Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2011
Processo 61/10.4YFLSB - 3.ª
Acordam no Pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:
I
A - No processo 40/06.6JBLSB F. L. 1 da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, o arguido Fernando Kwesseka Coelho, com os demais sinais dos autos, interpôs o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, apresentando as seguintes conclusões:1 - No douto acórdão de que se recorre, decidiu-se [que] o arguido já notificado da acusação não deve ser notificado do despacho do MP que nos termos do n.º 5 do artigo 283.º do CPP ordena o prosseguimento dos autos, iniciando-se o prazo de abertura de instrução com prolação desse despacho.
2 - Esta decisão está em oposição com uma outra proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na 9.ª Secção, em 10 de Julho de 2003, no processo 6205/2003-9.
3 - Neste douto aresto, agora fundamento, contrariamente, decidiu-se que aos co-arguidos já notificados da acusação deve ser dado conhecimento do despacho proferido pelo MP que nos termos do n.º 5 do artigo 283.º ordena o prosseguimento dos autos, iniciando com essa notificação o prazo para a abertura de instrução.
4 - Nestes dois doutos arestos decidiu-se a mesma questão fundamental de direito, sobre uma questão análoga de facto, sempre no âmbito da mesma legislação e assentando em soluções manifestamente opostas.
5 - Saber se, existindo vários co-arguidos, frustrando-se a notificação de um deles, deve ser notificado, ou não, aos outros, o despacho do MP proferido nos termos do n.º 5 do artigo 283.º do CPP que ordena o prosseguimento dos autos.
6 - Entendemos que deve ser fixada jurisprudência com o sentido do acórdão fundamento deste recurso, ou seja, no caso de existirem vários co-arguidos, frustrando-se a notificação da acusação a pelo menos um deles, o início do prazo para a abertura de instrução conta-se desde a notificação aos outros co-arguidos do despacho do MP proferido nos termos do n.º 5 do artigo 285.º do CPP e que ordena o prosseguimento dos autos aos outros co-arguidos já notificados da acusação.
Violaram-se as seguintes disposições legais:
Artigos 113.º, n.º 12, 277.º, n.º 3, 283.º, n.º 5, e 287.º, n.os 1 e 6, todos do Código de Processo Penal.
Nestes termos, e demais de direito, deverá o presente recurso obter provimento e em consequência fixar-se jurisprudência no sentido propugnado e de acordo com o acórdão fundamento.
VV. Exas. farão contudo justiça! B - Cumprido o disposto nos artigos 439.º e 440.º do CPP, veio este Supremo Tribunal, por acórdão de 5 de Maio de 2010, a concluir pela oposição de julgados, prosseguindo o recurso, nos termos da 2.ª parte do artigo 441.º, n.º 1, e cumprindo-se o disposto no artigo 442.º, n.º 1, ambos do CPP.
C - Recorrente e Ministério Público foram notificados para apresentarem no competente prazo as alegações escritas.
D - Apenas o Ministério Público apresentou alegações, concluindo:
1 - A Lei 59/98, de 25 de Agosto, considerou que os interesses dos arguidos e assistentes, no exercício do direito de defesa daqueles e da acção conformadora, de uns e de outros, do sentido da decisão final, ficariam melhor salvaguardados com as normas dos artigos 287.º, n.º 6, e 315.º, n.º 1, 2.ª parte.
2 - A introdução da norma constante do artigo 287.º, n.º 6, não teve como objectivo um alargamento de prazo para requerer a abertura de instrução, mas o de permitir que se pudesse optar, no caso dos arguidos, por uma defesa conjunta e que desta opção se pudesse sempre desistir, preferindo defesas separadas, sem que tal pudesse implicar a impossibilidade de requerer a abertura de instrução, por, entretanto, já poder ter expirado o prazo relativo a arguido previamente notificado.
3 - Para que, após a dedução da acusação, o processo prossiga sem que dela se mostrem notificados todos os arguidos, importa a prolação, pelo Ministério Público, de um despacho interlocutório, devidamente fundamentado, como impõe a norma do artigo 97.º, n.os 1, alínea b), 3 e 5, que conclua no sentido de os procedimentos de notificação se terem revelados ineficazes.
4 - Não impende sobre os arguidos qualquer ónus de consulta dos autos, o que sempre constituiria uma exigência gravosa e excessiva, que dificultaria o exercício normal do seu direito de defesa.
5 - O despacho previsto na norma do artigo 283.º, n.º 5, 2.ª parte, pressupondo sempre a não notificação da acusação a algum ou a alguns dos arguidos, não tem ocorrência temporal legalmente predefinida, dependendo de um juízo do Ministério Público face, nomeadamente, às circunstâncias concretas da não notificação, podendo assim não ocorrer ou ocorrer logo após a primeira frustração da notificação, ou posteriormente.
6 - O referido despacho não se radica apenas no facto objectivo da verificação de uma ou várias frustrações de notificação, mas pressupõe também uma apreciação envolvendo a expectativa da possibilidade de uma notificação em tempo útil, na consideração da globalidade das circunstâncias referentes aos direitos fundamentais em causa e à realização da justiça no processo concreto.
7 - Aquele despacho, por prescindir da notificação da acusação a arguido, ou a arguidos, tem evidente incidência directa no regime querido pela lei, respeitante ao termo do prazo para a prática de actos subsequentes a notificação, conforme a norma do artigo 287.º, n.º 6, com referência ao artigo 113.º, n.º 12.
8 - O despacho do Ministério Público, ao alterar nestes termos a marcha do processo, não pode deixar de constituir uma decisão inovatória susceptível de afectar directamente os direitos de defesa.
9 - Estando em causa um despacho com estas características, fundamentos e efeitos, a sua notificação impõe-se naturalmente.
10 - Não estamos perante uma nova notificação do despacho de acusação - como pretendem os que aludem a «duplicação da notificação da acusação, uma para os efeitos do artigo 287.º e outra para os efeitos do artigo 283.º, n.º 5, feitas aos arguidos já notificados para os temas do artigo 287.º» - mas antes face a uma decisão inovatória do Ministério Público, que tem que ser notificada aos sujeitos processuais, já notificados do despacho de acusação, por poder implicar um manifesto prejuízo, resultante de não apresentação em tempo de requerimento para abertura de instrução, nomeadamente para o arguido que não requereu ainda a abertura de instrução, por confiar, legitimamente; poder apresentar o respectivo requerimento até ao termo do prazo que começasse a correr em último lugar.
11 - A obrigatoriedade dessa notificação, a realizar oficiosamente pela secretaria, resulta do disposto nas normas conjugadas dos artigos 111.º, n.º 1, alínea c), 112.º, n.º 3, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, e do artigo 229.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, este aplicável por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.
12 - Como acentua o douto acórdão fundamento, entendimento oposto - no sentido de o prazo para requerer a abertura de instrução começar a correr a partir da data da prolação do despacho do Ministério Público proferido nos termos do artigo 283.º, n.º 5, 2.ª parte - contraria o princípio fundamental das garantias de defesa, conformador do processo penal e com tutela constitucional no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, afrontando os princípios do contraditório e do «processo equitativo», na dimensão do «justo processo».
13 - Sempre que o Ministério Público determine o prosseguimento dos autos, ao abrigo da norma do artigo 283.º, n.º 5, 2.ª parte, o prazo de 20 dias para requerer a abertura de instrução, previsto no artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, corre a partir da notificação desse despacho aos sujeitos processuais anteriormente notificados da acusação.
É neste sentido que deve ser fixada jurisprudência.
E - Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
F - Sobre a oposição de julgados:
Uma vez que a decisão havida na secção criminal sobre a questão preliminar da verificação da oposição de julgados não vincula o pleno das secções criminais há que reapreciar essa questão.
Apreciando:
Quer do acórdão recorrido proferido no processo 40/06.6JBLSB - F. L. 1 da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, provindo do 2.º Juízo Criminal do Tribunal do Seixal, quer do acórdão fundamento proferido em 7 de Outubro de 2004 no processo 6205/2003-9, da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, provindo do 3.º Juízo do TIC de Lisboa, a questão fáctica é idêntica, e assenta em despacho proferido pelo Ministério Público a ordenar o prosseguimento dos autos nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP, em processo com vários arguidos, por ineficácia de procedimentos de notificação da acusação a algum deles, estando subjacente o entendimento de que, sem esse despacho, não poderá iniciar-se o prazo da abertura de instrução requerida por qualquer arguido já notificado da acusação, ao abrigo do disposto no artigo 113.º, n.º 12, do CPP.
Essa identidade fáctica gerou decisão jurídica oposta.
A questão de direito está em saber se, ao arguido notificado da acusação, em processo em que o seu co-arguido não foi notificado da acusação, deve ou não ser dado conhecimento do despacho proferido pelo Ministério Público de que o processo prosseguirá nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP, entendendo-se que, só então, a partir do conhecimento desse despacho, teria início o (seu) prazo de 20 dias para requerer a abertura de instrução.
O acórdão recorrido decidiu que o prazo para os arguidos que já estavam notificados da acusação requererem a abertura da instrução inicia-se com a prolação do despacho do MP a determinar o prosseguimento do processo sem esperar pela notificação dos outros arguidos, e não da notificação desse despacho, até porque esta notificação não deve ser feita (por falta de base legal para o efeito).
Por sua vez o acórdão fundamento decidiu no sentido de que deve ser dado conhecimento ao arguido (no processo em que algum co-arguido não foi notificado da acusação) de que o processo prosseguirá nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP, iniciando-se só então o (seu) prazo de 20 dias para requerer a abertura de instrução.
Ambos os acórdãos - recorrido e fundamento - assentaram em soluções de direito opostas e no domínio da mesma legislação, sobre situação de facto idêntica.
Assim, confirma-se a oposição entre os julgados.
G - A questão:
A questão que nos ocupa, como foi configurada, pretende relacionar-se com o início da contagem do prazo para o arguido já notificado da acusação requerer a abertura de instrução, em processo com vários arguidos, em que a notificação de algum deles da acusação se revelou ineficaz e, por isso, o MP mandou prosseguir os autos nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal (CPP).
Consiste desde logo em saber se o despacho do Ministério Público a ordenar o prosseguimento dos autos nos termos do n.º 5 do artigo 283.º do Código de Processo Penal (CPP), por ineficácia de procedimentos de notificação de um ou mais arguidos, da acusação deduzida, deve ou não ser notificado aos arguidos que já tenham sido notificados dessa acusação para que estes possam beneficiar do prazo de requerimento da abertura de instrução nos termos do artigo 113.º, n.º 12, do CPP.
A configuração da questão, na abrangência do seu objecto, convoca ainda uma analítica solucionadora de outras questões subjacentes integrantes, a saber:
Como interpretar o disposto no artigo 113.º, n.º 12, do CPP;
Como se delimita o prazo do requerimento de abertura de instrução, decorrente da interpretação conjugada do disposto nos artigos 283.º, n.º 5, 287.º, n.º 6, e 113.º, n.º 12, do CPP.
Em síntese: quando se inicia o prazo para requerer a abertura de instrução em processo com vários arguidos em que se revelou ineficaz a notificação de um - ou vários - deles, da acusação, encontrando-se, porém, outro ou outros arguidos, dela notificados, embora em datas diferentes? H - A jurisprudência:
Percorrendo a jurisprudência portuguesa sobre a temática, há várias posições não consentâneas, que sinteticamente se referenciam:
I - Uma delas na esteira do acórdão recorrido - v. entre outros, Acórdão da relação do Porto de 23 de Outubro de 2002, processo 714/02, in Colectânea de Jurisprudência, t. iv/2002, 2002, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6 de Fevereiro de 2007, processo 2969/06-I, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28 de Outubro de 2003, processo 1968/03-1, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Fevereiro de 2007, processo 8644/2006-5.º - in www.dgsi.pt - entende que: O início do prazo para requerer instrução, na hipótese de, havendo vários arguidos, uns já notificados da acusação e outros não, o MP determinar o prosseguimento do processo, nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP, por considerar que os procedimentos de notificação dos não notificados se revelaram ineficazes, não está (mas devia estar) regulado nas normas que decorrem dos n.os 1 e 6 do artigo 287.º e 12 do artigo 113.º, também do CPP. Lacuna legal esta, que deve ser integrada, por ser possível, com recurso à aplicação analógica de disposições do CPP, ou seja, no caso, com a aplicação da regra, que resulta daqueles normativos legais, de que o prazo se inicia com a ocorrência de um facto (notificação do último arguido) e não com a notificação desse facto.
Donde, o prazo - para os arguidos, que já estavam notificados da acusação, requererem a abertura da instrução inicia-se com o despacho do MP a determinar o prosseguimento do processo sem esperar pela notificação dos outros arguidos, e não da notificação desse despacho, até porque esta notificação não deve ser feita (por falta de base legal para o efeito).
II - Outra, na linha do acórdão fundamento - v. entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Junho de 2001, publicado na Colectânea de Jurisprudência, 2001, iii, pp. 147 e segs., Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Outubro de 2002, in Colectânea de Jurisprudência, 2002, iv, pp. 214/215, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28 de Outubro de 2003, sumariado sob o n.º 1968/03-1, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6 de Fevereiro de 2007, publicado sob o n.º 2969/06-1, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Outubro de 2004, publicado sob o n.º 6205/2003-9 - in www.dgsi.pt -, considera: Deve ser dado conhecimento ao arguido (no processo em que o co-arguido não foi notificado da acusação) de que o processo prosseguirá nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP, iniciando-se só então o (seu) prazo de 20 dias para requerer a abertura de instrução.
III - Outra ainda, - v. entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20 Novembro 1996 (referência n.º 10160/1996) processo 732/96, Colectânea de Jurisprudência, t. v/1996, 1996, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Maio de 1997, com número convencional JTRL00010115, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Setembro de 1997, com o número convencional JTRL00019547, publicados in www.dgsi.pt, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Maio de 1997 (referência n.º 10006/1997) processo 2965 in Colectânea de Jurisprudência, t. iii/1997, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de Junho de 2007 (referência n.º 7897/2007), processo 4464/07-9, in Colectânea de Jurisprudência, n.º 199, t. iii/2007 (Maio/Julho) - entende que:
Havendo dois ou mais arguidos no mesmo processo e não tendo sido todos notificados da acusação na mesma data, o prazo previsto no artigo 287.º, n.º 1, do CPP não sofre qualquer alteração, ou seja, a abertura da instrução só pode ser requerida por cada um dos arguidos no prazo peremptório de 20 dias a contar da respectiva notificação da acusação (reduzido para 10 dias no caso de processos por crimes de liberdade de imprensa), não beneficiando da notificação tardia de outros, para efeitos de poderem ainda requerer a abertura da instrução.
IV - Uma outra, conforme Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Maio de 1996, com o número convencional JTRP00017965, e de 9 de Fevereiro de 2000, com o número convencional RP200002090040031, in www.dgsi.pt - formula o entendimento de que: Quando terminar em dias diferentes o prazo para os arguidos requererem a abertura da instrução, o requerimento de todos ou de cada um deles pode ser apresentado até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar, sendo irrelevante que o arguido cujo prazo começou a correr em último lugar tenha apresentado o seu requerimento antes de ter sido notificado.
I - Fundamentação:
Análise crítica e posição a adoptar:
1 - Ambos os acórdãos, recorrido e fundamento, fundamentam-se implicitamente no mesmo denominador comum, o exercício do direito de defesa, se bem que no acórdão recorrido com apelo à iniciativa processual do interessado no preenchimento de uma lacuna legal e, no acórdão fundamento, convocando os princípios da legalidade e do processo equitativo na dimensão do processo justo.
Diz-se a dado passo no acórdão recorrido:
«Quando há vários arguidos, qualquer um deles pode ir esperando pela notificação do último para, quando esta ocorrer, requerer então a abertura da instrução usando o prazo do último.
Como não há qualquer norma que imponha a notificação a cada um dos arguidos da notícia da data em que ocorreu a notificação do último e como é preciso, para que os arguidos aproveitem deste tipo de prorrogação do prazo, que saibam quando é que tal ocorreu, não lhes resta outra solução que a de ir consultando o processo à espera desse momento. [...] para a hipótese prevista na lei existe uma solução legal: o facto 'notificação do último arguido' não é notificado aos outros arguidos (não há jurisprudência ou doutrina que defenda o contrário; ninguém diz que o MP tem de notificar aos arguidos já notificados a ocorrência da última notificação). São eles que têm de ir consultando o processo para dela ter conhecimento se se quiserem aproveitar da prorrogação do prazo para requererem a abertura da instrução.» Por sua vez refere-se no acórdão fundamento:
«Dispõe claramente a lei que o arguido notificado da acusação tem o direito de praticar o acto até ao termo do prazo que começar a correr em último lugar.
Ora, a existência de co-arguido no processo, que além do mais prestou TIR (embora na redacção anterior à vigente), é susceptível de criar expectativas, legais e legítimas, de tempestividade no exercício do direito, na situação em causa.
A recorrente contava com a notificação do co-arguido como acto de extensão do (seu) prazo. Porque a lei o prevê, expressamente. Ou seja, era-lhe legítimo confiar em tal prazo 'alargado'.
Não pode ficar prejudicada pelo facto de o tribunal não ter logrado efectuar essa notificação, sob pena de intolerável diminuição das garantias de defesa.» Quid juris? 2 - Os acórdãos em confronto, partem do pressuposto, algo axiomático, de que o despacho do Ministério Público a ordenar o prosseguimento dos autos, após ineficácia dos procedimentos de notificação, é conditio sine qua non da contagem do prazo para abertura de instrução requerida, cujo início verificar-se-ia, ou a partir do momento da prolação desse despacho ou, da respectiva notificação.
Quod erat demonstrandum.
O referido entendimento alicerça-se em que a Lei 59/98, de 25 de Agosto, ao admitir expressamente a possibilidade de todos os arguidos aproveitarem o prazo decorrente da última notificação do co-arguido (prazo que terminaria em último lugar), não terá considerado a necessidade de regular expressamente a aplicação - ou a inaplicabilidade - do referido n.º 5 do artigo 283.º aos casos em que não fosse possível notificar a acusação a algum dos arguidos.
Dá o mesmo entendimento como assente que, quando o processo prosseguir nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP., é a partir do despacho que o ordene, que se conta o prazo para requerer a abertura da instrução, pois que, a não ser assim, se um arguido notificado da acusação aguardasse pela última notificação de um dos seus co-arguidos, a qual, consequentemente, desencadearia o prazo para ele próprio requerer a abertura da instrução, nos termos previstos no n.º 12 do artigo 113.º do CPP, esta norma ficaria reduzida à situação em que todos os co-arguidos são notificados antes da remessa dos autos para julgamento.
O n.º 12 do artigo 113.º do CPP teria vindo permitir uma defesa conjunta, em caso de pluralidade de arguidos, mas o novo regime legal operado pelo artigo 283.º, n.º 5, não terá definido qualquer regra sobre o início do prazo de requerimento da abertura de instrução na situação em que algum ou alguns dos co-arguidos não são notificados da acusação, prosseguindo os autos nos termos previstos no artigo 283.º, n.º 5, 2.ª parte, do CPP.
3 - Jurisprudência que navega nas águas do acórdão recorrido, pretende ver em tal despacho uma desistência de esperar pela notificação dos co-arguidos que ainda não foram notificados da acusação, e, estriba-se no raciocínio de que, como a norma (o n.º 5 do artigo 283.º) não prevê o início do prazo de requerimento de abertura de instrução para aqueles que quisessem aproveitar o prazo do último, estar-se-ia perante uma lacuna, a preencher com o disposto no artigo 486.º, n.º 2, do CPC, que dispõe: «quando termine em dias diferentes o prazo para a defesa por parte dos vários réus, a contestação de todos ou de cada um deles pode ser oferecida até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar.» em que teria de fazer-se equivaler esse despacho à notificação do último arguido.
Outros entendem que inexiste situação análoga, e na impossibilidade de recorrer à aplicação subsidiária das regras do CPC, a resolução do caso passaria pela formulação de uma regra (aquela que o intérprete criaria se houvesse que legislar dentro do espírito do sistema - artigo 10.º, n.º 3, do CC) «no sentido de se notificar ao arguido já notificado da acusação» o despacho que ordene o prosseguimento dos autos quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes.
4 - O Código de Processo Penal resultante da Lei 43/86, de 26 de Setembro, e do Decreto-Lei 78/87, de 17 de Dezembro, referindo-se à acusação pelo Ministério Público, dispunha no artigo 283.º, n.º 5: «É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 277.º, n.º 3».
O n.º 3 do artigo 277.º determinava: «O despacho de arquivamento é comunicado ao arguido, ao assistente, ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e às partes civis. A comunicação ao arguido e ao assistente é feita por notificação, nos termos do artigo 113.º, n.º 1».
O artigo 113.º, n.º 1, estabelecia que as notificações efectuavam-se por contacto pessoal, via postal e editais e anúncios, nos termos previstos nas respectivas alíneas do preceito.
Por sua vez a instrução podia ser requerida no prazo de cinco dias a contar da notificação ou do arquivamento, conforme o n.º 1 do artigo 287.º Com a lei de autorização legislativa n.º 90-B/95, de 1 de Setembro, a que se seguiu o Decreto-Lei 317/95, de 28 de Novembro, foi alterado o n.º 1 do artigo 287.º, podendo a abertura de instrução ser requerida no prazo de 20 dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento.
Na sequência da exposição de motivos da proposta de lei 157/VII, o Código de Processo Penal veio a ser alterado pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, que aditou ao artigo 283.º a actual redacção do n.º 5.º e ainda o n.º 6 do artigo, dispondo este número: «As comunicações a que se refere o número anterior efectuam-se por notificação mediante contacto pessoal ou via postal registada.» A mesma Lei 59/98 aditou ainda o n.º 6 ao artigo 283.º, que dispõe: «É aplicável o disposto no artigo 113.º, n.º 10».
Na sequência da mesma proposta de lei, que visava também aperfeiçoar o regime de notificações, a Lei 59/98 alterou o artigo 113.º, introduzindo, além do mais, o n.º 10, do seguinte teor:
«Nos casos expressamente previstos, havendo vários arguidos ou assistentes, quando o prazo para a prática de actos subsequentes a notificação termine em dias diferentes, o acto pode ser praticado por todos ou por cada um deles até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar.» Posteriormente, a Lei 27-A/2000, de 17 de Novembro, veio autorizar alterações ao CPP, e, no uso dessa autorização legislativa, foi publicado o Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro, que procedeu a diversas alterações ao CPP, entre as quais a do n.º 6 do artigo 283.º que passou a constar:
«As comunicações a que se refere o número anterior efectuam-se mediante contacto pessoal ou por via postal registada, excepto se o arguido e o assistente tiverem indicado a sua residência ou domicílio profissional à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia, ou que os ouvir no inquérito ou na instrução, caso em que são noticiados mediante via postal simples, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, alínea c).» Por sua vez, o conteúdo do n.º 10 do artigo 113.º passou ipsis verbis, a integrar o n.º 12 do preceito.
A Lei 48/2007, de 28 de Agosto, harmonizou o n.º 6 do artigo 287.º com o n.º 12 do artigo 113.º, cujas redacções não foram alteradas pela Lei 26/2010, de 30 de Agosto.
5 - No regime anterior à Lei 59/98, o Acórdão para fixação de jurisprudência de 25 de Maio de 1992 do Plenário das secções criminais deste Supremo (1) - tinha vindo decidir:
«Deduzida acusação, a mesma tem de ser notificada ao arguido nos termos dos artigos 283.º, n.º 5, 277.º, n.º 3, e 113.º, n.º 1, alínea c), todos do CPP.
Caso se verifique que aquele está ausente em parte incerta, a notificação a fazer-lhe será a edital prevista naquele artigo 113.º, n.º 1, alínea c), prosseguindo depois o processo para a fase de julgamento.» Havia assim sempre lugar a notificação edital da acusação ao arguido ausente em parte incerta, após o que se iniciava o decurso do prazo para requerer abertura de instrução - e só depois de todos os arguidos terem sido notificados da acusação, ainda que editalmente, o processo seguiria para a fase de julgamento.
A Lei 59/98, porém, não contemplava a notificação edital da acusação no n.º 4 do artigo 277.º do CPP, a qual só ocorreria se não fosse possível notificar o arguido sujeito a termo de identidade, residência do despacho que designa dia para julgamento, conforme o artigo 334.º, n.º 3, do mesmo diploma adjectivo.
Já o Acórdão do Tribunal Constitucional de 20 de Outubro de 1999, processo 386/99 (2), se pronunciara no sentido de não ser inconstitucional a norma constante do artigo 283.º, n.º 5, in fine do Código de Processo Penal (conjugada com os artigos 283.º, n.º 6, e 336.º, n.º 3, do mesmo Código), interpretada no sentido de que a acusação que não pode ser notificada ao arguido mediante contacto pessoal ou via postal registada não lhe devia ser notificada por editais.
Como referiu o mesmo Tribunal no Acórdão 54/2000, de 3 de Fevereiro, processo 935/98, 2.ª Secção:
«Recorde-se, aliás, que se a solução segundo a qual, revelando-se ineficazes os procedimentos de notificação da decisão acusatória mediante contacto pessoal ou por carta postal registada, o processo prosseguirá, foi explicitamente consagrada na reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, eliminou-se agora a possibilidade de notificação edital (cf. a nova redacção dos artigos 283.º, n.º 5, e 277.º, n.º 3, daquele diploma) e previu-se mesmo (artigo 336.º, n.º 3) que, tendo o arguido sido declarado contumaz, quando se apresentar ou for detido, se o processo tiver prosseguido, é notificado da acusação, podendo então requerer abertura de instrução no prazo normal.» Na verdade, disse também o Tribunal Constitucional no seu Acórdão 583/99, de 20 de Outubro, processo 386/99, «antes de mais, a notificação edital é um meio muito pouco apropriado para fazer chegar a acusação ao efectivo conhecimento do arguido: só excepcionalmente, mesmo, ela cumprirá essa função; e, por isso, só excepcionalmente também, a notificação edital servirá de garantia de defesa. Acresce que, impor a notificação edital da acusação ao arguido, só faria sentido, se o prazo para ele requerer a abertura de instrução devesse contar-se a partir do momento em que tal notificação se considerasse efectuada».
Foi, de resto, por essa razão, que, nesse aresto, este Tribunal julgou inconstitucional - por violação do princípio das garantias de defesa - a norma resultante da conjugação do n.º 5 do artigo 283.º com o n.º 3 do artigo 277.º e com a alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º , todos do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei 59/98, de 25 de Agosto, enquanto interpretados - em aplicação da jurisprudência fixada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Março de 1992 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 10 de Julho de 1992) - no sentido de permitir, «no caso de notificação edital ao arguido da acusação, que se conte a partir do momento em que se considera efectuado o prazo para requerer a abertura da instrução».
A notificação edital da acusação veio a ser eliminada pela introdução do n.º 6 do artigo 283.º do CPP pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, na redacção operada pelo Decreto-Lei 320-C/2000, de 15 de Dezembro.
6 - A questão fulcral do objecto da questão a decidir implica agora esta pergunta: Será que as normas legais vigentes resolvem a questão objecto da presente decisão ou haverá caso omisso? 6.1 - A problemática da integração de lacunas é definida pelo artigo 4.º do Código de Processo Penal (CPP), explicitando que: «Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas próprias do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.» Todavia, para que possa recorrer-se à analogia torna-se necessário que não haja disposição legal que preveja o caso concreto, que a questão a decidir não se encontre já regulada por uma qualquer norma jurídica do sistema, não apenas segundo a letra, mas também segundo o sentido lógico dessa norma e que, na essência, haja igualdade jurídica, entre o caso a regular e o caso regulado (3).
6.2 - O processo penal como encadeamento sucessivo e finalístico de actos processuais, vinculado a normas legais, pressupõe na interpretação destas e, na integração das suas lacunas, uma dupla funcionalidade estrutural, quer na valoração de admissibilidade ou inadmissibilidade das condutas assumidas no processo, quer no alcance ou determinação dessas condutas consideradas processualmente admissíveis.
A interpretação da lei consiste em descobrir o sentido substancial da norma legal balizada de um lado pela finalidade do processo, convocando argumentação axiológica e teleológica da norma e, de outro lado, pela obediência interpretativa à conformidade constitucional.
Poderá questionar-se o âmbito do recurso à analogia em processo penal, nomeadamente se, face ao princípio da legalidade consubstanciado nos artigos 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), não estará vedado por eventualmente esse recurso poder criar risco para a liberdade do arguido.
Não há consenso sobre a matéria, mas, segundo Figueiredo Dias (4), ele fica vedado «na medida imposta pelo conteúdo de sentido do princípio da legalidade, e portanto, sempre que o recurso venha a traduzir-se num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos «processuais» do arguido (desfavorecimento do arguido, analogia «in malam partem»).
Compreende-se o recurso a normas do processo civil, por já existirem objectivamente sedimentadas, conferindo certeza e segurança, mas, sempre com o devido cuidado de aplicação, atentas as diferenças de estrutura e funcionalidade entre as normas processuais penais e civis.
Já os princípios gerais do processo penal traduzem a normatividade constitucional sobre o processo penal.
6.3 - Embora ambos os direitos - processual penal e processual civil - sejam instrumentais e públicos, e enquanto integrados em sistema de justiça pública orientam-se e submetem-se ao princípio da legalidade, porém, a relação jurídico-processual civil desenvolve-se sobre a base do princípio da auto-responsabilidade das partes temperado com o poder de iniciativa do juiz, em que os poderes e deveres são exercidos «dentro de certos prazos, limites de tempo ou fases do processo, sob pena de preclusão, é ainda a necessidade de harmonia, ligada à de dinamismo e celeridade, que impõe estes condicionantes temporais do processo (princípio da preclusão)» (5).
Em processo civil a falta de articulado de defesa determina consequências legais próprias.
Por isso se compreende o disposto no artigo 486.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC).
Em processo penal, a instrução é meramente facultativa, pelo que a aplicação do artigo 486.º, n.º 2, do CPC ao processo penal, não se harmoniza com o exercício do direito de defesa nesta área processual.
Mesmo a contestação em processo penal como explicitação do direito de defesa, traduzindo o exercício escrito do contraditório ou impugnação à acusação formulada no processo, não é obrigatória, ou seja, da sua falta não derivam consequências legais de afectação da posição do arguido na decisão do pleito.
O artigo 315.º do CPP refere a propósito:
«1 - O arguido, em 20 dias a contar da notificação do despacho que designa dia para a audiência, apresenta, querendo, a contestação [...]» Como refere a Dig.ma Procuradora-Geral-Adjunta em suas doutas alegações:
«Em processo penal, o requerimento para abertura de instrução e a contestação não assumem o mesmo carácter de peça estruturante que, como é sabido, a contestação constitui em processo civil. Bastará recordar a inexistência, em processo penal, do ónus de impugnação consagrado no artigo 490.º do Código de Processo Civil e a amplitude dos poderes de averiguação que assistem ao juiz de instrução e ao juiz do julgamento.
Contudo, o legislador processual penal entendeu que os interesses dos arguidos e assistentes, no exercício do direito de defesa daqueles e da acção conformadora, de uns e de outros, do sentido da decisão final, ficariam melhor salvaguardados com as normas dos artigos 285.º, n.º 6, e 315.º, n.º 1, 2.ª parte, [do CPP].» Em processo penal, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque (6), «o artigo 113.º regula exaustivamente a notificação, incluindo a das partes civis (artigo 113.º, n.º 9), pelo que não é aplicável o disposto no artigo 486.º, n.º 2, do CPC».
Os requerimentos para instrução e para contestação têm pois conotação e natureza juridicamente diferentes, sendo que a instrução pode ser requerida por arguidos mas também, por assistentes, na hipótese prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º do CPP.
Aliás, a contestação é privativa dos arguidos, concretizando o exercício do seu direito de defesa.
Por outro lado, se os termos do requerimento para a abertura de instrução constam do artigo 287.º do CPP, a contestação está prevista no artigo 315.º do mesmo diploma, o que arreda desde logo um regime equiparável de aplicabilidade em processo penal do preceituado no n.º 2 do artigo 486.º do C.
P. Civil.
Acresce que a defesa de qualquer arguido ao ser de natureza pessoal é, por isso, intuitus personae, não necessária e simetricamente idêntica para outros co-arguidos, sem prejuízo da eventual existência de defesa conjunta, em comparticipação.
O processo penal fundamenta-se na culpa do agente, não tendo por objecto uma questão necessariamente susceptível de valoração patrimonial, pois que não dirime interesses particulares, não define direitos, à semelhança do processo civil, mas explicita-se como dimensão adjectiva das finalidades de protecção de bens jurídicos de cariz e relevo comunitários, e por isso de natureza pública, integrantes do direito substantivo - o Direito Penal.
6.4 - Constituem finalidades do processo penal: a realização da justiça e a descoberta da verdade material, pelo uso de provas legalmente admissíveis, produzidas de forma legalmente válida, com respeito e protecção dos direitos fundamentais das pessoas, de forma a encontrar-se o restabelecimento da paz jurídica da comunidade pela reposição da confiança comunitária na norma violada, sem prejuízo da concordância prática na harmonização de eventuais problemas concretos em conflito, e tendo sempre em conta a conformação definida pelo ordenamento jurídico-constitucional.
Se é função do direito penal proteger os bens jurídicos fundamentais da comunidade, necessário se torna que o Estado realize oficiosamente essa tarefa, incumbindo-lhe a promoção processual para alcançar tal finalidade.
Esta actuação oficiosa está prevista no CPP:
Assim, o artigo 262.º, n.º 2, do CPP determina: «Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito.» (7).
«O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre acusação» - n.º 1 do mesmo preceito.
O Ministério Público pratica os actos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no artigo 262.º, n.º 1, nos termos e com as restrições dos artigos seguintes - artigo 267.º do CPP (8).
6.5 - A obrigatoriedade legal de actuação do Ministério Público vincula-o, porém, ao princípio da legalidade, ao dever definido e limitado na lei, que não a qualquer juízo de oportunidade como fundamento geral da sua actuação, e, sem prejuízo de, mesmo a nível do princípio da legalidade, a actuação processual do Ministério Público ser, por regra, susceptível de fiscalização e controlo.
Embora possa haver excepções específicas ao princípio da legalidade, como por exemplo o instituto da suspensão provisória do processo - artigo 281.º do CPP -, em que a decisão de suspensão nem é susceptível de impugnação, o certo é que, em bom rigor, ainda aqui o princípio da oportunidade se encontra limitado no seu objecto pelo princípio da legalidade - atentos os pressupostos e limites - e, na instância, pela concordância de um magistrado judicial (o juiz de instrução), sendo certo, aliás, que o seu fundamento ou ponto de partida tem sempre por referência o princípio da legalidade.
Um juízo de oportunidade traduz um juízo discricionário.
Mas, como salienta Figueiredo Dias: (9) «Ponto é que não se esqueça que poder discricionário não é sinónimo de arbítrio, mas concessão de uma faculdade que deve ser utilizada em direcção ao fim que a própria lei teve em vista ao concedê-la - no caso a preservação, em último termo, dos verdadeiros interesses da comunidade jurídica e dos valores prevalentes nela;
e que não se esqueça ainda que um dos valores prevalentes no processo penal é o asseguramento da esfera dos direitos da personalidade das pessoas, que através do princípio da oportunidade pode ser facilmente posta em cheque.» 6.6 - Por outro lado, um juízo de oportunidade - juízo discricionário - não pode afastar o princípio da preclusão dos actos processuais.
A celeridade processual, a segurança jurídica e democratização do processo impõem de per se limites processuais à actuação quer das autoridades judiciárias, quer dos demais sujeitos processuais.
Seria mesmo inimaginável uma relação processual arbitrária ou aleatória, em que a prática dos seus actos componentes e demonstrativos da regularidade da instância, se operasse à deriva, sem modo e sem tempo, pois seria o caos e a insegurança jurídica, a inviabilização, enfim, de qualquer processo, assumido como conjunto de procedimentos legalmente definidos por regras próprias, válida e temporalmente exercidas de forma justa e coordenada.
É certo que o conceito de preclusão encontra-se ligado à própria concepção de processo, sem prejuízo de lhe estar inserido um sentido de continuidade, de progressão - procedere - de sucessão de fases para se atingir um objectivo.
Mas, quer a delimitação funcional de quem a ele preside, quer as regras que o compõem, são essenciais à finalidade de pacificação social ínsita a qualquer processo que se queira justo, e para isso, subordinam-se ao início, desenvolvimento e fim, em que há necessidade, como diz Stefano Riccio (10) «di un ordine logico processuale, che è il fondamento della preclusione.».
6.7 - Como se sabe, os actos decisórios do Ministério Público tomam a forma de despachos, revestindo os requisitos formais dos actos escritos ou orais, consoante o caso, são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão - artigo 97.º, n.os 3, 4 e 5, do CPP.
Porém, como refere Maia Gonçalves (11): «os despachos de mero expediente, ou seja os que se destinam a regular, de harmonia com a lei, os termos e o andamento do processo, continuarão a ser assim designados, pois este normativo [artigo 97.º] não nos diz que só os actos decisórios nele enumerados podem ter a designação de despachos.
E, porque tais despachos (de mero expediente) não são actos decisórios, não terão, consequentemente, que ser fundamentados.» Em sentido idêntico salienta Germano Marques da Silva (12): «Os actos decisórios do Ministério Público revestem sempre a forma de despachos, mas também os actos não decisórios do MP revestem a forma de despachos.» Na verdade, já o Prof. José Alberto dos Reis (13) ensinava que os despachos de mero expediente são aqueles que se destinam a regular, de harmonia com a lei, os termos do processo, e que assim não são susceptíveis de ofender os direitos processuais das partes ou de terceiro.
Também Artur Anselmo de Castro (14) esclarece:
«Os despachos podem ser decisórios (vinculados ou discricionários) e não decisórios ou de mero expediente.
Despachos decisórios são os que, como o seu próprio nome sugere, decidem qualquer dúvida suscitada no processo [...]. Os não decisórios ou de mero expediente destinam-se em regra a ordenar os termos do processo, deixando inalterados os direitos das partes [...]» 6.8 - O despacho do Ministério Público a ordenar o prosseguimento dos autos, nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP, não aprecia nem decide qualquer situação de direito material, nem envolve um juízo discricionário fundamentado em juízo de oportunidade de actuação, a nível processual, nem tal despacho se destina, nem por via dele resulta, a alteração da normalidade do processo, outrossim surge na sequência de conformação legislativa reguladora da instância processual penal.
O facto de esse despacho não se encontrar vinculado a prazo peremptório de concretização (pois depende do resultado das diligências de notificação), não significa, porém, qualquer alteração da normalidade do funcionamento do processo, que aliás, seria inadmissível, face à obediência ao princípio da legalidade; outrossim se revela tal despacho no desenrolar normal do processo, na sequência do previsto nos n.os 5 e 6 do artigo 283.º do CPP, perante as circunstâncias concretas inviabilizadoras da notificação da acusação.
Face às circunstâncias concretas da não notificação, o Ministério Público não prescinde da notificação em falta, pois que não lhe incumbe qualquer juízo de oportunidade, limita-se apenas a cumprir a lei fazendo prosseguir a instância, atenta a ineficácia dessa notificação, nos termos determinados pelo no n.º 5 do artigo 283.º do CPP.
6.9 - Quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes, são os casos em que se frustre a notificação nos termos do citado n.º 5 do artigo 283.º, na redacção actual, ou seja, quando não for possível a notificação da acusação quer por contacto pessoal por o arguido se encontrar em parte incerta, quer por via postal registada, por o arguido não ter morada certa, quer ainda por via postal simples por o notificando não ter indicado a sua residência ou domicílio profissional à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia ou que os ouvir no inquérito ou na instrução, v. o citado n.º 6 do artigo 283.º do CPP.
Quando estes procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes, o processo prossegue sem essa notificação ao arguido (cf. o citado artigo 283.º, n.º 5); ou seja: num tal caso ela é apenas notificada ao advogado ou defensor do arguido, pois que tendo em conta o disposto no artigo 283.º, nos seus n.os 5 e 6, de harmonia com o n.º 3 do artigo 277.º do CPP., a acusação é notificada ao arguido, bem como, entre outros, ao respectivo defensor ou advogado, e se o arguido não tiver advogado constituído nem defensor nomeado, é obrigatória a nomeação de defensor quando contra ele for deduzida a acusação, devendo a identificação do defensor constar do despacho de encerramento do inquérito, conforme o artigo 64.º, n.º 3, do CPP.
6.10 - Quando o processo prosseguir nos termos do mencionado artigo 283.º, n.º 5, parte final - portanto, sem o arguido ser notificado da acusação - ao notificar-se o despacho judicial de marcação do dia para julgamento ao arguido, notifica-se-lhe também a acusação, para o que aquele despacho deve ser acompanhado de cópia da mesma (cf. artigo 313.º, n.º 2, do mesmo Código), sendo então esta notificação ao arguido feita de harmonia com o n.º 3 do artigo 313.º A notificação do arguido e do assistente ao abrigo do número anterior tem lugar nos termos do artigo 113.º, n.º 1, alíneas a) e b), excepto quando aqueles tiverem indicado a sua residência ou domicílio profissional à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia ou que os ouvir no inquérito ou na instrução e nunca tiverem comunicado a alteração da mesma através de carta registada, caso em que a notificação é feita mediante via postal simples, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, alínea c).
Se depois de realizadas as diligências necessárias à notificação a que se refere o artigo 313.º, n.º 2, e 1.ª parte do n.º 3 - não sendo um dos casos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 334.º do CPP - não for possível notificar o arguido do despacho que designa dia para a audiência, ou executar a detenção ou prisão preventiva referidas nos artigos 116.º, n.º 2, e 254.º, ou consequentes a uma evasão, só então é que o arguido é notificado por editais para se apresentar em juízo, num prazo de 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz - artigo 335.º, n.º 1, do CPP.
A declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido, sem prejuízo do disposto nos n.os 2, 4 e 5 do artigo 58.º, e logo que se apresente ou for detido, o arguido é sujeito a termo de identidade e residência, sem prejuízo de outras medidas de coacção, observando-se o disposto nos n.os 2, 4 e 5 do artigo 58.º, n.os 1 e 2, do artigo 336.º A consequência processual do prosseguimento do processo quanto a arguido não notificado da acusação está prevista na lei.
Como bem assinala Paulo Pinto de Albuquerque (15): «A consequência processual do prosseguimento do processo é a prevista no artigo 336.º, n.º 3, no caso de o arguido se apresentar ou ser detido posteriormente.» Na verdade, como dispõe o artigo 336.º, n.º 3, do CPP, «se o processo tiver prosseguido nos termos da parte final do n.º 5 do artigo 283.º, o arguido [cuja contumácia cessou] é notificado da acusação, podendo requerer abertura de instrução no prazo a que se refere o artigo 287.º, seguindo-se dos demais termos previstos para o processo comum.» O requerimento de abertura de instrução feito por um arguido cuja situação de contumácia em que se encontrava cessou não afecta - atento o princípio da preclusão - os actos processuais já realizados relativamente aos arguidos não contumazes, uma vez que a fase do processo em que se desenrolou a contumácia o foi já na fase de julgamento, após o despacho que designa dia para a audiência.
Só a partir da fase de julgamento, a declaração de contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320.º - como determina o n.º 3 do artigo 335.º do CPP, pois que em caso de conexão de processos, a declaração de contumácia implica a separação daqueles em que tiver sido proferida.» - n.º 4 do preceito.
O despacho do Ministério Público a ordenar o prosseguimento dos autos nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP, prosseguimento esse para a fase de julgamento, se entretanto não vier a ser requerida a abertura de instrução, não é pois um despacho inovador, pois sujeita-se aos ditames do processo, nem afecta garantias de defesa, nem se destina a acautelar quaisquer expectativas processuais, nomeadamente relacionadas com o exercício do direito de defesa.
Esse despacho não cria nem afecta direitos materiais ou processuais, outrossim, é um despacho de expediente que se limita a ordenar o prosseguimento dos autos nos termos legais, «prosseguindo o processo quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes.».
7 - A questão interconexa e subjacente à jurisprudência a fixar, de determinação do início do prazo para ser requerida a abertura de instrução por arguidos dela notificados, situa-se assim a montante da fase do julgamento, pois que é pela ineficácia dos procedimentos de notificação da acusação a algum arguido que os autos prosseguem.
7.1 - Os critérios axiológicos da autonomia funcional do processo penal, expressos no Código de Processo Penal e como resulta do seu preâmbulo, não prescindem dos fins que este pretende realizar, nem das referências constitutivas supralegais e de cariz constitucional, incutidas pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos fundamentais.
Quando o Decreto-Lei 78/87, de 17 de Fevereiro, deu nova perspectiva estrutural ao modelo e conformação ordenadora do sistema processual penal, «apostado em maximizar e racionalizar o seu funcionamento» assentou numa estrutura acusatória temperada pela oficialidade investigatória, ou princípio de investigação oficiosa, «válido tanto para efeito de acusação como de julgamento» e «optou decididamente por converter o inquérito, realizado sob a titularidade e a direcção do Ministério Público, na fase geral e normal de preparar a decisão de acusação ou de não acusação», esteou-se, por outro lado, «no facto de todos os actos processuais que contendam directamente com os direitos fundamentais do arguido só devem poder ter lugar se autorizados pelo juiz de instrução, nalguns casos só por este podem ser realizados.» Tal modelo assumiu «a ideia mestra segundo a qual o processo penal tem por fim a realização de justiça no caso, por meios processualmente admissíveis e por forma a assegurar a paz jurídica dos cidadãos».
Todavia, embora tivesse em conta que «convém não esquecer a importância decisiva da distinção entre criminalidade grave e pequena criminalidade - uma das manifestações típicas das sociedades modernas», e «as situações em que a busca do consenso, da pacificação e da reafirmação estabilizadoras das normas, assente na reconciliação, vale como imperativo ético-jurídico», não erigiu a procura do consenso em valor incondicionado, nem se alheou das condicionantes endógenas entre as quais o desiderato histórico-processual penal português. «Procurou-se, com efeito, que a busca da inovação e da modernidade se não fizesse com sacrifício indiscriminado de instituições e de princípios que, apesar de tudo, devem ser preservados como sinais identificadores de uma maneira autónoma de estar no mundo, de fazer história e de criar cultura.» No Estado moderno de direito, democrático e social, com os valores e formas do modelo imanente, tendo em conta a experiência histórica e o estado actual do conhecimento, «seria ociosa qualquer demonstração das antinomias que medeiam entre, por exemplo, a liberdade e dignidade dos arguidos e a procura a todo o transe de uma verdade material, ou entre o acréscimo de eficiência da justiça penal e o respeito das formas ou ritos processuais que se apresentam como baluartes dos direitos fundamentais».
Na primeira linha dos trabalhos da reforma esteve a procura de uma maior celeridade e eficiência na administração da justiça penal.
«A rentabilização da realização da justiça é apenas desejada em nome do significado directo da eficiência para a concretização dos fins do processo penal: realização da justiça, tutela de bens jurídicos, estabilização das normas: paz jurídica dos cidadãos. A eficiência é, por um lado, o espelho da capacidade do ordenamento jurídico e do seu potencial de prevenção que, sabe-se bem, tem muito mais a ver com a prontidão e a segurança das reacções criminais do que com o seu carácter mais ou menos drástico.» 7.2 - A preocupação de agilização, simplificação ou desburocratização do processo, sem prejudicar a realização material da justiça e sem ofender as garantias, nomeadamente da defesa, dos sujeitos processuais envolvidos sempre foi uma constante legislativa na historicidade do processo penal português e dos respectivos intérpretes e aplicadores da lei.
Tal vertente assumiu-se matricialmente na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 157/VII, supracitada, alterando o Código de Processo Penal, que veio a dar origem à referida Lei 59/98.
Referia esta, além do mais:
«5 - A experiência de aplicação do novo Código de Processo Penal revela que, por razões várias, não foi possível alcançar, na prática, os objectivos de celeridade e eficácia prosseguidos pela reforma, o que, de alguma forma, contribuiu para, em análises menos rigorosas, se afirmarem dúvidas sobre o mérito do próprio modelo.
Desde a sua publicação se previu que o Código, ultrapassado o período inicial de vigência, deveria ser objecto dos ajustamentos indispensáveis, no sentido de se alcançarem na prática, em toda a sua extensão, os objectivos que inspiraram a reforma, adequando-se devidamente a lei em acção à law in book.
Ao longo dos seus quase 10 anos de vigência, algumas alterações foram introduzidas, de natureza pontual, a última das quais através do Decreto-Lei 317/95, de 28 de Novembro, com o objectivo essencial de adaptação à revisão do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 25 de Março.
Apesar destas alterações, e não obstante o esforço e empenhamento dos operadores judiciários, a justiça criminal continuou, por regra, a ser lenta e, em muitos casos, ineficaz.
Com efeito, essas alterações não atacaram os pontos de estrangulamento que têm contribuído para ineficácia e morosidade da justiça penal.
Impõe-se, assim, agir decididamente no sentido de restituir a confiança no sistema de justiça penal, para o que se torna necessário, a par de outras medidas, introduzir alterações no Código de Processo Penal em estrita e escrupulosa observância do quadro axiológico e normativo consagrado na Constituição, conferindo-lhe os aperfeiçoamentos adequados à prossecução da efectiva tutela da liberdade e da segurança, ao combate à criminalidade e à realização da justiça, que se pretende célere, eficiente e eficaz.» E, mais adiante, de forma expressiva, referiu no n.º 6:
«Neste quadro, a declaração de contumácia tem carácter meramente residual. Por um lado, abrange apenas aqueles que, não tendo prestado termo de identidade e residência, não foi possível notificar do despacho que designa dia para a audiência ou deter ou prender preventivamente para assegurar o comparecimento em audiência (artigo 335.º), e, por outro, é declarada uma só vez relativamente a cada arguido, já que, quando este se apresenta ou é detido, é sujeito a termo de identidade e residência, ficando legitimada a partir daí a audiência na sua ausência (artigo 336.º).
Saliente-se, ainda, que para uma maior eficácia destas soluções se consagra o prosseguimento do processo quando os procedimentos normais de notificação da acusação e da decisão de pronúncia se tenham revelado ineficazes (artigos 283.º, n.º 5, e 307.º, n.º 6), a designação de nova data para a audiência no despacho que designa dia para a primeira audiência, em caso de adiamento (artigo 312.º, n.º 2), a possibilidade de o arguido ser detido, nos termos do artigo 254.º, ainda que tenha faltado justificadamente à audiência (artigo 333.º, n.º 3), e um regime mais exigente quanto à justificação da falta (artigo 117.º).» «Por outro lado, não será difícil verificar que o regime do Código, globalmente considerado, redunda num considerável aumento e consolidação dos direitos processuais do arguido. Também aqui, de resto, o respeito intransigente pelo princípio acusatório leva o Código a adoptar soluções que se aproximam de uma efectiva 'igualdade de armas', bem como à preclusão de todas as medidas que contendam com a dignidade pessoal do arguido.» (preâmbulo do CPP, II.10.) 7.3 - A questão de fundo vai radicar sempre na garantia do exercício dos direitos de defesa, sendo certo que o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) determina: «O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.» «Todavia, este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal. Em 'todas as garantias de defesa' engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas.» (J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, ibidem, p. 516, II).
Mas, sendo isto assim, e parafraseando o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 583/99, de 20 de Outubro, processo 386/99, 3.ª Secção, como o arguido, se quiser requerer a abertura de instrução para infirmar a acusação, tem que o fazer no prazo de 20 dias a contar da data em que esta lhe for notificada (cf. artigo 287.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), a notificação da acusação acaba, por ser, ela própria, uma importante garantia de defesa.
Ou como se disse no supracitado Acórdão do mesmo n.º 54/2000, de 3 de Fevereiro, processo 935/98, do mesmo Tribunal, «somente a privação ao arguido da faculdade de requerer a abertura da instrução não pode ser considerada compatível com as garantias de defesa asseguradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.» 7.4 - A instrução tem carácter facultativo e «visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» (v. citado artigo 286.º).
Como se referiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 388/99, de 23 de Junho, processo 37/97, 2.ª Secção:
«A circunstância de se tratar de uma fase facultativa não pode levar a esquecer que é ao arguido (sem prejuízo da possibilidade de, em dadas condições, ela ser requerida pelo assistente) que cabe a faculdade de requerer ou não requerer a instrução. Sendo facultativa a realização de instrução, impõe-se a consideração de que é obrigatória a atribuição ao arguido do direito de decidir se pretende ou não requerê-la. [...] o facto de a instrução ser facultativa não implica que, por razões de celeridade, se justifique um prazo exíguo. Com efeito, a celeridade não é um valor que se sobreponha às garantias da defesa, nem que, neste caso, sirva, por si, as próprias garantias de defesa, pois sempre o arguido que deseje renunciar ao prazo previsto para a abertura de instrução poderá fazê-lo (como é, aliás, prática corrente nos tribunais criminais).
É assim, em suma, o próprio imperativo da construção das condições da presunção de inocência, inerente à consagração constitucional de um tal princípio, que impõe uma acentuação do valor garantístico das fases preliminares no processo penal e justifica que seja atribuída uma importância ao requerimento para a abertura da instrução que os requisitos formais não sugerem.» De resto, como afirmou o Cons. Vítor Nunes de Almeida na declaração de voto aposta ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 406/98, de 2 de Junho, processo 82/96, 1.ª Secção, a fase de instrução «não pode prolongar-se indefinidamente, mas não devem ser coarctados os direitos do arguido de pôr em causa a acusação. Há que haver prazos peremptórios e curtos para a abertura desta fase do processo, mas sem retirar a possibilidade de fazer a comprovação de que a acusação não tem fundamento [...]».
7.5 - Por outro lado, decorrente do princípio da presunção de inocência em articulação com o princípio da celeridade processual, ou da menor demora do processo, sem prejuízo das garantias de defesa, estabelece o n.º 2 do mesmo artigo 32.º da CRP, que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
Isto implica, com efeito, «não só que o processo criminal preveja, em princípio, a faculdade de o arguido provocar a comprovação judicial da acusação, como que os termos em que tal faculdade pode ser exercida não lhe retirem na prática consistência» (16), sem prejuízo da concordância prática com as demais axiologias funcionais processuais, entre as quais o direito ao processo célere.
O direito ao processo célere engloba no seu âmbito normativo o «princípio da aceleração do processo» articulado com o princípio da oralidade, imediação e concentração. Note-se, porém, que o «princípio da aceleração do processo» tem de ser compatível com as «garantias de defesa», o que implica a proibição do sacrifício dos direitos inerentes ao estatuto processual do arguido a pretexto da necessidade de uma justiça célere e eficaz («processos de urgência»).
Mas o direito ao processo célere é o reverso da demora do processo, o que pressupõe a submissão dos actos processuais a prazos de realização, o que por sua vez justifica o princípio da preclusão.
Como salientam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (17): «A demora do processo penal, além de prolongar o estado de suspeição e as medidas de coacção sobre o arguido (nomeadamente prisão preventiva) acabará por esvaziar de sentido e retirar conteúdo útil ao princípio da presunção de inocência. O direito ao processo célere é, pois, um corolário daquela. Esta garantia tem a ver não só com os prazos legais para a prática dos actos processuais mas também com a sua observância pelo próprio tribunal.» 7.6 - Por outro lado, ainda, o artigo 20.º da CRP, sobre acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, dispõe nos seus n.os 4 e 5:
«4 - Todos têm direito que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5 - Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.» Como escrevem os citados autores J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, (ibidem, p.415): «O due process positivado na Constituição Portuguesa deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa (exigência de um procedimento legislativo devido na conformação do processo), mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.» O fundamento da necessidade de um processo equitativo, usando expressões dos mesmos autores, «é o da conformação do processo de forma materialmente adequada a tutela judicial efectiva», em que o princípio da efectividade «se articula, com uma compreensão unitária da relação entre direitos materiais e direitos processuais, entre direitos fundamentais e organização e processo de protecção e garantia», entre os quais o princípio da adequação formal dos recortes ou conformações processuais definidos pelo legislador, de modo a banir situações processuais obstaculizantes da realização de justiça material, e evitar situações de indefesa.
Esse princípio da efectividade, em termos de tutela processual, interage com o direito à decisão da causa em prazo razoável, pressupondo a razoabilidade temporal da decisão a inexistência de dilações indevidas, em que o tempo processual ou dos actos processuais deve conformar-se de forma adequada à tempestividade dessa tutela.
Com salientam os mesmos autores, (18) «o sentido da razoabilidade do prazo aponta para a necessidade de a tutela jurisdicional dever assegurar-se em prazo côngruo».
A inobservância da razoabilidade temporal não pode ser assacada a eventuais deficiências ou omissões legislativas reguladoras do processo.
A questão do prazo ao ter a ver com a tutela efectiva e em tempo útil contra a ameaça ou violações de direitos, liberdades e garantias, entronca na constitucionalização de procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, que à lei incumbe assegurar para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais - citado no n.º 5 do artigo 20.º da CRP, reflectindo-se, além do mais, na formatação processual.
A «exigência» de um processo sem dilações indevidas (19) ou seja, de uma protecção judicial em tempo adequado, não significa necessariamente «justiça acelerada», a qual só seria materialmente injusta se se traduzisse em diminuição de garantias processuais e materiais.
8 - Desde o momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o exercício de direitos e deveres processuais, sem prejuízo da aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e de efectivação de diligências probatórias, nos termos especificados na lei - artigo 60.º do CPP.
Salvo disposição legal em contrário, é de 10 dias o prazo para a prática de qualquer acto processual - artigo 105.º do CPP.
Uma das disposições legais em contrário é a do n.º 1 do citado artigo 287.º do CPP, em que a abertura de instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento.
A definição da natureza do prazo é dada pelo artigo 145.º do Código de Processo Civil (nesta parte aplicável ex vi do artigo 4.º do CPP):
1) O prazo é dilatório ou peremptório;
2) O prazo dilatório difere para certo momento a possibilidade de realização de um acto ou o início da contagem de um outro prazo;
3) O decurso do prazo peremptório extingue o direito de praticar o acto.
Como refere Artur Anselmo de Castro (20): «Os prazos funcionam no processo como garantia do interesse público, na medida em que servem a celeridade da decisão dos litígios, e do interesse particular, assegurando às partes [aos sujeitos processuais] o tempo necessário para a afirmação e defesa dos seus direitos. Garantem, além disso, a coordenação dos diversos actos, sob um ponto de vista temporal, evitando assim, na colorida expressão de Redenti 'sopreposições, inversões, acavalamento de actos', garantindo 'a possibilidade de defesa e lealdade da contradição' e evitando 'que o processo se prolongue ao infinito.'» Enquanto o prazo dilatório, também conhecido por inicial ou suspensivo, define o momento a partir do qual o acto processual pode ser praticado ou ter início a sua execução, em que «o acto não pode, portanto, ser realizado antes do termo do prazo, tendendo este a interpor um certo espaço de tempo entre um acto processual e outros que possam seguir-se (terminus post quem ou ne ante quem)»; o prazo peremptório, também conhecido por final, extintivo ou resolutivo, estabelece o momento até quando o acto pode ser praticado, em que o prazo se assume como 'o período de tempo dentro do qual pode ser levado a efeito (terminus intra quem).
A fixação (legal ou judicial) de prazos peremptórios funciona como instrumento de que a lei se serve em ordem a levar as partes a exercer os poderes-ónus de que são titulares segundo um determinado ritmo. De facto, tais prazos, na medida em que o seu transcurso implica a impossibilidade de praticar o acto, exercem uma acentuada pressão psicológica sobre o sujeito, titular do poder-ónus, uma vez que este, para evitar a caducidade de tal poder, terá de adoptar um determinado comportamento processual e, consequentemente, praticar o acto dentro dos limites de tempo que lhe são assinalados - (idem, ibidem, p. 50).
Em tal teleologia radica, aliás, o supra aludido princípio da preclusão que se vai traduzir na regra do non bis in idem, na impossibilidade legal de repetição da mesma questão no mesmo processo, ou como refere o brocardo latino bis de eadem re ne sit actio.
Todo o direito adjectivo tem ciclos processuais, cada um com a sua finalidade própria e formando compartimentos estanques, dentro dos quais os actos respectivos devem ser praticados, sob pena de ficarem precludidos. É o chamado princípio da eventualidade ou da preclusão, que tem a ver com exigências de lealdade dos diversos sujeitos processuais e que visa impedir que algum deles use a táctica de reservar algum argumento apenas para quando o achar mais oportuno (21).
É precisamente a essencialidade do prazo enquanto meio processual de realização da justiça e salvaguarda dos direitos dos cidadãos que justifica uma forte e ponderosa razão para a limitação do prazo dos ciclos e actos processuais.
Quando um prazo peremptório se seguir a um prazo dilatório, os dois prazos contam-se como um só - artigo 148.º do CPC.
8.1 - O artigo 104.º, n.º 1, do CPP, determina: «Aplicam-se à contagem dos prazos para a prática de actos processuais as disposições da lei do processo civil.» Mas como salienta Maia Gonçalves (22), «A autonomia, que se procurou estabelecer até onde foi possível, do processo penal em relação ao processo civil, conjugada com o texto do n.º 1, onde se alude tão só à contagem de prazos, e não já à sua natureza, significa que em processo penal não há prazos dilatórios. Não existe pois qualquer dilação para o início da contagem de prazos em processo penal, os quais, salvo disposição em contrário, começam a correr a partir da notificação. Sucede até que, residindo o arguido fora da comarca onde o processo correr, deve indicar pessoa que, residindo nessa comarca, tome o encargo de receber as notificações que lhe devam ser feitas. Este normativo, constante do artigo 196.º, n.º 2, contém implícita a ideia de que não há prazos dilatórios, e não faria sentido com a co-existência desses prazos. Acresce que a rigidez deste sistema se encontra temperada no Código pelos dispositivos dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 107.º, mais favoráveis que os correspondentes do CPC.» Este entendimento tornou-se aliás, uniforme, com o Acórdão do Plenário das Secções Criminais deste Supremo Tribunal, de 6 de Dezembro de 1996, in Diário da República, 1.ª série-A, de 10 de Janeiro de 1996, que fixou jurisprudência no sentido de que: «A disciplina autónoma do processo penal em matéria de prazos prescinde da figura da dilação, pelo que a abertura de instrução tem de ser requerida no prazo peremptório, previsto no n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal.» Que o prazo em processo penal, é peremptório resulta do facto de o prazo processual marcado pela lei apenas ser prorrogável nos casos nela previstos - artigo 147.º, n.º 1, do CPP, e ainda do disposto no n.º 2 do artigo 105.º do CPP, ao dispor que: As secretarias organizam mensalmente rol dos casos em que os prazos se mostrarem excedidos e entregam-no ao presidente do tribunal e ao Ministério Público. Estes no prazo de 10 dias, contados da data da recepção, enviam o rol à entidade com competência disciplinar [...].
É uma razão de interesse público, ínsita à natureza de direito público que justifica o princípio da peremptoriedade e improrrogabilidade do prazo em processo penal.
Deste modo, quando a lei - artigo 287.º, n.º 1, do CPP - estabelece um prazo certo e determinado para ser requerida a abertura de instrução, acolhe os referidos princípios, bem como o princípio da celeridade processual na dimensão do processo justo, ou seja, objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (v. artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 2, da CRP).
Quando a lei consagra no n.º 1 do artigo 287.º que a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento, e, no n.º 6, que é aplicável o disposto no n.º 12 do artigo 113.º, não deixa de considerar a existência de um prazo peremptório, sem violação de direitos dos sujeitos processuais, nomeadamente do exercício do direito de defesa.
Deduzida a acusação, podem os arguidos requerer a abertura de instrução (artigo 287.º, n.º 1, alínea a), do CPP).
Não a requerendo, o processo seguirá para a fase de julgamento (artigo 311.º, n.º 2, do CPP).
9 - O n.º 12 do artigo 113.º do CPP pressupõe que todos os arguidos foram notificados da acusação, pois que se algum deles o não foi, apesar da notificação obedecer ao disposto no n.º 6 do artigo 283.º do CPP, e uma vez que não há lugar à notificação edital da acusação, prosseguirá o processo, sem prejuízo, do não notificado poder ficar sujeito ao disposto no artigo 334.º do CPP se for esse o caso, ou às regras conducentes à declaração de contumácia nos termos do artigo 335.º e segs. do CPP.
O n.º 6 do referido artigo 283.º, ao ser caso expressamente previsto, de harmonia como n.º 12 do citado artigo 113.º, significa que havendo vários arguidos ou assistentes, quando o prazo para a prática de actos subsequentes à notificação termine em dias diferentes, o acto pode ser praticado por todos ou por cada um deles, até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar, pressupondo assim, que se encontre a decorrer o prazo de requerimento de abertura de instrução de cada arguido notificado da acusação (ou de cada assistente, no caso de notificação do despacho de arquivamento), de forma que os prazos em curso possam confluir no último prazo a decorrer, iniciado após a (última) notificação da acusação (ou do despacho de arquivamento no caso de vários assistentes), antes de terminar o prazo de 20 dias relativamente a qualquer deles, iniciado após a respectiva notificação da acusação (ou do despacho de arquivamento quanto aos assistentes), isto é, pressupõe uma situação de simultaneidade de prazos a deorrer.
9.1 - Tendo em conta que a presente fixação de jurisprudência tem por objecto apenas o requerimento de abertura de instrução efectuado por arguidos, conclui-se que:
A partir do momento em que cada arguido é notificado da acusação, mantém-se a estabilidade da instância quanto a ele, sem prejuízo de poder beneficiar, por força do n.º 12 do artigo 113.º do CPP, do termo do prazo que ocorrer em último lugar - advindo da última notificação da acusação efectuada - se o seu prazo se encontrar ainda a decorrer.
Se o prazo de 20 dias tiver terminado antes, já não pode beneficiar deste prazo que ocorrer em último lugar precisamente porque o seu prazo terminou antes de o último prazo se ter iniciado.
Quando o artigo 287, n.º 6, do CPP manda aplicar o disposto no artigo 113.º, n.º 12, do mesmo diploma não está a referir-se àquele que, já notificado da acusação e com o prazo a decorrer, permitiu a preclusão da faculdade de requerer a abertura da instrução.
Outrossim, refere-se aos prazos que, embora com terminus em datas diferentes, se encontram ainda a decorrer.
Caso não se entendesse a interpretação da norma do artigo 113.º, n.º 12, do CPP como referente à simultaneidade de prazos em curso, tornar-se-ia inútil o disposto no artigo 287.º, n.º 1, do CPP, pois que bastaria notificar-se cada arguido da data em que o último arguido dela foi notificado para que se iniciasse então o prazo para ser requerida a abertura da instrução quanto a todos eles, ou por cada um deles, ou, por outro lado, face à existência da norma do artigo 287.º, n.º 1, do CPP, viriam a ser beneficiados todos os arguidos, menos o último notificado, de um prazo duplo.
O que por sua vez poderia induzir a defraudar a razão de ser da norma bem como o princípio da lealdade processual, pois que bastava haver conluio entre arguidos, de forma que um deles protelasse a sua notificação até data que se afigurasse conveniente, com vista a protelar o prazo, sabendo que assim o prazo do requerimento de abertura de instrução apenas teria início a partir da notificação do último arguido.
E se assim fosse não seria compreensível o prosseguimento do processo «quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes» determinado pelo n.º 5 do artigo 283.º do CPP.
Como bem assinala Paulo Pinto de Albuquerque (23): «O artigo 113.º, n.º 12, não impõe novos deveres ao MP. Se assim é, o MP também não tem o dever de notificar a acusação duas vezes (uma para o arguido contestar e outra para o arguido exercer o direito previsto no artigo 113.º, n.º 12, informando que um ou mais arguidos não foram notificados) se só alguns arguidos estiveram presentes e forem notificados da acusação. Por isso não há duplicação da notificação da acusação, uma para os efeitos do artigo 287.º e outra para os efeitos do artigo 283.º, n.º 5, feita aos arguidos já notificados para os termos do artigo 287.º [...]» 9.2 - Sendo o prazo de requerimento de abertura de instrução um prazo peremptório, o que releva para efeitos do n.º 12 do artigo 113.º do CPP, é o termo do prazo, terminus intra quem, e não o seu início, ne ante quem, relativamente aos co-arguidos notificados da acusação.
Não se pode exigir à lei mais do que ela consente: Cui plus licet quam par est, plus vult quam licet.
O disposto no aludido artigo 113.º, n.º 12, tem pois subjacente que todos os arguidos tenham sido notificados da acusação, e que os respectivos prazos para, eventualmente, requererem a abertura da instrução se encontrem ainda a decorrer, embora terminem em datas diferentes, pois que se terminarem na mesma data do prazo do interessado em accionar o disposto no artigo 113.º, n.º 12, ou, se já tiverem mesmo terminado, é manifesto que esse interessado não poderá tirar daí qualquer proveito, em termos de prazo.
Compreende-se a solução legal, quer por um lado, porque permite aos arguidos uma defesa conjunta, sem todavia impor essa solução, quer, por outro lado, porque o juiz só declarará aberta a instrução, uma vez esgotado o respectivo prazo, e podendo ser este temporalmente diferenciado em resultado de notificações da acusação havidas em momentos distintos, bem podem os arguidos querer exercer essa defesa conjunta, ou não querendo, só após o decurso do prazo que ocorrer em último lugar, está o juiz em condições legais de delimitar o objecto da instrução, perante as posições processuais apresentadas por cada requerente, e assim, formar um juízo sobre o conjunto de actos de instrução que «entenda dever levar a cabo», como determina o artigo 289.º, n.º 1, do CPP.
Sendo certo ainda que deve ter-se em consideração a referência interactiva da instrução na produção dos respectivos efeitos, quanto a todos os arguidos, mesmo que algum não requeresse a abertura da instrução, pois que impende sobre o juiz o dever de «retirar da instrução as consequências legalmente impostas a todos os arguidos» (dever este aliás imperativo mesmo perante a circunstância de ter sido requerida a instrução apenas por um dos arguidos) - artigo 307.º, n.º 2, do CPP.
Nenhum direito fica tolhido, nem existe qualquer atraso para qualquer diligência que não poderá ser iniciada sem que o prazo de 20 dias concedido a todos os arguidos notificados se mostre efectivado, de forma a que possam «todos, ou cada um deles», como diz a lei, praticar o acto até ao último dia do último prazo ainda em curso, ou seja, «até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar.» J - Termos em que se fixa a seguinte jurisprudência:
«I - O despacho do Ministério Público a ordenar o prosseguimento do processo nos termos do artigo 283.º, n.º 5, do CPP, é um despacho de mero expediente e, por isso, não carece de ser notificado aos sujeitos processuais, nomeadamente aos arguidos já notificados da acusação, podendo estes requerer a abertura da instrução no prazo de 20 dias a contar dessa notificação, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, do CPP.
II - Havendo vários prazos para esse efeito, a correr em simultâneo, ainda que não integralmente coincidentes, a abertura de instrução pode ser requerida por todos ou por cada um deles, até ao fim do prazo que terminar em último lugar, nos termos dos artigos 287.º, n.º 6, e 113.º, n.º 12, ambos do mesmo diploma.» Mantêm a decisão recorrida, à luz da jurisprudência ora fixada - artigo 445.º, n.º 2, do CPP.
Cumpra-se o artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Novembro de 2010. - António Pires Henriques da Graça (relator) - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Isabel Celeste Alves Pais Martins - Manuel Joaquim Braz - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - António Silva Henriques Gaspar - António Artur Rodrigues da Costa - Armindo dos Santos Monteiro - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - José António Henriques dos Santos Cabral - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - José Adriano Machado Souto de Moura - Eduardo Maia Figueira da Costa - Luís António Noronha Nascimento.
(1) In Diário da República, 1.ª série-A, n.º 157, de 10 de Julho de 1992.
(2) In Diário da República, 2.ª série, de 22 de Fevereiro de 2000.
(3) Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, 2.ª ed., 1963, p.
160.
(4) Figueiredo Dias, Direito Processual Penal; Primeiro Volume, Coimbra, Editora Limitada, p. 97.
(5) Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Livraria Almedina, Coimbra, 1981, p. 31.
(6) Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, p. 297, n. 10.
(7) «A ressalva referida no n.º 2 alude ao regime dos crimes semipúblicos e particulares, em que o exercício da acção penal está dependente de queixa ou de acusação particular.», Manuel Lopes Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado: Legislação Complementar, 17.ª ed., 2009, p. 627, n. 5.
(8) As restrições são as referentes aos actos a praticar - previstos no artigo 268.º -, e aos actos a ordenar ou autorizar previstos no artigo 269.º, ambos do CPP, pelo juiz de instrução.
(9) Ibidem, p. 131.
(10) Stefano Riccio, La preclusione Processuale Penale, Milano: Dott. A.
Giuffrè, 1951. p. 42.
(11) Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, anotado, 17.ª ed., p. 278. n.
3.
(12) Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Editorial Verbo, 1993, p. 34.
(13) José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, v, 250.
(14) Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. iii, Almedina Coimbra, p. 95.
(15) Paulo Pinto de Albuquerque, ibidem, p. 732, n. 14.
(16) V. citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 54/2000, de 3 de Fevereiro.
(17) J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ibidem, p. 519, iii.
(18) Idem, ibidem, p. 417.
(19) J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, p. 499.
(20) Ibidem, vol. iii, p. 49.
(21) Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, ed. 76, p.
38.
(22) Código de Processo Penal Anotado, 17.ª ed., 2009, p. 293, n. 5.
(23) Ibidem, p. 207.