Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 10/2005, de 7 de Dezembro

Partilhar:

Sumário

Fixa jurisprudência no seguinte sentido: após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribumal colectivo.

Texto do documento

Acórdão 10/2005
Processo 2355/04 - 3.ª Secção. - Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça (STJ):

I - SME - Serviços de Manutenção de Engenharia, Lda., com sede em Matosinhos, Paulo Gabriel Salgado Diogo Machado, Albano Pedro Bragança de Sousa Guize Pinheiro e Maria do Rosário Cortez Salgado Conti, arguidos no processo 2007/99.7, do 1.º Juízo Criminal de Matosinhos, onde foram condenados como autores de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, em forma continuada, previsto e punível pelo artigo 27.º-B do Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, a primeira na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 10000$00 e os restantes, cada um, na pena de 4 meses de prisão substituídos por igual tempo de multa à taxa diária de 5000$00 e, todos, solidariamente, ao pagamento ao Centro Regional de Segurança Social do Norte de uma indemnização de 29749500$00, acrescida de encargos legais até ao trânsito da decisão, vieram interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão proferido no Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo 1241/01-4.ª Secção, em 6 de Março de 2002, que confirmou a decisão de 1.ª instância, por neste se haver sentenciado não haver lugar a recurso da matéria de facto das decisões dos tribunais colectivos, em contrário do que este STJ, no seu Acórdão de 30 de Maio de 2001, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano IX, t. II, a pp. 213-215, decidiu no sentido de que pretendendo-se impugnar a decisão da matéria de facto fixada pelo colectivo pode dela recorrer-se para o Tribunal da Relação.

II - Nas suas conclusões de recurso, enunciam os recorrentes os respectivos fundamentos pela seguinte forma:

De acordo com o acórdão (recorrido) proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 6 de Março de 2002, das decisões dos tribunais colectivos não há recurso da matéria de facto, pelo que, nessa parte, se entendeu não dever aquele Tribunal pronunciar-se.

Essa decisão encontra-se em manifesta oposição com o Acórdão (fundamento) deste STJ de 30 de Maio de 2001, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano IX, t. II, a pp. 213-215.

Aqui se sintetizou, no seu sumário, que:
"1 - Com a nova regulamentação dos recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo possibilita-se o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, podendo, então, haver duplo grau de jurisdição em matéria de facto e duplo grau de recurso.

2 - Daí que, se o recorrente pretender impugnar a decisão de facto fixada pelo tribunal colectivo, pode recorrer para o Tribunal da Relação.»

Tal orientação encontra-se, ainda, espelhada no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 30 de Maio de 2001 e, posteriormente, no Acórdão deste STJ de 16 de Outubro de 2003, ambos prolatados no domínio da mesma legislação e da mesma matéria/questão de direito, disponíveis em http//:www.dsgi.pt.

Foi nessa mesma linha de orientação que os recorrentes (tacitamente) se basearam ao elaborar as respectivas alegações para o competente Tribunal da Relação aquando do recurso interposto do acórdão proferido pelo tribunal colectivo de 1.ª instância, nas quais incluíram, nos termos legais, a questão da matéria de facto.

As asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tiveram como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão de direito; as decisões em oposição são expressas; as situações de facto e respectivo enquadramento jurídico são idênticas em ambas as situações, pelo que inexistindo uniformização de jurisprudência deve elaborar-se, neste STJ, acórdão no sentido da "admissibilidade do recurso sobre a matéria de facto para o Tribunal da Relação do acórdão proferido em 1.ª instância por tribunal colectivo, tendo em consideração a análise e ou interpretação sistemática dos artigos 363.º e 428.º, n.os 1 e 2, com os artigos 364.º, 410.º, n.os 1 e 2, 412.º, n.os 3 e 4, 427.º, 430.º, n.º 1, primeira parte, e 432.º, alínea d), todos do CPP, e na sequência da reforma introduzida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, ao Código de Processo Penal, uma vez que o acórdão recorrido violou, por erro de interpretação, os citados preceitos e diploma legal [...]».

III - Em conferência concluiu-se pela oposição de julgados, assegurando-se, em moldes não vinculantes do pleno, porém mantidos inalterados, a prossecução dos termos do presente recurso, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do CPP.

IV - Os recorrentes e a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta neste STJ apresentaram as suas alegações, nos termos do artigo 442.º, n.º 1, do CPP, reeditando aqueles as que do antecedente produziram e a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta as que se seguem, explanadas, no que de essencial comportam, em forma resumida:

Anteriormente à reforma do CPP de 1998, já o STJ podia apreciar a matéria de facto (revista alargada), detectando os vícios a que se alude no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, por forma a impedir que tivesse de pronunciar-se de direito relativamente a factos incorrectamente julgados, sendo oficioso o conhecimento daqueles vícios, ainda que restrito o recurso à matéria de direito.

Em crescendo, de vários quadrantes, irromperam vozes que reclamavam um sistema que garantisse um amplo e efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto para os julgamentos provindos de um tribunal colectivo.

Essa exigência foi satisfeita pela alteração ao CPP introduzida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto.

Na verdade, relativamente às decisões proferidas pelo tribunal singular, esse recurso achava-se já assegurado em face do que se dispunha no artigo 364.º do CPP, conjugado com os seus artigos 427.º e 428.º, n.º 1, e 430.º, na sua originária versão, de 1987.

Para assegurar aquele recurso naquela matéria e amplitude, das decisões do colectivo, houve necessidade de proceder a ajustamentos ou mesmo a profundas alterações dos comandos normativos do CPP através daquela Lei 59/98, uma vez que, até aí, estava sedimentada a ideia de que não era obrigatória a documentação dos actos de audiência, pese embora, havendo meios técnicos de documentação, ela se destinasse, não a permitir a reapreciação da matéria de facto, mas tão-só, em caso de julgamentos complexos e morosos, a reavivar ao tribunal do julgamento a memória dos factos que desfilaram perante o tribunal, no momento de decidir.

Este entendimento não sofria de contestação por se achar que a norma do artigo 363.º do CPP era de conteúdo programático, por não colidir com o princípio da máxima celeridade, alcançado através da oralidade, como ainda por os tribunais se não acharem dotados dos meios técnicos habilitados à gravação e reprodução das declarações prestadas em julgamento, afeiçoando-se ao regime dos recursos então vigente, impondo que para o STJ só se pudesse recorrer de direito, apenas conhecendo de matéria de facto, sob arguição ou oficiosamente, dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

Decorridos mais de 10 anos sobre a entrada em vigor do CPP, ou seja, na data da publicação da Lei 59/98, de 25 de Agosto, já a generalidade dos tribunais de 1.ª instância se mostrava apetrechada com os meios técnicos de gravação das provas.

Mal se compreenderia, então, que a documentação dos actos de audiência, em 1.ª instância, quer produzidos perante o tribunal singular quer colectivo, não fosse obrigatória, apresentando-se aquela documentação como o meio privilegiado e indispensável para assegurar o objectivo do legislador de 1998, de atingir-se a efectividade de um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, que, razões histórico-sociológicas reclamavam, pertinentemente, aos julgados pelo tribunal colectivo.

Sendo obrigatória a documentação dos actos de audiência, de acordo com o artigo 363.º, do CPP, a menos que a tal se renuncie, ficaria sem suporte bastante que igual orientação se não seguisse face aos julgamentos dos tribunais colectivos, quando "os processos por eles julgados são compostos por elementos juridicamente mais valiosos e revestem-se de gravidade acrescida por neles estar em causa, as mais das vezes, a tutela de bens jurídicos indisponíveis».

Por outro lado, as Relações, com as alterações introduzidas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, viram os seus poderes de cognição ampliados, recorrendo-se para elas independentemente da composição do tribunal e de se discutir matéria de facto e de direito, somente sobre elas se podendo recorrer irrestritamente, afora os casos em que se pode recorrer directamente para o STJ, para reexame exclusivo da matéria de direito - artigos 427.º, 428.º e 432.º, alíneas c) e d), do CPP.

Subtraída como se mostra a reponderação da matéria de facto ao STJ, salvo no caso dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, vista a incongruência que representaria o disposto no artigo 432.º, alínea d), do CPP, introduzido pela reforma da Lei 59/98 recusando o reexame daquela matéria de facto a este Tribunal, crê-se que o elemento sistemático de interpretação da lei aponta para a conclusão de que o recurso da matéria de facto, fixada pelo colectivo, incumbe à Relação, sem ficar limitado aos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP.

Esta a solução mais compatível com o desígnio do legislador de garantir um efectivo grau de jurisdição em matéria de facto e com o deliberado propósito de se dotarem todos os tribunais de equipamento indispensável à gravação e reprodução da prova, pois de outro modo falha de sentido se apresentaria a formulação das normas dos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP e do artigo 414.º, n.º 7, do mesmo CPP, só compreensíveis tendo em vista um conhecimento mais ampliado do que o reservado àqueles vícios.

Com efeito as exigências previstas no artigo 412.º, n.os 3 e 4, do CPP, impondo a especificação da matéria de facto a provar, provas a renovar, vai no sentido de assegurar um grau de recurso sem restrições, desde que os autos forneçam uma documentação da prova produzida oralmente, ultrapassando o recurso das decisões dos tribunais singulares porque, quanto a elas, o recurso está já assente no artigo 364.º do CPP.

E similar conclusão há que extrair do renovado artigo 431.º do CPP, consentindo que a Relação modifique a matéria de facto, nos precisos termos aí previstos, alteração que não cabe ao STJ.

De chamar à colação, ainda, o artigo 417.º, n.º 7, do CPP, ao estabelecer que tendo sido interpostos recursos, uns versando matéria de facto e outros exclusivamente de direito, são todos julgados conjuntamente, pela Relação, uma vez que ao STJ está vedada a intromissão na matéria de facto.

Os elementos histórico e sistemático da interpretação da lei, segundo as alterações trazidas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, sustentam um elemento teleológico da interpretação que aponta decisivamente no sentido de que, actualmente, cabe à Relação conhecer do recurso interposto da decisão do tribunal colectivo em que o recorrente impugne a matéria de facto, quer sob a invocação dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP quer de forma mais ampla, com base nos elementos de documentação da prova, entendimento sufragado no Acórdão do TC n.º 677/99, de 21 de Dezembro.

Por tudo o que expôs, propõe a formulação de acórdão uniformizante da jurisprudência, com o seguinte teor:

"Após as alterações introduzidas ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, cabe ao Tribunal da Relação conhecer do recurso interposto de decisão do tribunal colectivo, em que o recorrente impugne matéria de facto, quer sob invocação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma legal quer de forma mais ampla, com base nos elementos constantes da documentação da prova produzida oralmente em audiência.»

V - A posição do acórdão recorrido:
Nele se decidiu que era intenção do legislador, ou pelo menos da comissão encarregada de rever o CPP, introduzir uma norma tendente a introduzir o direito ao recurso em matéria de facto das decisões proferidas pelo colectivo, mas tal norma não veio a lume, apresentando-se a interpretação do acórdão fundamento como forma de colmatar uma falha do legislador sobre a matéria.

Do artigo 364.º, n.º 3, do CPP não resulta que haja de proceder-se à documentação dos actos de audiência em caso de julgamento efectuado pelo colectivo, pelo que não é admissível recurso da matéria de facto das decisões do colectivo.

VI - A posição sufragada no acórdão fundamento, deste STJ:
Saindo fora do artigo 432.º do CPP, existe um conjunto coerente de normas que convergem para uma posição sustentável do recurso da matéria de facto fixada pelo colectivo, concretamente os artigos 410.º, n.º 1, 431.º, 427.º, 428.º, n.º 1, 432.º, alíneas c) e d), do CPP, uma vez que deles deriva um irrestrito direito ao recurso - sem distinção entre matéria de facto e de direito - para a Relação.

Não é pela forma que se acha redigido o artigo 363.º do CPP que se há-de concluir pela existência ou não do direito ao recurso da matéria de facto para as Relações.

VII - Cumpre decidir, colhidos os vistos legais:
A matéria dos recursos até à data da entrada em vigor do CPP escapou, nos últimos decénios, aos rigores da teoria e da crítica, tendo sido deixada intocável ao longo dos tempos, e, se se quiser encontrar um qualquer diploma inovador no sistema de recursos, esse foi o CPP de 1987, no dizer de Cunha Rodrigues, in "Recursos», Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, a p. 381, e José Damião da Cunha, in RPCC, ano 8, fasc. 2, Abril-Junho de 1998, a p. 267.

E a primeira linha introdutória de inovação no CPP de 1987 confere ao sistema de recursos uma tendencial autonomia relativamente ao processo civil; rompeu-se, no dizer de Cunha Rodrigues, op. cit., a p. 384, com a tradição de geminar recursos penais e civis.

E a explicar a incoincidência, escreve o Professor Germano Marques da Silva, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra Editora, 2001, a p. 803, que na decisão penal não preponderam "as componentes técnicas do direito, como sucede com a justiça civil, antes naquela se reflecte de modo muito acentuado a própria personalidade do julgador e porque está em causa a liberdade dos cidadãos, importa que o legislador seja previdente na matéria, isto porque a virtude da prudência do julgador enquanto correcto discernimento do que deve ser feito em cada caso em ordem à realização do fim último que a ordem jurídica prossegue» pode não assegurar suficientemente aquele superior objectivo da liberdade individual e colectiva.

Assevera mesmo aquele autor que no julgamento em colectivo repousa tanto a cautela da salvaguarda dos cidadãos, mas não menos a protecção para os julgadores.

Uma segunda ideação inovadora prende-se com um critério de verdade; o CPP não consente que o seu objecto seja palco predominante de discussões dogmáticas ou metodológicas, mais ou menos estéreis, afastadas de um desejável pragmatismo.

Numa terceira linha de força fornece-se um critério de lealdade processual; o recurso não pode ser mais um jogo de sorte e azar, um ensaio sob o signo de aleatoriedade que vale a pena correr, situando-se, prioritariamente, numa perspectiva de remédio jurídico, de reparação da injustiça da decisão, seja por error in judicando seja por error in procedendo, anomalias que o recorrente há-de indicar.

Os recursos em processo penal regem-se, ainda, por uma ideia de uniformização e economia, na forma de tramitação unitária, merecendo rejeição liminar os que se desviem marcada e visivelmente da sua finalidade reparadora da injustiça, sempre que as partes se demarquem da sua conformação normativa e teleológica, cedendo a interesses sem dignidade para protecção.

VIII - De considerar, desde já, que, na versão originária do CPP, o seu artigo 364.º dispunha, no seu n.º 1:

"As declarações prestadas oralmente em audiência que decorrer perante tribunal singular são documentadas na acta, sempre que até ao início das declarações do arguido previstas no artigo 343.º o Ministério Público, o defensor ou advogado do assistente declararem que não prescindem da documentação. A declaração fica a constar da acta e aproveita aos sujeitos processuais.»

A alteração introduzida àquele Código pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, conformou diversamente aquele artigo 364.º, em termos de erigir em princípio-regra a documentação dos actos de audiência, "salvo se até ao início das declarações do arguido previstas no artigo 343.º o Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente declararem unanimemente para a acta que prescindem da documentação».

De um regime de facultativa e opcional documentação dos actos de audiência, dependente de expressa declaração nesse sentido, passou-se a um regime de quase-obrigação, salvo o caso de declarada e prévia renúncia, com o que se assistiu, nesse passo legislativo, ao afirmar a relevância da documentação da prova oralmente produzida, na óptica da justiça material, deixando-se no ar uma implícita viragem relativamente ao reexame da matéria de facto, restando indagar, pois, o alcance dessa sugerida mutação.

De reter que o artigo 363.º do CPP, na sua versão originária, manteve-se intocado ante a alteração trazida por aquela Lei 59/98, continuando a dispor que:

"As declarações prestadas oralmente na audiência serão documentadas na acta quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos ou estenográficos ou de quaisquer outros meios idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei o impuser.»

Os meios estenotípicos ou estenográficos são, na economia do preceito: em primeira linha, os ideais à efectivação prática do princípio da documentação das declarações; em segundo plano, ainda em vista da efectivação daquele fim, existem os meios áudio, escreve o juiz Mouraz Lopes, in "Breves considerações sobre as implicações do novo sistema de recursos no Código de Processo Penal», Colectânea de Jurisprudência - Supremo Tribunal de Justiça, ano 2002, t. II, a p. 6.

IX - O elemento literal do preceito do artigo 363.º do CPP, no domínio da primeira versão do CPP, inculcava (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 11.ª ed., p. 659, e dos conselheiros Leal Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal, 2.º vol., pp. 358 e segs.), sem controvérsia, estar-se em presença de uma norma de conteúdo programático, uma aspiração voltada para o futuro, mas ainda sem alicerçar no direito positivo um duplo grau de recurso em matéria de facto das decisões do colectivo, aspiração de muitos e desde há não menos anos.

Propunha-se o preceito, no entendimento uniformemente vigente na primitiva redacção, a missão de assegurar o controlo da fidelidade da prova efectivamente produzida em audiência ante o colectivo, permitir aos julgadores reavivar a memória, que se pode ter esvanecido, em se tratando de julgamentos complexos, duradouros, arrastando-se no tempo, e ao mesmo tempo garantir aos sujeitos processuais a apreciação da coincidência entre a prova produzida e a prova a apreciar pelo colectivo - e só - em sede de matéria de facto.

Neste entendimento e contexto normativo, o legislador nem pretendeu afastar o princípio da oralidade nem facilitar o nascimento de condições propícias a gerarem perniciosas delongas processuais e, muito menos, quis estabelecer um imperativo geral de obrigatoriedade de documentação em todo e qualquer caso ou em todo e qualquer processo. A documentação das declarações oralmente prestadas em audiência perante o tribunal colectivo com arguidos presentes não é imposta por lei nem é, a nenhum título, obrigatória, servindo apenas como um instrumento de orientação do e para o próprio tribunal, inteiramente livre para lançar, ou não, mão dele: se a sua utilização pode eventualmente ser útil ou conveniente, quer para se não perder a memória da prova quer para se lograr uma eficaz preparação das inquirições seguintes, isso é matéria a ser avaliada e ajuizada pelo próprio colectivo, à luz dos seus próprios critérios e sem qualquer espartilho de obrigatoriedade a tolhê-lo, escreveu-se no Acórdão deste STJ de 6 de Junho de 2001, processo 776/01, da 3.ª Secção.

O TC, no seu Acórdão 677/99, prolatado no processo 595/99, manteve-se fiel a essa linha jurisprudencial ao proclamar que, "quando o julgamento é feito por um tribunal colectivo, o registo das declarações produzidas oralmente na audiência, dispondo-se de meios técnicos para o efeito, é, pois, um meio de controlo da prova posto ao serviço desse tribunal. Com esse registo, o que se pretende é assegurar que o tribunal colectivo, com base nas declarações prestadas na audiência, venha a dar como provado o que realmente se provou e como não provados os factos de que se não logrou fazer prova [cf., neste sentido, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, cit., p. 486, e ainda os Acórdãos deste Tribunal n.os 234/93 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 2 de Junho de 1993), 639/93 (por publicar), 398/94 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Outubro de 1994) e 482/95 (por publicar)]».

Aquele registo de prova perante o colectivo não tem, porém, no sistema do Código de Processo Penal vigente, a finalidade de permitir ao tribunal de recurso o controlo do julgamento do facto, feito pelo tribunal recorrido, acentua o predito aresto, sob pena de preterição do princípio da oralidade, envolvendo, ainda, "prolongamentos processuais que o actual Código de Processo Penal, imbuído do espírito de celeridade processual, quis afastar» - cf., ainda, o Acórdão deste STJ de 6 de Março de 1996, in Colectânea de Jurisprudência - Supremo Tribunal de Justiça, ano IV (1996), t. III, p. 165.

Nos termos expostos, o sistema legal em sede de recurso repousava, então, num quadro referencial assim caracterizado:

1) Das decisões finais do tribunal colectivo recorria-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, que, em regra, só conhecia de matéria de direito - cf. os artigos 432.º, alínea c), e 433.º do Código de Processo Penal;

2) No tocante à matéria de facto, como regra, estava-lhe vedada a sua sindicância recursória, ressalvado o caso excepcional, praticável oficiosamente, de ocorrência dos vícios decisórios, de confecção técnica do decidido, situados ao nível da lógica jurídica, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP;

3) E, ainda assim, no apertado contexto de qualquer destes vícios atinentes ao facto, ressumarem "do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum» (cf. o citado artigo 410.º, n.º 2), excluída estando a possibilidade de no recurso se lançar mão do registo da prova levado a cabo no julgamento da 1.ª instância.

Não podia, assim, o STJ substituir-se ao tribunal de 1.ª instância na apreciação directa da prova nem realizar, ele próprio, diligências de prova (cf., neste sentido, Cunha Rodrigues, "Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, p. 394), estando-lhe interdito servir-se de quaisquer elementos constantes no processo, máxime daquele registo de prova.

X - A comissão de revisão do CPP, pela voz e pena do seu presidente, Professor Germano Marques da Silva, de cujo trabalho viria a resultar a Lei 59/98, de 25 de Agosto, a propósito da susceptibilidade de recurso da matéria de facto em julgamento plural, teve o ensejo de expressar o seu pensamento, com toda a nitidez, e em mais de um lugar e momento.

Assim, na introdução ao Código de Processo Penal, 1.ª ed., da Quid Juris, de Outubro de 1998, o Professor Germano Marques da Silva, seguro de que aquela viabilidade era o propósito do legislador, escreveu que uma das mais importantes inovações trazidas pelo legislador pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, foi a consagração da admissibilidade do recurso da matéria de facto, "o que até hoje não era permitido quanto aos julgamentos do colectivo [sublinhado nosso]».

Essa admissibilidade obriga mesmo à conformação da interpretação do artigo 363.º do CPP com o direito ao recurso, que, agora, o CPP consagra sem limitações, no domínio dos factos fixados, escreve aquele autor.

A sua posição, em termos de admissibilidade e alcance do recurso na matéria, repousa num alongado pilar de inatacáveis, por evidentes, estratificados e consabidos fundamentos, em termos de irrecusabilidade do reexame por uma jurisdição superior da matéria de facto assente por um tribunal colegial de 1.ª instância, mesmo por falta de meios de equipamento nos tribunais - cf. a introdução citada, p. 22.

Só assim se materializa, na prática, proclama, um dos fins da exposição de motivos [nomeadamente o n.º 16, sua alínea g), da proposta de lei 15/VII, de que veio a resultar a Lei 59/98, de 25 de Agosto], no aspecto de assegurar um efectivo reexame por tribunal superior da matéria de facto fixada pelo colectivo.

Aquela comissão de revisão adquiriu a segura convicção "de que era aspiração generalizada» nos meios jurídicos a possibilidade de registo de prova produzida em audiência de julgamento e que esse desejo está inteiramente relacionado com a quebra de confiança na qualidade da justiça em 1.ª instância - cf. Código de Processo Penal, Processo Legislativo, vol. II, t. II, p. 63.

Essa desconfiança sociológica pesou decisivamente na afirmação pela comissão de que o processo penal, sem registo de prova, "não é absolutamente nada» e é motivo de angústia em muitos tribunais, e isto porque até "há instrumentos», "há meios de gravação».

A comissão propôs mesmo que o regime em vigor para os tribunais singulares no artigo 364.º do CPP, de documentação obrigatória dos actos de audiência, fosse alargado aos julgamentos em colectivo, parificando o conhecimento em recurso da matéria de facto fixada por ambos - cf. op. cit., p. 64.

Aparentemente esse pensamento não foi adoptado expressamente na lei, de forma tecnicamente perfeita, não podendo ficar, na discricionariedade dos juízes, pois a geral e actual dotação dos tribunais daqueles instrumentos não pode ser mais óbice para persistência naquela desconfiança, para realização de melhor justiça na base de tratamento igualitário entre cidadãos, quer sujeitos a tribunal singular quer colectivo.

A grande alteração que no domínio da Lei 59/98, de 25 de Agosto, se quis introduzir em sede de recurso, colhe-se com toda a clareza, daquela comissão, foi a da admissibilidade do recurso perante as Relações dos acórdãos finais proferidos pelo colectivo, quando o recurso verse matéria de facto ou de facto e de direito, pois quando verse apenas o reexame da matéria de direito aplicada no julgamento em tribunal colectivo deve ser interposto para o STJ.

Os tribunais já estão equipados, pelo menos a grande maioria, com meios de gravação sonora, e esses meios devem ser idóneos a assegurar a reprodução integral das declarações prestadas oralmente em audiência, mas, mesmo que esses meios não existam ainda, havendo sempre meios de assegurar o registo integral das declarações, a sua documentação, mais que não seja na própria acta, para supervisão por um tribunal superior como forma de assegurar um duplo e efectivo grau de jurisdição de recurso em sede de matéria de facto - cf., ainda, Código de Processo Penal, Processo Legislativo, vol. II, t. II, p. 66.

Na hipótese excepcional de falta de meios técnicos de registo probatório, o recurso à documentação resumida em acta, pelo mecanismo integrativo do disposto no artigo 364.º, n.º 5, do CPP, colmataria a dificuldade, esconjuraria o apontado mal-estar, "persistente na administração da justiça penal», na palavra do Dr. José Damião Cunha, in "A estrutura dos recursos na proposta de revisão do CPP», RPCC, ano 8, fasc. 2, Abril-Junho de 1998, p. 263, para quem a via do recurso com essa dimensão daria concretização a uma reivindicação amplamente disseminada entre os recorrentes.

O recorrente, segundo o mesmo autor, tem o "direito» a que o tribunal de 1.ª instância, na sua decisão, proceda a um exame crítico das provas como tem o direito de solicitar o reexame crítico em 2.ª instância - cf. O Caso Julgado Parcial, Universidade Católica do Porto, 2002, pp. 547-551.

XI - Ao que a vontade do legislador, expressa previamente à emanação do direito positivado, serve para fundar critério de interpretação e aplicação da lei (artigo 9.º, n.º 1, do CC), deve associar-se e erigir-se, em valia, como critério fundente daquela ideologia, ainda nos termos legais, as circunstâncias, as condições específicas de que se faz menção naquele preceito, ou seja, a sua ocasio legis.

Esse horizonte contextual pesa, também, consideravelmente, no sentido e alcance a imprimir à lei no seu intuito da satisfazer as exigências que a vida e o espírito põem ao direito, no dizer de Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, cap. LI, 1934.

Trata-se, ao fim e ao cabo, da praticabilidade do método histórico-evolutivo no que de mais nuclear se propõe, de, em forma actualística, assegurar a certeza do direito, a sua permanente rectidão, a consciência e a segurança das relações e o progresso jurídico emergente de um legislador razoável. (Cf., no mesmo sentido, Engish, Introdução ao Pensamento Jurídico, 2.ª ed., p. 112.)

E, não obstante o artigo 363.º do CPP, ao afirmar que "[a]s declarações prestadas oralmente em audiência são documentadas na acta quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daqueles, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser», não ter retratado no seu elemento gramatical o pensamento da comissão revisora, alterações ao CPP, imprimidas na decorrência da Lei 59/98, de 25 de Agosto, fornecem elucidativa argumentação, alicerçando a solução a conferir ao conflito jurisprudencial a dirimir, traduzindo inequívocos afloramentos daquele pensamento, havendo que conferir uma nova dimensão ao artigo 363.º do CPP, ultrapassando o alcance meramente programático já citado, para se lhe reconhecer, em moldes prospectivos, um sentido prático e uma aplicabilidade pragmática.

XII - Desde logo as alterações introduzidas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, acrescentaram no artigo 432.º do CPP a alínea d), ditando esta que há recurso para o STJ "[d]e acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando o exclusivo reexame de matéria de direito», vindo a inculcar que há, como se escreve no Acórdão do STJ de 30 de Maio de 2001, in Colectânea de Jurisprudência, ano II, p. 214, um outro tribunal "destinatário» dos recursos com relação ao conhecimento da matéria de facto, de uma forma ampla e alargada, quando o recorrente se proponha o reexame da matéria de facto, como forma de assegurar o equilíbrio orgânico no conhecimento em recurso da matéria facto - direito.

Só o recurso das decisões do colectivo, em termos de matéria de facto, para a Relação, podia garantir amplo e reclamado direito de defesa, que, antes da reforma introduzida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, era já assegurado relativamente à matéria de facto fixada pelo tribunal singular desde que os sujeitos processuais não tivessem renunciado ao recurso da matéria de facto, requerendo a prévia documentação dos actos de audiência, nos termos dos artigos 364.º, versão originária, 427.º, 428.º, n.º 1, e 430.º do CPP.

O legislador trouxe também ao artigo 412.º, n.º 3, do CPP nova redacção no tocante às regras sobre a impugnação da matéria de facto e introduziu um número - o 4 - com uma latitude tal que era incompreensível que se se circunscrevesse, exclusivamente, às decisões da matéria de facto ao nível do tribunal singular e à prova a renovar, se não tivesse em mente dar satisfação, indo mais além do que do antecedente, era prática quotidiana nos tribunais.

De outro modo, ter-se-ia de concluir pela pura inocuidade da inovação, pois que, como pondera a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta, os instrumentos de reavaliação da matéria de facto firmada pelo tribunal singular já se mostravam sobejamente acautelados no regime anterior.

A revisão do CPP de 1987, pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, introduziu, também, um preceito novo, o artigo 431.º, subordinado à epígrafe "Modificabilidade da decisão recorrida», consentida sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, sempre que do processo constem todos os elementos de prova que lhe serviram de base [alínea a)] em caso de documentação da prova, havendo impugnação nos termos do n.º 3 do artigo 412.º [alínea b)], ou se tiver havido renovação da prova [alínea c)], o que diz bem do amplo propósito da modificabilidade, desta feita não limitado ao acervo de factos consignado pelo tribunal singular, uma vez que a lei não consente distinção entre os firmados por aquele e os oriundos do tribunal colectivo.

Acrescente-se, ainda, o argumento de peso derivado do n.º 7 do artigo 414.º do CPP, preceito igualmente inovador, ao realçar que "havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente», porém, necessariamente, pela Relação, e não pelo STJ, ao qual é deferida, em exclusivo, nos termos do artigo 434.º do CPP, a reapreciação da matéria de direito, ressalvado caso de revista alargada, em conhecimento dos vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, mas ainda assim se mantendo no âmbito daquela reserva de competência, no uso de um poder-dever, vinculadamente, de fundar uma decisão de direito numa escorreita matéria de facto.

Também nesse conhecimento conjunto cometido à Relação se não usa qualquer distinção entre acervo factual com origem num tribunal singular ou num tribunal colectivo.

Por outro lado, a norma inovadora do n.º 4 do artigo 412.º do CPP, ao estabelecer que, "quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição», denota a preocupação do legislador em regular de forma global e pretensamente eficiente a reponderação em recurso da matéria de facto, sempre na perspectiva de garantir a sua sindicabilidade à margem da composição do tribunal.

A oficiosidade da transcrição, ou seja, a cargo do tribunal recorrido, não deixa de representar uma forma de garantir aquele reexame, numa óptica de melhor justiça material e sem encargos, facultando-se que um tribunal colocado num escalão hierarquicamente superior ao recorrido se debruce sobre a justeza da sua fixação.

O legislador da Lei 59/98, de 25 de Agosto, quis concentrar, pois, na Relação, reforçando os seus poderes, a sindicância da matéria de facto, fechando o ciclo de conhecimento, em tal área, qualquer que seja a composição do tribunal que a fixa, nos termos do artigo 428.º, n.os 1 e 2, do CPP, para o que aperfeiçoou os necessários mecanismos legais, seja quanto ao modo da sua impugnação, renovação das provas e apreciação de recursos de diversos recorrentes, tudo nos termos dos pré-citados artigos 412.º, n.os 3 e 4, 430.º e 414.º, n.º 7, do CPP.

Ao legislador não passou despercebido que, decorridos mais de 10 anos sobre a entrada em vigor do CPP de 1987, os tribunais já se mostravam apetrechados dos indispensáveis mecanismos de registo de prova, e, portanto, não era utópica ou incoerente a exigência da sua documentação em vista a possibilitar o direito a um efectivo e duplo grau de recurso relativamente à matéria de facto assente pelo colectivo.

Da conformação de tal interpretação do artigo 363.º do CPP a esse direito não podiam mais afastar-se o intérprete e o aplicador da lei - escreveu o Professor Germano Marques da Silva, in Código de Processo Penal, III, 2.ª ed., p. 267, e BOA, n.º 8/2000, a pp. 45 e 46: "mais não parece é que seja possível negar o recurso, que a lei consente por falta de meios de equipamento nos tribunais».

De nada vale, decorridos quase 20 anos sobre a entrada em vigor do CPP de 1987, e o gradual, porém total, apetrechamento de meios técnicos de gravação, de registo das provas, a invocação da possibilidade de avaria nos sistemas de gravação, que não pode deixar de ter-se como argumento reversível e secundário, pois dificuldades logísticas ou operacionais não se confundem nem podem confundir com questões de princípio, mormente, como no caso, estas envolvem direitos fundamentais constitucionalmente tutelados - cf. o Acórdão deste STJ de 7 de Novembro de 2002, processo 3130/02, 5.ª Secção.

Como consequência da nova arrumação normativa dos recursos, concretizando o projecto ínsito na alínea g) do n.º 16 da exposição de motivos da proposta de lei 157/VII, de que surtiu a Lei 59/98, no sentido de assegurar "um recurso efectivo em matéria de facto», deve interpretar-se o disposto no artigo 363.º do CPP não no sentido de que a documentação das declarações orais serve como mero instrumento de auxílio do tribunal de 1.ª instância mas antes como traduzindo uma vinculação da Relação, em face daquela, quanto aos pontos de facto vertidos pelo colectivo, mesmo que se torne necessária uma documentação por forma diversa daquela, nos termos do artigo 364.º, n.º 4, do CPP, suprindo a falta dos meios previstos na norma em causa, só assim se conseguindo uma interpretação conforme à CRP, estabelecendo a igualdade de todos os eventuais recorrentes em relação ao recurso da decisão de facto, decidiu-se no Acórdão deste STJ de 2 de Outubro de 2002, processo 2537/02, 3.ª Secção.

Com a nova visão infundida aos recursos, o artigo 363.º do CPP, nessa nova arrumação não é concebido actualmente, e nem pode sê-lo mais, um ponto de partida, uma miragem, mas de chegada; o preceito em causa, de norma programática e tendencial, passou a norma de aplicação genérica a todos os tribunais; a preceito de efectiva aplicação prática na vida dos tribunais, de modo a viabilizar um efectivo grau de recurso sobre a matéria de facto fixada em colectivo, como lapidarmente se escreveu no Acórdão deste STJ de 30 de Maio de 2001, in Colectânea de Jurisprudência, ano IX, t. II, p. 215, funcionando como autêntica válvula de segurança do sistema.

XIII - Impõe-se extrair a conclusão de que no sistema actual de estruturação dos recursos o CPP faz questão de erigir, em duas linhas de força, um equilibrado travejamento dos recursos das decisões do tribunal colectivo, quais duas faces de uma mesma medalha, em vista de imprimir ao processo penal a natureza de um processo justo e leal (a due process of law), a saber:

Se vocacionados ao exclusivo reexame da matéria de direito, a competência para os decidir radica-se no STJ, ao qual escapa, por força de lei - artigos 434.º e 432.º, alínea d), do CPP -, o conhecimento da matéria de facto, salvo se do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, resultar qualquer dos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP; em paralelo, se endereçados ao reexame da matéria de facto, desta e de direito, com base nos elementos constantes da prova oralmente produzida em audiência de discussão e de julgamento, então impera a competência da Relação, à qual se lhe fornecem legal e amplamente os indispensáveis meios de controlo.

Conhecimento, em sede de direito, ilimitadamente pelo STJ, como tribunal de revista, uma das faces da moeda; conhecimento amplo da matéria de facto, pela Relação, o reverso da mesma medalha.

XIV - Um argumento de índole lógico-racional torna, ainda, mais compreensível que se assegure um amplo grau de recurso em sede de matéria de facto, extensiva aos julgamentos do tribunal colectivo, quando se não ignora que as decisões desse tribunal são da maior relevância jurídica, estando em causa "as mais das vezes a tutela dos bens jurídicos indisponíveis» - cf. o Acórdão deste STJ de 8 de Novembro de 2001, processo 3019/01, 5.ª Secção -, preenchidas por um objecto juridicamente mais valioso.

Dissemelhança de tratamento processual entre a reapreciação já consagrada para o julgamento da matéria de facto assente pelo tribunal singular e o correspondente pelo colectivo representaria indesejável afronta, desde logo, ao princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), comprimindo excessivamente o direito de defesa, já que uma das garantias de defesa no processo penal é o direito ao recurso (cf. o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).

Com o recurso, sublinhe-se, não se pretende, no entanto, um novo julgamento da matéria de facto, pois - como se advertiu no Acórdão 124/90 do TC, e se repetiu, entre outros, no Acórdão 322/93 (publicados no Diário da República, 2.ª série, de 8 de Fevereiro de 1991 e de 29 de Outubro de 1993, respectivamente) -, "tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência da imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito».

Observa-se, naquele Acórdão 124/90, em consonância, que uma repetição integral da prova perante o tribunal de recurso seria, desde logo e como facilmente se compreende, absolutamente inconcretizável. Mas, e mais do que isso, revelar-se-ia de todo inconveniente, desde logo, porque - como chama a atenção Cunha Rodrigues ("Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393) -, e dito por outras palavras, há razões para olhar com algum cepticismo os segundos julgamentos realizados num "cenário» factual repetido, já utilizado e impregnado de um intuito de concentricidade de julgados, de não divergentemente se sentenciar.

Ao que acresce que a leitura ou a audição pelo tribunal de recurso de toda a prova produzida e gravada perante o tribunal colectivo - para além de se tornar pouco menos que insuportável - "acabaria por fazer com que a prova se perdesse como prova, justamente porque lhe faltava a força da imediação» (cf. o citado Acórdão 322/93): seria, na verdade, uma prova temporalmente mais distanciada dos factos e apreciada já "em segunda mão» (cf., a propósito, também, o Acórdão 401/91 daquele TC, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 8 de Janeiro de 1992).

A propósito do direito de defesa, o Tribunal Constitucional, como sempre se tem pronunciado, e por várias vezes, ponderou no Acórdão 61/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., p. 661, que "devem considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais quer procedimentos aplicativos delas que impliquem um encurtamento inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável das possibilidades de defesa do arguido (assim, basicamente, cf. o Acórdão 337/86, deste Tribunal, in Diário da República, 1.ª série, de 30 de Dezembro de 1986)».

XV - Neste STJ, sublinha-se - cf. os Acórdãos de 10 de Novembro de 1999 (processo 1037/1999, 3.ª Secção), de 26 de Janeiro de 2000 (processo 950/1999, 3.ª Secção), de 11 de Outubro de 2000 (processo 1783/2000, 3.ª Secção), de 13 de Setembro de 2000 (processo 3496/2000, 3.ª Secção), de 7 de Dezembro de 2001 (processo 3998/2000, 3.ª Secção), de 8 de Dezembro de 2001 (processo 3414/2000, 5.ª Secção) e de 9 de Maio de 2001 (processo 1284/01, 3.ª Secção) -, alcançou foros de unanimidade o entendimento, em obediência a uma desejável interpretação segundo a qual a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, que o Código de Processo Penal, de modo inequívoco, visa assegurar, impõe como princípio geral obrigatório a documentação das declarações orais prestadas em tribunal, seja ele singular ou colectivo, e mais que a documentação tem como escopo principal servir de instrumento indispensável ao recurso sobre a decisão de facto, a impor perante o Tribunal da Relação, ao arrepio da que antes daquela reforma trazida pela Lei 59/98 configurava a documentação como modo de reavivar a memória do julgador nos megaprocessos, que a complexidade arrastava pelo tempo, constituindo as respectivas cassetes gravadas "prolongamento da acta», ou se preferir-se, "acta em sentido amplo» como se decidiu no Acórdão deste STJ de 17 de Maio de 2001, processo 864/01, 5.ª Secção.

O TC, no seu Acórdão 677/99, de 21 de Dezembro de 1999, como assinala a Sr.ª Procuradora-Geral-Adjunta, neste STJ, ao ocupar-se da questão que se prende com a transcrição das provas, considerou, igualmente, que das decisões da 1.ª instância, proferidas pelo colectivo, em sede de matéria de facto, se recorre, sem limitação para a Relação, à qual cabe, como princípio-regra, fixar em definitivo a matéria de facto, a partir dos suportes magnéticos em que a prova tenha sido gravada e, bem assim, das transcrições das provas produzidas oralmente em julgamento que, no entender do recorrente, importem decisão diversa da recorrida.

A amplitude conferida, agora, à reponderação fáctica, alicerçada em elementos interpretativos da lei, segundo o artigo 9.º do CC, de índole histórica, estes perscrutando as necessidades práticas da vida, as exigências de justiça material que pedem ao direito, o pensamento dos fautores das leis, ainda que expressos de uma forma imperfeita, que importa aclarar, lógico-racional, enquanto "força vivente móvel» que anima a lei, no dizer de Ferrara, op. cit., a p. 39, concatenados pela valia da visão intra-sistemática das normas, impondo a consideração da correlação entre as várias disposições legais trazidas com a alteração ao regime dos recursos pela Lei 59/98, impõe que se aceite a tese sufragada pelo recorrente, com apoio no acórdão fundamento deste STJ, ou seja, que a teleologia da Lei 59/98, de 25 de Agosto, alterando o CPP, em sede de recursos, se preenche, apenas, dando inteiro acolhimento à ideia basilar de obrigatoriedade, como regra, da documentação das provas oralmente produzidas em audiência, registadas pelo recurso aos meios técnicos de registo ou, na sua falta, ao regime integrativo previsto no artigo 364.º, n.º 4, do CPP, ditando o julgador para a acta o que resultar das declarações prestadas, sejam aquelas prestadas ante o tribunal singular ou colectivo, como forma de assegurar um efectivo e segundo grau de recurso em sede de matéria de facto pela Relação, versando quer a matéria de facto assente pelo tribunal singular quer colectivo, interpretação que, como vimos, comporta tradução, apoio seguro na lei.

Na verdade, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, "uma das mais emblemáticas, se não mesmo a mais emblemática», da reforma introduzida pela Lei 59/98 na expressiva linguagem do Acórdão deste STJ de 16 de Outubro de 2003, prolatado no processo 3295/03, 5.ª Secção, "não é uma miragem longínqua e eternamente diferida, antes direito positivado e agora vigente no nosso ordenamento jurídico», reafirma este STJ, no seu Acórdão de 8 de Novembro de 2001, processo 3019/01, 5.ª Secção, cometendo aquela jurisdição à Relação, que julga de facto e de direito, nos termos do artigo 428.º, n.º 1, do CPP, actuando o STJ pressupondo a definição última da matéria de facto pelas instâncias.

XVI - Na doutrina, e a rematar, além do Professor Germano Marques da Silva (cf., ainda, do mesmo autor, "Reforma do Código de Processo Penal e as perspectivas de evolução do direito processual penal», in Scientia Iuridica, n.os 277-279, Janeiro-Junho de 1999, pp. 67-83, Curso de Processo Penal, III, 2000, pp. 265 a 272, "Documentação de declarações orais - Princípios gerais», in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, 2001, pp. 801-818, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recursos; o Dr. José Damião da Cunha (cf., ainda, "A estrutura dos recursos na proposta de revisão do Código de Processo Penal - Algumas considerações», RPCC, Abril-Junho de 1998, pp. 251-275), se perfilam o juiz José Mouraz Lopes, in "A questão da documentação das declarações prestadas em audiência de julgamento», Junho de 1999, in www.verboiuridico.net/doutrina/direito e processo penal, e "Breves considerações sobre as implicações do novo sistema de recursos no Código de Processo Penal», in Colectânea de Jurisprudência - Supremo Tribunal de Justiça, ano 2000, t. II, pp. 5-7, os advogados Drs. Rodrigo Santiago, in "Diversas questões da revisão do CPP, entre as quais a da documentação da audiência», Julho de 1999, in www.verboiuridico.net/doutrina/direito e processo penal, João Nabais e Ana Sequeira, in "O duplo grau de jurisdição em processo penal - Questões práticas», Forum Iustitiae, n.º 4, Setembro de 1999, pp. 32-34, o procurador-geral-adjunto Joaquim Baltazar Pinto, in "Recursos em matéria de facto», Revista do Ministério Público, 83.º, Julho-Setembro de 2000, pp. 171-180, os conselheiros Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, 2001, pp. 767-799, e o desembargador António Pires Henriques da Graça, in "O recurso em matéria de facto dos acórdãos finais dos tribunais colectivos», in boletim da ASJP, Informação e Debate, III, n.º 5, Novembro de 2001, ao abordarem a temática que nos ocupa, igualmente a perspectivaram sob o enfoque descrito, ou seja, no sentido da obrigatoriedade da documentação dos actos de audiência como forma de viabilidade de recurso irrestrito incidente sobre a matéria de facto da competência da Relação.

XVII - Pelo exposto se delibera neste STJ:
1) Conceder provimento ao recurso interposto;
2) Fixar jurisprudência no sentido de que:
"Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo.»;

3) Oportunamente, cumpra-se o disposto no artigo 444.º do CPP, reenviando-se os autos à Relação do Porto, nos termos e para os fins do artigo 445.º, n.os 1 e 2, daquele diploma;

4) Sem tributação.
Lisboa, 20 de Outubro de 2005. - Armindo dos Santos Monteiro - João Manuel de Sousa Fonte - António Jorge Fernandes Oliveira Mendes - Luís Flores Ribeiro - António Silva Henriques Gaspar - Políbio Rosa da Silva Flor - José Vítor Soreto de Barros - Alfredo Rui Francisco do Carmo Gonçalves Pereira - José António Carmona da Mota - António Pereira Madeira - Manuel José Carrilho Simas Santos - José Vaz dos Santos Carvalho - António Joaquim da Costa Mortágua - António Artur Rodrigues da Costa - Fernando José da Cruz Quinta Gomes - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/192325.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1986-12-30 - Acórdão 337/86 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 61.º, n.º 4, do Código da Estrada, na parte em que atribui competência à Direcção-Geral de Viação para aplicar a medida de inibição da faculdade de conduzir ao condutor que, tendo cometido uma transgressão estradal, paga voluntariamente a multa.

  • Tem documento Em vigor 1990-01-15 - Decreto-Lei 20-A/90 - Ministério das Finanças

    Aprova o regime jurídico das infracções fiscais não aduaneiras.

  • Tem documento Em vigor 1992-01-08 - Acórdão 401/91 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, DA NORMA DO ARTIGO 665 DO CODIGO DE PROCESSO PENAL DE 1929, (RECURSO DAS DECISÕES CONDENATORIAS DOS TRIBUNAIS COLECTIVOS CRIMINAIS PARA O TRIBUNAL DA RELACAO), NA INTERPRETAÇÃO QUE LHE FOI DADA PELO ASSENTO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 29 DE JUNHO DE 1934, POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 32, NUMERO 2 DA CONSTITUICAO.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda