Acórdão 452/87
Processo 28/86
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório:
1 - O procurador-geral da República vem, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, pedir se declare a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 18.º do Decreto-Lei 317/85, de 2 de Agosto, que fixa o destino das receitas camarárias provenientes das taxas de registo e de licenciamento da detenção, posse e circulação de cães. Fundamenta o seu pedido dizendo que o referido artigo 18.º, ao impor aos municípios um determinado destino para tais receitas (a saber: custeio das «despesas inerentes à profilaxia da raiva e à execução das medidas de polícia sanitária respectivas, designadamente a construção de canis e das estruturas necessárias a um efectivo controle da população canina e felina»), viola o princípio constitucional da autonomia das autarquias locais, o da descentralização administrativa, e bem assim o sistema definido para o património e finanças locais (artigos 6.º, n.º 1, 239.º e 240.º da Constituição).
2 - Notificado para responder, fez o Primeiro-Ministro juntar um parecer, a que deu a sua concordância, no qual se conclui pela inconstitucionalidade, do mencionado artigo 18.º, com base, em síntese, no seguinte:
a) Gozando constitucionalmente o poder local de ampla autonomia, hão-de os órgãos autárquicos, dentro das suas competências e no âmbito das atribuições da respectiva pessoa jurídica - cuja definição há-de obedecer ao princípio da descentralização administrativa (cf. artigos 237.º, n.º 2, e 239.º da Constituição) - poder escolher os interesses próprios a prosseguir, e bem assim os meios técnicos e materiais a utilizar;
b) Ora, essa autonomia autárquica (artigo 6.º da Constituição) e a consequente independência decisória dos respectivos órgãos são violadas, quando, como no caso, há injunções alheias, oriundas, designadamente, do poder central;
c) Depois, com o questionado artigo 18.º, está o legislador «a penetrar na gestão das finanças locais e nos objectivos da sua destinação». De facto, tendo as autarquias locais património e finanças próprios (artigo 240.º, n.º 1, da Constituição), cuja gestão pertence aos respectivos órgãos [artigo 1.º, n.º 1, da Lei das Finanças Locais (então, o Decreto-Lei 98/84, de 29 de Março)], hão-de estes poder aplicar, segundo orçamentos privativos, as receitas próprias da respectiva autarquia às despesas ordenadas por sua exclusiva autoridade (princípio da autonomia financeira, artigo 240.º da Constituição);
d) E, como «os orçamentos das autarquias respeitam o princípio da não consignação» (cf. artigo 2.º, n.º 1, da citada Lei das Finanças Locais), não podia o legislador - a não ser que fosse por lei parlamentar ou decreto-lei parlamentarmente autorizado [cf. artigos 108.º e 168.º, alínea p), da Constituição] - fazer, como faz no mencionado artigo 18.º, a consignação de uma determinada receita a certas despesas.
3 - Cumpre, pois, decidir as questões que, assim, os autos colocam e que consistem em saber se o artigo 18.º do Decreto-Lei 317/85, de 2 de Agosto:
a) Viola o princípio da autonomia autárquica, máxime da sua autonomia financeira: artigos 6.º, n.º 1, 237.º, n.º 2, 239.º e 240.º da Constituição (1.ª questão);
b) Viola o artigo 168.º, n.º 1, alíneas p) ou r), da Constituição (2.ª questão).
4 - Antes, porém, de passar ao exame de cada uma destas questões, dir-se-á que o facto, de o requerente não haver colocado a questão da violação do artigo 168.º, n.º 1, alíneas r) ou p), da Constituição não obsta a que o Tribunal dela conheça. O que o Tribunal não pode é decidir ultra petitum, mas nada impede que declare a inconstitucionalidade de uma norma, cuja apreciação lhe foi pedida, com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação se invocar [cf. artigo 51.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, e, entre outros, o Acórdão deste Tribunal n.º 82/86 (Diário da República, 1.ª série, de 2 de Abril de 1986)].
Vejamos, então:
II - Fundamentos:
1 - 1.ª questão: o artigo 18.º do Decreto-Lei 317/85, de 2 de Agosto, e o princípio da autonomia, máxime da sua autonomia financeira (artigos 6.º, n.º 1, 237.º, n.º 2, 239.º e 240.º da Constituição).
1.1 - O artigo 18.º reza assim:
Artigo 18.º
Destino das receitas camarárias provenientes das taxas de registo e de licenciamento da detenção, posse e circulação de cães
As receitas camarárias obtidas pela cobrança das taxas e sobretaxas referidas no artigo anterior destinam-se prioritariamente a custear as despesas inerentes à profilaxia da raiva e à execução das medidas de polícia sanitária respectiva, designadamente a construção de canis e das estruturas necessárias a um efectivo controle da população canica e felina.
Como dizer que as receitas provenientes das taxas de registo e licenciamento de cães se destinam prioritariamente a custear as despesas que a seguir enumera, o que o artigo 18.º pretende é significar que, com tais receitas, se hão-de satisfazer, antes que quaisquer outras despesas municipais, as despesas inerentes à profilaxia da raiva e à execução das respectivas medidas de polícia sanitária, designadamente a construção de canis e das estruturas necessárias ao efectivo controle da população canina e felina.
Fixado o sentido da norma, há que assinalar que as tarefas a cuja execução o artigo 18.º do Decreto-Lei 317/85, de 2 de Agosto, afecta as receitas provenientes das taxas de registo e de licenciamento de cães há muito já que estavam cometidas às câmaras municipais.
Efectivamente, já no Decreto 11242, de 16 de Novembro de 1925, se dispunha que era «obrigatória a vacinação anti-rábica dos cães de mais de quatro anos de idade» (artigo 1.º), sendo «todas as câmaras municipais [...] obrigadas a construir e a manter na sede dos respectivos concelhos [...] instalações [...] para postos de vacinação» (artigos 3.º e 8.º). Vacinação sem a qual era «expressamente proibido às câmaras municipais conceder licenças para circulação de cães ou de qualquer outra natureza, relativas a estes animais» (artigo 7.º e seu § 2.º). Para além de que eram as mesmas câmaras «obrigadas a construir e a manter, nas sedes dos respectivos concelhos, um ou mais canis, segundo as necessidades» (citado artigo 3.º), e obrigadas bem assim «a ter sempre devidamente organizado o cadastro e registo geral dos cães existentes nos respectivos concelhos» (artigo 4.º).
O registo dos animais da espécie canina - que passou a ser obrigatório para os cães com mais de um ano de idade -, com o Decreto 18725, de 2 de Agosto de 1930, continuou a constituir encargo das câmaras municipais (artigos 1.º e 6.º), a quem continuou a competir manter canis para recolha dos cães vadios - aos quais há que dar caça (artigo 13.º) - e para recolha e abate dos cães raivosos (artigo 12.º).
O Decreto-Lei 29441, de 11 de Fevereiro de 1939, continuou a prescrever que «as licenças municipais de posse e circulação de caninos [...] não podem ser concedidas sem a apresentação do boletim de vacinação [...]» (artigo 3.º), sendo que esta, além de poder ser tornada obrigatória pela Direcção-Geral dos Serviços Pecuários (cf. artigo 1.º), é executada, entre outros, pelos veterinários municipais (artigo 4.º). E mais: os cães vadios ou perdidos - que, não sendo reclamados, seriam abatidos - passaram, antes da entrega ou abate, a ser vacinados e inscritos no cadastro municipal (cf. artigo 9.º), outro tanto se devendo fazer aos cães que, oportunamente, não fossem vacinados (§ único do artigo 9.º). Era também às câmaras municipais que especialmente já competia «a aplicação das providências sanitárias previstas na legislação em vigor e em harmonia com as instruções emanadas da Direcção-Geral dos Serviços Pecuários» (§ único do artigo 10.º).
O regime que acaba de descrever-se vigorou até à publicação do citado Decreto-Lei 317/85, de 2 de Agosto, e, nos seus aspectos essenciais, foi o consagrado nesse diploma.
De facto, a detenção, posse e circulação de cães com um ano ou mais de idade continua a carecer de licença passada pela respectiva câmara municipal, mediante prova de vacinação anti-rábica do animal [artigo 5.º, n.os 1, 3, alínea b), e 4]. É obrigatório o registo de todos os cães, agora desde que tenham quatro ou mais meses de idade, ficando a organização do cadastro respectivo a cargo das câmaras municipais (artigo 4.º, n.os 1, 2 e 6). Constitui encargo das câmaras municipais promover a captura dos cães vadios ou errantes, os quais devem ser recolhidos nos canis municipais (artigo 13.º, n.os 1 e 2), sendo abatidos se não houverem de ser vendidos ou entregues aos donos (artigos 13.º, n.os 2, e 14.º, n.os 1 e 2). As câmaras municipais continuam obrigadas a construir e a manter canis, com postos de vacinação anexos (artigo 20.º, n.os 1 e 2). E os médicos veterinários municipais continuam obrigados a proceder à vacinação anti-rábica dos cães, em regime de campanha normal (artigo 25.º, n.º 1).
1.2 - Dito isto, vamos, então, ver se o princípio da autonomia das autarquias locais - designadamente o da sua autonomia financeira - proibe (ou não) a afectação de receitas constante do questionado artigo 18.º aos fins que ele próprio indica.
Vejamos, então:
O artigo 6.º, n.º 1, da Constituição preceitua que o Estado na sua organização respeita os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da Administração Pública.
A organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais (cf. artigo 237.º, n.º 1, da Constituição).
As autarquias locais são «pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas» (artigo 237.º, n.º 2).
É a lei que, de harmonia com o princípio da descentralização administrativa, regula «as atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos» (artigo 239.º da lei fundamental).
As autarquias locais têm património e finanças próprios. O regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau. As autarquias têm receitas próprias que incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços (cf. artigo 240.º).
As autarquias locais gozam, pois, de autonomia.
Por isso, o legislador, no momento de outorgar o «estatuto» às autarquias locais [cf. artigo 168.º, n.º 1, alínea r), da Constituirão], há-de partir do «reconhecimento de um conjunto de interesses próprios das comunidades locais, em contraposição aos interesses nacionais (artigo 237.º, n.º 2)», e concretizar o âmbito de tais interesses «através da demarcação de áreas de atribuições específicas dos entes públicos autárquicos e da delimitação de zonas de competência própria ou exclusiva dos órgãos respectivos, segundo a directriz descentralizadora reafirmada no artigo 239.º» [cf. J. C. Vieira de Andrade (Autonomia Regulamentar e Reserva de Lei, separata do Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1987, pp. 22 e 23)]. Os órgãos autárquicas hão-de, assim, dispor de poderes de decisão, além do mais, para gerir o património e as finanças locais.
A autonomia - máxime a autonomia financeira - anda ligada, com efeito, a uma ideia de independência decisória dos organismos ou entes públicos. «A autonomia financeira - diz J. J. Teixeira Ribeiro - consiste [...] em o serviço possuir receitas próprias e orçamento próprio» (Lições de Finanças Públicas, Coimbra, 1977, p. 5).
A regra será, pois, a de que os órgãos autárquicos têm liberdade para dispor das receitas da autarquia, designadamente das que provierem da gestão do seu património ou forem cobradas pela utilização dos seus serviços. Estas receitas fazem, de resto, parte do conteúdo inderrogável das receitas autárquicas (cf. artigo 240.º, n.º 3), nestas se incluindo ainda, obrigatoriamente, quanto aos municípios, uma parcela, a definir por lei, das receitas provenientes dos impostos directos (cf. artigo 255.º).
1.3 - O que acaba de dizer-se não exclui que o legislador possa afectar certas receitas autárquicas a determinadas das suas despesas. Essa afectação de receitas é constitucionalmente admissível, respeitados que sejam certos limites - limites que decorrem da necessidade de deixar sempre intocado o núcleo essencial da autonomia e da inadmissibilidade de proceder à afectação de receitas, desnecessária ou injustificadamente, ou, ainda, em termos desproporcionados. E, assim, não será de admitir uma afectação de receitas sistemática - uma afectação de receitas tal que vá atingir o núcleo essencial da autonomia. E, do mesmo passo, será constitucionalmente ilegítima uma afectação de receitas sem qualquer justificação ou fundamento material ou que se revele excessiva.
É que - já se disse - na ideia de autonomia financeira vai sempre implicada a ideia de uma maior ou menor dose de liberdade na realização das despesas [cf. J. Casalta Nabais (Considerações Sobre a Autonomia Financeira das Universidades Portuguesas, separata do Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1987, P. 45)].
1.4 - O que, então, importa saber é se a afectação de receitas imposta pelo artigo 18.º do Decreto-Lei 317/85, de 2 de Agosto, diz respeito a receitas próprias dos municípios e, em caso afirmativo, se, ao impô-la, o legislador se manteve dentro dos limites apontados.
Pois bem: as receitas em causa são, efectivamente, receitas próprias dos municípios, pois que lhes são destinadas por lei [cf. artigo 3.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 98/84, de 29 de Março]. São, assim, receitas de que os órgãos autárquicos, em princípio, disporiam livremente.
A afectação de tais receitas, imposta pelo mencionado artigo 18.º, não viola, porém, o princípio da autonomia das autarquias locais.
Na verdade, as receitas em causa provêm de taxas de registo e de licenciamento da detenção, posse e circulação de cães e são destinadas por aquele preceito legal à satisfação de despesas inerentes à profilaxia da raiva e à execução das medidas de polícia sanitária respectiva, designadamente à construção de canis e das estruturas necessárias a um efectivo controle da população canina e felina.
Existe, assim, uma clara conexão entre a origem das receitas e o destino que a lei lhes assinala.
A isto acresce que a luta anti-rábica - que é seguramente uma tarefa de interesse geral - só poderá travar-se com um mínimo de eficácia se for possível conseguir um controle efectivo da população canina e felina e se puderem desenvolver-se as necessárias acções de polícia sanitária de combate à raiva animal.
Assim, quando se tiver em conta que, sem a afectação das receitas aqui questionadas aos fins apontados, só muito dificilmente se poderão cumprir os objectivos que, com ela, o legislador se propõe alcançar (organização do cadastro dos cães, construção de canis, desenvolvimento de acções de polícia sanitária de combate à raiva animal), fácil será concluir que uma tal afectação se não revela desnecessária, injustificada ou desproporcionada. E, como a mencionada afectação de receitas diz respeito a um número contado de receitas municipais, ela deixa intocado o núcleo essencial da autonomia municipal.
O artigo 18.º do Decreto-Lei 317/85, de 2 de Agosto, não viola, pois, aquele princípio constitucional.
2 - 2.ª questão: o artigo 18.º do Decreto-Lei 317/85, de 2 de Agosto, e o artigo 168.º, n.º 1, alíneas p) e r), da Constituição.
2.1 - O artigo 168.º, n.º 1, alíneas p) e r), dispõe:
Artigo 168.º - 1 - É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
p) Regime geral de elaboração e organização dos orçamentos [...] das autarquias locais;
r) Estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais.
Semelhantemente ao que fez a Lei do Enquadramento do Orçamento do Estado (Lei 40/83, de 13 de Dezembro), também a Lei das Finanças Locais em vigor à data da emissão do Decreto-Lei 317/85 (ou seja, o Decreto-Lei 98/84, de 29 de Março) consagrou como regra de elaboração e organização dos orçamentos das autarquias locais a não consignação de receitas. Dispõe, de facto, no artigo 2.º, n.º 1:
Os orçamentos das autarquias locais respeitam os princípios da anualidade, unidade, universalidade, especificação, não consignação e não compensação. [Cf., hoje, o artigo 1.º, n.º 1, da Lei 1/87, de 6 de Janeiro (Lei das Finanças Locais).]
A regra da não consignação de receitas é um princípio de natureza legal, que não uma imposição constitucional (cf. artigo 108.º da Constituição). Por isso, o legislador é livre de a consagrar ou não.
Simplesmente, o legislador, para o efeito, tem de ser a Assembleia da República ou o Governo munido de autorização legislativa, uma vez que a consagração (ou não) do princípio da não consignação de receitas se inscreve seguramente no «regime geral de elaboração e organização dos orçamentos [...] das autarquias locais» [alínea p) do n.º 1 do artigo 168.º].
Por isso, se o artigo 18.º do Decreto-Lei 317/85 - como se sustenta no parecer que o Primeiro-Ministro anexou à sua resposta - consagrar uma verdadeira e própria consignação de receitas, violará ele a alínea p) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição.
A consignação de receitas vem a ser, segundo a doutrina corrente, a afectação de determinada receita a uma determinada despesa, por tal forma que esta apenas poderá ser satisfeita se e na medida em que o montante (cobrado) dessa receita o possibilite (duplo cabimento). E, por outro lado, aquela receita não pode ser destinada a outras despesas, a menos que se verifique um excesso dela sobre a despesa a que foi afectada [cf. J. J. Teixeira Ribeiro (Lições cit., pp. 49 e segs.); Sousa Franco (Finanças Públicas e Direito Financeiro, Coimbra, 1987, p. 324); e Sabino Teixeira («Consignação de receita», in Dicionário Jurídico da Administração Pública, II, Coimbra, 1972, p. 659)].
2.2 - No presente caso, para se concluir pela inconstitucionalidade da norma do artigo 18.º, enquanto neste se afectam as receitas nele previstas às finalidades que ele próprio indica, não se torna, porém, necessário decidir se, aí, se consagra (ou não) uma verdadeira e própria consignação de receitas.
É que uma regra como a do artigo 18.º, que impõe uma afectação de certas receitas a determinadas despesas - deva (ou não) essa afectação reconduzir-se à figura da consignação de receitas e haja (ou não) de haver-se como regra atinente ao «regime geral de elaboração e organização dos orçamentos [...] das autarquias locais» [alínea p) do n.º 1 do artigo 168.º] - inscreve-se, seguramente, no «regime das finanças locais», de que fala o artigo 168.º, n.º 1, alínea r), da lei fundamental.
Ora, também para fixar esta regra do «regime das finanças locais», ou seja, esta regra de afectação de certas receitas a determinadas despesas, o Governo carecia de autorização legislativa. Ele estava, na verdade. a inovar.
As taxas sobre cães (de registo e de licenciamento) no domínio do Decreto 18725, de 2 de Agosto de 1930, revertiam, em partes iguais, para as câmaras municipais e para o Tesouro Público (cf. artigo 6.º, § 1.º). Com a publicação do Código Administrativo de 1940 tais receitas passaram a destinar-se por inteiro às câmaras municipais (cf. artigo 723.º, n.º 3). E, com a publicação do Decreto-Lei 98/84 (Lei das Finanças Locais), continuaram a ser receitas municipais tanto as quantias provenientes das licenças de cães, como as pagas pelos registos dos mesmos [cf. artigo 3.º, n.º 1, alínea d].
Vigorando, como se viu, a regra da não consignação, tais receitas eram aplicadas às várias despesas municipais, indistintamente.
De facto, segundo a regra da não consignação, «as receitas devem ser indiscriminadamente destinadas à cobertura de quaisquer despesas, e não quaisquer receitas afectadas à cobertura de despesas em especial» (cf. J. J. Teixeira Ribeiro, Lições cit., p. 49).
Ora, o legislador - haja ou não consagrado no artigo 18.º uma verdadeira e própria consignação de receitas - veio inverter a regra da não afectação de receitas e consagrar, no tocante às receitas a que se refere, o princípio da sua afectação às finalidades que ele próprio aponta.
O artigo 18.º do Decreto-Lei 317/85, de 2 de Agosto, viola, pois, a [alínea r) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição.
III - Decisão:
Isto posto, declara-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 18.º do Decreto-Lei 317/85, de 2 de Agosto, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea r), da Constituição.
Lisboa 9 de Dezembro de 1987. - Messias Bento - Luís Nunes de Almeida - Martins da Fonseca - Mário Afonso - José Manuel Cardoso da Costa - Mário de Brito - Vital Moreira - Raul Mateus - Antero Alves Monteiro Dinis - Armando Manuel Marques Guedes.