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Acórdão 401/91, de 8 de Janeiro

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Sumário

DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, DA NORMA DO ARTIGO 665 DO CODIGO DE PROCESSO PENAL DE 1929, (RECURSO DAS DECISÕES CONDENATORIAS DOS TRIBUNAIS COLECTIVOS CRIMINAIS PARA O TRIBUNAL DA RELACAO), NA INTERPRETAÇÃO QUE LHE FOI DADA PELO ASSENTO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 29 DE JUNHO DE 1934, POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 32, NUMERO 2 DA CONSTITUICAO.

Texto do documento

Acórdão 401/91
Processo 205/91
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1 - O procurador-geral-adjunto no Tribunal Constitucional veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 3, da Constituição e no artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, que este Tribunal aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929 (na redacção do Decreto 20147, de 1 de Agosto de 1931), na interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, publicado no Diário do Governo, 1.ª série, de 11 de Julho de 1934.

Justificando o seu pedido, aquele magistrado do Ministério Público referiu que a norma em causa já foi julgada inconstitucional através dos Acórdãos n.os 219/89 e 340/90, publicados no Diário da República, 2.ª série, respectivamente n.º 148, de 30 de Junho de 1989, e n.º 65, de 19 de Março de 1991, e dos Acórdãos n.os 23/91 e 48/91, ambos ainda inéditos.

2 - Com efeito, por acórdão tirado em 15 de Fevereiro de 1989, a 1.ª Secção deste Tribunal (na sua anterior composição), por maioria, julgou inconstitucional «a norma do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929 com a sobreposição interpretativa do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, na parte em que determina que as relações, no recurso das decisões condenatórias dos tribunais colectivos criminais, ao conhecerem da matéria de facto, haverão de basear-se exclusivamente nos documentos, respostas aos quesitos e em outros elementos constantes dos autos, a ponto de só lhes ser lícito alterar, a esse nível, aquelas decisões em face de elementos do processo que não tiverem podido ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e que houvesse determinado as respostas aos quesitos». No recurso em causa, deduzido do Acórdão de 22 de Junho de 1988 do Supremo Tribunal de Justiça pelos réus Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho, Pedro Goulart da Silva e José Moutinho Mouta Liz, o Tribunal Constitucional considerou que a norma em causa, «quando equacionada e lida em função do disposto no artigo 466.º do Código de Processo Penal de 1929, reduz a tal ponto, no recurso de decisões condenatórias de tribunais colectivos criminais, a possibilidade de reapreciação da matéria de facto por parte das relações que infringe claramente o princípio do duplo grau de jurisdição em processo penal, deduzível para o arguido condenado, e como recorrentemente se tem vindo a afirmar, do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, sendo assim, e em tal medida, irremissivelmente inconstitucional».

3 - Posteriormente, a 2.ª Secção do Tribunal Constitucional (já na sua composição actual), e também por maioria, negou provimento a um recurso de inconstitucionalidade interposto pelo réu Rudolphus Josephus Maria Lubbers, deduzido do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Janeiro de 1989, não julgando inconstitucional a norma do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, através do Acórdão 124/90, de 19 de Abril, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 8 de Fevereiro de 1991.

Em face de teor desta decisão, que gerou uma divergência jurisprudencial entre as duas secções do Tribunal Constitucional, o Ministério Público interpôs recurso para o plenário do Tribunal, nos termos e para os efeitos do artigo 79.º-D da Lei 28/82, aditado pela Lei 85/89, de 7 de Setembro, tendo-se procedido à uniformização de jurisprudência, de novo por maioria, através do Acórdão 340/90 publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 65, de 19 de Março de 1991, no sentido da inconstitucionalidade do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934.

4 - Na sequência do referido Acórdão 340/90, a 1.ª Secção do Tribunal Constitucional tirou os Acórdãos n.os 23/91, de 6 de Fevereiro de 1991, e 48/91, de 26 do mesmo mês e ano, ambos ainda inéditos, julgando inconstitucional a norma em causa, acolhendo para o efeito a orientação do citado Acórdão 340/90.

De igual forma, a 2.ª Secção deste Tribunal adoptou a referida orientação jurisprudencial nos seus Acórdãos (ainda inéditos) n.os 77/91, de 10 de Abril de 1991, 187/91, de 7 de Maio de 1991, 236/91, de 23 de Maio de 1991, 335/91, de 3 de Julho de 1991, e 350/91 de 4 de Julho de 1991.

5 - Neste contexto, verificam-se, pois, os pressupostos dos artigos 283.º da Constituição e 82.º da Lei 28/82, a saber, a prévia existência de três julgamentos concretos de inconstitucionalidade da mesma norma que permitem ao Tribunal apreciar e declarar a sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

Assim sendo, e considerando que o Tribunal, em plenário, é de novo chamado a apreciar questão que já anteriormente havia sido objecto de análise e de decisão uniformizadora de jurisprudência através do Acórdão 340/90, seguiremos doravante de perto a linha de argumentação deste aresto, a qual, aliás, por sua vez, retoma o essencial da fundamentação do primitivo Acórdão 219/89.

II
1 - O artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, aprovado pelo Decreto 16489, de 15 de Fevereiro de 1929, dispunha na sua redacção originária:

As relações conhecerão de facto e de direito, nas causas que julguem em 1.ª instância e nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1.ª instância, e conhecerão só de direito, nos recursos interpostos das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que intervenha o júri, salvo o disposto no artigo 517.º

Posteriormente, o mesmo normativo veio a ser alterado pelo Decreto 20147, de 1 de Agosto de 1931, tendo passado a dispor:

As relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em 1.ª instância, nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1.ª instância, das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que intervenha o júri, baseando-se, para isso, nos dois últimos casos, nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos constantes dos autos.

Em virtude das divergências jurisprudenciais suscitadas por esta redacção no tocante aos poderes das relações em matéria de facto nos recursos interpostos das decisões finais dos tribunais colectivos, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu assento em 29 de Junho de 1934 do seguinte teor:

O artigo 665.º do Código de Processo Penal, modificado pelo Decreto 20147, de 1 de Agosto de 1931, relativamente à competência das relações em matéria de facto, tem de entender-se no sentido de as mesmas relações só poderem alterar as decisões dos tribunais colectivos de 1.ª instância em face de elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos. [Assento publicado no Diário do Governo, 1.ª série, de 11 de Julho de 1934, e também, v. g., na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 67.º p. 92.]

Da redacção do assento (designadamente pelo emprego do vocábulo «só») resulta que a uniformização de jurisprudência operada pelo Supremo Tribunal de justiça se fixou num entendimento restritivo da competência das relações em matéria de facto na apreciação dos recursos das decisões dos tribunais colectivos.

Assim, a redacção do preceito em causa, com o alcance que lhe foi conferido pelo assento citado, foi sendo, ao longo dos anos, objecto de sucessivas reflexões doutrinárias, de que dá conta o Acórdão 340/90 e que ora se recordam em síntese.

Logo em 1934, em anotação ao artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, na redacção dada pelo decreto de 1931, escrevia José Mourisca (Código de Processo Penal Anotado, vol. IV, 1934, nota 1255):

De que serve a lei conferir à relação o poder de alterar o que decidiu, em matéria de facto, o tribunal colectivo, se, em regra, os autos não a habilitam a formar o seu juízo com aquela ponderação que se impõe sempre e principalmente tratando-se de crime grave?

A principal prova, quanto à descoberta dos agentes do crime, é a testemunhal. Mas se não ficam reduzidos a escrito os depoimentos das testemunhas no plenário, como há-de a relação modificar a decisão do colectivo?

Dar uma faculdade e não conceder os meios para a poder exercer o mesmo é que não a dar.

Mesmo que conste dos autos a confissão do réu, não basta, porque ela, só por si, não pode levar à condenação.

Têm subido à relação muitos recursos, em processos de querela, em que os recorrentes gastam folhas e folhas de papel a dizer o que depuseram as testemunhas, para concluírem pela injustiça da decisão!

Como se a relação pudesse agir em face das suas alegações! Como se a relação pudesse fazer obra apenas pelo que dizem as partes!

Mais tarde, em 1983, Figueiredo Dias, em conferência intitulada «Para uma reforma global do processo penal português - Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais» (publicada no volume Para Uma Nova Justiça Penal, 1983, p. 189), afirmava:

Por outro lado, o sistema português de recursos penais é notoriamente, de uma parte, insuficiente - pois que não possui qualquer recurso do facto minimamente digno de tal nome -, de outra, excessivo - por isso que submete a mesma questão de direito a dois graus de recurso. O que vale por dizer que cria um duplo grau de recurso da mesma questão de direito, enquanto de igual passo, relativamente à questão de facto, viola sem remissão o princípio (em que, aqui sim, se tem visto uma espécie de garantia legal dos cidadãos) do duplo grau da jurisdição de mérito! Digamos, pois, sem eufemismos: o nosso actual sistema de recursos de duplo grau, que começou por ser liberalmente cabido em princípio a toda e qualquer decisão judicial, mas onde as relações e o Supremo acabam por exercer a mesma função e dispor praticamente das mesmas possibilidades de cognição, esse sistema é um logro e um rematado absurdo, que não serve os direitos das pessoas nem o interesse comunitário.

Ainda o mesmo autor, na «Lição magistral sobre processo penal», proferida em 18 de Maio de 1985 numa sessão de estudo sobre «Reformas dos processos penal e civil» promovida pela Associação Sindical dos Magistrados Judiciais Portugueses (conforme o relato constante da revista Tribuna da Justiça, n.º 6, Junho de 1985), afirmava:

Aquilo a que se chama recursos, vão-me permitir é uma macaqueação de recurso, perfeitamente inconstitucional, não é recurso nenhum, não é a reapreciação da causa, é um travesti.

Por seu turno, o procurador-geral da República, Cunha Rodrigues, em intervenção subordinada ao tema «Recursos», nas Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, 1988, p. 379, opinou no seguinte sentido:

E nem vale a pena ignorar, sob pena de fariseísmo o que hoje se passa entre nós. Não só o recurso do tribunal de júri é interposto directamente para o Supremo Tribunal de Justiça como do tribunal colectivo não há, em rigor, recurso da matéria de facto. O que existem são dois recursos de revista, mais alargada, é certo, relativamente ao tribunal da relação.

Atentas, pois, estas posições doutrinárias, o que cumpre agora apreciar é se o normativo em causa viola efectivamente o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

2 - Depois de no n.º 1 do artigo 32.º estabelecer o princípio de que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesas», a Constituição dispõe, no n.º 2 do mesmo artigo, que «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa».

O normativo constitucional, quanto ao n.º 1, tem a redacção originária da Constituição e, quanto ao n.º 2, corresponde ao texto decorrente da primeira revisão constitucional, que aditou ao princípio da presunção de inocência (já acolhido desde 1976) o do julgamento no mais curto prazo de tempo compatível com as garantias de defesa dos arguidos. O sentido da solução constitucional terá de ser interpretado e entendido à luz dos diversos textos de direito internacional que têm versado a temática das garantias de defesa dos arguidos em processo penal.

Já a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948 (publicada no Diário da República, 1.ª série, de 9 de Março de 1978), consagrava essas garantias ao dispor, no n.º 1 do seu artigo 11.º, que «toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas».

Também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (aprovada para ratificação pela Lei 65/78, de 13 de Outubro) estabelece, no n.º 2 do seu artigo 6.º, o princípio segundo o qual «qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada», enumerando no n.º 3 do mesmo artigo, alguns direitos que o acusado tem «como mínimo», entre os quais se inclui o direito de defesa [alíneas b) e c)].

Mais recentemente, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 7 de Outubro de 1976 (aprovado para ratificação pela Lei 29/78, de 12 de Junho), depois de dizer, no n.º 2 do seu artigo 14.º, que «qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida», enumera, no n.º 3 do mesmo artigo 14.º, algumas garantias a que «qualquer pessoa acusada de uma infracção penal terá direito, em plena igualdade», entre as quais se conta o direito de se defender [alíneas c) e d)].

O cotejo destes textos de direito internacional, se marca o sentido de uma evolução na óptica do que ora nos interessa apurar, não deixa também de sublinhar que nem os dois primeiros (a Declaração Universal e a Convenção Europeia), nem a própria Constituição da República, consagram expressamente, entre as garantias de defesa, o duplo grau de jurisdição. Já o Pacto Internacional, de mais recente elaboração, reconhece claramente o direito ao recurso, ao dispor, no .º 5 do seu artigo 14.º, que «qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei».

Um tal entendimento mais exigente das garantias de defesa dos arguidos tem encontrado acolhimento quer na doutrina quer na jurisprudência, em termos tais que bem se pode ter por assente que o direito ao recurso tem cabimento no âmbito das «garantias de defesa» consagradas no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, se não mesmo, e desde logo, por força do «direito de acesso aos tribunais» constante do artigo 20.º da nossa lei fundamental.

A este propósito escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., 1984, p. 181):

Pela sua própria natureza, a protecção contra actos jurisdicionais assume lugar autónomo e relevo especial, visto que estão em causa os próprios juízes e tribunais, isto é, os órgãos constitucionalmente habilitados a defender e a garantir os direitos e interesses legítimos dos cidadãos. A defesa contra eles só pode estar noutro tribunal, com poder de revogar a decisão ofensiva dos direitos - e daí que o direito de recurso para um tribunal superior tenha de ser contado entre as mais importantes garantias constitucionais.

Gomes Canotilho, de igual forma, escreve no seu Direito Constitucional, 5.ª ed., 1991, p. 769:

Outro importante princípio em matéria de exercício da função jurisdicional é o chamado princípio da «revisão» ou «reapreciação», total ou parcial, dos actos jurisdicionais por parte de outros juízes. Este princípio impõe, em alguns casos, uma verdadeira «revisão das sentenças» (cf. o artigo 29.º, n.º 6, em matéria criminal), e, de uma forma geral, a possibilidade de recurso para tribunais superiores (cf. o artigo 215.º). Precisamente por isto, defendem alguns autores a dignidade constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição, segundo o qual uma causa deve ser reapreciada (em qualquer dos seus aspectos) por um «juiz de 2.ª instância», quando seja interposto recurso da decisão do juiz de 1.ª instância. O princípio, em toda a sua latitude, não está expressamente constitucionalizado, embora se aponte para uma tendencial generalidade de controlo dos actos jurisdicionais, quer assegurando às partes os meios de impugnação adequados, quer impondo ao Ministério Público o dever de recorrer ex officio de certos actos judiciais.

Comentando a jurisprudência deste Tribunal Constitucional sobre esta temática, escreve o autor citado (op. cit., p. 667):

O direito a um duplo grau de jurisdição não é, prima facie, um direito fundamental, mas a regra - que não poderá ser subvertida pelo legislador, não obstante a liberdade de conformação deste, desde logo quanto ao valor das alçadas - é a da existência de duas instâncias quanto a «matérias de facto» e de uma instância de revisão quanto a «questões de direito» (cf. M. Wolf, Gerichtsverfassungsrecht aller Verfahrenzweige, 1987, pp. 121 e seguintes).

Também Jorge Miranda, no Manual de Direito Constitucional, vol. IV, 1988, p. 261, escreve:

Relativamente aos actos jurisdicionais ofensivos de direitos das pessoas, a impugnação faz-se por recurso ou por reclamação, observadas as disposições processuais aplicáveis. Por certo, por o princípio se encontrar suficientemente acautelado na legislação ordinária, a Constituição (a actual, como todas as anteriores) não sentiu necessidade de o consignar.

A temática em causa também não foi alheia ao labor da comissão, instituída por despacho do Ministro da Justiça de 14 de Novembro de 1983, especialmente encarregada de elaborar o projecto de um novo Código de Processo Penal, ou seja, do Código que veio a ser aprovado pela Lei 78/87, de 17 de Fevereiro. Com efeito, e tendo em vista «dar expressão à garantia ínsita na existência de uma dupla jurisdição», pode ler-se no Código de Processo Penal (Projecto), 1986, suplemento ao Boletim do Ministério da Justiça, III, 7, c):

No que aos recursos especificamente respeita, estabelece o Código um regime aparentado com a ideia do recurso unitário, em princípio idêntico para a relação e para o Supremo e abarcando, na medida possível e conveniente, tanto a questão de direito como a questão de facto. Com o mesmo propósito de emprestar ao recurso maior consistência, procura contrariar-se a tendência para fazer dele um labor meramente rotineiro executado sobre papéis, convertendo-se num conhecimento autêntico de problemas e conflitos reais, mediatizado pela intervenção motivada de pessoas.

No domínio jurisprudencial e no sentido de a Constituição garantir, em princípio, o duplo grau de jurisdição em sentenças condenatórias em matéria penal, podem citar-se os Acórdãos deste Tribunal n.os 358/86 e 359/86, ambos publicados no Diário da República, 2.ª série, de 11 de Abril de 1987, 8/87, publicado no Jornal Oficial, 1.ª série, de 9 de Fevereiro de 1987, 31/87, publicado no mesmo local, 2.ª série, de 1 de Abril de 1987, 178/88, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 30 de Novembro de 1988, e ainda 259/88, publicado também no Diário da República, 2.ª série, de 11 de Fevereiro de 1989.

A este propósito, escreveu-se no citado Acórdão 8/87:
Essa faculdade [a faculdade de recorrer em processo penal] constitui uma peça dominante do quadro dialéctico em que se desenvolve o processo penal; é ela que permite ao arguido superar a antítese entre o interesse público à condenação e o seu próprio interesse de defesa e obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento.

Seguindo esta orientação, o Acórdão 219/89 concluía que «o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias constitui, no processo penal, uma importante garantia de defesa», que se deve ter por incluída nas garantias de defesa de que se fala no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição e que «no domínio processual penal há, pois, que reconhecer, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição».

A questão assim colocada pelo citado aresto não significa, contudo, que o princípio do direito ao recurso ou o princípio da dupla jurisdição tenha sempre um valor absoluto (como se ponderou no já citado Acórdão 259/88), mas antes impõe que se indague se, num processo tal como o estrutura o Código de Processo Penal de 1929, o direito ao recurso das decisões do colectivo em matéria de facto constitui uma imposição decorrente do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.

3 - É entendimento do Tribunal que a tal questão deve ser dada uma resposta afirmativa.

É bem verdade que, como se refere no Acórdão 124/90 (e citando, por seu turno, o que o Tribunal afirmara no Acórdão 61/88, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 20 de Agosto de 1988), «tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência de imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito; basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal de recurso».

Sem embargo, a cabal compreensão do problema colocado tem forçosamente que assentar na interpretação conjugada do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929 quer com o dispositivo do artigo 466.º quer com o do artigo 469.º, ambos do mesmo Código.

Com efeito, por força do artigo 466.º, «o interrogatório do réu, os depoimentos das testemunhas e as declarações dos ofendidos ou outras pessoas, feitos na audiência, serão prestados oralmente, salvo quando a lei determinar o contrário».

Por seu turno, o artigo 469.º, dispondo na sua redacção originária que «o tribunal colectivo julga de facto, definitivamente, segundo a sua consciência, com plena liberdade de apreciação, e de direito, com recurso para a respectiva relação», passou a dizer, na redacção que lhe foi dada pelo referido Decreto 20147, que «o tribunal colectivo responderá especificadamente a cada um dos quesitos, assinando todos os vogais, sem qualquer declaração».

Conforme se ponderou no Acórdão 340/90, «quanto a este artigo, mesmo depois de o Código de Processo Civil aprovado pelo Decreto-Lei 44129, de 28 de Dezembro de 1961, ter imposto ao tribunal colectivo, em processo civil, a obrigação de, quanto aos factos que julga provados, especificar 'os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador' (n.º 2 do artigo 653.º), tem sido entendimento da jurisprudência que não era necessária, ou até mesmo proibida, a fundamentação das resposta aos quesitos em processo penal: assim, v. g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Fevereiro de 1984 e de 29 de Outubro de 1986 (no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 334, pp. 359 e 360 e 494)».

Ora o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado pela não inconstitucionalidade dessa norma, designadamente através dos Acórdãos n.os 55/85, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 28 de Maio de 1985, 61/88 (já citado), 207/88, publicado no Jornal Oficial, 2.ª série, de 3 de Janeiro de 1989, 304/88, publicado no mesmo local e série, de 11 de Abril de 1989, e ainda nos já citados Acórdãos n.os 219/89 e 124/90.

Pelo que, como pertinentemente sublinha o Acórdão 219/89, «no plano garantístico, e no rigor dos princípios, tão importante é reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da solução que tenha sido encontrada para a questão de facto como da solução que haja sido dada à questão de direito». Assim sendo, forçoso é concluir que, num sistema complexo como o que consta do Código de Processo Penal de 1929, em que a prova produzida perante o tribunal colectivo não é reduzida a escrito (por força do artigo 466.º) e em que as propostas aos quesitos não são fundamentadas (em virtude do disposto no artigo 469.º), então o artigo 665.º, entendido com o calcance do assento em causa, ou seja, o de que as relações só podem «alterar as decisões dos tribunais colectivos de 1.ª instância em face de elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos», não representa uma garantia suficiente para o arguido e consequentemente viola o disposto no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.

A que acresce que, tal como sublinhava o Acórdão 219/89 (argumento, aliás, também retomado pelo Acórdão 340/90), «só excepcionalmente e em casos contados constarão dos processos elementos susceptíveis de levar as relações a alterar a decisão do colectivo, e, por outro lado, a faculdade de anulação dessa decisão, com base em vícios dos quesitos ou das respostas - ao abrigo do n.º 2 do artigo 712.º do Código de Processo Civil -, em bem pouco alargará, no domínio fáctico, o poder cognitivo das relações».

Por último, é de esclarecer que, tal como foi afirmado no Acórdão 340/90, o que fica dito não poderá ser entendido como significando que outra solução que não seja a repetição da prova em audiência pública perante as relações está em conflito com a Constituição. É que, entre o sistema em questão, que, na prática, e na grande maioria das situações, reduz a zero os poderes das relações nos recursos penais em matéria de facto, e o que ordenasse a repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de recurso, outros há certamente - não competindo a este Tribunal indicá-los - que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional.

4 - Neste contexto, o Tribunal entende que o artigo 665.º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, quando conjugado com os artigos 466.º e 469.º do mesmo Código, não constitui garantia suficiente para os efeitos do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

III
Termos em que se declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.

Lisboa, 30 de Outubro de 1991. - António Vitorino - Luís Nunes de Almeida - Mário de Brito - Maria da Assunção Esteves - Armindo Ribeiro Mendes - Ântero Alves Monteiro Dinis - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Bravo Serra (vencido, de harmonia com a fundamentação carreada no Acórdão 124/90, que subscrevi) - Fernando Alves Correia [vencido, pelos fundamentos do Acórdão 124/90, que subscrevi. Isto sem prejuízo da posição que venho adoptando nos processos de fiscalização concreta da 2.ª Secção deste Tribunal, que tem sido a de obediência ao sentido da decisão do Acórdão 340/90, embora o venha fazendo tão-só para evitar a formação continuada de decisões divergentes com as adoptadas quanto à mesma norma pela 1.ª Secção do Tribunal e, assim, obstar ao atulhamento do plenário do Tribunal Constitucional com recursos de uniformização jurisprudencial, nos termos do artigo 79.º-A da Lei 28/82, de 15 de Novembro (preceito aditado pela Lei 85/89, de 7 de Setembro).] - Messias Bento (vencido, nos termos da declaração de voto que junto)- Vítor Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto do conselheiro Messias Bento, a que adiro. Importa referir também que, na sequência do Acórdão 340/90, in Diário da República, 2.ª série, de 19 de Março de 1991, tirado em plenário ao abrigo do artigo 79.º-A da Lei Orgânica deste Tribunal, tenho vindo a assinar acórdãos que declaram a inconstitucionalidade do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, apenas por entender que tal me é imposto pela ratio daquele artigo 79.º-D, que estabelece o dever de uniformização da jurisprudência.) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido, conforme à fundamentação do Acórdão 124/90, que subscrevi, bem como à declaração de voto junta ao presente acórdão pelo Exmo. Conselheiro Messias Bento, a que adiro - fazendo igualmente minha a razão, nessa declaração invocada, para o facto de haver subscrito, após a prolação do Acórdão 340/90, várias decisões deste Tribunal convergentes com o julgamento de inconstitucionalidade ora emitido).


Declaração de voto
Após a prolação do Acórdão 340/90, tenho vindo a subscrever decisões, na 2.ª Secção, em que a norma do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe deu o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, tem sido julgada inconstitucional. Tenho-o feito em obediência à ratio do artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional, que, ao prever o recurso para o plenário, manifestamente, tem por objectivo evitar decisões divergentes sobre a mesma questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade.

Continuo, no entanto, a entender que a norma em causa não viola a Constituição.

As razões deste meu entendimento são as constantes do Acórdão 124/90, de que fui relator, e que a seguir se transcrevem.

1 - Dispõe o mencionado artigo 665.º:
As relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em 1.ª instância, nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1.ª instância, das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que intervenha o júri, baseando-se, para isso, nos dois últimos casos, nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos constantes dos autos.

Este preceito legal foi interpretado pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, publicado no Diário do Governo, 1.ª série, de 11 de Julho de 1934, do modo seguinte:

O artigo 665.º do Código de Processo Penal, modificado pelo Decreto 20147, de 1 de Agosto de 1931, relativamente à competência das relações em matéria de facto, tem de entender-se no sentido de que a mesmas relações só podem alterar as decisões dos tribunais colectivos de 1.ª instância em face de elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos.

Nos recursos interpostos das decisões finais dos tribunais colectivos (ou seja, dos acórdãos a que se refere o artigo 472.º do Código de Processo Penal de 1929), as relações julgam, pois, de facto e de direito; mas, no que concerne à matéria de facto, a sua competência, há-de convir-se, é bastante restrita.

Escreve a este propósito Maia Gonçalves (Código de Processo Penal Anotado e Comentado, Coimbra, 1984, p. 689):

Em face do assento de 29 de Junho de 1934, a competência das relações em matéria de facto, nos processos julgados pelo tribunal colectivo, é muito restrita, só lhes sendo lícito alterar as decisões da 1.ª instância quando do processo constem todos os elementos de prova que lhe serviram de base ou quando se trate de factos plenamente provados por meio de documentos autênticos. Qualquer elemento de prova produzido perante o colectivo impede que as relações alterem as respostas aos quesitos. É uniforme a jurisprudência dos tribunais superiores neste sentido, já que o assento não deixa margem para dúvidas.

2 - A norma em causa será, então, inconstitucional, por violar o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição (princípio das garantias de defesa) - recte, o direito ao recurso -, e bem assim o n.º 1 do artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o n.º 5 do artigo 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 16 de Dezembro de 1966, e o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

A esta questão já este Tribunal deu resposta positiva, indo, de resto, na linha do que a tal propósito tem sido dito pela doutrina.

Assim, Figueiredo Dias («Para uma reforma global do processo penal português - Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais», in Para Uma Nova Justiça Penal, p. 189) afirma, entre o mais, que o sistema português de recursos penais:

«Não possui qualquer recurso de facto minimamente digno desse nome»; e
«Cria um duplo grau de recurso da mesma questão de direito, enquanto, de igual passo, relativamente à questão de facto, viola sem remissão o princípio (em que, aqui sim, se tem visto uma espécie de garantia legal dos cidadãos) do duplo grau de jurisdição de mérito!»

E em «Retrospectiva» (Tribuna de Justiça, n.º 6, Junho de 1985) dá-se conta de que o mesmo autor fez a afirmação de que a norma ora sub iudicio é «perfeitamente inconstitucional», pois que consagra uma «macaqueação de recurso», um seu travesti, que «não é recurso nenhum».

Também Cunha Rodrigues («Recursos», in Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, 1988, p. 392, parece inclinar-se para a inconstitucionalidade da norma aqui em apreciação.

Na verdade, referindo-se ao sistema de recursos do Código de Processo Penal de 1929, afirma que «do tribunal colectivo não há, em rigor, recurso de matéria de facto. O que existem são dois recursos de revista, mais alargada, relativamente ao tribunal da relação».

3 - Mas, pergunta-se, de novo: o citado artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929 (interpretado, como foi, pelo assento de 29 de Junho de 1934) - na parte em que regula o recurso para a relação, interposto do acórdão do tribunal colectivo - será, mesmo, inconstitucional?

Crê-se que não.
Do que atrás se disse, decorre que o direito ao recurso contra as sentenças penais condenatórias constitui, no processo penal, uma importante garantia de defesa, por isso que tal direito se deve ter por incluído nas «garantias de defesa» de que fala o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.

O princípio das garantias de defesa acha-se consagrado também no n.º 1 do artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (10 de Dezembro de 1948), que preceitua:

1 - Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.

Que entre as garantias de defesa se conta o direito de impugnar, mediante recurso para uma jurisdição superior, as sentenças penais condenatórias, di-lo claramente o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (16 de Dezembro de 1966), que, no artigo 14.º, n.º 5, preceitua:

5 - Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei.

[Quanto ao artigo 6.º da Declaração Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (4 de Novembro de 1950) - que consagra o direito a um julgamento público, equitativo, feito por um tribunal independente e imparcial, em prazo razoável -, na enumeração que faz dos direitos do acusado não se inclui, de forma expressa, o direito ao recurso.]

No domínio processual penal, há, pois, que reconhecer, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição.

Há que advertir, no entanto - como se fez no Acórdão 61/88 -, «que, tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência da imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito: basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal de recurso».

Ora, uma repetição integral da prova perante o tribunal de recurso, se fosse praticada por sistema, seria, desde logo e como facilmente se compreende, absolutamente impraticável. Mas, e mais do que isso, revelar-se-ia de todo inconveniente.

É que - como adverte Cunha Rodrigues a propósito do actual sistema de recursos das decisões do tribunal colectivo (loc. cit., p. 393)- «há cada vez mais razões para olhar com cepticismo os segundos julgamentos, necessariamente montados sobre cenários já utilizados e com prévio ensaio geral».

Não despiciendo é também o facto de a leitura ou a audição pelo tribunal de recurso da prova produzida perante o tribunal colectivo - para além de se tornar pouco menos do que insuportável - acabar por fazer que a prova se perca como prova, justamente porque lhe falta a força da imediação. Ao que acresce que esse registo da prova, a ser feito por sistema, tornar-se-ia impraticável.

É que os tribunais não dispõem de meios esteneotípicos, estenográficos ou de registo de som, e nem se vê que deles venha a dispor no imediato.

Por isso é que o novo Código de Processo Penal só previu a documentação da prova prestada oralmente na audiência em dois casos, a saber: «quando o tribunal puder dispor de meios esteneotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral» das declarações e depoimentos (cf. o artigo 363.º), ou, tratando-se de prova produzida perante o tribunal singular, quando, «até ao início das declarações do arguido [...], o Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente declarem que não prescindem da documentação» (cf. o artigo 364.º, n.º 1).

Tudo, pois, concorre para que o recurso das decisões do tribunal colectivo, enquanto nele se visa a reapreciação dos factos, não possa ter um desenho muito diferente do previsto na norma sub iudicio. O recurso com tal finalidade não poderá, com efeito, ser mais do que uma válvula de segurança contra erros notórios na apreciação da matéria de facto ou outros vícios de idêntica gravidade e alcance.

Assim é que o novo Código de Processo Penal, não obstante o seu visível empenhamento em dar satisfação às exigências feitas pelo princípio constitucional da defesa, estabelece limites apertados ao recurso quanto à matéria de facto, sobremaneira quando as decisões impugnadas são de um tribunal colectivo ou do júri - decisões de que se recorre directamente para o Supremo Tribunal de Justiça.

Esses recursos - ou seja, os recursos das decisões do tribunal colectivo ou do júri, interpostos directamente para o Supremo Tribunal de Justiça - visam «exclusivamente o reexame da matéria de direito» (cf. o artigo 433.º). E, por isso, no tocante à questão de facto, o recurso só a pode atingir quando se verifique: «a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação; c) erro notório na apreciação da prova» - desde que, prescreve o artigo 410.º, n.º 1, «o vício resulte do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum».

Referindo-se ao recurso das decisões do tribunal colectivo e do júri, anota Cunha Rodrigues que «são muitos os sistemas, mesmo na Europa a que pertencemos, que, e o que é mais significativo na criminalidade mais grave, se satisfazem com uma única instância quanto ao apuramento dos factos» (cf. loc. cit., p. 392).

4 - A garantia de acerto no julgamento da matéria de facto reside, antes de mais, no próprio tribunal colectivo, funcionando do modo que funciona.

O tribunal colectivo, na verdade, ouve a prova numa audiência pública e com observância das regras da oralidade e do contraditório (cf. os artigos 407.º, 414.º, 429.º e 464.º a 468.º); antes de votar os quesitos, os juízes procedem à discussão e crítica das provas produzidas (cf. o artigo 470.º); a fim de evitar que fique prisioneiro de um qualquer pré-juízo condenatório ou absolutório, o tribunal responde em dois momentos distintos à questão de facto e à questão de direito (cf. os artigos 469.º e 472.º), e, no objectivo de conseguir que os juízes que o compõem votem com inteira liberdade, exprimem a sua opinião e votam, primeiro, os juízes mais novos, segundo a ordem de antiguidade, e, só no fim, o presidente (cf. o artigo 470.º).

Com referência, embora, ao recurso das decisões do tribunal de júri e do tribunal colectivo, tal como é gizado no actual Código de Processo Penal, Cunha Rodrigues - depois de se referir ao facto de as origens históricas desse recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça se encontrarem ligadas «à ideia de soberania popular que esses tribunais representariam e que apenas os tornaria sindicáveis por violação de lei» - acrescenta:

Mas as considerações que hoje pesam e são decisivas são bem outras. O que hoje se sabe é que a superior garantia que representam os tribunais colectivos resulta manifestamente da sua estrutura colegial e da imediação com os factos [...]

[...] Assegurada a efectiva colegialidade do tribunal, garantido o contraditório e obtida uma tanto quanto possível imediação, o recurso do tribunal colectivo tem características particularmente nítidas de remédio jurídico. A previsão de um mecanismo de reapreciação dos factos não pode - não deve - ser senão uma válvula de segurança (cf. loc. cit., p. 393).

5 - O que, em definitivo, então interessa esclarecer é se o recurso das decisões do tribunal colectivo, tal como se acha recortado no Código de Processo Penal de 1929 - máxime, no artigo 665.º aqui sub iudicio - representa uma válvula de segurança suficiente contra os riscos, que sempre existem, de uma errada (e, por isso mesmo, injusta) decisão da questão penal em sede de matéria de facto.

A tal questão respondo afirmativamente.
As relações, na verdade - para além de poderem alterar as decisões do tribunal colectivo sobre matéria de facto quando do processo constem todos os elementos de prova que lhes serviram de base ou quando se trate de factos plenamente provados por documentos autênticos (cf. supra, n.º 1) -, podem anular tais decisões com base em vício do questionário (ou seja, com fundamento em que as respostas aos quesitos são deficientes, obscuras ou contraditórias) e, ainda, quando considerem indispensáveis a formulação de outros quesitos para a boa decisão do feito [cf. o artigo 712.º, n.º 2, com referência ao artigo 650.º, alínea f), do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do disposto no artigo 1.º, § único, do Código de Processo Penal de 1929].

Acresce que do acórdão da relação proferido em recurso interposto de uma decisão de um tribunal colectivo cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (cf. o artigo 646.º, n.º 6, do Código de Processo Penal de 1929).

Ora, conquanto o Supremo Tribunal de Justiça só conheça da matéria de direito (cf. o artigo 666.º) e sempre tenha entendido que lhe não é lícito anular o julgamento com base em deficiências, obscuridades ou ambiguidades do questionário, nem tão-pouco exercer censura sobre a forma como os tribunais de instância chegaram às conclusões sobre a matéria de facto, a verdade também é que ele tem entendido que pode mandar ampliar a matéria de facto em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (cf. o Acórdão de 17 de Julho de 1968, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 179, p. 106).

Eis aqui, pois, um «plus» de garantia, um remédio mais, contra uma decisão de um tribunal colectivo sobre a matéria de facto que acaso seja errada e susceptível, por isso, de levar a uma sentença injusta.

Não é, decerto, um sistema perfeito, nem sequer o melhor; serve ele, porém, as necessidades de defesa do processo de querela em termos de não haver que concluir pela inconstitucionalidade da norma do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, tal como foi interpretada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934. - Messias Bento.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/40153.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1929-02-15 - Decreto 16489 - Ministério da Justiça e dos Cultos - Direcção Geral da Justiça e dos Cultos

    APROVA O CODIGO DE PROCESSO PENAL.

  • Tem documento Em vigor 1961-12-28 - Decreto-Lei 44129 - Ministério da Justiça - Gabinete do Ministro

    Aprova o Código de Processo Civil. Dispõe sobre o regime da acção - em geral e executiva -, e sobre a competência e garantias da imparcialidade. Estabelece disposições gerais sobre o processo, processo de declaração (ordinário, sumário e sumaríssimo) e sobre o processo de execução (para pagamento de quantia certa, para entrega de coisa certa e para prestação de facto). Prevê os processos especiais e o Tribunal Arbitral (voluntário e necessário).

  • Tem documento Em vigor 1978-06-12 - Lei 29/78 - Assembleia da República

    Aprova, para ratificação, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

  • Tem documento Em vigor 1978-10-13 - Lei 65/78 - Assembleia da República

    Aprova, para ratificação, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, também designada Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, concluída em Roma, em 4 de Novembro de 1950, cujo texto em francês e respectiva tradução portuguesa acompanham o presente diploma. São, igualmente, aprovados para ratificação: - o Protocolo nº1 Adicional à Convenção, concluído em Paris, em 20 de Março de 1952; - o Protocolo nº2, que confere ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem competência (...)

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1987-02-09 - Acórdão 8/87 - Tribunal Constitucional

    Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 561.º e 651.º, § único, do Código de Processo Penal, e do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Outubro, e do Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/79, de 28 de Junho, segundo a qual, em processo sumário, o recurso restrito à matéria de direito tem de ser interposto logo depois da leitura da sentença.

  • Tem documento Em vigor 1989-09-07 - Lei 85/89 - Assembleia da República

    Introduz alterações à Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2005-12-07 - Acórdão 10/2005 - Supremo Tribunal de Justiça

    Fixa jurisprudência no seguinte sentido: após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribumal colectivo.

  • Tem documento Em vigor 2012-04-18 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 3/2012 - Supremo Tribunal de Justiça

    Fixa a seguinte jurisprudência: visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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