argumentos que abonam em favor quer de uma, quer de outra das teses que se deixaram enunciadas.
Sem se ser exaustivo, os argumentos a favor da tese que defende que a prestação a fixar ao FGAM pode ser superior à fixada ao progenitor faltoso podem sintetizar-se da seguinte forma:
- a prestação a pagar pelo FGADM é uma nova prestação social, razão pela qual a Lei 75/98 enuncia critérios para a fixação do montante da prestação a pagar;
- a prestação do FGADM tem carácter autónomo em relação à obrigação incumprida, daí que o Estado não se vincule a suportar alimentos «incumpridos» (prestações vencidas), mas sim a suportar alimentos ex novo;
- é a própria lei - art. 2.º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, e art. 3.º, n.º 5, do DL n.º 164/99, de 13 de Maio - que atribui ao tribunal a fixação de um quantum e refere quais os factores a atender nessa fixação, de entre os quais ressalta o «montante da prestação de alimentos fixada»;
- é também a própria lei a prever a realização de diligências instrutórias com vista a essa fixação, o que seria redundante, supérfluo e inútil, se o montante a atender fosse, necessariamente, igual ou inferior ao fixado ao progenitor obrigado a prestar alimentos;
- o carácter social e «assistencial» da prestação a pagar pelo FGADM ressalta do preâmbulo do DL n.º 164/99, de 13 de Maio: «Cria-se uma nova prestação social que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado»;
- subjacente à prestação a pagar pelo FGADM está, não a relação familiar, mas sim a noção de solidariedade;
- foi a própria lei que entendeu fixar um limite à prestação a suportar pelo FGADM, e que consta do art. 3.º, n.º 5, do DL n.º 164/99, de 13 de Maio. Se o legislador quisesse fixar outro limite tê-lo-ia fixado, ao invés de o prever como elemento a ponderar na fixação da prestação;
- o momento relevante para a fixação da prestação a pagar pelo FGADM é o do momento em que a mesma é fixada, sendo de ponderar as necessidades actuais, as quais podem divergir das necessidades existentes aquando da fixação da pensão de alimentos a pagar pelo progenitor (e nessa fixação necessariamente ponderadas);
- a intervenção do Estado não se limita a substituir incondicionalmente o devedor, mas sim a assegurar as necessidades do menor e daí a lei ter fixado os elementos a atender na fixação do montante.
Não obstante a valia destes e, porventura, de outros argumentos conduzir a uma solução socialmente mais apelativa e até generosa, porque conferidora de maior protecção aos menores abrangidos pelo incumprimento dos progenitores vinculados à prestação de alimentos, outros argumentos não menos importantes apontam no sentido de uma interpretação menos abrangente dos textos legais em causa e nos farão acolher a tese de que não é possível fixar ao Fundo uma prestação de montante superior à que foi fixada ao devedor originário.
A Lei 75/98, de 19 de Novembro (alterada pela Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro), estabelece no seu artigo 1º:
«1 - Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação.
2 - (...)»
E no seu artigo 2º:
«1 - As prestações atribuídas nos termos da presente lei são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 1 IAS, independentemente do número de filhos menores.
2 - Para a determinação do montante referido no número anterior, o tribunal atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.»
Por sua vez o DL n.º 164/99, de 13 de Maio, (com as alterações do DL n.º 70/2010, de 16 de Junho, e da 112/97, de 16 de setembro e 8/2012, de 21 de fevereiro, a Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Leis 229/95, de 11 de setembro, 287/2003, de 12 de novembro, 32/2012, de 13 de fevereiro, 127/2012, de 21 de junho, 298/92, de 31 de dezembro e 164/99, de 13 de maio, de 9 de fevereir (...)">Lei 64/2012, de 20 de Dezembro), que regulamentou aquela Lei 75/98, dispõe no artigo 3º:
«1 - O Fundo assegura o pagamento das prestações de alimentos referidas no artigo anterior até ao início do efectivo cumprimento da obrigação quando:
a) A pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei 314/78, de 27 de Outubro; e
b) O menor não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.
2 - Entende-se que o alimentado não beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao valor do IAS, quando a capitação do rendimento do respectivo agregado familiar não seja superior àquele valor.
(...)
5 - As prestações a que se refere o n.º 1 são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 1 IAS, devendo aquele atender, na fixação deste montante, à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.
6 - (...).»
Não resultando do texto legislativo, ponto de partida da interpretação (elemento gramatical), a afirmação da existência ou ausência de um limite à prestação a cargo do FGADM, terá de averiguar-se qual a ratio legis ou fim visado pelo legislador na elaboração da norma (elemento teleológico), tendo em consideração o contexto da lei (elemento sistemático) e as circunstâncias em que a lei foi elaborada (elemento histórico), para se descortinar o pensamento legislativo (mens legis), o qual, como é sabido, deverá encontrar um mínimo de correspondência verbal no texto legal (artigo 9º do Código Civil).
Norteado por estes critérios cabe ao julgador, na expressão de Manuel de Andrade "o intermediário entre a norma e a vida", traduzir o comando abstracto da lei no comando concreto a aplicar caso a caso (Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 4ª ed., Coimbra 1987, p.73).
No que ao presente caso concerne, fixado o regime do exercício das responsabilidades parentais, o seu incumprimento, na vertente da prestação de alimentos pelo progenitor que não tem a guarda do filho menor, alcança-se coercivamente através do incidente de incumprimento previsto no artigo 189º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo DL n.º 314/78, de 27 de Outubro, preceito de feição executiva, que estabelece unicamente os meios de tornar efectiva a prestação e não comporta qualquer mecanismo de alteração do valor da prestação mensal já fixada. Trata-se de um incidente vocacionado para tornar efectiva a prestação de alimentos, que tem por único objectivo imprimir celeridade e prontidão no pagamento da dívida de alimentos a filhos menores.
É no quadro processual de uma pretensão de cumprimento coercivo da prestação de alimentos em dívida, previamente fixada e a pagar pelo progenitor faltoso, que o FGADM é chamado a assegurar, a «garantir» como a própria designação do Fundo inculca, ao menor credor de alimentos uma prestação que substituirá a do progenitor faltoso, assegurando o Estado, dessa forma, que nenhuma criança fique privada da prestação de alimentos a que tem direito.
O incumprimento do devedor originário funciona, pois, como pressuposto justificativo da intervenção subsidiária do Estado, só nascendo a obrigação do FGADM após decisão judicial proferida naquele incidente que o vincule ao pagamento da prestação. A intervenção estadual em matéria de alimentos a menores tem, assim, como pressuposto legitimador a não realização coactiva da prestação alimentícia a cargo do progenitor obrigado.
Como vem sendo afirmado, a prestação que ao Fundo cabe assegurar, embora subsidiária, é independente e autónoma da do devedor originário. Trata-se de uma obrigação ex novo, que nasce com a decisão judicial que a determina, conforme Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 07.07.2009, proferido no Agravo ampliado nº 682/09, o qual, mau grado afirmar que "esta prestação nova não tem que ser, necessariamente, equivalente à que estava a cargo do progenitor." "(...) podendo ter um conteúdo diferente da obrigação de alimentos do originário devedor", não tomou posição - nem se impunha que o fizesse - sobre a concreta questão agora em análise.
A sua atribuição depende dos seguintes critérios objectivos: (i) existência de sentença que fixe os alimentos; (ii) residência do menor em território nacional; (iii) inexistência de rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS); (iv) não pagamento pelo devedor da obrigação de alimentos em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do DL n.º 314/78, de 27 de Outubro (OTM) - artigo 1º nº 1 da Lei 75/98, de 19 de Novembro.
O montante da prestação a suportar pelo FGADM pode não ter correspondência com o valor da prestação alimentícia a que ficou vinculado o progenitor não convivente com o filho menor no âmbito dos autos de regulação das responsabilidades parentais. Com efeito, na fixação do valor da prestação mensal a suportar pelo Fundo deve o tribunal atender à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos judicialmente fixada e às necessidades específicas do menor (artigo 2º nº 2 da Lei 75/98 e artigo 3º nº 5 do DL n.º 164/99).
Entender-se que a enunciação destes referenciais quer significar que a prestação a fixar ao FGADM pode ser superior ao montante da já estabelecida judicialmente não conduzirá, ao contrário do que possa parecer, a igualdade de tratamento, antes gerará desigualdades e assimetrias, porventura, não consentidas pelo artigo 13º nº 1 da Constituição. O pagamento às crianças, cujos progenitores, voluntária ou involuntariamente, não cumprem o dever essencial de assegurar alimentos aos filhos menores, de uma quantia superior à prestação alimentícia que aqueles estavam obrigados a pagar, porque mais consentânea com as suas necessidades específicas, estaria a beneficiar um grupo de crianças em detrimento de outro, constituído por filhos de pais com escassos recursos e que, embora com sacrifício pessoal, cumprem os seus deveres.
Na verdade, é pacífico que estas crianças, beneficiárias de prestações insuficientes, muito aquém das suas necessidades específicas, mas efectivamente pagas, ficam excluídas da rede protectora do FGADM, o que acontece porque o legislador não criou um mecanismo universal de assistência a todos os menores carenciados por forma a garantir-lhes, à partida, um padrão de alimentos adequado àquelas necessidades.
Por outro lado, caso o legislador pretendesse com esta nova prestação social assegurar aos menores filhos de pais relapsos uma prestação de alimentos superior à que havia já sido judicialmente fixada, mais próxima das suas necessidades específicas, por que razão a faria cessar logo que cessa o incumprimento do progenitor faltoso (artigos 1º nº 1 in fine e 4º da Lei 75/98 e corpo do nº 1 do artigo 3º do DL n.º 164/99), em vez de prever a continuação da prestação do Fundo pelo remanescente, deixando o menor à mercê de recursos mais reduzidos só com a prestação alimentícia a que o devedor originário estava obrigado. Falta coerência a uma tal solução, sendo que se presume que o legislador consagrou a solução mais acertada e soube exprimir-se em termos adequados (nº 3 do artigo 9º do Código Civil).
A actividade instrutória prevista no artigo 3º nº 3 da Lei 75/98 e no artigo 4º nºs 1 e 2 do DL n.º 164/99, em particular o inquérito sobre as necessidades do menor, prévio à decisão judicial que fixa o montante da prestação a suportar pelo FGADM, tem constituído um elemento interpretativo de relevo para quem defende ser possível a fixação de uma prestação de valor superior à pensão de alimentos a cargo do progenitor faltoso.
É uma leitura possível do texto legal, mas não o interpretamos com esse alcance. Essa diligência instrutória, a par de outras que possam ser judicialmente ordenadas, tem de ser vista como a procura de informação actualizada sobre a situação do menor e do seu agregado familiar de modo a avaliar se carece, efectivamente, do montante da prestação alimentícia fixada ao progenitor que incumpriu, por forma a justificar a intervenção do Estado na sua satisfação pelo mesmo valor ou outro inferior e, quiçá, obviar a possíveis abusos desencadeados com a fixação da prestação, por acordo dos progenitores, em valores que sabem, à partida, não ser possível cumprir.
As diligências instrutórias constituem um meio ao serviço da reponderação e verificação dos pressupostos de concessão de benefícios que envolvem utilização de recursos públicos, que se quer rigorosa e não descontrolada. Note-se que o Estado, por intermédio do Fundo, não substitui incondicionalmente o progenitor faltoso, apenas assegura ao menor os alimentos que nunca recebeu ou deixou de receber por não serem, em qualquer dos casos, pagos pelo progenitor obrigado a prestá-los. Trata-se de uma prestação subsidiária, que visa a reposição da criança carecida de alimentos do progenitor que não tem a sua guarda na situação em que ficaria se não ocorresse o incumprimento.
A natureza substitutiva e subsidiária da prestação do FGADM não pode dissociar-se do conceito de limite ou de tecto, mesmo tratando-se de prestação autónoma e independente, posto que, esta se funda em preocupações de cariz social e a do devedor originário radica, como se referiu, no vínculo que emerge da filiação. É certo que o legislador apenas deixou expresso um tecto para as situações em que o devedor deva prestar alimentos a mais do que um filho (esse limite é de 1 IAS por devedor independentemente do número de filhos menores) - nº 1 do artigo 2º da Lei 75/98 -.
Daí não pode concluir-se, contudo, que nos restantes casos não exista limite, podendo a prestação alimentícia ser fixada em montante superior àquela a que está obrigado o progenitor faltoso, desde que não ultrapasse 1 IAS, o que seria até incentivador do incumprimento.
À semelhança de outros Fundos de Garantia, como sucede com o Fundo de Garantia Salarial (artigo 322º da Lei 35/2004, de 29 de Julho), o legislador não dispensou o reembolso do que prestou aos menores em substituição do devedor originário, fazendo desse reembolso uma das fontes de financiamento do próprio Fundo (artigo 8º nº 1 al. b) do DL n.º 164/99). E foi mais longe, exigindo que o representante legal ou a pessoa a cuja guarda o menor se encontre proceda à restituição imediata do que recebeu indevidamente, designadamente, porque o devedor iniciou o cumprimento da obrigação de prestação de alimentos (artigo 10 nº 1 do DL n.º 164/99). Quer esta exigência, quer o reembolso do que foi prestado não se coadunam com a perspectiva de o Fundo assegurar uma prestação alimentícia de montante superior à fixada judicialmente ao devedor originário, sem reembolso do quantitativo que excede a prestação deste, como sucederia se acaso a prestação do Fundo pudesse ultrapassar a daquele.
A subsidiariedade daquela prestação social e a sub-rogação legal do FGADM (como forma de garantir o referido reembolso) em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas prestações (artigos 6º nº 3 da Lei 75/98 e 5º nº 1 do DL n.º 164/99) são incontornáveis, apontando de forma muito impressiva para a conclusão de que o FGADM não pode ser vinculado a uma prestação alimentícia superior à que foi fixada ao progenitor que incumpriu.
A sub-rogação constitui uma forma de transmissão de créditos. Na definição de Antunes Varela, consiste na substituição do credor na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento (Das Obrigações Em Geral, vol. II, reimpressão da 7ª ed., Almedina, p.335). Fundando-se na lei, a sub-rogação opera, independentemente da vontade dos sujeitos da obrigação, em benefício do terceiro que cumpriu a obrigação em lugar do devedor (artigo 592º do Código Civil).
É da essência da sub-rogação o credor actuar na qualidade de «representante ou substituto legal» do devedor, adquirindo, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam. A medida dos direitos do sub-rogado é sempre feita em função da medida do cumprimento (artigos 592º nº 1 e 593º nº 1 do Código Civil).
No caso vertente, a sub-rogação é legal, aferindo-se os direitos do FGADM (sub-rogado) pela satisfação dada ao direito da criança (credor), cuja pensão de alimentos já fixada no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais pagou. É o direito assim definido que, uma vez cumprido pelo FGADM, este vai exercer junto do progenitor que não cumpriu, substituindo-se, nessa medida, ao menor a quem já satisfez a prestação alimentícia de que era credor.
A obrigação define-se, neste contexto, pelo crédito do menor sobre o progenitor que não tem a sua guarda, vinculado judicialmente a uma prestação de alimentos concreta, assegurando a lei, pela via da sub-rogação, o reembolso ao FGADM do pagamento da prestação social que efectuou em vez do devedor originário.
A natureza do instituto da sub-rogação, tal como está delineado na Lei 75/98 e no DL n.º 164/99, que a regulamentou, estabelecido com o propósito de assegurar o reembolso do devedor originário de todas as quantias pagas aos menores não é conciliável com a interpretação que consente ao FGADM o pagamento de uma prestação alimentícia superior à do primitivo devedor.
Os elementos literal, teleológico, sistemático e, bem assim, o teor da motivação do Projecto de Lei 340/VII, que esteve na génese da Lei 75/98 de 19 de Novembro, apontam para um sentido interpretativo mais restritivo dos normativos em causa, o qual não contende com qualquer comando constitucional.
Como se salientou no Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça de 07.04.2011 (proc. 9240.06TBCSC.L1.S1, www.dgsi.pt/jstj), «situa-se no âmbito da livre discricionariedade do legislador a opção sobre os montantes públicos que, em cada momento, é possível adjudicar à tutela dos direitos dos menores carenciados, por privados do apoio familiar que prioritariamente lhes era devido - já que os recursos financeiros públicos disponíveis para a prossecução de políticas sociais, subordinadas à cláusula do possível, sempre inelutavelmente escassos, terão de ser repartidos pelos vários grupos de cidadãos carenciados, sendo indispensável a formulação, pelos órgãos democraticamente investidos, de opções, juízos prudenciais e ponderações, situadas no cerne da sua competência político-legislativa e insindicáveis no plano judiciário.»
Nesta conformidade, conclui-se que, à luz do disposto no artigo 2º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, e no artigo 3º nº 3 do DL n.º 164/99, de 13 de Maio, havendo incumprimento do pagamento da pensão de alimentos a menor por parte do progenitor a tal obrigado, a prestação a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao fixado ao progenitor incumpridor.
III. Decisão:
Termos em que se acorda no pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça em:
a) Conceder a revista e revogar o Acórdão recorrido, determinando que a prestação provisória de alimentos a pagar ao menor José Augusto Cansado Regina pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores seja no valor de (euro) 75,00 mensais.
b) Uniformizar jurisprudência nos termos seguintes:
Nos termos do disposto no artigo 2º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, e no artigo 3º nº 3 do DL n.º 164/99, de 13 de Maio, a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário.
c) Sem custas.
Lisboa, 19 de Março de 2015. - Fernanda Isabel de Sousa Pereira (Relatora) - Manuel Tomé Soares Gomes (Com declaração de voto junta) - Sebastião José Coutinho Póvoas - Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos Cameira - António Alberto Moreira Alves Velho - João Mendonça Pires da Rosa - Carlos Alberto de Andrade Bettencourt de Faria - José Amílcar Salreta Pereira - João Luís Marques Bernardo - João Moreira Camilo - António José Pinto da Fonseca Ramos - Helder João Martins Nogueira Roque - José Fernando de Salazar Casanova Abrantes - Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego - Gregório Eduardo Simões da Silva Jesus - Manuel Fernando Granja Rodrigues da Fonseca - Fernando da Conceição Bento - João José Martins de Sousa - José Tavares de Paiva - António da Silva Gonçalves - António dos Santos Abrantes Geraldes - Ana Paula Lopes Martins Boularot - Fernando Manuel Pinto de Almeida - Júlio Manuel Vieira Gomes (Vencido de acordo com a declaração de voto da Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza) - António Manuel Machado Moreira Alves (Votei vencido de acordo com a declaração de voto do Senhor Conselheiro Paulo Sá) - Paulo Armínio de Oliveira e Sá (Vencido de acordo com a declaração de voto que anexo) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (Vencida, conforme declaração que junto) - Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos (Vencido, conforme declaração de voto que junto) - Ernesto António Garcia Calejo (Vencido conforme declaração de voto do Senhor Conselheiro Paulo Sá) - Henrique Manuel da Cruz Serra Baptista (Vencido, de acordo com a declaração de voto do Exma. Conselheira Maria dos Prazeres Beleza) - Paulo Távora Victor (Vencido de harmonia com a declaração de voto da Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza) - José Augusto Fernandes do Vale (Vencido, conforme declaração que junto) - Gabriel Martim dos Anjos Catarino (Vencido de acordo com a declaração de voto do Senhor Conselheiro Dr. Paulo Sá) - João Carlos Pires Trindade (Vencido de acordo com declaração de voto do Senhor Conselheiro Fernando Vasconcelos) - Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor (Vencida conforme declaração de voto que junto) - António Silva Henriques Gaspar (Presidente).
Declaração de voto
Embora vote integralmente o presente projeto de acórdão, tanto no plano dos fundamentos como na parte dispositiva, porque até agora tenho perfilhado entendimento diverso, mormente em acórdãos em que fui relator ou adjunto no Tribunal da Relação de Lisboa, faço acompanhar o meu voto da seguinte declaração:
Como juiz no Tribunal da Relação de Lisboa, quer como relator quer como adjunto, perfilhei o entendimento de que a prestação fixada a cargo do FGADM, em sede de garantia do pagamento de prestações devidas e não efetuadas a menores, por pessoa judicialmente obrigada a tal, sendo autónoma, era passível de ser fixada em montante inferior, igual ou superior à prestação originária, em consonância como os resultados probatórios entretanto obtidos, embora não podendo deixar de ter por referência o montante da obrigação incumprida, não devendo, por isso, ser fixada em patamar substancialmente diverso desta. Assim, o montante da prestação originária funcionaria apenas como fator de referência relativo.
Considerava também, como ainda continuo a considerar, que o mecanismo de sub-rogação do FGADM, estabelecido na da Lei 75/98, de 19-11, para efeitos de reembolso sobre o obrigado a alimentos pelas quantias pagas, não constituirá obstáculo a tal entendimento, posto que a sub-rogação poderá operar, parcialmente, ou seja, só pelo montante da obrigação incumprida.
Todavia, em melhor ponderação das considerações expostas na motivação do Projeto de Lei 340/VII que esteve na origem da Lei 75/98, de 19-11, bem como perante o argumentário do presente acórdão uniformizador, no que respeita à diagnosticada incoerência sistemática de uma tal solução, nomeadamente quanto à desigualdade de tratamento entre os menores assim beneficiados, ante situações de incumprimento, em relação aos menores cujos progenitores cumpram obrigações alimentares do mesmo patamar, reconheço que a solução que vinha perfilhando não se afigura a mais coerente.
De resto, reconheço que um instituto jurídico que permita um tal desempenho discriminatório poderá reverter em fator de incentivo ao incumprimento por parte das pessoas judicialmente obrigadas a prestar alimentos a menores, como bem se observa no presente acórdão.
Embora continue a considerar, na linha da jurisprudência dominante, que a obrigação de garantia a cargo FGADM instituída pela Lei 75/98 é autónoma em relação à obrigação originária que visa garantir, assumindo a natureza de prestação social, fundada em razões de solidariedade social, reconheço que, ainda assim, aquela obrigação de garantia não deixa estar genética e funcionalmente vinculada à obrigação originária, na medida em que tem como pressuposto o incumprimento desta e só perdura enquanto se mantiver este incumprimento, nos termos do art.º 1.º, n.º 1, da citada Lei.
Ora, se um dos pressupostos fundamentais da obrigação de garantia a cargo do FGADM é o incumprimento das quantias devidas pela pessoa judicialmente a tal obrigada, o montante da prestação correspondente à obrigação originária traduz-se em limite objetivo desse incumprimento e, por conseguinte, do pressuposto que ele representa. Nesta medida, a necessidade do alimentando que extravase o âmbito da obrigação originária não releva no plano do incumprimento desta obrigação, situando-se, por isso, fora dos limites do pressuposto da obrigação de garantia em que este incumprimento se traduz.
Por outro lado, reconheço agora não ser decisivo o argumento estribado na circunstância de a Lei 75/98 prever, em sede das disposições processuais contidas no seu art.º 3.º, a realização de diligências probatórias sobre as necessidades do menor. Trata-se de normas instrumentais ou adjetivas que não visam, propriamente, definir os critérios de fixação da prestação, mas simplesmente permitir colher novos elementos para efeitos dessa fixação, nos termos em que a lei a admita.
Sucede que das considerações da motivação do Projeto de Lei 340/VII parece decorrer que a necessidade de prever tais medidas instrutórias se terá centrado na preocupação de excluir o acionamento da garantia nos "casos em que o alimentando não tenha especiais carências", ou só o permitir na medida em que as tenha.
É certo que a Lei 75/98, além do limite estabelecido no n.º 1 do art.º 2 não se refere explicitamente ao montante da prestação originária como fator de referência absoluta, mas não se pode ignorar que o n.º 1 do art.º 1.º elege como pressuposto da garantia a não satisfação das "quantias em dívida", donde se afigura decorrer que os montantes em dívida operam como tecto máximo da prestação a cargo do FGADM.
Talvez por isso mesmo é que o legislador não sentiu necessidade de o destacar, de novo, em sede dos critérios de fixação da prestação a cargo do Fundo, posto que, como foi dito, "as quantias em dívida" integram um dos pressupostos da própria obrigação de garantia. E será também por isso que nada se preconizou sobre eventuais pagamentos ulteriores pelo Fundo de montantes superiores à prestação originária, nos casos em que seja retomado o efetivo cumprimento desta obrigação.
Pelas razões expostas e sobretudo pelas constantes do projeto de acórdão, reconsidero a minha posição anterior e subscrevo o presente acórdão uniformizador. - Manuel Tomé Soares Gomes.
Votei vencido, por continuar convencido da justeza da fundamentação aduzida no acórdão de 28.10.2014, proferido no processo 621/07.0TBVLC-C.P1.S1 de que fomos Relator.
Explicitando alguns pontos, em que a divergência com a fundamentação do presente acórdão é mais acentuada e que se reconduzem, no fundo, à divergência sobre a interpretação da lei (artigo 9.º do CC).Os diplomas que instituíram e regulam o Fundo de Garantia são precisamente instrumentos legislativos elaborados para proteger os interesses das crianças e os seus direitos fundamentais à vida (art. 24.º da CRP), ao livre desenvolvimento da personalidade e à integridade pessoal (arts 25.º e 26.º da CRP), ao desenvolvimento integral e à protecção da sociedade e do Estado (art. 69.º da CRP).
Deste facto e das considerações constantes do preâmbulo do Decreto-Lei 164/99 se extrai, sem qualquer dúvida, que o legislador decidiu prever para as crianças abrangidas - filhas de pais ausentes ou incapazes - uma prestação especial e autónoma, que, surgindo a propósito do incumprimento de um dos pais, visa mais do que a mera substituição da obrigação deste: prover à satisfação das necessidades básicas das crianças para que não vivam abaixo do limiar de sobrevivência, garantindo-lhes um nível mínimo de vida para realização dos seus direitos fundamentais à vida e ao desenvolvimento.
E, como se salienta no acórdão a iniciativa legislativa surge num contexto de acatamento de recomendações do Conselho da Europa, e do reconhecimento das obrigações do Estado decorrentes da Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela ONU em 1989 e assinada em 26 de Janeiro de 1990 e da própria Constituição.
Nestes termos entendemos estarmos a "reconstituir o pensamento legislativo".
E não pode este entendimento ser considerado uma interpretação em infracção ao artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, porquanto, como afirma o Conselheiro Mário Mendes, no acórdão proferido na revista n.º 252/08.8TBSRP-B-A.E1 são "coisas diversas o direito a alimentos a prestar pelos pais, por efeitos da filiação (artigo 1874º CC) e, as prestações sociais do FGADM que não constituem um direito subjectivo dos menores a quem se dirigem, representando antes, (...) um recurso subsidiário, fundado na noção de solidariedade subjacente ao Estado Social e destinado a dar resposta imediata à satisfação de necessidades de menores que se encontrem numa situação de carência", sendo diferentes os respectivos parâmetros (vide, no que toca a alimentos no âmbito da relação familiar, o artigo 2004.º do CC.
O respeito do princípio da igualdade, tal como é reconhecido pela jurisprudência e doutrina constitucionais implica "que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante".
A tese que permite a fixação da pensão em valor superior ao do obrigado tem apoio na letra da lei e no seu espírito ou ratio, bem como no elemento sistemático de interpretação, que exige uma coerência axiológica do ordenamento jurídico e que impõe uma interpretação conforme à Constituição.
A tratar-se de uma mera substituição do obrigado originário, pelo mesmo montante a que estava vinculado, não se percebe porque a lei atribui poderes aos tribunais para praticar diligências e estipula critérios para a determinação da pensão e respectivos valores máximos. Bastaria, com menos diligências e dispêndio de tempo para os tribunais, prever um processo mais simples de mera substituição do obrigado pelo Fundo, pelo mesmo valor da pensão alimentar a que aquele estava condenado, com a única excepção da prestação não poder ultrapassar 1 IAS, sendo certo que tal redução não necessitaria de qualquer diligência do tribunal, pois poderia operar automaticamente. Note-se, ainda, que, da mera leitura do art.º 2.º, n.º 2 da Lei 75/98, se conclui que o montante da prestação de alimentos originariamente fixado aparece como um elemento de ponderação do novo quantitativo, a par dos dois outros referenciais de ponderação e não como limite da pensão social a arbitrar.
Quisesse o legislador consignar que a prestação a suportar pelo Fundo nunca deveria exceder a anteriormente fixada, tê-lo-ia dito com a mesma facilidade com que fixou o montante a não ultrapassar, pelo que a interpretação acolhida no acórdão não presume que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e se soube exprimir em termos adequados.
À luz do que se deixa dito, não parece sustentável que se possa afirmar que a interpretação que se subscreve, implique criar direito, invadindo a esfera do legislador na definição de políticas sociais ou que se funde em meras razões de generosidade.
Quanto à possibilidade de se poder entender não constituir obstáculo à fixação de uma prestação alimentar superior aos alimentos a pagar pelo progenitor incumpridor, parece-nos ser isso que decorre do conceito de sub-rogação (artigo 589.º do CC), sendo que a sua natureza é a de uma transmissão legal do crédito baseada num acto jurídico não negocial que é o cumprimento (MENESES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol II, 4.ª edição, Almedina, Coimbra, p. 49).
A sub-rogação parcial pode ocorrer não apenas quando se paga mais do que o crédito (por erro, ou por a obrigação do Fundo ser superior ao crédito do alimentando) ou quando se paga menos. Neste caso, subsiste parcialmente o crédito originário, até com um direito de preferência a favor do credor (artigo 593.º, n.º 3, do CC).
E, finalmente, não nos parece que, na interpretação de qualquer diploma que crie e regulamente um determinado fundo de garantia, se deva privilegiar a respectiva sustentabilidade financeira, em vez das finalidades que tal fundo visa assegurar. - Paulo Armínio de Oliveira e Sá.
Vencida. Segundo penso, o Supremo Tribunal deveria ter negado provimento ao recurso e uniformizado jurisprudência no sentido de que a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores pode ser fixada em montante superior àquele em cujo pagamento foi condenado o devedor originário, no essencial, pelas razões seguintes:
1. Como observei no acórdão de 4 de Junho de 2009, proc. nº 91/03.2TQPDL.S1, www.dgsi.pt, e se dá conta no preâmbulo do Decreto-Lei 164/99, de 13 de Maio, foi em execução da tarefa constitucionalmente definida de proteger as crianças "com vista ao seu desenvolvimento integral" (artigo 69º) que a Lei 75/98, de 19 de Novembro, veio garantir que o Estado assegura o direito a prestações de alimentos a menores em caso de incumprimento do correspondente dever, judicialmente fixado (artigo 1º), através do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores.
Com essa finalidade, determina-se que, verificadas as condições definidas pelos artigos 1º da Lei 75/98 e pelo nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei 164/99 - incumprimento da obrigação de alimentos e "o alimentado não [ter] rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre", actualmente -, o montante a fixar pelo tribunal seja fixado tendo em conta a "capacidade económica do agregado familiar, o montante da prestação de alimentos fixada e as necessidades específicas do menor" (nº 2 do artigo 2º da Lei 75/78 e nº 3 do artigo 5º do Decreto-Lei 164/99, na redacção resultante da 112/97, de 16 de setembro e 8/2012, de 21 de fevereiro, a Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Leis 229/95, de 11 de setembro, 287/2003, de 12 de novembro, 32/2012, de 13 de fevereiro, 127/2012, de 21 de junho, 298/92, de 31 de dezembro e 164/99, de 13 de maio, de 9 de fevereir (...)">Lei 64/2012, de 20 de Dezembro).
Estabelece-se ainda, com o objectivo manifesto de garantir a adequação do montante encontrado, que "a decisão de fixação das prestações a pagar pelo Fundo é precedida da realização das diligências de prova que o tribunal considere indispensáveis e de inquérito sobre as necessidades do menor, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público" (nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei 164/99 e nº 3 do artigo 3º da Lei 75/78).
Continuo assim a pensar que, da leitura conjunta destas disposições, inseridas na globalidade dos diplomas que as contêm e interpretadas em conformidade com o objectivo constitucional que prosseguem, resulta que a lei pretende assegurar ao menor, que se encontra em situação particularmente carente, a prestação de alimentos adequada às suas necessidades específicas; e que, assim, o montante dos alimentos a prestar pelo Fundo de Garantia não depende rigidamente da quantia em que o obrigado tenha sido condenado, nem da capacidade que este tenha de prestar alimentos. Esta capacidade, como em geral sucede com a obrigação de prestar alimentos no âmbito das relações familiares (cfr. a disposição geral do nº 1 do artigo 2004º do Código Civil), foi considerada quando o tribunal fixou a pensão; mas não releva agora a não ser indirectamente, e apenas na medida em que "o montante da prestação de alimentos fixada" (nº 2 do artigo 2º da Lei 75/78) é um dos elementos a ponderar para o efeito de definir a extensão das obrigações do Fundo.
Isto significa que a intenção de adequação à situação concreta do menor conduz a que a prestação a cargo do Fundo possa ser de valor inferior, igual ou superior àquela que vem substituir.
2. Discordo ainda de alguns dos fundamentos apresentados no acórdão que foi aprovado. Assim e em breve síntese:
- O acórdão baseia-se na natureza substitutiva e subsidiária da prestação posta a cargo do Fundo; a meu ver, afasta-se da razão essencial em que assentou a posição que fez vencimento no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 12/2009, de 7 de Julho de 2009, no que toca à questão de saber a partir de que momento o Fundo de Garantia deve ser condenado a satisfazer as prestações de alimentos, e que foi a natureza "independente e autónoma, embora subsidiária" da respectiva obrigação;
- A posição que fez vencimento cria alguma dificuldade de harmonização com a orientação que tem prevalecido no Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que "nas acções de regulação do exercício das responsabilidades parentais, ainda que se desconheça o paradeiro e a situação pessoal, profissional ou económica de um dos progenitores, deve ser fixada a seu cargo pensão de alimentos em favor do filho menor" (decisão sumária de 24 de Julho de 2012, da mesma relatora, proferida no processo 10102/09.2TCLRS.L1.S1), nomeadamente para permitir o acesso à prestação de alimentos pelo Fundo de Garantia. Ao fixar essa pensão, com este objectivo, o tribunal depara-se a mais das vezes com situações em que se não pode ter em conta a capacidade do obrigado; a prestação que, subsequentemente, é imposta ao Fundo de Garantia é realmente independente dessa capacidade e determina-se portanto segundo outros elementos;
- Não creio que faça sentido que, verificadas as condições de acesso à prestação do Fundo, previstas no artigo 1º da Lei 75/98 e no nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei 164/99, a lei determine a realização de prova e de inquérito às necessidades do menor, se o montante dessa prestação está limitado à pensão fixada ao obrigado incumpridor; será um meio desproporcionado para o único fim então em vista - verificar se não deve ser determinado um montante menor do que esta pensão;
- Não me parece correcta a observação de que geraria desigualdades, não consentidas pelo artigo 13º da Constituição, a circunstância de filhos de progenitores incumpridores poderem ser beneficiados por confronto com os filhos de progenitores que pagam as pensões em que foram condenados; é uma eventualidade insusceptível de avaliação nessa perspectiva. O sistema de intervenção do Fundo, em si mesmo, é antes um mecanismo tendente a diminuir as desigualdades sociais, e tem de ser apreciado no conjunto das prestações sociais previstas na lei portuguesa;
- Também não me parece convincente a observação de que a interpretação que se perfilha é incongruente com a cessação de pagamento pelo Fundo, se o obrigado passar a cumprir. O sistema criado com o Fundo de Garantia assenta no pressuposto do incumprimento; foi assim definido e, portanto, é uma consequência inevitável, dentro da respectiva lógica;
- O mesmo digo da observação de que tal interpretação é incentivadora do incumprimento e de eventuais acordos fraudulentos, forjados para fixar montantes superiores às possibilidades do obrigado à pensão, com o objectivo de aceder a prestações do Fundo mais elevadas. Quanto ao primeiro argumento, pode dizer-se que a lei prevê a cobrança coerciva, quer das prestações de alimentos quer, quanto ao que agora interessa, dos montantes pagos pelo Fundo e não reembolsados; quanto ao segundo, suponho que será mais adequado a criticar a posição que fez vencimento: só tem realmente vantagem acordar fraudulentamente em valor superior àquele que o obrigado tem condições de pagar se a prestação a pagar pelo Fundo estiver limitada por tal valor;
- Finalmente, suponho que nenhuma incompatibilidade existe entre a solução que me parece resultar da lei e a sub-rogação do Fundo "em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso" (nº 1 do artigo 5º do Decreto-Lei 164/99). Cada sub-rogação legal tem, antes de mais, o regime que especificamente lhe atribui a lei que a cria; se resulta da lei, como eu suponho que resulta, que o Fundo pode ser condenado no pagamento de uma pensão superior àquela que foi imposta ao primitivo obrigado, a sub-rogação só pode operar no montante coincidente, sob pena de implicar um aumento daquela em que o mesmo obrigado foi condenado, o que não me aprece possível; concordo, assim, com o que a este propósito se disse no acórdão deste Supremo Tribunal de 20 de Outubro de 2014, proc. nº 621/07.0TBVLC-C.P1.S1.
3. A meu ver, e em conclusão, a lei vigente admite que, em resultado da prova produzida em tribunal e do inquérito realizado, seja determinado ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores que pague um montante superior àquele em cujo pagamento foi condenado o devedor originário. Esta interpretação, além de tudo o mais, permitiria uma maior adequação a casos extremos que frequentemente se deparam ao julgador, nomeadamente tendo em conta o número de filhos ou as circunstâncias concretas da vida dos menores. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.
Declaração de voto
Entendo que o montante das prestações cujo pagamento incumbe ao Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores pode ser diferente da prestação fixada ao obrigado.
E pode ser diferente porque essas prestações são autónomas.
Na verdade, o montante da prestação que o Fundo assegura é fixado de acordo com o critério referido no nº2 do artigo 2º da Lei 75/98, de 19.11, em que se determina que o Tribunal deve atender, para esse efeito, "à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor", tendo apenas como limite o montante de 1 IAS. - cfr. nº1 do artigo 1º e artigo 2º da mesma Lei.
Disto resulta necessariamente que o montante da prestação anteriormente fixada e objeto do incidente de incumprimento, constitui apenas um dos índices que o Tribunal que fixa a prestação assegurada pelo Fundo se deve socorrer para fixar a nova prestação.
Se as prestações tivessem que coincidir, então aquela prestação, objeto do incidente, não podia constituir índice de fixação da outra.
Este regime compreende-se se tivermos em atenção que o que o legislador pretendeu com a criação do Fundo foi socorrer as necessidades concretas e atuais do menor, o que é manifestamente indicado pelos fatores de determinação da prestação constantes do citado nº2 do artigo 2º da Lei 75/98.
Na verdade, perante a referência que aí se faz à capacidade económica do agregado familiar e às necessidades específicas do menor, não se pode deixar de concluir que esses fatores se referem à situação em que o menor se encontra aquando da fixação da prestação a assegurar pelo Fundo e não à situação em que ele se encontrava aquando da fixação da prestação alimentar inicial.
E, evidentemente, da consideração desta situação atual, pode resultar um novo montante da prestação de alimentos, que pode ser igual, inferior ou superior ao montante anteriormente fixado, neste último caso apenas com o limite acima referido.
Tal regime compagina-se com o estabelecido no artigo 69º da Constituição da República Portuguesa - referido, aliás, no preâmbulo do Decreto-lei 164/99, de 13.05, que regulamentou aquela Lei - na parte em que se diz que "as crianças têm o direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral".
Assim, a prestação de alimentos a menores não esta dependente do cumprimento de qualquer obrigação alimentar, mas nasce com a simples carência do alimentando.
Daí e conforme se diz naquele preâmbulo, "resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (art.º 24º). Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado, as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna".
Por isso, constatando o Estado, através dos Tribunais, por diligências feitas - cfr. nº1 do artigo 4º da referida Lei 164/99 - que as necessidades do menor e a sua situação socioeconómica e da sua família, na altura em que é fixada a prestação a pagar pelo Fundo, são diferentes daquelas que existiam na altura em que inicialmente foi fixada, pode aquela prestação ser de montante diferente, inferior ou superior.
Este regime está, aliás, de acordo com o disposto no artigo 2012º do Código Civil.
A não ser assim, isto é, a entender-se que na prestação a pagar pelo Fundo não se podia tomar em conta aquela nova situação do menor, então, face ao princípio da atualidade refletido no artigo 2104º do Código Civil, seria necessário instaurar novo procedimento para se proceder à alteração, com o inevitável prejuízo para o menor no caso de as necessidades atuais exigirem uma prestação maior e em flagrante contradição com o caráter urgente do processo, indiciado pelos disposto no artigo 160º da Organização Tutelar de Menores.
No caso concreto em apreço, constatando o Tribunal que a prestação no montante de 75,00 (euro) era inadequada dada à atual situação do menor e decidindo que essa prestação devia ser fixada em 100,00 (euro), não podia deixar de ser este o montante que o Fundo devia pagar.
A não ser assim e salvo o devido respeito, tratar-se-ia de uma interpretação da lei que não tomaria em conta a unidade do sistema jurídico, imposta no nº 1 do artigo 9º do Código Civil.
Na verdade, por um lado, interpretava-se a lei no sentido que o Estado, devendo proporcionar ao menor "as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna", devia pagar ao menor uma prestação mensal no montante de 100,00 (euro).
Por outro lado, interpretava-se a lei no sentido que essas condições não exigiriam aquele montante, mas antes uma quantia menor, no caso, 75,00 (euro).
Não pode ser.
Parece-nos evidente que só é inteligível o sistema com base no entendimento de que quando o Estado, através dos Tribunais, fixa determinados factos relativos à fixação de alimentos, tem conhecimento, nesse momento, qual o montante em que se concretizam essas condições, não sendo racional, dentro do contexto da lei, que nessa altura não possa ou não deva fixar esse montante e seja obrigado a fixar um outro, desatualizado, anteriormente fixado.
Esta interpretação não impede, obviamente, que o Fundo acima referido fique sub-rogado nos direitos dos menores a quem assim sejam atribuídas prestações, nos termos do nº3 do artigo 6º da Lei 75/98.
Que assim é e que se trata de prestações atribuídas com base nesta Lei e não de prestações fixadas inicialmente, está a conjugação do disposto naquele nº3 com o disposto no artigo 2º da mesma Lei, da qual se tem que se retirar que as prestações em que o Fundo fica sub-rogado são as fixadas e determinadas de acordo com a mesma Lei - "as prestações atribuídas nos termos da presente lei", como se refere expressamente no início do nº1 do referido artigo 2º.
Pelo exposto, confirmaria o acórdão recorrido e uniformizaria a jurisprudência no sentido de a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores poder ser fixada em montante diferente ao da prestação de alimentos a que inicialmente estava vinculado o devedor originário.
Lisboa, 2015.03.19. - Oliveira Vasconcelos.
Voto vencido, pelos fundamentos que, em tentada síntese, passo a enunciar:
1 - Têm diferente natureza a prestação alimentícia prevista nos arts. 2003º e segs. do CC e a que fique a cargo do FGADM (Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores): enquanto aquela é de índole ou raiz familiar, esta tem um cariz social/assistencial, na prossecução de uma das programáticas metas humanas e constitucionais de que o Estado Português não pode demitir-se, atenta a imposição constitucional da salvaguarda do mínimo de dignidade humana, sobretudo da criança (Cfr., designadamente, os arts. 1º e 69º, nº/s 1 e 2 da CRP), em consonância, aliás, com as obrigações derivadas para o Estado Português da subscrição de convenções e tratados internacionais com interferência na temática em causa;
2 - Esta última - como sustenta, designadamente, o Prof. João Paulo F. Remédio Marques, em anotação concordante ao AUJ nº12/2009, de 07.07.09 (in "CDP" nº34, pags. 26 e segs) - pode ser de montante superior ao daquela, desde que não excedido o respectivo tecto legal (de 1 IAS - Indexante de Apoio Social, correspondente, nos anos de 2012, 2013 e 2014, a (euro) 419,22, nos termos do art. 114º da Lei nº66-B/2012, de 31.12 - por cada devedor e independentemente do número de filhos menores);
3 - O montante da prestação de alimentos fixada - evento passado - constitui apenas um dos três factores a que o tribunal deve atender para a fixação - evento futuro que tem em vista e com o qual se vai confrontar - da prestação a cargo do FGADM, não podendo o resultado ou soma dos três factores ser, necessariamente, equiparado ou assimilado ao que se obteria com a consideração de um só deles. E se o legislador quisesse, com a imposição da consideração de tais factores, contemplar apenas as prestações incumpridas e fixadas em montante superior a 1 IAS, teria, certamente, expresso o seu pensamento em correspondentes e adequados termos (art. 9º, nº3, do CC);
4 - A tese perfilhada não se afasta da órbita deste preceito legal, mormente se tida em consideração a inspiração socialista da Assembleia da República e do Governo coevos, em plena época de estabilidade ou, mesmo, expansão económica e em véspera do preenchimento dos requisitos para a "entrada no euro", tendo, por outro lado, na devida conta as condições específicas do tempo em que a lei é aplicada, uma vez que acabará por contribuir para a mitigação do défice demográfico que ameaça e cerca, cada vez mais, a Europa, com a progressiva e fatal submissão desta aos efeitos das migrações clandestinas oriundas de África e do mundo islâmico;
5 - O sustentado em 2) não põe em causa o direito de sub-rogação legal conferido ao Fundo;
6 - Em tal hipótese, o mencionado direito de sub-rogação só poderá ter por objecto o montante da prestação alimentícia, por ao mesmo se restringirem os poderes que competiam ao menor-credor perante o originário familiar-devedor (art. 593º, nº1, do CC), com o que o Estado deverá conformar-se, na prossecução da sua mencionada função social/assistencial.
Assim, e por adesão aos demais fundamentos invocados no douto voto da Ex. ma Cons. Prazeres Beleza, teria negado a revista e confirmado o acórdão recorrido, uniformizando, por outro lado, a jurisprudência em sentido contrário àquele que fez vencimento. - Fernandes do Vale.
Declaração de voto
Voto vencida, por entender que os elementos de interpretação (gramatical, racional e sistemático) conduzem à possibilidade de os tribunais condenarem o FGADM a uma prestação de alimentos de valor superior ao da prestação judicialmente fixada ao progenitor.
Estamos perante uma questão jurídica para a qual não existe uma resposta única, como admite o acórdão que fez vencimento, sendo possível seguir caminhos argumentativos distintos, todos eles racional e juridicamente fundamentados.
Mas entendo, diferentemente do acórdão que fez vencimento, que "os pensamentos jurídicos verdadeiramente decisivos ocorrem fora do âmbito da lógica formal", assim sucedendo com as decisões de valor (Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, tradução portuguesa do original alemão, Lisboa, 2002, p. 32). Sendo assim, o «pensamento decisivo», que me conduz ao momento da opção-decisão por uma das alternativas, é a protecção da dignidade humana das crianças (art. 1.º da CRP), como pessoas titulares de direitos fundamentais a um nível mínimo de vida, à integridade física e pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade, ao desenvolvimento integral e à protecção do Estado e da sociedade (arts 24.º, 25.º, nº1, 26.º, n.º1 e 69.º da CRP), a essa luz devendo as normas jurídicas ser interpretadas.
O elemento gramatical de interpretação afirma esta solução (art. 2.º, n.º 2 da Lei 75/98, de 19 de Novembro e art. 4.º, n.º1 e 3.º, n.º 5 do Decreto-Lei 164/99, de 13 de Maio), confirmada pelo elemento teleológico ou racional, expresso no próprio preâmbulo do diploma legal que institui o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores e que cria uma nova prestação social destinada a combater a pobreza nas situações de ausência do devedor, desemprego, doença ou incapacidade, maternidade/paternidade adolescente e de toxicodependência. No mesmo sentido concorre o elemento sistemático de interpretação, que tem o seu expoente máximo no princípio da interpretação conforme à Constituição. Neste quadro, a questão da coerência lógica dos conceitos assume um papel secundário, que não deve ser determinante na solução do caso.
Os argumentos utilizados pelo acórdão que fez vencimento - o conceito de sub-rogação legal e a natureza executiva do processo que dá origem à intervenção do Fundo - são argumentos conceituais que integram o método lógico-dedutivo com que se chegou à decisão. Mas a jurisprudência de conceitos, desde a 2.ª Grande Guerra criticada pela ciência jurídica, deve ser complementada e corrigida pela jurisprudência de valores, corrente que defende que as decisões judiciais devem orientar-se, não tanto pela coerência lógica dos conceitos, mas pelo princípio da coerência axiológica ou valorativa do ordenamento jurídico, sobretudo, quando estão em causa direitos fundamentais da pessoa humana.
Os conceitos são meras simplificações da realidade jurídica, que os tribunais e a ciência jurídica têm muitas vezes de adaptar à realidade jurídica concreta, sendo possível admitir que, por razões de economia processual, no incidente de incumprimento, possa ser decidido o valor da nova pensão a pagar pelo Fundo, como aliás a lei prevê no art. 2.º da Lei 75/98, de 19 de Novembro. Em relação ao conceito de sub-rogação legal pode admitir-se, como tem feito alguma jurisprudência, uma figura de sub-rogação atípica ou parcial dirigida ao reembolso apenas dos valores em dívida pelo progenitor, aceitando que a diferença entre a dívida originária e a prestação paga pelo Fundo seja uma transferência das receitas provenientes de impostos para as crianças mais vulneráveis dentro de um sistema assistencialista não contributivo.
O facto de o sistema assistencial não ser universal, mas se dirigir apenas a um determinado grupo de crianças, cujos progenitores não têm capacidade de cumprir a obrigação de alimentos, não viola o princípio da igualdade entre estas crianças e aquelas cujos pais cumprem obrigações de alimentos abaixo do valor das necessidades dos seus filhos, não beneficiando desta prestação social. É que a possibilidade de aumento da pensão a cargo do Fundo seria sempre excepcional e dirigida exclusivamente àquelas crianças cujos pais foram condenados ao pagamento de pensões de valor meramente simbólico ou irrisório (por vezes de 20 ou 30 euros mensais), abaixo do limiar de sobrevivência, e que vivem em situação de debilidade económica estrutural e, na maioria dos casos, irreversível. Por outro lado, eventuais problemas de desigualdade - que com este entendimento restritivo dificilmente se verificarão - não se resolvem nivelando todas as crianças por baixo e colocando um maior número de crianças a viver em situação de pobreza extrema.
Por último, a alegada escassez dos recursos orçamentais consiste numa consideração irrelevante para o efeito da argumentação jurídica, porque, para além de pressupor um juízo economicista que não compete aos tribunais fazer, não dispensa o Estado de cumprir as suas obrigações para com os mais vulneráveis.
Nesta conformidade, entendo que a prestação de alimentos a cargo do Fundo é uma prestação social, nova e autónoma, que pode ser fixada, em casos excepcionais, em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário.
Lisboa, 19 de Março de 2015. - Maria Clara Sottomayor.